III Seminário Internacional Organizações e Sociedade: Inovações e Transformações Contemporâneas Porto Alegre, 11 a 14 de novembro de 2008 GT Comunicações Livres Sujeitos, identidades e estratégias no Uruguai das migrações Alex Martins Moraes Sujeitos, identidades e estratégias no Uruguai das migrações Alex Martins Moraes* Introdução A República Oriental do Uruguai possui uma história marcada por importantes fluxos migratórios. Em decorrência da sua condição histórica de território “fronteira” entre dois impérios coloniais e depois da independência, de país pequeno, Estado “tampão” entre os dois gigantes da América do Sul, os processos de migração internacional estiveram historicamente relacionados com este país. Podemos identificar dois grandes movimentos que, ao longo dos períodos históricos incorporaram maior ou menor importância para a conformação das dinâmicas demográficas nacionais: a chegada de mão de obra européia durante o século XIX e início do século XX e a emigração levada a cabo tanto por uruguaios como pelos próprios migrantes povoadores do Uruguai (Moraes Mena, 2008). Após rupturas sociais causadas, primeiro pela quebra da ordem constitucional decorrente do golpe de Estado cívico-militar de 1973 e posteriormente pela crise econômica de finais da década de noventa, ficou claro que a emigração, que já vinha sendo encarada como característica estrutural da sociedade uruguaia, atinge seu auge em momentos específicos de crise. Os êxodos uruguaios, encarados aqui como diáspora, suscitaram reconfigurações na ordem familiar, cultural e social do Uruguai. Novas dinâmicas identitárias surgem no contexto das emigrações e um conjunto de percepções, tanto com relação aos que se foram como com respeito aos que ficaram, passa ser tematizada em redes de interação que, muitas vezes, extravasam fronteiras nacionais e abarcam os mais variados agentes. Tais circuitos de intercâmbio influenciam na produção de uma situação de emigração no Uruguai e possibilitam a geração de um espaço nacional ampliado no âmbito do qual os sujeitos negociam identidades e elaboram estratégias. * Alex Martins Moraes é graduando em Ciências Sociais na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e pesquisador do Núcleo de Antropologia e Cidadania da mesma instituição. [email protected] Desde o ano de 2006, realizo observação participante e aplicação de entrevistas junto a uruguaios residentes em Porto Alegre e Montevidéu. O trabalho de campo se insere numa investigação mais ampla 1 sobre a construção de identidades em um contexto densamente povoado por experiências de deslocamento e migração como é o caso da sociedade uruguaia, especialmente a partir da segunda metade do século XX2. O presente ensaio reflete percepções sobre dados da pesquisa empírica já sistematizados. Nos dois primeiros momentos do texto, narro as experiências de Dolores e Claudia – ambas minhas interlocutoras – depois que seus filhos emigraram. Mesmo tendo vivido situações análogas, as duas acionaram estratégias diferentes para enfrentá-las. Na última parte do ensaio, partindo da idéia de que, no Uruguai dos últimos anos se veio consolidando uma situação de emigração, proponho, analiticamente, o encontro entre minhas entrevistadas. Suas estratégias estão circunscritas e são possíveis no marco de uma conjuntura ao mesmo tempo ampla e específica, em cujas dinâmicas internas participam uma multiplicidade de agentes que interagem e significam a migração ao longo de grandes tensionamentos. Encontro com Dolores Julho. Tomo um ônibus no Centro de Montevidéu. A cidade está cinzenta e a temperatura baixa na medida em que avança a tarde. Vinte minutos depois, desço em uma parada próxima a esquina das ruas Rivera e Obligado: edifício antigo, timidamente espremido entre construções mais recentes. Aperto o número quatro no interfone e, ao cabo de alguns segundos, uma voz me diz que suba sem que fosse preciso eu me identificar. Dolores3 me abre a porta do seu apartamento com um sorriso no