WOODSTOCK: DE IMPROVISO A MARCO CULTURAL DO SÉCULO XX Carla Alves Ribeiro Martins - Universidade Estadual do Oeste do Paraná1 Introdução Apresentar minimamente o Festival de Woodstock, ocorrido no ano de 1969 na cidade de Bethel - Estados Unidos, que movimentou quase meio milhão de pessoas em três dias de “Paz e Amor”, regados a chuva, lama, sexo, drogas e muito rock’n’roll, é o objetivo deste texto. Marco dos anos 1960, o festival foi o espelho da sociedade e suas manifestações culturais, como o movimento hippie e a ascensão do rock como um novo estilo musical, contestatório a tudo o que fora estabelecido até o momento. A emergência dos mesmos articula-se ao momento socioeconômico que vivia os Estados Unidos, tempo de prosperidade após crise e guerras, tempo do novo estilo de vida, imortalizado no “american way of life”. A oposição ao consumismo, à intervenção norte-americana na Guerra do Vietnã, ao mundo bipolarizado e tantas outras causas, culminou na realização do festival. Apresentamos aspectos históricos do festival na primeira parte e na segunda, algumas considerações sobre os hippies, o rock e o movimento de Contracultura em que estão inseridos, ressaltando que a popularização e internacionalização da música, tornou-o mais um produto de consumo, mas que não retirou sua característica profícua de oposição a ordem social estabelecida. Festival de Woodstock O Festival de Woodstock ou Woodstock Music & Art Fair aconteceu no verão de 1969 nos dias 15, 16 e 17 de agosto, na cidade de Bethel, estado de Nova York (MARIUZZO, 2009). Foi organizado na Fazenda de Max Yasgur2, mas estava planejado para a cidade de 1 [email protected] Proprietário da fazenda onde aconteceu o festival, foi processado por seus vizinhos por danos materiais causados pelos fãs e indenizado em U$ 50.000 pelos estragos em sua propriedade. Menos de dois anos após o festival vendeu a propriedade e após sua morte recebeu um memorial na sua antiga fazenda como homenagem pelo seu papel na história da música. Disponível em: < http://www.woodstockstory.com/maxyasgur.html>. Acesso em: 09 agost. 2013. 2 Woodstock, cidade natal de Bob Dylan3, porém a população não aceitou (LESSA, s/d) Considerado como uma grande marca para o rock, reuniu 500.000 jovens sob o lema three days of peace and music (três dias de paz e música). A movimentação, não esperada e nem planejada para o festival, foi tão grande que estradas ficaram bloqueadas, muitos foram os voluntários (freiras, médicos, enfermeiras, etc) para atender a multidão. Sua realização só foi possível graças aos esforços de Michael Lang, John P. Roberts, Joel Rosenman e Artie Kornfeld (LESSA, s/d). Roberts e Rosenman, planejavam fazer uma comédia para a televisão e colocaram um anúncio no New York Times e no Wall Street Journal chamado “Jovens com capital ilimitado buscam oportunidades de investimento legítimas e interessantes e propostas de negócios”. Michael Lang e Artie Kornfeld queriam criar um estúdio de gravação em Woodstock, já que vários artistas como Janis Joplin, Bob Dylan, Jimi Hendrix entre outros estavam mudando para o local e queriam um estúdio avançado. Por indicação de seu advogado, os quatro reuniram-se em fevereiro de 1969 (DIAS, 2007)4. Ao som de The Who5, Jimi Hendrix6, Santana7, Joe Cocker8, Creedence Clearwater Revival9, Janis Joplin10, Grateful Daed11, entre outros (BARCINSKI, 2004), totalizou trinta e duas participações musicais (SILVA, 2010). O projeto visava retorno financeiro, para tanto os ingressos ficaram disponíveis em lojas de discos ou poderiam ser comprados via correio, custavam 18 dólares antecipadamente 3 Cantor e compositor norte-americano de rock-folk, um dos ícones da contracultura. É considerado um dos maiores compositores do século XX. Disponível em: <http://www.e-biografias.net/bob_dylan/>. Acesso em: 09 agost. 2013. 4 Toda História de Woodstock 69. Texto e direito autorais de: The Times Herald - Record – 1994.Tradução: Helen Dias. Adaptação e texto final: Mário Santos. Disponível em: <http://escoladorock.wordpress.com/2007/10/02/toda-historia-de-woodstock-69/>. Acesso em 09 agost. 