A FAMÍLIA TRANCE: uma introdução.1
Sandro Martins de Almeida-Santos (UnB)
Apresentando a pesquisa
O presente artigo traz algumas das primeiras reflexões de uma pesquisa que
ainda se encontra em fase de gestação. Minha intenção é desdobrar a discussão aqui
iniciada em um projeto de tese. Neste momento, apresento um esboço etnográfico a
respeito da noção de família cultivada pelos sujeitos que fazem parte da comunidade
imaginada transnacional identificada com a música trance (uma variedade de música
eletrônica de pista) e que está implicada nas práticas de acolhimento entre eles.
O Global Trance Movement2 tem chamado a atenção da antropologia (e de áreas
afins) a partir de diversas vertentes de estudos (música, religiões, rituais, drogas,
mobilidade, etc...). Hoje é possível encontrar boas leituras sobre festas e sobre as
experiências extáticas dos agentes engajados nesse contexto, bem como sobre os
discursos de identidade e sobre os deslocamentos de sujeitos entre importantes nós
dessa rede (uma publicação seminal é St John, 2004). Mas faltam ainda explorações no
sentido de explicar a reprodução desta comunidade, ou seja, como se dá o processo de
multiplicação de laços de afinidades e lealdades que permitem a essas pessoas se
reconhecerem como uma irmandade sem fronteiras, e que as coloca em movimento pelo
globo terrestre acompanhando os rituais periódicos?
Os estudos sobre transnacionalidade e migrações se apresentaram, em um
primeiro momento, como caminho que me parecia promissor, uma vez que trazem, para
o centro da discussão, a conformação de alianças entre sujeitos desterritorializados e o
tema do acolhimento. Quando não há evidência direta às relações de parentesco
consangüíneo e às obrigações de casamento, pode-se notar a existência de laços de
quasi-parentela entre os migrantes que assim se aliam para superar as dificuldades da
vida fora de sua comunidade de origem. (por exemplo em Levitt, 2000; ou Bash et alli,
1994) Diferentemente da maioria dos migrantes estudados pela antropologia da
globalização, os sujeitos da minha pesquisa não deixaram sua terra natal em busca de
1 Trabalho apresentado no 8o Encontro Universitário da Diversidade Sexual, de 08 a 12 de outubro de
2010, Campinas, São Paulo, Brasil.
2 Assim se identifica o coletivo sem fronteiras ou instituições formais. São idéias, ações, vidas em
fluxo. Um movimento em movimento.
1
melhores condições econômicas. Muitos largaram vidas confortáveis em nome de um
estilo de vida nômade que levanta suspeitas de todos os lados. No intuito de tentar
compreender essas vidas no mínimo polêmicas aos olhos dos governos, eu trago para a
discussão a argumentação “nativa” de que eles constituem uma família escolhida. Mas a
discussão de parentesco convencional (consaguinidade e alianças matrimoniais) não me
possibilita ir alem da idéia de uma rede de ajuda econômica.
A concepção de família por eles praticada é distinta da idéia de uma família
nuclear centrada na figura do ancestral patrilinear ou matrilinear. A utopia trance,
englobada pelas correntes espiritualistas da Nova Era, traz para o presente a necessidade
de um retorno ao suposto passado comunitário da espécie humana. Trazendo o princípio
do feminino para a fundação do universo, a Nova Era desafia as concepções
evolucionistas machistas, segundo as quais o advento da propriedade privada e a
centralização do poder aparecem como condições de transição entre barbárie e
civilização. Segundo os arautos dessa Nova Era, a verdadeira civilização, o ápice
evolutivo da humanidade, ainda está por vir através da re-conexão espiritual com a mãe
terra e do reconhecimento de uma fraternidade sem marcadores de diferença (Redfield,
1993), uma fraternidade ciborgue, nos termos de Donna Haraway.
A reivindicada existência dessa família trance sem patriarca e desterritorializada
sinaliza uma tentativa de construção de laços afetivos a partir de um sistema de
conhecimento não-hegemônico (herdeiro da contracultura dos anos 60). Mas como é
erguida e reproduzida esta família? Não posso, ainda, apontar conclusões, visto que não
faço ao longo do texto uma discussão teórica propriamente dita. Tudo o que aqui está
escrito são apenas pistas que possuo para perseguir a rede de afetos e lealdades
constituída pelas relações entre esses sujeitos que se dizem e se fazem uma família.