rosto. Havíamos conversado algumas vezes por 1 A pesquisa “Patria peregrina: construção de identidades no contexto da diáspora uruguaia” se realiza como atividade de iniciação científica no Núcleo de Antropologia e Cidadania (NACi) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 2 Ver TAKS, Javier: Migraciones internacionales em Uruguay: de pueblo trasplantado a diáspora vinculada, disponível em http://www.revista-theomai.unq.edu.ar/numero14/ArtTaks (5 de dezembro de 2007) e COLOMBO, Valeria, DEBELLIS, Mariela: Uruguayos más allá de las fronteras. Una aproximación a la temática de los vínculos transfronterizos in Revista Uruguaya de Ciencias Sociales, Universidad de la República, Montevidéu, 2004. 3 Utilizo, neste ensaio, nomes fictícios para meus interlocutores. telefone para marcar nosso encontro, por isso dispensamos, num acordo tácito, as formalidades que se reservam aos estranhos. Sentados a mesa, não foi difícil começar a conversar, pois tínhamos um conhecido em comum, seu filho, que fazia mais de uma década havia se mudado definitivamente para o Brasil. Enquanto a neblina e o anoitecer iam apagando a paisagem urbana que se via da janela, Dolores remontava uma história familiar pautada por partidas e regressos, pela distância, pelas viagens, pela migração. Sozinha em seu apartamento, recebe, vez que outra, a visita de vizinhos e, por telefone, se comunica com os dois filhos que, atualmente, vivem fora do Uruguai: um deles, Antonio, reside em Porto Alegre, Brasil. A outra, Alejandra, se encontra em Ibiza, Espanha. Antonio e Alejandra foram construindo suas vidas no exterior, consolidaram relacionamentos e levaram a cabo projetos profissionais que, de forma cada vez mais definitiva os afastavam do Uruguai. No início foi difícil para Dolores lidar com as ausências, entretanto, com o passar dos anos, conformouse. Nunca deixou de sentir saudade: Hace dieciocho años se fue Alejandra. Yo pasé seis años sin verla. Me mandaba postales, tarjetas, cartas, me hablaba. Yo sufrí tanto! (...) Antonio se fue primero en una beca. Estuvo en EEUU. Yo sufrí horrores. Fue en una beca intercambial. Después vino, estuvo un año y después se fue a Bolivia, Chile, Ecuador. Antonio está en pareja con una chica muy bien, muy buena. Mirá, cuando me enteré, la verdad que me quedé muy contenta porque sé que por lo menos está acompañado (...) Este… se quieren. Entonces me quedé más contenta. Está bien, no? Pero yo los extraño. Nos primeiros tempos que se seguiram a partida de Antonio, Dolores recebia, nos sábados e sextas-feiras, a visita dos amigos do filho. Passavam a tarde em sua casa, escutavam as novidades que chegavam por cartas, compartilhavam a falta que sentiam, resgatavam histórias passadas. O tempo foi correndo e estes encontros se tornaram cada vez mais raros, principalmente depois que Alejandra foi embora para a Áustria com seu namorado e o grupo se viu definitivamente fragmentado. A partir daí, só podia comunicar-se com os filhos por telefone, cartas ou fitas cassete com mensagens gravadas. Era grande a preocupação quando o carteiro do bairro, conhecido da família, batia na porta dizendo que os envelopes enviados para Antonio estavam retornando. Naquela época o filho encontrava-se em Medelín, Colômbia, e poucas vezes entrava em contato. Dolores chegou a recorrer, ao lado de seu marido, embaixadas estrangeiras em busca de alguma ajuda que lhe possibilitasse localizar o filho. Logrou pouco êxito em suas incursões e só após muitos dias de preocupação, quando estava na festa de aniversário de um sobrinho – que posteriormente também emigrou – recebeu uma ligação tranqüilizadora da irmã: Antonio tinha entrado em contato, estava bem e ligaria para casa dentro de vinte minutos. Agora que o filho reside no Brasil, é mais fácil encontrá-lo. Falam-se regularmente por telefone e têm a oportunidade de ver-se algumas vezes por ano. Com Alejandra fala por telefone e, vez que outra, recebe-a em Montevidéu durante as férias. Nunca esteve na