2013. 5 Banda britânica criada na década de 60, sendo uma das mais influentes para a história do rock, devido a sua energia, sonoridade única à sua época e suas performances de palco. Teve seu auge nos últimos anos da década de sessenta até a metade dos setenta, com sua formação clássica. No princípio de sua carreira a banda ficou famosa por arrebentar completamente seus instrumentos no final dos shows. Disponível em: < http://www.lastfm.com.br/music/The+Who/+wiki>. Acesso em 09 agost. 2013. 6 Mesmo após sua morte nos anos 1970, é reverenciado como um dos maiores guitarristas da história. Disponível em: < http://www.woodstockstory.com/jimihendrix.html>. Acesso em 09 agost. 2013. 7 Banda que leva o nome do guitarrista mexicano Carlos Santana, foi a influência latina no festival. Disponível em: < http://www.woodstockstory.com/santana.html>. Acesso em 09 agost. 2013. 8 Nascido na Inglaterra ficou conhecido por cantar músicas de bandas famosas como Beatles. Disponível em: < http://www.woodstockstory.com/joecocker.html>. Acesso em 09 agost. 2013. 9 Banda californiana de country rock. 10 Considerada como uma das mais belas vozes da música, a cantora texana morreu muito jovem vítima das drogas. No Festival, depois da espera de 10 horas e o estado frágil devido às drogas, seu desempenho foi considerado fraco, pois não exibiu todo seu talento. Disponível em: < http://www.woodstockstory.com/janisjoplin.html>. Acesso em 09 agost. 2013. 11 O nome da banda significa “vida e morte”, o Festival de Woodstock era o melhor lugar para uma banda psicodélica estar, porém devido a chuva e alguns choqueS o desempenho não foi tão brilhante, o que não significa que seu estilo não convencional e imprevisível não continuasse a ter seus ouvintes. Disponível em: < http://www.woodstockstory.com/gratefuldead.html>. Acesso em: 09 agost. 2013. ou 24 dólares no dia, antecipadamente foram vendidos 186 mil ingressos e a expectativa era de 200 mil pessoas. As mais de 500 mil pessoas derrubaram cercas e tornaram o evento gratuito (GARCIA, 2010). Para Zannoni (2011) a gratuidade do ingresso se deu pelos participantes não poderem pagá-lo, assim como pela motivação que os movia a reunir-se numa experiência nova de paz e amor. Nos três dias chuvosos e com muita lama, os jovens não se preocuparam com o desconforto, o cansaço, era o momento de cultuar a liberdade, a paz, o amor, a música, a generosidade, a comunhão, a harmonia. “Apesar da total falta de infra-estrutura, engarrafamentos e dificuldade de acesso, o que pairava neste microcosmo era os ideais de pacifismo, de cooperação, do espírito de comunidade. As regras e leis tinham ficado do lado de fora dos portões daquela imensa fazenda” (THIBES, 2012, p.12). “As drogas tornaram-se legais e a liberdade para o amor era total” (FIALHO; DUARTE, 2012, p. 03), momentos como os do festival eram comuns nos Estados Unidos, sendo registrados como um símbolo do movimento hippie. Para além da adesão ter sido inesperada – as autoridades viram-se mesmo obrigadas a declarar “estado de emergência”, atraindo as atenções de todo o mundo, o Festival foi filmado e documentado. Michael Wadleigh deu origem ao documentário "Woodstock" que permitiu corporizar em imagens duradouras a iconografia hippie e a contra-cultura rock. “Woodstock” ganhou, em 1971, um Oscar para “Melhor Documentário” (FIALHO; DUARTE, 2012, p. 03) No festival foram integrados diversos estilos musicais; como o folk12 (pacifista e crítico da sociedade), o rock, representante do movimento de contestação dos valores tradicionais, “o blues, com sua melancolia que havia décadas já mostrava as contradições da sociedade norte-americana, a cítara de Ravi Shankar13, representando a presença marcante da influência oriental na contracultura, entre outros” (FIALHO; DUARTE, 2012, p. 03-04). Os jovens que participaram do festival foram impulsionados e desejosos de mudança, contrários a Guerra do Vietnã, à