SERES “RODRIGUEANOS”
A explanação que fizemos sobre a via simbólica do ser humano, tão bem manifestada na
civilização da Grécia Antiga através da mitologia, vem servir como suporte reflexivo para tecermos algumas considerações sobre dois dos trabalhos desenvolvidos pelo artista visual pernambucano, Rodrigo Braga. Eles são: “Da Alegoria Perecível” e “Da Compaixão Cínica”, ambos realizados no ano de 2005.
Aparentemente diferentes, as duas obras estão bem mais próximas do que podemos
imaginar. Elas apresentam um “algo em comum”, que nos faz reverberar por entre as fronteiras
do tempo áureo e sagrado do Mito.
Como Gaia, a mãe-terra, Rodrigo gera e expele para o meio externo, exóticos, horrendos
e, mesmo, sedutores seres. Os quais possuem aproximação com a maneira como é estruturada
e descrita a conceituação, de que temos das chamadas “espécies mitológicas”.
Terra primeiro pariu igual a si mesma Céu constelado, para cercá-la toda ao
redor e ser aos Deuses venturosos sede irresvalável sempre. Pariu altas montanhas, belos abrigos das Deusas, ninfas que moram nas montanhas frondosas. E
pariu a infecunda planície impetuosa de ondas, O Mar, sem o desejoso amor.
Depois pariu do coito com Céu: Oceano de fundos remoinhos e Coios e Crios e
Hipérion e Jápeto e Téia e Réia e Têmis e Memória [....] Pariu ainda os Ciclopes
de soberbo coração: Trovão, Relâmpago e Arges de violento ânimo
(HESÍODO,2003).
A simbiose com a natureza é uma constante nesses trabalhos. Como numa espécie de
alomorfia, o artista funde à estrutura de seu corpo partes ou fragmentos de animais e plantas, tais
como: vísceras, escamas, folhas e flores. A princípio, as imagens causam certa inquietação e até
um leve mal-estar, mas depois vem à sensação de encanto acompanhada por um misto de curiosidade, deleite e poesia.
No trabalho “Da Alegoria Perecível”, por exemplo, deparamo-nos com um total de oito
fotografias só do rosto do artista, onde, a partir de posições, trejeitos, caracterizações e olhares
diferentes, ele compõe figuras simbólicas que parecem emergir de realidades abstratas, encravadas no que há de mais íntimo entre o homem e a natureza.
Estas figuras, por sua vez, metamorfoseiam a face de Rodrigo em máscaras. Objetos,
que nas tradições gregas, assim como as civilizações de Minos e Micenas, eram utilizados
durante os rituais das cerimônias e das danças sagradas: máscaras funerárias, máscaras
votivas, máscaras de disfarce e máscaras teatrais.
As máscaras de teatro sublinham os traços característicos de um personagem. Ela é mais
que uma face artificial e grotesca. “A máscara implica uma comunicação recebida e aceita, faz o
espectador entrar em um círculo não real sugerido pelas formas que ele adiciona ao rosto
humano” (Duvignaud, 1983).
O ser mascarado emana, portanto, mistério como também revelação, pois ele mostra uma outra
face sobre um rosto conhecido. Suscita uma emoção diversa da emoção comum, sugere outras condutas e
implica a outras experiências. Essa sensação estar bem implícita na obra “Da Alegoria Perecível”.
Já em “Da Compaixão Cínica”, o valor expressivo das máscaras não está tão enfatizado, o que
predomina mais é a relação de teor “antropo-zoomórfica”, ou seja, a fusão homem-bicho vivificada num
único ser, como num retorno aos tempos primordiais.
Nas três fotografias que constituem esse trabalho, observa-se que partes do corpo do artista
parece ser completada com pedaços corpóreos de outros animais, seguindo uma espécie de gestalt
“animalesca”. Assim, seus membros superiores são implementados com a pata de um boi, seu corpo é
restituído com a cabeça de um peixe e, por fim, tem a estrutura de seu pé adornado por pés de galinhas.
SUBTERFÚGIO MITOLÓGICO
Especificidades a parte, o certo é que essas duas obras de Rodrigo Braga emanam uma
magia puramente mitológica, calcada, sobretudo, na gestação de seres extra-humanos, tão
estranhos como Cérbero, o cão de três cabeças, corpo de leão e cauda de serpente, guardião
dos antros infernais; fortes e brutais como os Centauros, metade homem e metade cavalo; e
seres tão fabulosos e cruéis como às Sereias, espécies de mulher-peixe, que cativavam com o
seu canto, os marinheiros e os faziam naufragar de encontro aos recifes.
Os “seres Rodrigueanos” descendem das “espécies mitológicas”. Incitando o observador
a mergulhar por entre os confins da capacidade imaginativa, rompendo com a anestesia do olhar,
tão acostumado, coitado, a mesmice, a um mundo de idéias ou conceitos previamente mastigados, onde já não há tempo para pensar, pois a lógica que o rege é bem outra.
Como um sedutor de almas, o artista segue os passos de Zeus, a maior divindade do
Olimpo, que em busca de atingir suas conquistas adquiria a forma de vários bichos: Touro para
raptar a bela princesa de nome Europa; cisne para seduzir Leda, mulher do rei Tíndaro de Esparta; e águia para seqüestrar, seu grande amor, o príncipe troiano Ganimedes. O qual foi transformado, em seguida, no copeiro do Olimpo.
RETORNO AOS PRIMÓRDIOS
Por intermédio de seus seres, Rodrigo Braga parece, também, realizar um retorno ao pensamento
mágico dos nossos primeiros ancestrais, onde se tinha a idéia de que a arte era possuidora de um caráter,
especialmente, “encantatório”, servindo como instrumento mágico que se prestava a ajudá-lo no seu
relacionar com a natureza e na convivência com os demais.
Assegurando, inclusive, o sustento da coletividade. A isso, Aquino chama de magia simpática ou
propiciatória: “o homem imita o objeto de seu desejo. Os temas eram os animais (bisões, mamutes etc.),
geralmente apresentados transpassados por flechas ou lanças, a fim de garantir o alimento coletivo”
(AQUINO, 1980).
Em seus primórdios, a função da arte era a de conferir poder ao homem, e nada tinha a ver com a
contemplação estética. Simplesmente, compreendia uma arma da coletividade humana na adaptação e no
descobrimento do planeta.
Carregado de superstições e crendices, os homens viam na arte a possibilidade de elevar seu poder
e de enriquecer a vida. Por meio da realização de atos mágicos e ritualísticos, acreditavam adquirir o controle sobre as mais diferentes situações e coisas.
Embora, de maneira divergente da dos nossos ancestrais, o artista Rodrigo Braga, tanto em “Da
Alegoria Perecível” como em “Da Compaixão Cínica” se camufla e assume a aparência de figuras animalescas e simbólicas, carregadas de leituras, com o intuito, simplesmente, de atrair aqueles que as observam.
Ana Cecília Soares
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2009 Rodrigo por Ana Cecilia Soares