Europa. Chegou a planejar o vôo transoceânico com o marido, mas este faleceu antes que pudessem empreendê-lo. Algumas vezes, Dolores pensou em ir embora do Uruguai, viver no mesmo país que os filhos, estar um pouco mais perto deles, mas nunca se mobilizou efetivamente nesse sentido, sente-se um pouco “trancada”. Hay momentos que yo soy um poquito achicada, me explica sorrindo. Os filhos, me conta Dolores, mudaram. Estão mais distantes, não apenas fisicamente, mas também espiritualmente. Ela sentiu o impacto da separação: por ejemplo, Antonio… tan... cómo te voy a decir, lindo, cariñoso. No. Ya como que está más alejado. Com Alejandra havia se encontrado em Janeiro, quando ela esteve em Montevidéu: este año (ella) estuvo mejor, me conta vagamente. Dolores sabe que não pode ser como antes. Os filhos, agora, são como visitas muito amadas, mas, ainda assim, visitas. Outras famílias conhecidas de Dolores também viram seus entes queridos emigrarem para o exterior. Ela chegou a intermediar o contato entre o filho de uma amiga, arquiteto de 38 anos, que decidira trabalhar na Espanha, e sua filha Alejandra. Ter acesso a outro compatriota que também esteja no país de destino é importante na visão de Dolores, para não chegar sozinho. Alejandra pôde encontrar-se com o rapaz, tomaram um café, conversaram, mas ela não voltou a vê-lo outras vezes, já que trabalha muito, retorna cansada para casa e quase não sai. Imersa num contexto de migrações, dois filhos residindo fora do país, acostumada com contingências e preocupações inerentes a distância e as viagens, Dolores reflete sobre a sua situação, sobre a situação de todos os demais, que se foram e que ficaram, sobre esse Uruguai que é palco de tantas despedidas. Montevidéu, para ela, é uma cidade cinza. Por supuesto que tiene sus encantos, pero por ahí uno los compara y...; O Uruguai, um país de altos aluguéis. Os preços são tão proibitivos que a maioria dos jovens, me conta, não pode morar sozinha. Alguns andares abaixo do seu apartamento, em uma época, moravam três estudantes, todos irmãos, oriundos da cidade de San José. Só podiam estar lá porque seu pai tinha condições que pagar-lhes sete mil pesos por mês. Mesmo assim, quando o seu avô faleceu e deixou uma casa, não hesitaram em se mudar. Sentiu-se só depois que os três deixaram de ser seus vizinhos. Costumava conversar bastante com eles. A opção de migrar, para Dolores, ainda é promissora e legítima: es tan triste, tan triste, pero... se van para otros lados porque, claro, no tienen un trabajo acá como para poder subsistir Minha interlocutora compartilha com outras pessoas a experiência de ter filhos no estrangeiro, ouve outras histórias permeadas pela ausência e, no limite, pela depressão e o desespero: y tengo otra señora amiga también, una compañera de trabajo, la mamá de Isabel, esa muchacha que te dije que venía acá. Sufrió horrible también. Tanto es así que ellos tienen unos bajones depresivos impresionantes! Impresionantes! Sozinha em seu apartamento, viúva há vinte anos, com um filho e uma filha emigrados há décadas, Dolores elabora suas percepções a respeito de si mesma e dos ausentes através de uma série de mecanismos. O contato com Alejandra e Antonio lhe permite perceber as mudanças que ela e eles sofreram ao longo da experiência migratória; pode, também, conceber e aceitar os novos papéis que cada um passou a ter no interior de uma rede familiar que se viu compelida, obrigatoriamente, a uma reconfiguração. Dividir com parentes e amigos as angústias da idade, das partidas e, eventualmente, da solidão, ajudou Dolores a vislumbrar um lugar para si num contexto de desfalques. Contexto este que lhe trouxe urgências específicas, às quais teve e tem que responder com novas estratégias. Encontro com Claudia Outro Julho. Desci de taxi na Rua Julio Sosa, Bairro Malvín, em Montevidéu. Finalizava uma das raras manhãs ensolaradas do inverno uruguaio de 2007. Caminhei alguns metros até a porta da casa de Claudia, dirigente de uma associação