subida de Richard M. Nixon ao poder, proclamando a igualdade entre os homens, a liberdade, a paz e o amor. Um dos marcos do festival foi o Hino 12 Músicas enormemente influenciadas por elementos do folclore (narrativas populares, instrumentos musicais, estilos de cantar, sonoridades) dessas regiões. Os anos 1960 marcaram a consagração do gênero, graças principalmente à atualização do folk feita por Bob Dylan e pelo engajamento dos principais artistas folks no movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos. Disponível em: <http://lazer.hsw.uol.com.br/musicafolk.htm>. Acesso em 09 agost. 2013. 13 Líder humanitário internacional, o indiano dedica-se a elevar os valores humanos, eliminar o estresse e a violência da sociedade, por meio da capacitação e melhoria da qualidade de vida do indivíduo. Disponível em: < http://www.artedeviver.org.br/srisri2012/sri-sri-ravi-shankar>. Acesso em 09 agost. 2013. Nacional Americano tocado por Jimi Hendrix, “entrecortado pelo som das bombas que caíam no Vietnam, nos efeitos de sua guitarra Fender Stratocaster14” (ZANNONI, 2011, p. 06). Tiber (2009) apud Zannoni (2011, p. 02) assim o descreve: Não houve crime nem violência no festival. Não houve tumultos, nem estupros, nem ataques aos moradores. [...] Um espírito verdadeiro de generosidade, colaboração e comunidade tomou de conta das pessoas na fazenda do Yasgur. Dava para ver nos sorrisos largos, nos sinais de paz constantemente mostrados e na ajuda que ofereciam a desconhecidos. Mesmo as condições difíceis não diminuíram o clima festivo nem o amor e o carinho que as pessoas demonstraram umas às outras (TIBER, 2009, 279280). Uma das características marcantes do Festival, apresentadas no Livro “Woodstock – quarenta anos depois, o festival dia a dia, show a show”, é a nudez, algo inédito nos anos anteriores “Woodstock, que foi o marco principal da revolução jovem de 1960, [...], deixa claro que esta era uma atitude desconhecida e evitada até estes jovens contestarem os antigos valores, tabus e preconceitos vigentes na época” (THIBES, 2012, p.05). No ano de 1970 foi lançado o filme do festival, apresentando o rompimento com hábitos e costumes solidificados das gerações anteriores, além de ampliar mundialmente a repercussão dos novos ideais (THIBES, 2012). Para Nascimento (2012), festivais como o Woodstock eram a expressão da contestação da cultura vigente, por meio do uso de drogas e a prática do sexo livre. Sua repercussão, no entanto, por muitos era vista com indiferença, ou não tinham conhecimento do que estava acontecendo ou consideravam os movimentos alternativos sem objetivo algum, “simplesmente uma colossal libertação de sentimentos reprimidos” (ARON apud THIBES, 2012, p. 08). Para Thibes (2009, p. 08) as iniciativas dos movimentos alternativos, contrários ao estabelecido “são geralmente entendidas como maléficas e desestruturadoras, e julgadas através de um olhar já construído do que é correto e equilibrado”. Quando se propõe o novo e evidencia-se o desejo de transformação, a primeira reação é de crítica e desacordo. Assim, observamos também comentários mais incisivos sobre aqueles acontecimentos revolucionários de 60. Ainda remetendo ao livro sobre Woodstock, temos a crítica da americana, romancista e dramaturga Ayn Rand, que comparou o bemsucedido vôo da Apollo 11 à Woodstock, que aconteceram com apenas um 14 A Fender tem vários modelos de guitarras, mas a mais importante e influente de todas é a Stratocaster. A marca foi fundada em 1946 por Leo Fender, sendo que a Stratocaster apareceu em 1954, trazendo a alavanca de vibrato, possibilitando a “torção” das cordas. Disponível em: <http://www.mundomax.com.br/blog/instrumentos-musicais/fender-stratocaster-a-guitarra/>. Acesso em 09 agost. 