Conto com as sugestões pertinentes dos participantes desta mesa de debates.
2
Apresentando a família: neo-nomades, vilarejos globalizados e música eletrônica
"We are one global family
All colors, All races
One world united.
We dance for peace and the healing of our planet Earth
Peace for all nations.
Peace for our communities.
And peace within ourselves.
As we join all dance floors across the world,
let us connect heart to heart.
Through our diversity we recognize Unity.
Through our compassion we recognize Peace.
Our love is the power to transform our world
Let us send it out
NOW..."
The Prayer for Peace3
Marija Ludovic4 é uma mulher de quarenta e poucos anos. Há cinco anos atrás
ela conheceu Lukas Kappel, fato que transformou a vida de ambos.
Marija nasceu na Croácia e, com quatro anos de idade, foi com a sua família
para Frankfurt, na Alemanha. O pai, carpinteiro habilidoso, conta ela, havia se mudado
um ano antes para trabalhar. Àquela época, a Alemanha Ocidental, em momento de
pujança econômica estimulada pela chamada Guerra Fria, oferecia grandes atrativos
para os trabalhadores do leste europeu. A vida entre os alemães era disciplinada, e ela
agradece muito esta qualidade aprendida no país em que cresceu. Mas o excesso de
previsibilidade não atraia minha criativa interlocutora. Logo cedo, ela notou que a
excentricidade ali só era tolerada aos artistas. Aliando, assim, sua inquietude pessoal
com as possibilidades oferecidas pelo ambiente, enveredou pelas artes visuais.
Trabalhou alguns anos com mostras de imagens interativas em solo alemão até que, no
início dos anos 90, conheceu a ilha de Ibiza.
Ibiza, ou Eivissa (em catalão, a língua local), é um concorrido paraíso hedonista
localizado na costa leste da Espanha, a cerca de 90 km da cidade de Valência. Ibiza
pertence à comunidade autônoma das Ilhas Baleares, compondo, com mais três ilhas
(Mallorca, Menorca e Formentera) o arquipélago que dá nome à província. O hoje
3
O festival de música eletrônica Earthdance é uma celebração que ocorre simultaneamente em centenas
de localidades espalhadas pelo planeta. Desde 1997, este grande festival multi-localizado reúne
milhares de pessoas em torno de um ideal comunitário e pacifista. A canção “The Prayer for Peace”
será executada este ano (2010) no dia 18 de setembro, de maneira sincronizada, em mais de 500
eventos nos cinco continentes. Para os eventos situados na faixa correspondente ao horário de Brasília,
os botões de play serão apertados às 20h. http://www.earthdance.org/index.html
4 Os nomes próprios aqui empregados são fictícios.
3
professor da Universidade de Chicago Anthony D'Andrea, que fez campo 5 na ilha entre
1998 e 2003, conta que Ibiza, de acordo com a imprensa dedicada ao turismo, “é a
capital mundial dos clubs, onde estão as maiores e melhores casas noturnas do planeta”6
(D'Andrea, 2007: 42) Ibiza, cuja população recenseada 7 não passa de 110 mil
habitantes, atrai, na alta temporada, que compreende o verão europeu, mais de 1 milhão
e quinhentos mil turistas. A população migrante é flutuante e diversificada. Cerca de
metade dos moradores da ilha é composta por “non-Ibicencan”. Eles podem ser
trabalhadores oriundos da Espanha continental, que prestam serviços gerais; europeus
abastados, em sua maioria alemães e britânicos, que alugam um “segundo lar” e se
isolam da comunidade local durante a temporada de veraneio; ou ainda um segmento de
migrantes que não se encaixa nem na categoria de trabalhador nem na de turistas
meramente. “Eles não vêm em busca de melhores salários nem para reproduzir suas
nações em terras ensolaradas [...] eles deixam suas terras natais no intuito de forjar um
estilo de vida singular, através do qual procuram integrar trabalho, prazer e
espiritualidade de um jeito cosmopolita e expressivo” (op cit: 43)
Marija se adéqua melhor a esta terceira categoria, que D'Andrea conceitua como
“expressives expatriates”, ou seja, expatriados por opção e não por decorrência de
perseguições políticas ou dificuldades econômicas; a negação da pátria é uma forma de
expressão do seu estilo de vida não convencional. Eles podem ser comerciantes hippies,
artesãos, músicos, promotores de festa, professores de yoga, cozinheiros vegetarianos,
curandeiros de diferentes sistemas de conhecimento mágico, traficantes de drogas e
etc... Em sua maioria são “oriundos de estratos sociais educados, de classe média ou
alta, em sociedades avançadas, freqüentemente bem conectados com elites artísticas,
culturais e econômicas nas localmente e no exterior.” (D'Andrea, 2007: 43) Entre este
grupo, o pesquisador identificou que as experiências de mobilidade são de suma
importância e usualmente relacionadas com interesses cosmopolitas (no sentido de
possuírem um sentimento de pertença ao planeta terra como um todo e não a uma nação
ou território específico). Neste contexto, “[...]nacionalidades são referências que vão
desaparecendo em função de um crescente mosaico de cidadanias misturadas e
hifenizadas” (op cit: 43)
5 Pesquisa para sua tese de Doutorado sobre os neo-nômades e a contracultura transnacional, que dá
origem ao livro citado (D'Andrea, 2007).
