daniel senise vai que nós levamos as partes que te faltam Go. we'll bring the parts you leave behind 22/11/10 17:11 30150006 capa.indd 1 30150006 miolo.indd 1 12/04/11 17:35 30150006 miolo.indd 2 12/04/11 17:35 30150006 miolo.indd 3 12/04/11 17:36 30150006 miolo.indd 4 12/04/11 17:36 30150006 miolo.indd 5 12/04/11 17:36 30150006 miolo.indd 6 12/04/11 17:36 30150006 miolo.indd 7 12/04/11 17:36 30150006 miolo.indd 8 12/04/11 17:36 30150006 miolo.indd 9 12/04/11 17:36 30150006 miolo.indd 10 12/04/11 17:36 Go. we'll bring the parts you leave behind 30150006 miolo.indd 11 12/04/11 17:36 30150006 miolo.indd 12 12/04/11 17:36 Go. we'll bring the parts you leave behind 30150006 miolo.indd 13 12/04/11 17:36 p. 1 34–01 38 AVE, LIC II 2005 Colagem sobre impressão em jato de tinta, 91x90cm Collage on ink jet printing, 35.8x35.4in p. 2–3 W.L. 140 setembro 2008 III (04/09) 2008 Colagem sobre impressão em jato de tinta, 91x90cm W.L. 140 September 2008 III (04/09) 2008 Collage on ink jet printing, 35.8x35.4in p. 4–5 W.L. 140 setembro 2008 II (05/09) 2008 Colagem sobre impressão em jato de tinta, 91x90cm W.L. 140 September 2008 II (05/09) 2008 Collage on ink jet printing, 35.8x35.4in p. 6–7 W.L. 140 setembro 2008 II (06/09) 2008 Colagem sobre impressão em jato de tinta, 91x90cm W.L. 140 September 2008 II (06/09) 2008 Collage on ink jet printing, 35.8x35.4in p. 8–9 W.L. 140 setembro 2008 II (03/09) 2008 Colagem sobre impressão em jato de tinta, 91x90cm W.L. 140 September 2008 II (03/09) 2008 Collage on ink jet printing, 35.8x35.4in p. 336 34–01 38 AVE, LIC II 2005 Colagem sobre impressão em jato de tinta, 91x90cm Collage on ink jet printing, 35.8x35.4in 30150006 miolo.indd 14 Algumas obras tiveram seus títulos mantidos na língua original por decisão do artista. The artist has chosen to keep some of the works’ titles in their original language. A grafia dos textos de “Daniel Senise: Cronologia crítica” foi mantida na língua original. All texts from “Daniel Senise: Critical Chronology” were kept in their original writing. 15/04/11 09:11 índice index 30150006 miolo.indd 15 16 Apresentação Ivo Mesquita 19 Territórios de infinitude María A. Iovino 37 OBRAS works 145 exposições exhibitions 156 daniel senise: cronologia crítica Glória Ferreira 279 daniel seNise go. we'll bring the parts you leave behind 327 índice onomástico name index 329 bibliografia bibliography 12/04/11 17:36 Depois de quase 30 anos de trabalho, a obra de Daniel Senise representa um compromisso consistente e consolidado com a pintura, sua prática, seu sentido social e histórico, tendo ele criado um espaço de reflexão pessoal, articulado a partir de um imaginário sofisticado e original. Com uma palheta econômica, e que se fez cada vez mais sóbria ao longo do tempo; com composições bem estruturadas sempre privilegiando os grandes formatos, características de toda a sua produção, inicialmente, sua pintura se desenvolveu a partir das tensões entre os planos no espaço do quadro, onde surgem fragmentos de corpos e objetos industriais como que amputados de seu todo, de arquiteturas e paisagens imaginárias, que tomam quase toda a superfície pictórica. Imagens densas, acentuadamente gráficas, elas são, ao mesmo tempo, evocações de formas arcaicas da arte e conhecidas do repertório moderno, e uma 16 abordagem de questões específicas da pintura como figura e fundo, a construção da superfície e a retórica da representação. No início dos anos 1990, há uma mudança no modo de trabalho do artista. À sua pesquisa sobre as possibilidades da pintura a partir do imaginário e da tradição em que ela se inscreve — programa adotado por diversos pintores em diferentes lugares desde o final dos anos 1970 —, Senise incorpora o próprio fazer, a própria materialidade do meio e do suporte, como elementos constitutivos do discurso plástico e do seu sentido na atualidade. Ao método tradicional da pintura, ele agrega colas, laca, betume, processos de oxidação de ferro, e incorpora toda sorte de acidente sobre superfícies de telas expostas, por longos períodos de tempo, ao piso do seu ateliê. A partir do recorte e justaposição de partes escolhidas dos tecidos impregnados de matéria e memória de sítios específicos, surgem paisagens inventadas ou apropriadas de pinturas do passado, imagens lembradas, arquiteturas de interiores reais como galerias e museus, ou ainda construções utópicas, sem um lugar preciso, apenas a marcação de espaços constituídos por vigas, planos, colunas, encaixes e volumes. As imagens apontam também para um mundo em constante movimento — o rio, o mar, as nuvens, os estados gasosos, as suspensões — e instável, causando a sensação de que esses espaços, os volumes e objetos não se acabaram de construir ou estão em processo de desmanche. 