A vida por um fio Lea LubiancaThormann Marlete Diesel Nara Amália Caron Rita de Cássia Sobreira Lopes "Apenas partes de nós alguma vez tocarão partes dos outrosa verdade de alguém é apenas isso na realidade- a verdade de alguém. Podemos apenas compartilhar a parte que é aceitável dentro do conhecimento do outro portanto a gente está quase sempre sozinha. Como deve ser na natureza evidentemente- no máximo talvez isso pudesse fazer nossa compreensão buscar a solidão de outro." (Marilyn Monroe) “Sem Théo não haveria Vincent”, foi o que nos revelou Veríssimo em sua crônica “La Tristesse” nos levando a seguir os passos de Vincent Van Gogh e presenciar os muitos nascimentos do pintor, seu talento e suas descobertas. Dentro da originalidade do pensamento de Winnicott (1962/1988), caso se possa dizer que o ser humano tem um começo, este deve ser pensado como uma soma de começos. Para Vincent, cada cidade explorada, o forte contato com a natureza, os anos de escola, o trabalho, o estudo da arte, e até mesmo os momentos de desilusão integram uma soma de experiências que o levaram a encontrar-se, reconquistar a esperança e nascer como pintor. Seu talento havia surgido bem cedo: “E, sem percebê-lo, sem darse conta, sua vocação nascera e começara a se desenvolver. Ele se detém para desenhar a beira do Tâmisa não apenas uma vez, mas centenas... e fica triste, ao voltar para casa e perceber que os desenhos não se assemelham a nada”. (1997, p.9) Devemos a Théo, seu irmão quatro anos mais novo e a sua mulher, Jo Van Gogh-Bonger, a possibilidade de conhecermos Van Gogh – sua vida e obra – porque salvaram parte da extensa correspondência e parte da obra deste genial mestre da pintura. Na biografia de Van Gogh, escrita por sua cunhada, bem como na correspondência de Théo e Vincent, é comovente ver a dedicação de Théo ao irmão. Jo Van Gogh-Bonger diz: “...em meus pensamentos, eu continuo o tempo todo com Théo e Vincent... como era infinitamente delicada, terna e amável a qualidade desse relacionamento. O amor que eles tinham um pelo outro, a maneira como eles compreendiam um ao outro... como era comovente a dependência de Vincent em certas ocasiões – Théo nunca lhe permitia sentir assim, porém, às vezes, ele mesmo entendia a situação de sua dependência e, nessas ocasiões, suas cartas eram tão tristes” (p. 15). A trajetória de Van Gogh impressiona como um caso exemplar da luta humana pela vida e da difícil caminhada na busca do si mesmo. Desde o início, a necessidade humana básica é ser e continuar a ser, vir a tornar-se uma pessoa real, num mundo real. Portanto, ao longo da vida até a morte, a continuidade de ser permanecerá como a questão fundamental da saúde psíquica. Van Gogh, caminhante solitário, nos mostra, com muita intensidade e crueza, por meio de suas Cartas a Théo, a batalha do criador na arte que é também a batalha de todos nós, criadores na vida. A condição de fragilidade, solidão e dependência do ser humano fica também exposta em suas cartas. Van Gogh teve uma trajetória cheia de descontinuidades e rupturas até o seu nascimento como pintor, já no final da vida. Foi um andarilho solitário –caminhava muito à pé, muitas vezes em péssimas condições - que percorreu um longo caminho passando por diversos lugares como Londres, Paris, Amsterdam, Etten, Bruxelas, Borinage, Haia, Drenthe, Nuenen, Antuérpia, até reencontrar-se em Arles, uma cidade no sul da França. Chama a atenção como, apesar de toda tragédia que foi a sua vida, ele nunca desistiu: “Parece-me que sou um caminhante que está indo a algum lugar, que tem um destino” “Continuar, continuar, isso que é necessário”.