6 As citações ao longo do texto foram todas traduzidas por mim, tendo em vista uma melhor fluência em
sua leitura no momento da apresentação.
7 Segundo dados de 2006 do Governo das Ilhas Baleares.
4
Marija viveu dez anos, ou melhor, dez altas temporadas e dez baixas
temporadas, trabalhando com iluminação e projeção de imagens nas principais pistas de
dança de Ibiza. Por ora, sua estadia em Ibiza importa menos do que sua despedida da
ilha. Ela conta que em 2005 fez uma viagem para Koh Phangan, na Tailândia,
aproveitando o inverno em Ibiza, que transfere a maior parte do turismo europeu para o
continente asiático. De lá trouxe em seu corpo o protozoário causador da malária e ficou
doente por mais de dois meses. Por sorte, escapou com vida, mas os dois meses sem
trabalhar durante a alta temporada em Ibiza implicaram na contração de dívidas e na
impossibilidade de arcar com as despesas de moradia e do automóvel. Foi quando
apareceu Lukas em sua vida. Ele estava em Ibiza para aquela temporada, oferecendo
leituras sobre o “desenho humano” 8 das pessoas. Ele possuía algum dinheiro reservado
e se dispôs a ajudar Marija: “He appeared like a savior for me” , me disse ela.
Lukas morava em Goa, na Índia, outro importante pólo de atração dos
“expatriados expressivos”. O geógrafo indiano Arun Saldanha explica que a antiga
possessão portuguesa de Goa, a cerca de 400 km ao sul de Bombai, começou a atrair
viajantes no final dos anos 1960. As praias paradisíacas de água cristalina e margeadas
por exuberantes palmeiras somadas à espiritualidade hindu foram transformadas em lar
para inúmeras comunidades compostas por hippies originários da Europa e da América
do Norte. “A vida dos hippies girava em torno de tomar banho pelados, fumar
quantidades copiosas de haxixe, e realizar festas de lua cheia na praia” (Saldanha, 2004:
274) A eletricidade chegou em 1975 e, com ela, as novas técnicas de criação e
reprodução de música, os sintetizadores e amplificadores.
“Anjuna [vila da província de Goa] se transformou em lugar de visita
obrigatório para toda sorte de punks, adeptos da Nova Era, músicos,
boêmios, Rastafaris, e viajantes da Europa, América do Norte,
América Latina e Oceania. Milhares de pessoas participavam das
festas de lua cheia e de final de ano realizadas na praia ou nas
florestas.” (Saldanha, 2004: 275)
Ao final da década, os músicos radicados em Goa já haviam substituído o rock'n
roll progressivo e o reggae por apresentações exclusivas de música eletrônica. Artistas
8 O “Human Design System” é um sistema de conhecimento sobre as particularidades de cada corpo
humano. Oferece respostas para perguntas tais quais: Como a energia vital circula por determinado
corpo? Qual a melhor estratégia de relações com o mundo de acordo com cada tipo de configuração
energética? A boa estratégia de vida é aquela que harmoniza e maximiza as trocas energéticas entre as
pessoas, em oposição aos condicionamentos sócio-culturais em geral entendidos como opressores e
produtores
de
desconfortos
psicossomáticos.