30150006 miolo.indd 16 12/04/11 17:36 O livro Daniel Senise. Vai, que nós levamos as partes que te faltam, de um lado, documenta de forma generosa a produção do artista nos últimos 15 anos, seu processo de trabalho, e registra uma série de exposições panorâmicas realizadas sobre este conjunto de obras, entre 2008 e 2009, em quatro museus brasileiros, mas com diferentes configurações em cada espaço expositivo. As fotos mostram a articulação das pinturas com o lugar em que se apresentaram, o que lhes confere algo de Apresentação instalações, criando espaços sobre espaços. Permite ver a densidade do projeto artístico de Senise, a complexidade de sua obra, uma reflexão articulada e crítica sobre o sentido da pintura, um campo possível de ser ativado no presente, pois oferece ainda uma experiência única de ver e imaginar. De outro, o livro faz um balanço dos quase 30 anos da carreira do artista, dentro de um percurso ilustrado sobre um tempo recente. 17 O texto de María Iovino, “Território da infinitude”, analisa a produção artística de Senise para além das noções de identidade e contexto que prevaleceram nas últimas décadas na interpretação dos artistas latino–americanos, para afirmá–la como o registro do enfrentamento disciplinado de questões como tempo, memória, ausência, e, portanto, parte de “uma cultura universal” e histórica da pintura. A magnífica “Cronologia crítica 1977–2007”, organizada por Glória Ferreira, por sua vez, oferece uma cuidadosa visão retrospectiva dos trabalhos do artista desde os anos 1980 e dos fatos mais significativos para o sistema da arte, e recupera, a partir de extensa pesquisa, textos importantes na leitura da produção de Senise, justapondo–os a outros também fundamentais dos movimentos e questões que orientaram o debate sobre a pintura e a arte nesse período. Além de representar uma valiosa contribuição à historiografia e crítica de arte contemporânea, a cronologia oferece um percurso afetivo e prazeroso de um tempo vivido, resgatando imagens, ideias e comportamentos de uma geração que põe em movimento o presente, na forma de outra grande “sinfonia de memórias”. ivo mesquita 30150006 miolo.indd 17 IVO MESQUITA é curador–chefe da Pinacoteca do Estado de São Paulo. is the chief curator of the Pinacoteca do Estado de São Paulo. 12/04/11 17:36 maría a. iovino dedica-se à pesquisa e curadoria de arte contemporânea com foco na América Latina especialmente Colômbia. Reside em Bogotá. is a researcher and curator focusing in Latin American and Colombian Contemporary Art. She lives in Bogotá, Colombia. 30150006 miolo.indd 18 12/04/11 17:36 Territórios de infinitude María A. Iovino 30150006 miolo.indd 19 12/04/11 17:36 20 30150006 miolo.indd 20 12/04/11 17:36 concebe — como um esquema arquitetônico — Daniel Senise pressupõe penetrar na cadeia de para cada obra específica e de acordo com as investigações e consequências que guiaram seus necessidades de luminosidade requeridas pela admiráveis achados e, além do mais, entender imagem que corresponde a cada desenho. nesse caminho que esta proposta, apesar de se Em consequência, no momento de instalar os desenvolver no domínio do bidimensional e daquilo fragmentos das diferentes impressões em um su- que se entende como pintura, é inclassificável em porte preparado para tal efeito, ele reúne, além um meio determinado. da impressão e da concepção construtiva, uma soma Na obra deste artista, a pintura, a gravu- de tempos e de espaços — tanto de forma real como ra, o desenho e a construção espacial convivem em metafórica. Acopla também neste exercício um jogo um equilíbrio tão exato que não permite a demar- de suportes no qual conjuga a superfície em que cação de fronteiras técnicas entre os diferentes realiza a obra, a tela que traz a impressão — que recursos. Nessa medida, localizar processos de é, originalmente, um suporte para a pintura — e a trabalho exclusivamente em algum desses espaços, matéria que traz de outros lugares, retirada dos além de limitar a diversidade de possibilidades