Semana Acadêmica
Congresso Estadual de Teologia
Culto de abertura
Lucas 24,13-35
P. Dr. Rudolf von Sinner
Graça a vós outros e paz, da parte de Deus, nosso Pai, e do Senhor Jesus Cristo. (Rm
1.7)
Prezada comunidade,
Andar em lugares desertos, ainda mais depois de um evento muito traumático, não é
nada agradável. Melhor é não estar andando sozinho. Quem mora numa cidade
brasileira como Canoas, Passo Fundo, Pelotas, Porto Alegre, São Leopoldo, Santa
Maria, Santo Ângelo, mas também em muitos outros lugares no mundo sabe como é
estar exposto à violência diária – a assaltos, roubos, furtos, violência sexual, violência
no trânsito, a lista é longa. Sempre melhor não estar sozinho nestes momentos. Na
dupla, dá para pegar coragem, proteger-se, intervir onde for preciso, ao menos chamar
ajuda e não ficar abandonado. Além de dar mais segurança, é possível botar o papo
em dia, falar dos acontecimentos recentes, verificar como o amigo, o irmão, a esposa,
de qualquer forma uma pessoa de confiança vê aquilo que ocorreu. Chegando uma
terceira pessoa, desconhecida, assim de repente, parece como intrusa. Não é
estranho pensar que a primeira reação seja: “Deixe-nos em paz.” Já temos mais do
que o suficiente a nos preocupar conosco mesmo. Além disto: o que esta pessoa
quer? Quer esmola? Quer nos vender algo? Quer nos enrolar? A desconfiança reina,
às vezes por boas razões.
I.
O estrangeiro nos ensina
Para os discípulos vindo de Jerusalém e estando a caminho de Emaús não foi
diferente. O caminho, de cerca de 11 km, era deserto, perigoso, numa região pouco
hospitaleira. Assim ao menos pressuponho, pois ninguém sabe com certeza onde
ficava a tal de Emaús. Para a dinâmica da narrativa, pouco importa. Dois discípulos
estavam a caminho. Um chamava-se Cleopas, do colega não ficamos sabendo o
nome. Ou da colega. Talvez tenha sido uma mulher, talvez a mulher de Cleopas. É
típico que não ficamos sabendo com certeza se é assim ou não, desconhecemos o
nome dela. As mulheres andam pouco visíveis – e ainda assim mais visíveis na Bíblia
do que era comum no contexto da época. O silêncio, de qualquer forma, também fala.
Uma leitura atenta descobre a voz dos que não recebem destaque.
Não andaram a sós, mas como dupla. Protege, dá companhia, dá o que falar.
De repente, aparece um estranho que se aproxima. Chama a atenção dos discípulos.
Se intromete na conversa. É sensível, pois repara que não estão nada bem. Estão
entristecidos, e o intruso pergunta pela tristeza deles. Mostra empatia. Ao mesmo
tempo, se mostra ignorante. Parecia não saber de nada do que tinha acontecido,
coitado. Os discípulos se padecem. Mas também se irritam: “És o único, porventura,
que, tendo estado em Jerusalém, ignoras as ocorrências destes últimos dias?” Como é
que pode? Nós, leitoras e leitores da narrativa, que já conhecemos a narrativa inteira e
sabemos que são eles os ignorantes, parece hilário. Mas para eles, quem era o
ignorante era aquela pessoa desconhecida. Ele ainda confirma que não sabe: “Quais
[ocorrências]?” O casal deve ter pensado: Vamos explicar a ele, então. Começam a
falar. E falam bastante. Faz bem falar. Ao explicar o inexplicável ao estranho que lhes
encontrou, começam também eles a compreender melhor. “Esperávamos que fosse
ele quem havia de redimir a Israel” (v. 21). Sim, o Messias haveria de ser poderoso,
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redimir Israel, expulsar os opressores. Mas nada disso ocorreu. As expectativas, que
eram grandes, estavam profundamente frustradas. Jesus apenas ouve, não diz nada
naquele momento.
Ao longo da conversa, contudo, a situação muda. Agora é Jesus quem fala,
explica. Agora são eles, os que tanto falaram, de repente, os ignorantes. São eles que
não tinham entendido e que precisavam de esclarecimentos. E o intruso, estranho, de
repente está no meio da história. Inicialmente, não fica nada mais gentil que Cleopas:
“Ó néscios e tardos de coração para crer tudo o que os profetas disseram!” Está
dizendo: vocês não entenderam nada! Vocês que acharam que eu fosse o ignorante,
na verdade são vocês que o são. Importa ressaltar que aqueles dois não estavam
ignorantes em relação aos eventos em Jerusalém, estes eles conheciam bem.