Para
maiores
informações
veja
http://www.humandesignsystem.com/
5
levavam para a Europa e outras localidades, as fitas gravadas com elementos musicais
da região e buscavam recriar, em estúdio, a atmosfera excitante e psicodélica das festas
a céu aberto de Anjuna. Os novos trabalhos se tornavam os sucessos durante a próxima
temporada de festividades em Goa. “Assim nasceu o chamado „Goa trance’, em um
circuito de fitas, ácido e viajantes.” (Saldanha, 2004:275) Nem Techno nem House, o
novo estilo simulava os efeitos neurológicos do LSD com a ajuda de batidas repetitivas
e efeitos sonoros hipnóticos. Por volta de 1994, as experiências (sonoras e visuais) se
afirmavam como uma nova tendência artística que ganhou distribuição globalizada. (op
cit: 275)
Goa, assim como Ibiza, consolidou-se como importante nó na rede de viajantes
em busca de trabalho temporário, diversão e novas experiências espirituais. Lukas, que
hoje tem 45 anos, viveu nos vilarejos de Goa por mais de dez, estudando o “human
design system” (HDS) e promovendo festas itinerantes de Goa trance (ou
simplesmente, trance) para celebrar a fraternidade e reverenciar a lua cheia. D'Andrea
argumenta que existe um movimento pendular entre Goa e Ibiza, marcado pela
oscilação da presença dos “expatriados”. Durante o verão europeu, os freaks9 estão em
Ibiza, por lá chegam antes da temporada turística propriamente dita e ali permanecem
até a chegada definitiva do inverno, quando o movimento do turismo de prazer e
espiritualidade se volta para Goa. (D'Andrea, 2007)
É justamente graças a esta rede que o nosso casal se encontra. Lukas estava em
Ibiza para a alta temporada do verão europeu e lá conheceu Marija, que passava por
condições econômicas desfavoráveis. De acordo com ela, foi uma grande e feliz
coincidência aquele homem aparecer em sua vida justamente em uma etapa de
transição. Como ela já não possuía os mesmos vínculos com a noite de Ibiza, em virtude
da malária que a impedira de trabalhar, Marija aceitou o convite de Lukas e, com menos
de um mês após a partida dele, ela já embarcava para a Índia em busca de mais uma
nova experiência de vida.
Eles contam que ficaram pouco tempo em Goa e logo partiram por uma
expedição de festas itinerantes cruzando o continente Europeu. Na bagagem, Marija
carregara apenas seus projetores de slides e alguns panos para decoração. Lukas
9 Termo utilizado pelos “nativos” para se referir ao seu próprio estilo de vida pouco ortodoxo.
D'Andrea chega mesmo ao ponto de vislumbrar a existência de um “freakscape” ou um “freakpanorama” , inspirado nos “panoramas” de Arjun Appadurai (1998). O freak-panorama compreenderia
os panoramas étnico, financeiro, ideológico, midiático e tecnológico do coletivo freak
transnacional.(D'Andrea, 2007)
6
carregava consigo o material de estudo do HDS e o equipamento de som necessário
para a realização de pequenos festivais trance. Eles viajaram por mais de 6 meses em
um kamper10, e , quando estavam para voltar à India viram-se impossibilitados de fazêlo uma vez que seus passaportes haviam sido rasurados pela autoridade aduaneira
indiana no momento em que deixaram o país. Arun Saldanha e Anthony D'Andrea
confirmam as reclamações de Marija e Lukas com relação à política de migrações
indiana, afirmando que, durante os anos 90 e os anos 2000, houve grande perseguição
aos freaks. (D'Andrea, 2007; Saldanha, 2004:282-283) “People don't like us because
they don't understand our lifestyle. ” , me disse Marija em nosso último encontro em
junho deste ano.
Lukas nasceu e cresceu na Alemanha. Saiu com seus vinte e poucos anos para
experimentar uma vida de viagens. Encantou-se com a Índia e por lá ficou durante os
anos 90. Ele tinha planos de investir os recursos financeiros herdados da família
consanguínea e construir sua própria casa em Goa. Mas a Índia não se encantou com
ele e , apesar do visto de cinco anos que ainda possuía, viu seu passaporte ser
invalidado. À mesma época, ele fora convidado para dar uma palestra sobre o HDS em
Brasília. Chegando no país que ainda não conhecia, causou-lhe admiração a
hospitalidade dos habitantes locais. Foi levado para conhecer Alto Paraíso, cidade onde
as festas trance nasceram para o Brasil. Os primeiros festivais de Goa trance em
território “verde-amarelo” tiveram a Chapada dos Veadeiros como cenário em meados
da década de 90. Vários artistas que participam do circuito internacional de eventos de
música eletrônica de pista adotaram Alto (assim é chamada carinhosamente pelos novos
moradores) como lar. A pequena cidade atraiu nas ultimas décadas, também, artesãos,
cozinheiros, terapeutas alternativos, decoradores e tantos outros sujeitos em busca de
uma nova experiência de vida; em busca de um lugar onde expressar seu estilo de vida
contracultural11.