pisos sobre os quais transitaram. de reflexão que a obra oferece, nega a própria Daí parte uma das complexidades filosóficas essência de qualquer meio que se queira entender e de interpretação deste trabalho, pois, não sen- como principal. do exata a definição de suporte, que tradicional- Daniel Senise gera suas imagens a partir mente se admite como o tema estável de uma argu- de uma indagação que estabelece um diálogo en- mentação, o conteúdo da obra se abre ao incerto e tre impressões, tiradas diretamente de realidades ao variável da simultaneidade. Na obra de Daniel diversas, e concepções de imagem e de espaço que Senise, convive, em uma mesma imagem e superfície, são produto de sua reflexão. No entanto, são muitos uma multiplicidade de suportes e histórias, mas, os aspectos inovadores desta obra. O primeiro é a além disso, esses suportes representam espaços própria natureza da matéria pictórica com que o que são estranhos aos que pertencem. Não há cor- artista trabalha. Faz pintura com a informação que respondência entre o lugar de origem da monotipia extrai dos mais diversos lugares e, naturalmente, e o espaço representado. Esse é um dos estranha- em tempos distintos e desiguais. Seu procedimento mentos materiais produzido pelo artista, ao qual consiste em aderir a pisos, marcados pela passagem se agrega o fato de a construção ser uma sinfonia do tempo, telas tradicionais, usando uma mistura de memórias. de cola de marceneiro e água, que espalha sobre Isso pressupõe que, além da ilusão de pers- as telas. Quando separa os tecidos, depois de um pectiva gerada pelas imagens de Daniel Senise em tempo de secagem, eles trazem matéria do lugar, do sua obra, há outras múltiplas perspectivas inter- dado essencial da estrutura e da história em que nas que comportam os tempos–espaços que se mistu- se inseriram. ram em cada trabalho. Isso quer dizer que, na pintura de Daniel Esses espaços bidimensionais de aparência Senise, a cor e o gesto provêm de traços da memó- tridimensional são, basicamente, construções pla- ria ou de vestígios da ocupação de espaços que se nas que encerram um número incalculável de dimen- acumulam no plano único dos solos nos quais desen- sões, manifestado nas memórias trazidas por cada volve parte de seu processo criativo; por isso, em fragmento de gravura que as conforma. primeira instância sua obra é um registro. Depois dessa captura monotípica do real, o artista frag- partir de suportes, é uma impressão a mais. Assim, menta e mistura os cortes das distintas camadas de nesta obra, a conversão de tempos e realidades, acordo com as formas projetadas nos desenhos que somada à envolvente monumentalidade do formato e 30150006 miolo.indd 21 Territórios de infinitude Acessar uma obra tão particular como a de 21 Às vezes, a imagem obtida, trabalhada a 12/04/11 17:36 22 30150006 miolo.indd 22 12/04/11 17:36 de qualquer outro discurso ou tendência racional. e leva o espectador a um espaço distinto do me- Nenhum aspecto da obra deste artista está cerca- ramente frontal, mesmo que isso aconteça também do por discursos. As propostas intelectuais são nos casos em que o formato nem sequer é monumen- forças com as quais evidentemente o trabalho tem tal. Além do mais, às vezes esses suportes são o relação, mas elas devem ser desentranhadas nas ma- apoio de estruturas que se alçam ou se enterram no neiras específicas em que o artista estruturou seu vazio; esta é outra maneira que o artista usa para pensamento e alimentou suas buscas de autodidata. quebrar a qualidade de superfície do plano para Por outro lado, é compreensível que os convertê–lo em um universo em que a imersão não recursos organizativos das imagens de Daniel tem fim. Senise revelem de maneira importante sua formação No plano e a partir do plano, as cons- de engenheiro, embora em sua carreira de artista truções e projeções espaciais de Daniel Senise ela sobreviva em espaços já distantes e indefiní- despertam no espectador a consciência da veloci- veis. Da mesma maneira, são inegáveis os dade que o circunda. A metáfora seria então a de diálogos sensoriais e racionais que estabelece uma mobilidade incontrolável, pois cada questão com a tradição artística brasileira, assim como no tempo e no espaço é cimento e apoio para ou- com a história da arte em geral. Mas, ainda assim, tras; é uma das formas de circulação infinita que a personalidade deste