Conheciam a realidade, o contexto, sem o qual não se pode, não se deve fazer
teologia. Mas se mostravam ignorantes quanto à Escritura, aos profetas, pois não
conseguiam compreender que o ocorrido era exatamente o que tinha sido anunciado.
Jesus, naquele momento o estranho desconhecido, intruso, colocava os eventos no
todo da Escritura. Diferente da fala dos discípulos, amplamente relatada, aqui fica em
uma frase implicado o que Jesus teria dito, como diz o texto, “o que a seu respeito
constava em todas as Escrituras”. É a famosa leitura cristológica do Antigo
Testamento da qual ouvimos falar na dogmática. Às vezes ela funciona como patrola e
acoberta muitas riquezas contidas nas Escrituras. Precisamos ter consciência disto.
Para os cristãos, contudo, é a leitura central da fé. É isso que importa como princípio
hermenêutico da Escritura toda, conforme Lutero: Was Christum treibet – o que
promove o Cristo. É esse o critério, aqui corroborado pelo evangelista Lucas.
II.
Hospedar o estrangeiro
Retomo o texto. De repente, o que desandava para uma discussão bíblico-teológica,
volta ao cotidiano. Estavam chegando ao lugar para onde pretendiam ir. Jesus parecia
querer continuar o caminho, mas, como diz Lucas “eles o constrangeram”. Tiveram
que insistir com aquele estranho que parecia desconhecer os perigos da hora e do
local. O contexto, realmente, conheciam melhor. A noite chegou, é perigoso andar no
escuro, é preciso descansar, comer. A lei do deserto obriga os que se encontram a
oferecer, inclusive ao estranho, o mínimo para a sobrevivência: Proteção, água,
comida. Sem essa hospitalidade básica não dava para sobreviver num mundo tão
pouco hospitaleiro. Mas, além desta hospitalidade básica, já estavam sentindo que
eles precisavam da presença daquele estranho. Sentiram que era alguém que
pudesse trazer algo importante para eles. Não por último, eles mesmos se sentiram
estranhos neste mundo. Se sentiram deslocados após o Mestre tê-los, assim parece,
abandonado. Nesta situação, precisavam tanto da permanência deste desconhecido
quanto queriam oferecer companhia a ele para sua segurança. “Fique conosco” é um
convite, mas também um chamado de desespero. Depois, ao partilhar o pão,
finalmente o reconhecem. Não é qualquer estranho que estão hospedando, é Ele
mesmo. Já tinham intuído, agora sabem. É um incentivo para nós também: Vamos
ficar atentos, pois o estranho que hospedamos pode ter muito a nos dizer. Pode ser
um representante de Cristo. Ainda que seja diferente. Ainda que esteja à margem da
sociedade. Ainda que seja mulher, que seja jovem, pessoas à época pouco ouvidas –
e ainda hoje muitas vezes não ouvidas ou compreendidas.
III.
Momentos de interpretação: Cristo vivo, Palavra viva
Prezada comunidade, aprendemos muitas coisas deste texto tão rico. Como
somos aqui um Congresso de teólogas e teólogos, entre aqueles que querem sê-lo e
aqueles que acham que já o são – me incluo em ambas as categorias – vale destacar
três momentos muito importantes para uma hermenêutica bíblica. É o Evangelho, são
as Escrituras que nos unem, que nos congregam, que nos fornecem elementos para
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nosso debate ecumênico. São elas que nos fornecem elementos para interpretarmos
este mundo louco de hoje, tão diverso e, muitas vezes, profundamente estranho. Mas
como lê-las? Como impedir que fiquemos numa eterna briga sobre letras, palavras,
textos? Como fazer uma leitura que nos deixe reconhecer o Cristo ressurreto no
mundo?
Primeiro: não é o texto que é a Palavra, mas é o Cristo vivo. Apenas ao ouvir
Ele, ao caminhar com ele, ao “arder nosso coração” ainda que não o reconheçamos, e
ao reconhecê-lo propriamente no partir o pão é que conseguimos compreender seu
Evangelho, sua boa nova. O cristianismo não é uma religião do livro, é uma religião da
Palavra, e da Palavra viva, do Cristo presente mediante o Espírito Santo. É Ele
também a chave hermenêutica que nos permite distinguir o essencial do não
essencial, pois é Nele que Deus se tornou humano. É em Jesus de Nazaré que Deus
resolveu caminhar junto com os seres humanos, como um deles, humilde, mas
exatamente nisto poderoso. Acabou no fracasso total, humanamente falando, na cruz.