Lukas e sua companheira Marija não podiam e agora tampouco queriam voltar à
Índia. Alto Paraíso não tem a agitação noturna das vilas de Ibiza ou de Goa, mas possui
a prerrogativa de ser um ambiente extremamente acolhedor para viajantes em busca de
“contato com a natureza” e com novas experiências espirituais. As profecias de Dom
10 Em inglês: trailer ou motor-home. Na língua portuguesa nós utilizamos comumente os termos
anglófonos para designar esses automóveis-casa muito empregados por famílias em longas viagens de
férias. Como a língua principal utilizada pelo casal é o alemão, o vocabulário de nossas conversas
oscila entre o alemão, o inglês (língua comum aos dois e ao antropólogo) e o português (idioma no
qual eles ainda não conquistaram fluência).
11 O conceito de contracultura será tratado mais à frente.
7
Bosco sobre uma nova civilização no cerrado, a água abundante das cachoeiras e o
subsolo rico em minerais fazem da Chapada dos Veadeiros um destino obrigatório para
aqueles que D'Andrea chamou de “nômades espirituais”, ou seja, sujeitos sempre
abertos a absorver novas cosmologias, dispostos a experimentar a vida a partir de novos
sistemas de conhecimento. Não são raras as declarações de conversão entre diferentes
visões de mundo que acarretam transformações nos modos de conduta. (D‟Andrea,
2007; St John, 2004) A “cultura trance”12 é aberta às mais diferentes manifestações
religiosas e de pensamento. É sempre presente a possibilidade de uma nova descoberta.
Os meus interlocutores se aventuram pelo planeta em busca dessas descobertas.
Podem passar curtos períodos de tempo em algumas localidades, uma prolongada
temporada em outras, ou podem mesmo decidir ficar. (D'Andrea, 2007) Assim
aconteceu com Lukas e Marija, quando descobriram que ela estava grávida. Eles
afirmam que não sabiam da existência do feto em crescimento e foram surpreendidos
pelas reações adversas do organismo da mãe em fase avançada de gestação. Foi quando
receberam a boa notícia de que o nascimento do filho no Brasil possibilitaria a
permanência dos pais no país. “We are lucky people, you know”; assim explicam as
suas bonanças!
Essas pessoas de sorte se encontram e se acolhem. Trabalham juntos para
realizar eventos destinados a reunir uma família. Uma família de “expatriados
expressivos” (nômades de território e de visão de mundo), deslocados (ainda que não
totalmente) de suas origens consanguíneas e afastados o máximo possível física e
psiquicamente (espiritualmente) da hegemonia de suas “terras natais”. Os navegantes
neste Global Trance Movement, a princípio, me parecem constituir alianças assentadas
na valorização de sua opção compartilhada por um “estilo de vida” não-hegemônico,
dito contra-cultural, sem pretensões revolucionárias, uma vez que a política institucional
está fora do escopo de suas ações. A opção pelo estilo de vida contracultural é
constantemente invocada nas falas cotidianas.
A contracultura é a cultura do contra, ela traz o novo para dentro da cultura
hegemônica. Ela provoca a introdução de novidades no hegemônico, mas não o supera.
A música de Goa tem ecoado pelas casas noturnas e festividades espalhadas por todos
os continentes, mas o estilo de vida herdeiro da geração hippie não se difunde por
12 Termo comumente utilizado para designar o aparato simbólico que dá sentido às ações e intenções das
pessoas envolvidas neste coletivo. Música eletrônica psicodélica, cogumelos mágicos, paz, amor,
união e respeito.
8
propaganda, porém pelas próprias relações de afinidade construídas entre os sujeitos.
Aqueles que se identificam com a contracultura trance não pretendem converter todas
as pessoas do planeta, estão satisfeitos em experimentar seu estilo de vida alternativo
em uma comunidade seleta.