2013. mês de diferença, para colocar o primeiro nas alturas e arrasar sem misericórdia o segundo. “No meu artigo ‘Apollo 11’ discuti o significado e a grandeza do pouso na Lua... Ninguém pode duvidar que vimos uma conquista do homem na sua capacidade de ser racional – uma conquista da razão, da lógica, da matemática, da total dedicação ao absolutismo da realidade. Por outro lado, os hippies são uma demonstração viva do que significa desistir da razão e confiar nos primitivos ‘instintos’, ‘impulsos’, ‘intuições’ – e caprichos. Com tais ferramentas, eles são incapazes até de agarrar o que precisam para satisfazer seus desejos – por exemplo, o desejo de ter um festival” (THIBES, 2012, p. 08/09). A mudança de perspectiva e o festival foi ao encontro do que esperavam os jovens, pois se mostrou “como um lugar acolhedor e fraternal”, ressaltado pelos números, estimava-se 75 mil pessoas e no terceiro dia estavam presentes 500 mil pessoas (THIBES, 2012, p. 11). Richie Havens, o primeiro cantor a se apresentar no Festival, complementa, por fim, o seu significado: Eu tenho explicado Woodstock sob a perspectiva da infra-estrutura. Por que tanta gente foi lá? Não foi apenas música. Nem apenas sexo, drogas e rock’n’roll como a mídia gosta de dizer. Eu falo que o que aconteceu em Woodstock foi que todos estiveram lá por causa dos problemas comuns que tínhamos, questões dos anos 50 com os quais tivemos que lidar nos anos 60, uma temática ampla que ia dos direitos das mulheres à Guerra do Vietnã passando pelos direitos civis. Como conseqüência, o que aconteceu foi o que chamo de ‘acidente cósmico’. Ninguém sabia que 850 mil pessoas iam aparecer. No que diz respeito à música, mais da metade das pessoas no palco jamais havia visto algo parecido. E isso foi a mágica de tudo (THIBES, 2012, p. 12). Mariuzzo (2009) assim resume o Festival: Realizado com boa dose de improviso, inclusive no nome, o plano era que o encontro ocorresse na cidade de Woodstock, que durasse só três dias, que não chovesse torrencialmente, que os músicos seguissem o programa estabelecido, ao invés de tocarem noite adentro, mas apesar disso, ou por causa disso, o festival causou, sim, muita sensação (MARIUZZO, 2009, p.60). Para Silva (2010) o festival tornou-se um marco histórico e cultural, de gosto musical a estilo de vida e principalmente do público jovem, que à época resultou no aumento significativo do movimento hippie nos Estados Unidos. Hippies, rock e contracultura15 15 Tomamos por contracultura o movimento de contestação aos padrões sociais vigentes, iniciado principalmente por jovens de classe média nos anos 1960. A criatividade do período do Festival de Woodstock, representada nas manifestações artísticas, ia de encontro ao racionalismo e consumismo instigado pelo capitalismo. O rock, expressão de arte, também representou o “descontentamento e a rebeldia juvenil, e que frisava a importância da imaginação para se liberar as potencialidades humanas até então reprimidas” (NASCIMENTO, 2012, p. 204). Juntamente com a emergência do rock anos antes, outro fenômeno movimentou a sociedade norte-americana: o adolescente. Nos períodos anteriores não se considerava esta faixa etária, o adolescente precisava trabalhar e ajudar os pais no sustento da casa, o que refletia os momentos de crise pelo qual o país havia passado; as duas grandes guerras e a crise de 1929. Não havia produtos voltados ao público jovem, pais e filhos apreciavam as mesmas músicas e filmes (BARCINSKI, 2004). Lopes (2005) considera que as gerações que se formaram após a II Guerra Mundial eram compostas por sobreviventes que foram amadurecendo, marcando época nos “Anos 50”, pois nas experiências de “guerras e ditaduras, as juventudes têm seus mitos e utopias esterilizadas, porque comungam de um rito o qual amadurecem-lhes precocemente, cerceando radicalmente o que resta da inata inocência que ainda carregavam desde a infância” (LOPES, 2005, p.03). Após a II Guerra Mundial, os Estados Unidos entraram num momento próspero, a economia movimentou-se e o jovem começou a consumir produtos produzidos especialmente para ele, como filmes que retrataram essa nova fase; O Selvagem (1954) com Marlon Brando e Rebelde sem Causa (1955) estrelando James Dean. Com a ascensão de Elvis