(p.40) Em Arles, pinta o “Semeador”, imagem que o acompanha desde que se fez artista, fazendo brotar através do seu trabalho a beleza das cores e uma estética avançada em relação a seu tempo. Arles, a terra escolhida por Van Gogh, era uma cidade decadente, que outrora tinha sido grande, mas que como ele, lutava por ter um papel a desempenhar no mundo. A vida estava sempre por um fio, parecia distante, inatingível. Sua trajetória ilustra, de modo comovente, sua luta para alcançar e manter a vida e o preço que se paga por não andar em linha reta, por inércia, mas por caminhos tortuosos que podem conduzir a grandes descobertas. Seguia em busca de sua verdadeira vocação. Trabalhou por seis anos em uma galeria de arte, a Casa Goupil, onde também trabalhou seu irmão Théo, por toda a sua vida. Frequentava museus e lia muito, em várias línguas, um hábito que ele manteria pela vida afora. Foi a Borinage, uma região de mineiros, em busca de uma suposta vocação religiosa. Seguindo os passos de seu pai, pastor, desejava se tornar um pregador, alguém que tivesse algo a dizer e que fosse útil no mundo. Borinage é um renascimento. Diante da desumanização completa que presenciou naquela região, morre sua vocação religiosa e ressurge Vincent, ele mesmo, com seus desejos, seus prazeres, sua indignação. Começa a desenhar em qualquer lugar, em qualquer papel, com o que tem na mão. A trajetória de Van Gogh ilustra, de forma exemplar, como o amadurecimento não é linear e nos mostra a relação do ser humano com as suas origens. “É um esforço constante chegar ao ponto inicial e aí se manter”, nos diz Winnicott (1963). A questão da criatividade primária pertence à mais tenra infância: “...mas para sermos precisos, trata-se de um problema que jamais deixa de ter sentido enquanto o indivíduo estiver vivo.”(Winnicott, 1990, p.131). “Para ser criativa, uma pessoa tem que existir, e ter um sentimento de existência, não na forma de uma percepção consciente,mas como uma posição básica a partir da qual operar”.(Winnicott, 1989, p.23) Nos bosques e trigais de Arles, Van Gogh reencontra a paisagem de sua infância em Brabant, por onde fazia longas caminhadas, algumas vezes acompanhado de seu irmão Théo. Sempre foi um grande observador da natureza. As caminhadas em contato com a natureza e, posteriormente, os desenhos e a pintura serão seus refúgios, que passará a utilizar ao longo da vida Na sua infância, Van Gogh foi considerado um garoto de temperamento difícil, pouco sociável e entregue a si mesmo. Chama atenção como sua família parece ter sempre respeitado e acolhido a sua necessidade de isolamento, apesar de sua vida retirada e solitária ter sido sempre, ao mesmo tempo, motivo de grande preocupação: “Uma coisa que nos entristece muito é perceber que ele literalmente não conhece as alegrias da vida, sempre caminha com a cabeça baixa, mesmo que nós tenhamos feito tudo que estava a nosso alcance para que ele obtivesse uma situação honrada! Até parece que ele, deliberadamente, escolhe sempre o caminho mais difícil”, escreve o pai. Na vida adulta, é acolhido em suas desilusões, podendo retornar ao lar e por lá permanecer até que conseguisse retomar a sua caminhada. Os pais chegaram até a construir um ateliê para ele na casa onde moravam. Tanto os pais como seu irmão Théo sempre foram muito cuidadosos e não intrusivos. Aqui, cabe destacar a concepção de Winnicott (1993) de que a regressão à dependência é o caminho para a cura.: “Voltar para ser.” Ele enfatiza que o ambiente que pode acolher a necessidade de regredir promove a gradual transformação de retraimento em regressão. Um fato marcante de sua história de vida foi também o reconhecimento que recebeu por parte da família de seu talento especial para a pintura. “Eu gostaria que ele pudesse encontrar algum trabalho mais relacionado com a arte ou a natureza, escreveu sua mãe, que entendia o que estava se passando dentro dele.” Na biografia de Jo Van Gogh-Bonger, ela diz que Théo sugeriu que ele se tornasse pintor antes de ele sequer pensar na ideia. Em sintonia com suas necessidades e talento, sua mãe, que o iniciou na arte do desenho e da pintura, também acreditava que ele poderia fazer alguma coisa útil relacionada à arte. Escreveu a Théo: “Vincent fez lindos desenhos: ele desenhou a janela do quarto e a porta da frente, depois todas as partes da casa e também um grande esboço das casas em Londres para as quais dá sua janela; este é um talento que me enche de