de pais que possuem filhos morando no exterior. Por coincidência chegamos juntos ao portão da residência. Claudia, uma senhora de cabelos brancos e olhos azuis, voltava do armazém após fazer algumas compras matinais. Por pouco não encontrei a casa vazia. Entramos juntos, acomodei-me no sofá da sala enquanto ela deixava na cozinha a sacolinha de compras. Logo começamos a conversar. Interessava-me saber sobre sua experiência enquanto mãe de um emigrado e integrante da Asociación de Padres con Hijos en el Exterior (APHIE). Suas atividades de dirigente da Associação pautaram quase toda a entrevista. Definitivamente, tinha uma militante diante de mim. Nas poucas vezes que usou a primeira pessoa do singular – na maioria dos casos empregava a terceira para se referir a “la gente” que sofre com as partidas – me contou que tem um filho morando no exterior há cerca de 20 anos. Ele navega pelo mundo a bordo de um navio que oferece apoio a governos e outras instituições na prevenção de catástrofes naturais. Primeiro emigrou para a Suécia, onde deu aulas de defesa pessoal. Posteriormente, foi chamado por uma empresa para trabalhar nos Estados Unidos. Ao que parece, a partir de então, sua rotina incorporou incrível mobilidade. Possui formação no Uruguai de piloto comercial. No Brasil especializou-se no manejo de helicópteros. Na última vez que conversou com o filho por telefone, Claudia soube que ele estava navegando em direção ao continente americano, aportaria no Rio de Janeiro para que sua equipe efetuasse a formação de pessoal para resgate em tragédias. Estarão, mãe e filho, mais próximos. Talvez possam se reencontrar depois de três anos sem ver-se pessoalmente. Quando propus a Claudia que me falasse um pouco sobre sua atuação na APHIE, o diálogo tornou-se ainda mais fluido. Ao fazer a síntese do trabalho desenvolvido pela Associação, minha interlocutora reconstituiu suas concepções com relação ao impacto social e familiar do que ela própria denominou 'diáspora'4 na vida dos uruguaios. Uma expressão emblemática que surgiu na fala de Claudia foi “duelo” (luto). O luto é a metáfora de que se utiliza para aludir à emigração. A missão dos que ficaram é superá-lo para poder atingir a resignação: La partida es un duelo. Que cuesta mucho lograr la resignación. Hay quienes la logran con más facilidad y hay quienes menos, no? A Asociacón de Padres con Hijos en el Exterior, que ela ajudou a fundar no ano de 1999, surgiu justamente da necessidade de um grupo de pais de migrantes de compartilhar sua angústia e tentar assumir a faticidade da distância. Em 2001, a APHIE obteve pessoa jurídica e se converteu numa ONG. Sem sede própria, realiza suas reuniões todas as terceiras sextas-feiras de cada mês no Ateneo, um centro de eventos da Plaza Cagancha, no Centro de Montevidéu. Nos “primeiros anos”, Claudia acredita que as pessoas custavam mais a se acostumar com as emigrações e a ausência delas decorrente. Foi então que houve uma grande procura pela Associação. Esses “primeiros anos” são os da crise econômica oriental5 que teve seu auge entre 1999 e 2002, período em que cerca de 200.000 uruguaios deixaram seu país para estabelecer-se em terras estrangeiras. Depois as pessoas deixaram de ir com tanta intensidade aos encontros da APHIE: Los primeros años no podían acostumbrarse a que había cambiado su vida, que la homogeneidad de la familia se había quebrado, porque ellos tenían otros proyectos de vida incluyendo a sus hijos. Si los hijos se van, la familia quiebra su homogeneidad. Entonces ahí tienen que tratar de aceptarlo, de asumirlo y emprender ellos su nuevo proyecto de vida porque no están todos allá. Entonces, es una impresión un poco personal que yo tengo, que en este momento la gente se ha acostumbrado más que se vayan. As pessoas, reflete Claudia, se acostumaram ao movimento. Este possivelmente seja seu caso também. As etapas que ela identifica ao longo da dolorosa mudança pessoal que tem início quando algum familiar vai embora – 4 Para uma