A questão da identidade fica resolvida a partir da constatação da existência de
um estilo de vida contracultural compartilhado sustentado nos saberes da Nova Era, é o
que o Anthony D‟Andrea faz em sua tese, mas não permite ir muito além. O que, nas
interações cotidianas, circula entre esses agentes e os conecta? O acolhimento aos
moldes do acolhimento familiar nos oferece melhores recursos para compreendermos a
dinâmica dos afetos.
Lukas e Marija foram bem recebidos pela legislação brasileira e ainda mais bem
recebidos pela comunidade de amantes da música eletrônica (composta por gente de
diversas nacionalidades, incluindo a brasileira) estabelecida em Alto Paraíso de Goiás. A
comunidade trance é, usualmente, muito hospitaleira. Entende-se que as pessoas que
compartilham os desafios da experiência de vida “expatriada” por opção devem dividir
a boa sorte com os seus amigos fraternais.
- Olá, você vem de onde?
- Estou há alguns meses no Brasil. Estava em Brasília antes de vir pra cá.
- OK. Entendo. E o que você pretende em Alto Paraíso?
- Hmmm... Eu tenho viajado por algum tempo... Um amigo me contou sobre a
cidade. Gostaria de ficar uns dias, talvez um tempo maior, não sei ao certo, vamos ver...
- Onde estava antes de chegar no Brasil?
- Eu vivi durante uns anos em Pune, em Goa, sabe? Mas já não existe mais o
mesmo espírito; o autoritarismo do governo, você sabe. Dizem que Alto Paraíso é um
lugar mágico.
- Sim. Certamente este é um lugar especial. E se você chegou aqui, e se a sua
energia se harmonizar à energia da cidade, então você fica. Já está hospedado?
- Estou em uma pousada no centro...
- Vamos lá pegar as suas coisas. Eu te convido para ficar na minha casa e você
pode se decidir se fica durante mais tempo ou não.
Assim, com diálogos simples e que pressupõem uma linguagem compartilhada,
os sujeitos se reconhecem. Com algumas palavras Lukas convidou o holandês Caspar
9
Jansen para ficar em sua casa de hóspedes durante o tempo que quisesse. Caspar e eu
temos um amigo em comum (colega meu de graduação e amigo dele de viagens).
Coincidentemente, quando ele chegou em Alto Paraíso, eu lá estava, hospedado na casa
de Lukas. Quando foram apresentados por mim, tiveram algo parecido 13 com a conversa
narrada acima e Caspar foi recebido como um amigo de longa data. Apesar do fato de
que eles jamais haviam se encontrado.
Quando eu contei esta história para uma amiga antropóloga ela achou
interessante e fez o seguinte comentário:
- Que legal, e ele cobra mais barato do que na pousada, né...
- Não – eu disse – ele não cobra. A pessoa é recebida como se fosse parente.
Este é o melhor termo para classificar as relações entre estes sujeitos em
movimento. É como uma família que eles classificam a sua comunidade transnacional.
Mas esta família não está unida em seu fundamento por laços de consanguinidade ou
por obrigações de casamento. Nos dizeres do próprio Lukas, “é uma família escolhida”.
Ela diz respeito à experiência de distanciamento do contexto hegemônico. Pertencer à
família é uma questão de compartilhar os mesmos ideais de paz, amor, união e respeito
(peace, love, union and respect – PLUR). Os sujeitos se ajudam nas necessidades do
cotidiano e colaboram para a realização de seus festivais periódicos. O coletivo trance
se faz família14.
Nos dizeres de Caspar, que hoje tem 28 anos e está desde os 20 dedicado a uma
vida de hiper-mobilidade como cozinheiro em festivais de música eletrônica na Europa
e na Ásia, o que diferencia a família trance é a maneira como as pessoas recebem e
cuidam umas das outras. No começo deste ano, ele me explicou que, no passado, os
seres humanos estavam organizados em clãs e que estes clãs possuíam propriedade
comunitária. O que era de um, era de todos, e as crianças eram responsabilidade de
todos os membros adultos do grupo. Porém, em algum momento da história, diz ele, os
homens estabeleceram a propriedade privada e declararam a autoridade do pai e da mãe
sobre os seus filhos. Prosseguindo o argumento, ele disse que, tal como a terra e as
13
A conversa não foi gravada. A narrativa acima é uma verossimilhança, já exposta ao crivo dos
interlocutores.