alegria, porque pode ser de grande utilidade para ele.” Van Gogh nos faz pensar na força da herança – a natureza humana –, de um lado, e do ambiente, de outro. Ele sofreu muito com a sua doença, que não chegou a ter um diagnóstico preciso- para alguns seria uma esquizofrenia, para outros, transtorno bipolar. Apesar da doença, mas também por causa dela e provavelmente em decorrência da aceitação e acolhimento do ambiente, Vincent alcança o máximo que pode. ”Eram as emoções que o impeliam, por isso havia alturas em que as pinceladas lhe fluíam como as palavras quando estava a fervilhar de idéias. Quando isso acontecia, era preciso aproveitar, porque o humor iria virar. Iria haver ‘dias difíceis, vazios de inspiração’”(73). Winnicott (1970) diz que “mesmo um bebê deformado pode se transformar num bebê sadio, com um self que não é deformado e um senso de self que se baseia na experiência de viver como uma pessoa aceita” (p. 210). Encontramos no seu sofrimento um tipo de angústia ilustrada por Winnicott como típica daquelas pessoas que não puderam alcançar a integração numa unidade: o sentimento de inutilidade. Assim Vincent escreveu a Theo: “A quem poderia eu ser útil de alguma maneira?” (38). “Espere, talvez um dia você verá que eu também sou um trabalhador, e embora eu não saiba de antemão o que me será possível, espero ainda fazer uns rabiscos onde poderia fazer algo de humano”. (54) Em sua trajetória, vemos que Van Gogh conseguiu preservar a sua criatividade e contato com o mundo subjetivo, apesar de sua dificuldade de contato com a realidade compartilhada. Queixava-se de não estar vivendo a vida verdadeira, como queixam-se os pacientes psicóticos que ficam fora de contato com os fatos da vida. Lutava para alcançar a vida. “Mesmo esta vida artística, que sabemos não ser a verdadeira, pareceme tão vívida e seria uma ingratidão não contentar-me com ela” (200). “Em plena vida artística, por momento, sempre nos assola a nostalgia da verdadeira vida ideal e irrealizável” (207) Em Arles, Van Gogh estava nascendo e nos traz um depoimento vivo de como é nascer, sentir-se vivo e real, criativo. “Há momentos em que sinto meu sangue voltando a querer circular em minhas veias”. “À medida que o sangue me volta, a ideia de triunfar também me volta”. Winnicott debruçou-se sobre as questões do viver, existir. Peguntava-se sobre o que versa a vida, o que faz a vida valer a pena, lembrando que o psicótico paira permanentemente entre o viver e o não viver. Foi em Arles que o impulso criativo de Van Gogh atingiu o seu ápice e ele se tornou, como definido por ele próprio, “uma locomotiva de pintar”. “Trabalho mesmo em pleno meio-dia, em pleno sol, sem sombra alguma, nos campos de trigo, e me alegro como uma cigarra” (210). “Atualmente estou com a lucidez ou a cegueira de um apaixonado pelo trabalho... Pois esse ambiente de cores é totalmente novo para mim e me exalta extraordinariamente” (268). “Em certos momentos, quando a natureza fica tão bela quanto nesses dias, tenho uma lucidez terrível, e então não me reconheço mais e o quadro me vem como em sonho” (274). “É só assim que eu sinto a vida, quando trabalho arduamente” (224). “Estou num furor de trabalho, já que as árvores estão em flor e que eu gostaria de fazer um pomar da Provence de uma alegria monstruosa” (198). “Também me falta uma noite estrelada com ciprestes ou talvez sobre um campo de trigo maduro; aqui há noites muito bonitas. Estou numa contínua febre de trabalho” (194). Por outro lado, dentro de sua trajetória marcada por descontinuidades, foi também em Arles que Van Gogh experimentou o que talvez tenha sido a maior desilusão de sua vida, com conseqüências quase fatais. Realizou o seu sonho de construir uma casa-ateliê, a Casa Amarela, e associar-se a um artista. Neste período de maior integração, Van Gogh emerge da solidão e estabelece a ilusão de contato. Em seu momento mais criativo, faz um movimento em direção ao mundo, deseja compartilhar a sua arte com outro artista e é acolhido em seu gesto por seu irmão, que ajuda