síntese sobre a construção social da diáspora ver MORAES, Alex 2008 “Ninguém sairá ileso: construção social da diáspora e sociedade nacional ampliada no contexto uruguaio” Revista Kula, pp. 26-46 5 Há dois gentílicos que podem ser utilizados para denominar aqueles que nasceram na República Oriental do Uruguai: uruguaios ou orientais. luto, sentir-se angustiado, frustrado, compartilhar as dores e resignar-se – são as fases que ela atravessou. Essa concepção fundamenta o atuar de minha interlocutora como dirigente da APHIE, onde faz o possível para que cada nova pessoa que se aproxime do grupo receba o tratamento condizente com sua situação. Para tanto, os associados dispõem do auxílio de profissionais voluntários, entre eles, psicólogos e advogados. Com relação aos milhares de uruguaios que decidem ir embora, Claudia crê que se trata de uma postura sensata diante da falta de oportunidades laborais: te digo, el hecho de no poder conseguir trabajo de repente acá. La gente joven también va en busca de otro lugar donde pueda trabajar, no? Entretanto, quando alguém traz à Associação a informação de que algum parente está com planos de ir embora, Claudia me conta que antes há que dizer-lhes que valoren las cosas que tienen o las cosas a que aspiran y que jamás se vayan sin papeles. Que jamás se vayan así como una aventura porque eso es difícil, porque llegar allá sin tener nada, sin conocer a nadie... Ainda que esta, segundo Claudia, não seja a proposta da sua Associação, muitas vezes se faz necessário dar orientação com relação aos papéis exigidos para emigrar bem como colocar contatos a disposição para que o potencial emigrante saiba a quem dirigir-se no exterior. Claudia sonha com algum dia poder publicar um informativo onde filhos emigrados e pais que ficaram no Uruguai possam externar suas percepções, constituindo-se, assim, uma ponte de contato mais palpável e perene entre os de fora e os de dentro. O que transparece com maior força, contudo, no relato da minha entrevistada, é uma preocupação intensa com a vinculação interna, entre aqueles que ficaram. Ela valoriza essa rede de parentes propiciada pela APHIE. Nesta rede, a migração pode ser significada ao mesmo tempo em que se gestam novas formas de posicionar-se tanto em relação à família – que já não é mais a mesma quanto a sua constituição e nem tampouco homogênea no tocante aos projetos que abarca – como em relação à sociedade. Um ano depois de haver encontrado Claudia pela primeira vez, voltei a vê-la no Centro de Montevidéu, desta vez, participando de uma manifestação pela flexibilização das leis migratórias espanholas. Conversamos alguns minutos, fui apresentado a outras componentes da APHIE e, nas semanas seguintes, compareci a dois encontros da Associação, onde tive a oportunidade conhecer e entrevistar outras mães militantes que, como Claudia, encontraram no engajamento associativista uma resposta eficaz aos novos problemas engendrados pela ida dos seus filhos. Dos agentes aos sujeitos O termo 'diáspora', referido por Claudia durante nossa conversa, passou a circular amplamente na sociedade uruguaia, principalmente a partir da década de 80, quando os acadêmicos em geral, e mais especificamente os demógrafos, passaram a empregá-lo para referir-se ao enorme stock de uruguaios no exterior. As ondas migratórias uruguaias contemporâneas tiveram seu auge entre 1999 e 2002, quando mais de 200.000 pessoas deixaram o país para se estabelecer no estrangeiro. Atualmente, 15% dos uruguaios vivem fora das fronteiras nacionais (Pellegrino, 2008). Diante desse novo panorama social, começa a debilitar-se a idéia de país hiperintegrado que pautava o imaginário nacional desde o apogeu econômico oriental, representado emblematicamente pelos dois governos (1903-1907 e 1911-1915) de José Batlle y Ordóñez e por sua política de substituição de importações. Também surgem com mais intensidade na sociedade uruguaia de finais do século XX, novas formas de expressão étnica, como o discurso