14 Devo a idéia de “fazer-se família” ao resumo do trabalho de Amir Geiger para a ANPOCS. A situação
lá é outra. Quilombolas se fazendo família virtual (uma rede de alianças chamada de família) para
disputar a política local. A família trance não esta preocupada com o exercício do poder, mas também
é “feita” a partir de uma rede de alianças.
10
ferramentas, as crianças também foram transformadas em propriedades das famílias
formadas por um pai, uma mãe e filhos. Sem citar, Caspar descreveu para mim algo
muito parecido com a passagem de societas para civitas tal qual teorizada pelo pioneiro
antropólogo Lewis Morgan em seu livro sobre a Sociedade Ancestral (Morgan, 1877).
Morgan, a partir de sua perspectiva evolucionista, entendia que, nas etapas que
antecederam a civilização, os coletivos humanos estavam organizados sem uma
autoridade centralizada e que as famílias extensas, ou as gens (na sua nomenclatura),
constituíam as unidades de referência para as relações entre as pessoas e para as
relações dos humanos com o ambiente circundante. (Morgan, 1877: 5s) Prosseguindo
dentro dos argumentos evolucionistas, o advento da propriedade concomitantemente à
afirmação de uma autoridade central seriam os grandes responsáveis pela ascensão da
família nuclear, baseada na figura do pai como o chefe. O homem civilizado, diria
Morgan, se diferencia de seu ancestral bárbaro ao se apropriar das ferramentas de
trabalho e da terra agricultável, bem como construir para si e para seus descendentes
uma residência própria, separada da moradia comunitária. (Morgan, 1877)
Voltando a Caspar, ele me disse que a família pretendida pelos membros da
comunidade trance é uma espécie de retorno à sociedade arcaica, aquela organizada em
grandes famílias sem autoridade central e sustentadas na utilização comunitária dos
meios de produção. Até que ponto este ideal, ligado aos saberes da Nova Era (Redfield,
1993), é objetivado nas relações entre os sujeitos, eu ainda não me sinto autorizado a
discutir. O fato é que existe, entre os meus interlocutores, uma autêntica disposição para
a construção de laços de afetividade fraternal transcendentes às lógicas da
consangüinidade e das alianças matrimoniais, mas também distintas de uma filiação
religiosa. Os amigos são recebidos como parentes, não estou exagerando. Não quero
dizer com isto que a noção de consangüinidade e as uniões conjugais monogâmicas
sejam inexistentes neste contexto. Marija, Lukas e o filho do casal, Philippe, vivem em
uma casa só para eles, onde recebem seus hóspedes. A questão é mais complicada:
como os indivíduos desta comunidade transnacional se fazem uma família? Como
explicar a intimidade entre pessoas que nunca se viram antes?
Marija me deu um pista, em comunicação via facebook, no dia 07 de setembro
de 2010:
“trance family Goddess!!!!!!
The Mother aspect of the Goddess is the mature, passionate, and
powerful Woman who heals herself and those around Her. She is
creative, fertile, dynamic, and fiercely protective of those and that
11
which She has birthed. When we connect in with Her, we are tapping a
deep and primitive part of ourselves that can move mountains and
calm the wildest storms. She is the purest expression of our sacred and
creative selves. By calling out this Creative Mother in ourselves and
each other, we reflect Her beauty back to the Goddesses around us,
stepping into that powerful intention and strengthening it thousandfold before sending it out in the world.”
Talvez sejam todos mesmo filhos dessa fértil deusa-mãe. O que abre espaço para
pensar nas relações de lealdade construídas por sujeitos de origens diferentes (por
exemplo: Croácia e Holanda), de orientações filosóficas variadas, em múltiplos locais
hospedeiros (por exemplo: Alto Paraíso e Koh Phangan, na Tailândia), sem reduzir o
fenômeno ao determinismo da cooperação econômica. Eles atravessam fronteiras
nacionais; transgridem o pensamento hegemônico tanto no local atual como naquele de
origem (nascimento); e fazem circular, através do seu próprio movimento de viajante,
um modos vivendi que re-inventa, em cada local de encontro, em cada festival e
celebração da lua cheia, o coletivo de abrangência global. A Deusa-trance está presente
onde eles estão reunidos.