Pela ressurreição, é a razão de estarmos todos e todas aqui hoje. É por causa Dele
que este texto antigo que tanto estudamos em nossos seminários e nossas faculdades
continua nos dizendo respeito. Quem escreveu, foi movido pelo Espírito Santo. Quem
está lendo, está movido pelo Espírito Santo. Quem explica, é o Cristo presente no
Espírito. Ao mesmo tempo, mostra-se como nossa compreensão é precária: não
temos nós posse dela. A verdade não nos pertence. O Cristo presente, uma vez que
se mostrou e os discípulos conseguem reconhece-lo, logo desaparece. O Cristo
presente é também o Cristo ausente. Deus se revela em Cristo, mas também fica
misterioso, abscôndito, não nos deixa ter poder sobre Ele pelo conhecimento. Por isso,
sempre de novo invocamos o Cristo, invocamos o Espírito Santo, para que nos ilumine
para sentir a presença da Palavra e compreendê-la sem prendê-la.
Segundo: Uma vez que não é a letra que importa, mas Aquele que se deixou
conhecer através da letra, importa não ater-se a citações isoladas. É preciso ler o
conteúdo todo, tendo em mente que não é tudo que conta do mesmo jeito.
Conhecemos o famoso exemplo de quem achou que Deus conduzia o dedo para,
aleatoriamente, escolher versículos bíblicos para ter, imediatamente, sua regra de
conduta. O sujeito pegou a Bíblia e chegou ao seguinte versículo: “Então, Judas,
atirando para o santuário as moedas de prata, retirou-se e foi enforcar-se” (Mt 27.5).
Não ficou claro para o leitor o que era para ela fazer, portanto procurou mais outro
versículo pelo dedo. Chegou no seguinte, à moral da história do Bom Samaritano: “Vai
e procede tu de igual modo.” (Lc 10.37) Ainda o leitor estava com dúvida: Será que era
para fazer isto mesmo? Tentou uma última vez e meteu o dedo no seguinte versículo,
no grande discurso de despedida de Jesus, no Evangelho de João: “O que pretendes
fazer, faze-o depressa” (Jo 13.27). Espero que nosso leitor imaginário não tenha
cumprido o que estava lendo... Mas fica claro que não é assim que devemos ler a
Bíblia. Antes, ver as grandes linhas, aquelas que ficam reforçadas ao longo da Bíblia e
resumidas em textos como este, de Emaús. Aqui, em poucos versículos, já temos um
resumo daquilo que importa.
Terceiro: A palavra não fica apenas na fala, mas remete à ação. Jesus deve ter
falado bastante com os discípulos, embora seja resumido em apenas três versículos,
sendo um de introdução. Mas o reconheciam primeiro no partir do pão, na partilha.
Depois se deram conta de que também o coração deles ardia. Algo que no meio de
tanta fala como a costumamos praticar na academia tende a ficar ofuscado. A fala,
quando fica sozinha, não acompanhada da ação, fica fria, tediosa, distante. Quando se
une à ação, fica palpável, tangível, visível, partilhável. Começa a fazer outro sentido.
Quando vim ao Brasil para trabalhar, há 12 anos, fiz uma meditação para jovens e
experientes lideranças ecumênicas em Salvador, Bahia. Acho que minha reflexão foi
boa, mas não chegava às pessoas. Depois a minha chefe me explicou: Sabe, Rudolf,
aqui, antes de mais anda, precisamos de um abraço! Aliás, de vários abraços! Assim,
também hoje nos cumprimentamos, saudamos, apertamos a mão ou nos abraçamos
no início e, novamente, no sinal da paz. No final, vamos partilhar o pão. Os próprios
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discípulos de nossa narrativa partem para ação: convidam o estrangeiro para sentar e
comer com eles. Jesus age ao, sendo o convidado, mostrar-se como anfitrião, partindo
e partilhando o pão.
IV.
São gestos que fazem a diferença
São os gestos que fazem a diferença, em conjunto com a fala. Pode-se falar muito e
dizer pouco. Pode-se dizer muito ao falar pouco, utilizando outros meios para
comunicar-se. O atual papa, Francisco, parece ter este dom: fala relativamente pouco
e diz muito, e mostra com gestos a que veio: ser um papa humilde, simples, de
serviço, especialmente aos pobres. Quem poderia esquecer seu gesto de lavar os pés
de jovens infratores – não na opulenta basílica de São Pedro, mas na prisão. Estes
jovens, inclusive uma jovem muçulmana, nunca vão esquecer disto. Nem nós, que o
acompanhamos de longe. É um forte testemunho do serviço da igreja para fora dela.
Uma igreja não aprisionada em si mesma, mas indo ao encontro dos outros – dos
jovens, das pessoas em atritos, inclusive de outras religiões, sem pedir nada em troca.
Isto é missão. Isto é evangelização, conforme o exemplo do Cristo. Que possa nos
nortear esta rica narrativa nesta semana e além, em nossa caminhada junto ao Cristo.
E a paz de Deus, que excede todo o entendimento, guardará o vosso coração e a
vossa mente em Cristo Jesus. (Fp 4.7) Amém.
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