neo-indigenista e a idéia do “afro uruguaio”, que passa a ser assumida por alguns setores da comunidade nacional. O “afro uruguaio” se vincula a um ritmo musical específico, o candombe. Tal manifestação da cultura africana progressivamente vai deixando de ser um traço exótico mais numa cultura “transplantada” (Ribeiro, 1979:504), para tornar-se ferramenta de afirmação de etnias subordinadas que apenas recentemente encontraram ambiente propício para externar com mais liberdade suas particularidades e diferenças com respeito à sociedade dominante. Desta feita, os discursos de – e sobre a – diáspora não consistem num fenômeno isolado na sociedade uruguaia contemporânea. Estão estreitamente relacionados com a nova conjuntura pós-ditadura onde o discurso tradicional dominante se mostrou insuficiente para abarcar as intensas descontinuidades e divisões no tecido social. Diversos agentes tematizam e se posicionam com relação à migração e a diáspora na sociedade uruguaia. Na esfera estatal, o governo do presidente Tabaré Vázquez criou, em 2005, o “Departamento 20: La Patria Peregrina” - que consiste num órgão de vinculação oficial com os uruguaios residentes no estrangeiro - e lançou a proposta de formação de Conselhos Consultivos como espaços para a participação cidadã extraterritorial. A nova política migratória do governo, implementada pela recentemente instituída “Dirección General para Asuntos Consulares y Vinculación” e que funciona no âmbito do Ministério de Relações Exteriores, foi formulada sobre três eixos básicos: o serviço consular, o Registro de Nacionalidade e Cidadania – que busca mapear quais são os uruguaios que desejam seguir mantendo vínculo cidadão com o seu país – e um portal na internet cuja funcionalidade seria tornar mais fluida a comunicação com a diáspora e os Conselhos Consultivos. A grande imprensa nacional, por sua vez, deu contornos específicos ao “problema social” da diáspora. No marco de nossa inserção em campo, vimos a questão migratória ser algumas vezes avaliada pelos jornalistas como uma característica negativa da sociedade uruguaia: “un fantasma al acecho”, um fenômeno que “se lleva la gente”, nas palavras de Miguel Arregui, que escreve para o jornal El Observador. El País faz referência a “multitudinaria diáspora uruguaia” em matéria onde divulga o projeto de criação de um banco de dados para “mapear” os uruguaios que se encontram no estrangeiro. La República anuncia em uma manchete que “la diáspora uruguaya saludó la ley de retorno” e que “se exonera [de tarifas] cualquier otro tipo de pertenencias”, fato pelo qual “el automóvil no será un obstáculo para el retorno”. Nos periódicos é dado espaço, também, para as organizações não governamentais que oferecem apoio aos emigrados e seus parentes bem como para as associações de uruguaios no exterior – principalmente dos residentes na Espanha. Através da imprensa, ganham visibilidade grupos como a APHIE (Asociación de Padres com Hijos em el Exterior) - da qual Claudia é dirigente - e Idas y Vueltas, que possuem sua próprias concepções e práticas com relação ao “problema da migração” e a “diáspora”. A imprensa, as organizações da sociedade civil e a esfera governamental se influenciam mutuamente e possuem uma ascendência importante sobre a construção social da diáspora. Essa multiplicidade de agentes que, defrontada com uma realidade onde sobressai a migração massiva de cidadãos uruguaios, enuncia a diáspora, permite que se produza, no entramado social do Uruguai o que a antropóloga Lydia de Souza chama de “situação de emigração”. A “situação de emigração” alude ao contexto abarcador e dinâmico de todos os atores que intervêm no fato social da emigração; tanto os que ficaram, como os que se foram e aqueles que (coincidentes ou não), pertencendo a uma mesma comunidade de origem, se encontram dispersos nas redes migratórias nacionais e transnacional (...) nesse marco [o da situação de emigração] se inscrevem (...) as instâncias de