Presley, a rebeldia tornou-se moda e junto com ela a percepção do potencial de consumo dos jovens. Livros, revistas, filmes e uma infinidade de produtos foram produzidos, o que permitiu a expansão do rock na América. O novo estilo de música passou a ser um reflexo da sociedade, da moda, do comportamento e das atitudes dos jovens, numa total sincronia com o seu tempo (BARCINSKI, 2004). A cultura de massa voltada ao público jovem, juntamente com o advento do rock configurou-se como uma revolução à tradição juvenil, os jovens adeptos ao rock não aceitavam mais viver sob ordens paternas ou modelos pré-estabelecidos seja no modo de ser, agir ou vestir. O aparecimento do primeiro estereótipo de roqueiro com visual despojado, corte de cabelo ou penteado diferente, comportamento fora dos padrões representou a ascensão da música e de uma cultura nova, que logo espalhou-se pelo mundo, internacionalizando o rock como um símbolo da juventude (RAMOS, 2009). O nível inédito de consumismo atingido pelos Estados Unidos no pós guerra, levou grande parte da população a viver o novo estilo de vida, o “american way of life”, este porém, não ficou restrito ao país, tornando-se objeto de exportação. A soma; cultura do rock e o “american way of life” internacionalizou um novo padrão de comportamento juvenil, que para a indústria fonográfica norte-americana tornou-se um ramo a ser explorado, já que as músicas teriam um público que despontava com suas exigências próprias (RAMOS, 2009). Mesmo sendo um ritmo que chocava os padrões da época - para Baugh (1994) a qualidade do rock é o ritmo, próprio para dançar. “Na dança, a ligação entre a música e o corpo do ouvinte é imediata, mais sentida e manifestada do que pensada. Uma canção ruim de rock é aquela que tenta e falha ao inspirar o corpo a dançar” (BAUGH, 1994, p. 20) - as músicas não apresentavam teor crítico, “sendo assim, em termos ideológicos, este ritmo naquele momento não representou mais do que o protesto de uma geração “pós-guerra” para a qual a vida parecia estar desprovida de sentidos lógicos e que se rebelava contra os pais ou os padrões sociais vigentes, atacando-os através das roupas e do comportamento que em muito já delineava a revolução sexual que explodiria nos anos 60, principalmente depois da mini-saia e da pílula anticoncepcional”(RAMOS, 2009, p.05). O rock como objeto de consumo, passou a ser o desejo dos jovens, que aspiravam seguir o que assistiam e ouviam. A sua comercialização, no entanto, não tirou sua legitimidade de manifestação cultural, que já no seu nascedouro causou estranheza em relação aos padrões da época “apesar de seu forte aproveitamento pela indústria cultural, ele foi um ritmo de potencial extremamente transformador (RAMOS, 2009, p.06)”. Sobre a comercialização, alguns aspectos precisam ser ressaltados; apropriada pela indústria fonográfica, nada mais que uma instituição capitalista, o objetivo é produzir um produto que possa ser vendido comercialmente e que tenha aceitação do público; “Assim, dentro desta concepção, esta música fruto desta indústria ainda pode passar ao consumidor a “pseudo-impressão” de original e diferente, apesar de sua “padronização” e “produção em grande escala”. Isso porque, a indústria cultural, ao responder às demandas capitalistas, pode produzir também a impressão de que os “produtos” produzidos por ela são realmente frutos da criatividade do artista e o público, por sua vez, ao consumir tal produto, também tem a impressão de estar sendo guiado pela subjetividade, quando na verdade só está consumindo mais do mesmo” (RAMOS, 2009, p.06). Porém, mesmo sendo resultado da indústria cultural, não se podem padronizar os tipos de arte como vazios de significados na transformação da sociedade. “A consciência de se estar preso dentro dos moldes alienantes da indústria cultural pode empurrar os sujeitos à eterna crítica de seus “produtos”, fazendo emergir daí a resistência à padronização” (RAMOS, 2009, p. 07). Os produtos jamais são recebidos com passividade, assim