a organizar a ida de Gauguin para a Casa Amarela. “Colaboração, segundo elucidou em carta a Bernard, não queria necessariamente dizer vários pintores a trabalhar no mesmo quadro. Queria dizer uma conjugação de idéias e técnicas, pela qual a comunidade de artistas iria criar quadros diferentes uns dos outros mas que se convergem e complementam uns aos outros.” Nesta conformidade; os dois quadros de Vincent Folhas a Cair, pintados nos Alyscamps, misturavam idéias de três artistas – ele próprio, Gauguin e o ausente Bernard. Estes quadros eram uma colaboração” (p. 83). Conviveu com Gauguin por poucos meses, sendo que a relação dos dois foi marcada por desencontros, dos quais Van Gogh nunca se recuperou – acabou-se o sonho da Casa Amarela. “De certo modo, Gauguin entendeu-o mal. Vincent não era um inspirado artista louco; era um grande pintor que tentava desesperadamente manter-se mentalmente são. Via o mundo com uma intensidade rara, que dava às suas obras um grande poder. E era enquanto olhava e pintava que conhecia o maior prazer de que a sua natureza atormentada era capaz” (p. 302). Após o episódio de automutilação, em que cortou uma parte de sua própria orelha, Théo escreveu em uma carta à esposa: “Se ele tivesse encontrado alguém com quem pudesse abrir o coração, talvez nunca tivesse chegado a esse ponto”. Em outra carta à esposa, demonstrando seu profundo amor e compreensão a Vincent, escreve: “Ainda há esperança, mas durante sua vida ele já realizou muito mais que a maioria, ao mesmo tempo que sofreu e lutou muito mais que grande parte das pessoas seria capaz. Se ele tiver de morrer, então que seja, mas fico de coração partido, cada vez que penso nessa possibilidade”. Vincent morreu pouco tempo depois, tendo passado os últimos dias de sua vida em uma hospedaria em Auvers, cuidadosamente escolhida por seu irmão Théo. No curto espaço que passou em Auvers, pôde contar com o apoio e a amizade de um médico especial, Dr Gachet. Vincent seguiu pintando até a sua morte. Em uma carta a sua mãe, Théo escreve, após sua morte: “Não se pode descrever até que ponto se está triste nem encontrar o menor conforto. É uma tristeza que vai perdurar e que, certamente, não conseguirei esquecer enquanto viver. A única coisa que posso dizer é que ele recebeu agora o descanso por que tanto ansiava... A vida foi sempre um fardo pesado demais para ele; mas agora, como acontece com tanta freqüência, todo mundo está louvando o seu talento... Oh, mãe, ele era tão meu, meu próprio irmão!”. Seis meses depois da morte de Vincent, morre também seu irmão Théo. Referências Gayford, M. (2007). A Casa Amarela – Van Gogh, Gauguin e Nove Turbulentas Semanas em Arles. Lisboa: Editorial Bizâncio Van Gogh, V. (1997). Cartas a Théo. Porto Alegre: L&PM Pocket. Van Gogh-Bonger, J. (2004). Biografia de Vincent Van Gogh. Porto Alegre: L&PM Pocket. Winnicott, D.W. (1970). Sobre as bases para o self no corpo. In D.W. Winnicott. Explorações psicanalíticas. Porto Alegre: Artes Médicas. Winnicott, D.W. (1988). O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artes Médicas. Winnicott, D.W. (1989). Tudo começa em casa. São Paulo: Martins Fontes. Winnicott, D.W. (1990). Natureza humana. Rio de Janeiro: Imago Editora. Winnicott, D.W. (1993). Da pediatria à psicanálise. Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora. A vida por um fio Lea LubiancaThormann Marlete Diesel Nara Amália Caron Rita de Cássia Sobreira Lopes RESUMO Devemos a Théo e sua dedicação ao irmão Vincent Van Gogh, a grande obra artística por ele criada. Pensamos em Winnicott, e no quanto o ser humano necessita do ambiente para tornar-se real, criar e acreditar. Théo representou na vida de Vincent este porto seguro. Encontramos em Winnicott, nas Cartas à Théo e em duas biografias sobre Van Gogh (um delas escrita por Jo Van Gogh-Bonger, sua cunhada e esposa de Théo) as referências necessárias para acompanhar a trajetória de Van Gogh que nos impressiona como um caso exemplar da luta humana pela vida e da difícil caminhada na busca do si mesmo.