decisão, concretização, afastamento, conseqüências negativas ou positivas que afetam a comunidade não somente de forma real, mas também no seu imaginário e que impactam fortemente sobre o âmbito familiar. (Souza, 2007:155) Tradução minha É justamente nesse contexto, que podemos localizar o encontro entre as narrativas de Dolores e Claudia. Tanto uma quanto outra passou pela mesma experiência de ver ir embora os filhos. Entretanto, as estratégias que acionaram para reconstruir seu lugar na família e na sociedade, para superar as angústias, o 'luto', nas palavras de Claudia, e as eventuais privações, foram distintas. Uma ajudou a fundar a Asociación de Padres con Hijos en el Exterior e engajou-se em diversos movimentos que reivindicam direitos para os emigrados. A outra buscou soluções na sua rede mais imediata de contatos, primeiro sendo amparada pelos amigos do filho que, mesmo após sua partida, seguiram freqüentando sua casa; depois, compartilhando suas percepções com amigas e parentes que tiveram experiências análogas a sua. Não conhece a APHIE, mas (re) conhece a intensa discussão que se dá no Uruguai a respeito do tema da migração, anima-se a opinar a respeito, divide seu ponto de vista, seus sentimentos e dramas com outras pessoas. Minhas duas interlocutoras estão posicionadas em pontos distintos do universo discursivo promovido pela diáspora, contudo, se vêem impelidas a expressar-se sobre a migração, pois são, de alguma forma, partícipes da mesma. No âmbito da “situação de emigração” que se estabeleceu no Uruguai, onde entrecruzam-se as posturas e as práticas de variados agentes, os sujeitos têm a sua disposição uma série de estratégias que podem ser adotadas. Tais estratégias estão circunscritas e ajudam a reproduzir e complexificar um novo espaço de interação social no Uruguai. Este espaço dilata-se, incorpora muitas vozes, convida os sujeitos a posicionarem-se, projeta-se, em alguns momentos, para além das fronteiras do Estado-nação e cria uma zona de interações e interconexões ampliada. O termo diáspora, evocado por vários agentes (imprensa, governo, associações de uruguaios dentro e fora do país), é altamente representativo desse contexto de deslocamentos que hoje em dia pauta com intensidade a vida e o discurso nacional dos uruguaios. O sujeitos – Dolores e Claudia, por exemplo – , por sua vez, quando falam de diáspora, o fazem impulsionados por certos motivos, movidos por determinados sentimentos, guiados por certas idéias e, fundamentalmente, desde lugares específicos do entramado social tingido pelas narrativas da migração. Nem sempre coincidem os pontos de vista, fato pelo qual se conforma um espaço de disputas onde circulam e são negociadas formas diferentes de significar experiências. Encaro a diáspora, portanto, como uma experiência coletiva – construída no âmbito da situação de emigração – que produz enunciações de caráter polifônico. Dolores e Claudia não estão vinculadas formalmente, mas sim associadas simbolicamente. Ambas ajudam a articular e significar discursos sobre os que se foram e os que ficaram, seus problemas e perspectivas. Ambas, uma vez que têm parentes residindo além das fronteiras, ingressam em novos circuitos de comunicação, viajam ao exterior para ver seus filhos, passam a encarar o Uruguai de outra forma, pois contam, agora, com um novo referencial – o lado de fora. E o “lado de fora” é visto desde um “lado de dentro” que, no momento da emigração, passa a não ser mais o mesmo, convertendose em palco de um processo complexo de mudança e adaptação. A nível macro, este fenômeno, que se manifesta de forma específica em cada segmento social, contribui para que os uruguaios construam suas referências identitárias, não somente em função da população do seu território, mas numa relação complexa entre uruguaios dentro e fora do país (Uriarte, 2007: 397). Referências Bibliográficas DE SOUZA, Lydia 2007 “Diluyendo las Fronteras: cultura de emigración en Uruguay”. 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