como também não são os sujeitos e mais, “o fato da indústria cultural se apossar de determinado tipo de arte, transformando-a em geradora de lucros, não consegue tirar o seu significado cultural, contestador e transformador” (RAMOS, 2009, p.09). O momento histórico mesmo sendo considerado próspero representava ao jovem insatisfação, autoritarismo e injustiça, o mundo estava em plena Guerra Fria16 com dois blocos hegemônicos, capitalismo e socialismo, disputando política, econômica e ideologicamente o mundo, por meio de uma guerra armamentista, tecnológica e nuclear, já que uma luta aberta e direta poderia destruir a Terra. Para sedimentar o capitalismo e coibir o alastramento do socialismo, os Estados Unidos na Guerra do Vietnã apoiou o Vietnã do Sul num regime anticomunista (THIBES, 2012). O movimento de contestação chamado contracultura, emergiu nos Estados Unidos nos anos 1960, liderado por jovens de classe média, objetivava outra sociedade, um mundo alternativo, no qual reinaria o poder das flores. Resultante desse “cair fora” do estabelecido, os hippies, os naturalistas17 assim como o misticismo18 e o psicodelismo das drogas19 despertaram comportamentos distintos aos das gerações anteriores (FRÖHLICH, 2011). Um dos mais significantes movimentos deste período foram os hippies, defendiam o amor livre e a não-violência, sob o lema “Paz e Amor”, protestavam a favor de direitos civis e políticos, igualdade social e contra valores tradicionais, geralmente relacionados à economia e ao poderio militar (SILVA, 2010). O movimento começou a despontar nos anos 1940, e uma década depois expandiu-se: 16 Tomamos por Guerra Fria o conflito iniciado pós II Guerra Mundial onde dois blocos hegemônicos disputavam o poder – capitalismo /Eua e socialismo/URSS. Constitui-se numa corrida armamentista, tecnológica e nuclear. 17 Entende-se por naturismo “o conjunto de práticas de vida ao ar livre em que é utilizado o nudismo como forma de desenvolvimento da saúde física e mental das pessoas de qualquer idade, através de sua plena integração com a natureza” (THIBES, 2012, p. 04). 18 Doutrina filosófica e religiosa, segundo a qual a perfeição consiste numa espécie de contemplação, que vai até o êxtase e une o homem à divindade. / Intensa devoção religiosa (Dicionário do Aurélio. Disponível em: < http://www.dicionariodoaurelio.com/Misticismo.html>. Acesso em 05 ago. 2013). 19 Estado psíquico de quem está sob a ação de um alucinógeno, do grupo representado pela dietilamida do ácido lisérgico (D.L.S., mais conhecido pela sigla do inglês L.S.D.), e por alcalóides como a mescalina e outras substâncias. Dicionário do Aurélio. Disponível em: < http://www.dicionariodoaurelio.com/Psicodelismo.html>. Acesso em 05 ago. 2013. Nos café e clubes de jazz juntavam-se para conversar e declamar poesia. Foi destes espaços que emergiram os "Beatniks", caracteristicamente vestidos com roupas informais, os homens de barba, usando óculos escuros a qualquer hora do dia. Usavam frequentemente a expressão "I'm hip". Diziase que o seu modo de se expressar era "hip", e havia quem lhe chamasse "Hipsters". A expressão ir-se-ia desenvolvendo até chegar a "Hippies" (FIALHO; DUARTE, 2012, p.02). Saindo dos cafés, o movimento hippie ganhou as universidades, sendo as mais polêmicas a de Berkley20 e a Universidade de Michigan, onde os estudantes ao serem proibidos de distribuírem material de protesto ocuparam o edifício principal da universidade e realizaram a primeira ação a fim de mostrar a atuação “imoral” dos Estados Unidos na Guerra do Vietnã respectivamente. Organizados no movimento estudantil protestavam contra o racismo, a pobreza, a inferioridade de direitos femininos, a falta de liberdade de expressão. “A Guerra do Vietnã começou gradualmente a ser contestada. Os protestos e manifestações tornaram-se freqüentes, por vezes em confrontação com a polícia” (FIALHO; DUARTE, 2012, p.02). O período em que vivia a sociedade norte-americana era um choque aos princípios hippies, que preferiam