Cada novo encontro produz um convívio global nos diferentes locais. A festa é
de suma importância, é a condição ritual da transnacionalidade desses sujeitos (Ribeiro,
2000:124s). As pessoas se engajam na preparação do evento. É uma realização coletiva.
Lukas é um grande entusiasta das celebrações de lua cheia. Trouxe esta “tradição” de
Goa. Faz questão de atualizá-la na Chapada dos Veadeiros. Os encontros mensais
envolvem moradores fixos da cidade, os habitantes temporários, e até o antropólogo é
escalado para colaborar. Cada um faz o que pode conforme o talento e a energia
corporal disponível.
Na lua cheia do dia 30 de janeiro de 2010, participei de um desses encontros. O
ritual que atualiza a união desta família escolhida começa com a limpeza do quintal de
uma casa que será transformada em uma autêntica pista de dança. No começo
estávamos Lukas, Marija, Caspar e eu, retirando o equipamento de som e o material de
decoração da caçamba da caminhonete. Os que chegavam adiantados, sabendo que ali
haveria festa em poucas horas, logo pegavam algum peso para ajudar. Marija retira seus
panos coloridos e sai pelo quintal distribuindo a decoração, acompanhada de uma
francesa que vive em Alto há cerca de quatro anos. Lukas está encarregado de ligar os
mixers, as mesas de som e as potentes caixas amplificadoras. Já convidaram de antemão
diversos artistas residentes na cidade. Além deles, alguns viajantes aparecem com seus
12
discos e são aceitos para se apresentar15. O restaurante fica a cargo de Caspar, que na
Europa se dedica a um restaurante itinerante, que vai de festa em festa oferecendo boa
comida em troca do valor suficiente para realizar a próxima viagem. O lucro é a última
das preocupações desses sujeitos em ocasiões como esta. Eles estão ali, sobretudo, para
celebrar a existência de sua família escolhida, dançando durante toda a noite sob a luz
da lua cheia e envolvidos pelas batidas de diversas ramificações do trance.
Interessantes trabalhos tem sido realizados, no Brasil e fora, sobre o aspecto
ritual dos festivais de música eletrônica (St John, 2004). Para contribuir com esta
temática mais ampla, insisto na idéia de família, pois ela é, junto com a noção de
comunidade, invocada constantemente pelos meus interlocutores para afirmar a unidade
existente entre eles. Devo perseguir o cotidiano que constrói esta família. É possível que
eu esteja diante de um desafio teórico ainda não problematizado por mim, ou seja,
talvez as fronteiras entre os níveis de organização social (muito claras para o
pensamento hegemônico ocidental que divide o que é da família, o que é da religião e o
que é da política) sejam tão borradas que não seja possível distinguir, dado o contexto
trance, entre o que é religião, família, clã, sociedade secreta, etc...
Considerações futuras...
Eu não posso terminar este trabalho com uma conclusão ou com as famosas
considerações finais. Ainda não é possível dizer que esta pesquisa possui uma idéia
coesa a respeito da vida dessas pessoas. Estou em fase de desenvolvimento de um
trabalho que ainda promete durar mais de dois anos. Desta apresentação, acrescida de
uma discussão mais dedicada às questões teóricas pertinentes aos vínculos afetivos
transnacionais, sairá um projeto de tese de Doutorado. Espero estar, no próximo ano,
imerso neste estilo de vida itinerante, indo de encontro a outras pessoas conectadas a
Lukas, Marija, e Caspar. Uma vez experimentando as relações de afinidade e lealdade
das quais tanto falei neste trabalho, espero ser capaz de encontrar as melhores palavras
para transportar essa gente do mundo vivido para as letras gravadas em papel.
Aguardemos o resultado em 2013.
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Um jovem de passaporte suíço que conheci no Festival Universo Paralello, na Bahia, na virada do ano,
chegou até Alto Paraíso com sua mochila e seus CDs através de contatos interpessoais. Ele foi
informado do pequeno festival (200 pessoas no máximo) de Lua Cheia a ser promovido pelo casal e
decidiu conferir a sugestão, conhecer um local diferente e estabelecer novos contatos para continuar
sua jornada até a patagônia argentina, onde já estava convidado para discotecar em outro festival (este
de maiores proporções).
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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St John, Graham. (2004) Rave Culture and Religion. London & New York: Routledge.
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1 A FAMÍLIA TRANCE: uma introdução. Sandro