trabalho continua alheia aos este trabalho oferece entre as noções de começo marcos teóricos ou às referências estabelecidas. e de fim. O que indica que cada elemento no es- Não há citações da tradição ocidental, nem mesmo paço é suporte e, ao mesmo tempo, superfície. As da latino–americana, a partir das quais possa ser duas funções estão fundidas e também diferencia- lido ampla e suficientemente. Se, por necessidade das. As impressões dos pisos continuam aludindo a conceitual, estes lhe forem impostos, o alcance de suportes de memória, mas alteram sua natureza em uma obra tão rica em conteúdos poderá ficar redu- desenho sobre outro plano no qual o artista fala zido ao clichê, o que implica perder um aporte de de profundidade. grande valor para a construção filosófica e cultural Pelas mesmas razões, a humanidade e o sen- da América Latina e, em particular, do Brasil. timento povoam cada fragmento mínimo dos espaços As rotas que podem conduzir a uma aprecia- racionais, desolados e abissais de Daniel Senise. ção mais completa e complexa de obras como a de Neles, a emocionalidade não é impressa apenas pela Daniel Senise, que se apoiam em muitos territó- riqueza do gesto da matéria–prima e da vertigem rios sem pertencer a nenhum, estão por construir que incita a exatidão do cálculo das projeções es- ou em construção. Por essas mesmas razões, um paciais, mas também pela viagem a que conduz cada trabalho como o seu, que não recorre às retóri- um de seus elementos componentes. Esse contraste cas políticas e sociais, mas se edifica nas cir- entre o poder do gesto e o controle construtivo cunstâncias de um continente estigmatizado por permite que se possa, no silêncio imponente da essa visão, pode ser visto como um comportamento pintura de Daniel Senise, entender a voz mínima latino–americano atípico e, consequentemente, e imprescindível de cada partícula do mundo vivo. um lugar impreciso e vago. Assim, apesar de sua estrutura geométrica Na América Latina, a proposta geométrica e racional, é impossível ler uma obra como a deste na arte foi lida, essencialmente, como uma artista a partir dos preceitos da pintura geomé- contrarresposta à proposição geométrica abstrata trica abstrata ou partir dos preceitos do moder- formulada na Europa, não como racionalização nismo, não obstante a repercussão que teve na arte própria ou como produto independente. Sempre e na arquitetura do Brasil. Tampouco seria possí- em comunicação para negar ou para traçar vel acessar este trabalho a partir dos parâmetros independência em relação a alguns parâmetros que 30150006 miolo.indd 23 Territórios de infinitude da própria imagem, quebra a limitação do plano 23 12/04/11 17:36 24 30150006 miolo.indd 24 12/04/11 17:36 opõe ao identitário foi ter anulado a importância De qualquer forma, é lógico que tivesse sido do lugar para favorecer um cenário vago no qual entendido dessa maneira, na medida que na história aparentemente não existiriam suportes de nenhum do continente, assim como na da cultura ocidental, tipo para as diferentes concepções. O suporte os temas abstratos se desenvolveram em um cenário pode ser desconcertante, múltiplo, variável e, difícil, no qual se tornaram híbridas as adoções inclusive, um assunto incógnito, como adverte a e as imposições das culturas de maior poder obra de Daniel Senise, mas existe. econômico. Embora isso sempre tenha acontecido no Embora o fluxo do intercâmbio com outras meio de esforços notáveis para fazer adaptações que realidades aporte constantemente novos dados, o oferecessem interpretações de lugar, estas, pela lugar onde se vive ou a partir do qual se olha o própria condição política em que foram abordadas, mundo como paisagem e como campo no qual se pro- em geral se politizaram, romantizaram ou, inclusive, duz e se ouve determinada sonoridade não pode se exotizaram como versões do subdesenvolvimento. deixar de exercer uma influência decisiva no pro- No entanto, é importante reconhecer cesso de construção do olhar. Assim, o lugar pode hoje que o século XXI herdou do XX atitudes ser ressemantizado, mas não eliminado. A questão intelectuais e propostas artísticas que não são é que não se trata mais de identificação, que é um despenhadas na resistência, apesar de serem gera- conceito restritivo atado a preceitos discursivos, das ou fortalecidas em lugares tradicionalmente mas de pertencimento, que é uma posição