um estilo de vida comunitário, valorizando a natureza, numa espécie de socialismo-anarquista ou nomadismo. A negação ao nacionalismo, às guerras, aos ideais da classe média e toda gama de características que lhe eram próprias, os levaram a abominar “o patriarcalismo, o militarismo, o poder governamental, as corporações industriais, massificação, o capitalismo e o autoritarismo” (FIALHO; DUARTE, 2012, p.02). Auge do movimento hippie, o Festival de Woodstock foi um marco da contracultura (FIALHO; DUARTE, 2012), porém, para Fléchet (2011) a palavra contracultura não abarca todos os interesses envolvidos na organização de um festival; A contracultura constitui apenas uma das faces ou interfaces dos festivais. Aliás, o uso deste termo no singular já é problemático em si, já que a significação e as implicações da música da contracultura variam muito em função do momento político vivido por uma sociedade. Apesar de a palavra ser idêntica em várias línguas, a contracultura não se desenvolve de maneira semelhante no contexto de regimes democráticos e de regimes autoritários, nos quais os artistas enfrentam censura, prisão e exílio.(FLÉCHET, 2011, p.267) 20 O mais antigo e famoso campus da Universidade da Califórnia foi um das principais responsáveis pela invenção da bomba atômica e, por outro lado, um dos maiores palcos dos movimentos pacifistas dos anos 60. É um centro de pesquisa de ponta e ganhou vários prêmios Nobel. Disponível em: < http://super.abril.com.br/cotidiano/uc-berkeley-445210.shtml>. Acesso em: 09 agost. 2013. Para Nascimento (2012) alguns jovens contestavam e atacavam os códigos da sociedade num movimento de dentro para fora, pois tinham acesso a cultura vigente no sistema de ensino e estavam inseridos no mercado de trabalho, mas desejosos de sair dessa realidade. “Não era essa uma juventude propriamente marginal, mas, sim, uma juventude que se marginalizou ao produzir um novo modo de interpretar o mundo com apoio no uso de drogas alucinógenas que ajudavam a ampliar as percepções sensoriais do corpo humano” (NASCIMENTO, 2012, p.209). A televisão, a Igreja e o consumismo eram os temas mais confrontados pelos jovens da Contracultura. Tudo isso era visto não apenas como ferramentas de controle do Estado, mas também como agentes do empobrecimento das percepções e das experiências humanas. Na década de 1960, as propagandas já chegavam às casas das famílias por meio da TV. Aumentou-se o consumo de produtos, o capitalismo funcionava a todo vapor. Vivia-se uma maior prosperidade social e econômica depois das duas extenuantes grandes guerras mundiais. A cultura de massa florescia e a televisão se consolidava como o principal meio de comunicação (NASCIMENTO, 2012, p.215). Janis Joplin, cantora texana, na música “Mercedes Benz” satiriza o consumismo da sociedade norte americana, assim como entende sua importância para a ordem capitalista “Oh Deus, você não quer comprar uma Mercedes Benz para mim? Todos meus amigos dirigem Porsches, eu preciso estar à altura” (NASCIMENTO, 2012, p. 218). Para Lopes (2005) a contracultura teve nos hippies e no rock, seus maiores representantes “cair fora de todas as amarras sociais era o sonho desses jovens. O casamento, a família e todas as instituições sociais calcadas em um padrão a ser seguido foram objetos de críticas de grande parte da juventude que viveu esta década e este movimento” (LOPES, 2005, p.13). Essa geração, que se acreditava capaz de fazer grandes transformações sociais, alcançou seu apogeu no Festival de Woodstock, sob o lema “Paz e Amor” e ao som do rock. Considerações Finais Nos limites deste trabalho, pudemos constatar a relevância histórica do Festival de Woodstock, a disseminação de princípios que contestavam relativamente a ordem social capitalista vigente e acima de tudo, a oposição ferrenha a medidas governamentais norte americana, num festival que seria apenas um encontro de hippies e protesto contra a Guerra do Vietnã, ao capitalismo, a favor da sedimentação do conceito de liberdade ao amor, às mulheres, à vida em sociedade. O rock tocado apresentava caráter contestatório, inserindo-se em movimento de contracultura. O festival representou o fortalecimento de uma nova cultura musical, iniciada na década de 1950 nos EUA. O rock’n roll revolucionou a tradição juvenil, transformando jovens em contestadores de modelos sociais pré-estabelecidos, a começar pela vestimenta. Porém, o novo padrão de comportamento dos jovens, foi apresentado como típico de uma sociedade desenvolvida e consumista, internacionalizou-se, e acabou sendo exportado para vários países com o auxílio da indústria de cinema sob o lema “American way of life”. O rock comercializado apresenta-se como mais um produto a ser consumido, como era propagandeado pela indústria fonográfica e cinematográfica. O desejo dos jovens era seguir o que ouviam e viam. A influência da sua comercialização descaracterizou-o como um modo de ver o mundo e uma mensagem ideológica de protesto. Consideramos que a autenticidade do festival Woodstock e seus resultados para o rock foi, em parte, deturpada pela mesma sociedade capitalista que os motivou a construir uma nova sociedade pacifista e comunitária, porém a sua comercialização não conseguiu descaracterizá-lo como um movimento de contestação, pois os sujeitos que o consomem não são passivos. Os hippies, também representantes da Contracultura, ávidos por uma nova sociedade integrada à natureza, não conseguiram por em prática seus ideais e alterar o incorrigível e irreformável capitalismo, o rock não mudou a sociedade, mas foi um reflexo de mudanças e tendências. A luta por mudanças sociais também está presente no século XXI, no mês de junho do presente ano, milhares de jovens uniram-se e foram as ruas protestar, convocados pelo Movimento Passe Livre (MPL) - que para Leher (2013) é um movimento de esquerda, que defende alianças com os trabalhadores - por passe livre no transporte público, gradativamente ampliou-se o repertório de reivindicações: saúde, educação, reforma política, oposição as privatizações, à corrupção, entre outros. Passados os protestos, o que se vê no cenário nacional é a ausência da materialização das propostas presidenciais, que diante da amplitude do movimento convocou a união nacional em favor da tão propalada democracia, discurso esse contestado por Leher (2013, s/p); Assim, o verdadeiro motivo que impulsiona a tal união nacional é o afastamento dos manifestantes das ruas e da agenda da crise capitalista: desemprego, perda de poder aquisitivo, inflação, precarização do serviço público advindo dos sucessivos e bilionários cortes no orçamento do Estado, novas privatizações, leilões de bacias petrolíferas, etc. Diante desse quadro fica a pergunta: será capaz a juventude imbuída de boa vontade, com pautas diversas suplantar o voraz capitalismo? É possível, dentro desta sociedade, considerando todas as suas mazelas inerentes, isolar-se num movimento de recuo e aversão pacifista, tal como queriam os hippies? A história, desde o Festival de Woodstock, o rock, o movimento hippie e até os levantes atuais, nos mostra o contrário, porém, deixa em aberto a possibilidade de concretizar mudanças mais significativas. Referências BARCINSKI, André. Rock’n’roll: Um, dois, três, quatro! Superinteressante. out. 2004. Disponível em: <http://super.abril.com.br/cultura/rock-n-roll-dois-quatro444901.shtml#?utm_source=redesabril_jovem&utm_medium=facebook&utm_campaign=red esabril_super& >. Acesso em 10 abril 2013. BAUGH, Bruce. Prolegômenos a uma estética do rock. Tradução do inglês. MACHADO, Duda. Novos Estudos – CEBRAP, n. 38, março 1994, p. 15-23. Disponível em: <http://www.novosestudos.com.br>. Acesso em 29 jul. 2013. FIALHO, Carlos Eduardo; DUARTE, Silvia Valéria Borges. Os invisíveis: novos hippies na sociedade contemporânea. In: Anais do Congresso Internacional Interdisciplinar em Sociais e Humanidades. Niterói RJ: ANINTER-SH/ PPGSD-UFF, 03 a 06 de Setembro de 2012. 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