flexível e, compreendidos, a partir de si mesmos e a partir no entanto, acomodável às mudanças das circuns- de fora, nessa condição de contradição política. tâncias e, inclusive, à própria mudança de lugar. No enlace ocorrido entre a maturação dos Dessa maneira se entende que um lugar possa ser processos políticos da América Latina, da expansão ao mesmo tempo o próprio e outros mais. da comunicação, da aceleração na cobertura e da No caso particular da arte produzida na capacidade de espaços da internet, assim como da América Latina ou como latino–americana, a reflexão popularização e da democratização dos transportes acerca do lugar está ligada à da memória, mesmo e das conexões entre diferentes lugares do mun- que esta não apareça como objetivo expresso de do, cresceu com muita naturalidade o sentimento um determinado projeto criativo. de pertencimento a uma cultura universal, ao lado Levando–se em conta que na base de toda da ideia de livre mobilidade por qualquer tipo estrutura poética a memória é o ingrediente de de espaços informativos, educativos, culturais e, fundo, no continente este foi por décadas o grande inclusive, geográficos e espaciais. tópico da produção artística e intelectual, ques- Não obstante, mesmo quando se considera tão que se explica por sua condição histórica. que foi assimilada uma nova realidade em que Na América Latina, a reflexão sobre o que o passado as fronteiras do pensamento estão cada vez mais significa no presente surge da necessidade — e isso dissolvidas, persiste a permanência de discur- de maneira espontânea —, a partir de distintas sos viciosos de identidade, fato que pressupõe a ocasiões, e não só por meio do diálogo estrito com necessidade de amadurecer uma compreensão distinta a narrativa social ou a dificuldade de seu devir na qual a comunicação com o lugar seja assumida político. O contato com o labirinto criado pela de forma natural e não forçada, em uma competição fusão — muitas vezes inarticulada — de realidades entre dominadores e dominados. obriga a entender tanto o originário como a com- plicada trama dos acontecimentos. É impossível reconhecer há mais de um sé- culo, e em especial no presente, o próprio ter- Como todos os países que trabalham para ritório fora de um diálogo entre muitas culturas, se libertar de diversos processos de colonização, espaços e interesses. O erro do discurso que se para os latino–americanos o trauma central foi a 30150006 miolo.indd 25 Territórios de infinitude não é possível acolher ou que se evita favorecer. 25 12/04/11 17:36 Bumerangue 1994 (detalhe) Esmalte sintético e óxido de ferro sobre tela, 165x256cm (obra p.134–135) Boomerang 1994 (detail) Synthetic enamel and iron oxide on canvas 64.9x100.7in (work p.134–135) 30150006 miolo.indd 26 12/04/11 17:36 não como corpo, e seus vestígios fazem uma inti- negação cultural e a destruição de suas tradições nerância infinita, não apenas pelo movimento que e crenças, mediante uma intensa e urgente tare- propõem como desenho, mas pela atividade mesma fa de silenciamento e ideias impostas em todos os do rastro impresso, cuja oxidação não se detém. campos que permitem interpretar o mundo e o uni- Equivale a dizer que a memória é tratada verso. Entre as múltiplas negações estão não ape- neste trabalho como atualidade, como presente, nas as construções culturais, mas também a própria e não como testemunho de um tempo passado. Na paisagem e o entorno mais próximo. Isso explica obra de Daniel Senise, o tempo é concebido como o fato de que a criação crítica tivesse procurado uma questão em ação, e em ação múltipla. Daí que desentranhar, de várias maneiras, uma atmosfera as obras realizadas a partir de interconexões própria através de diversos mecanismos, apesar de impressões feitas em camadas sejam a negação de não existir uma programação para fazê–lo. de um êxtase do registro, como o é, também, a Não é acontextual então que entre os moti- conversão dos distintos suportes impressos em vos centrais da reflexão de Daniel Senise estejam estruturas ou em edificações totalmente estranhas a memória, a expansão do tempo e do espaço, que à sua natureza de origem. em seu trabalho obrigam a sentir o infinito. Da Por esse mesmo motivo, a inquietude de mesma forma, é compreensível que o artista pen- Daniel Senise desde que realizou o primeiro mono- se nestes temas em um sentido pessoal no qual tipo no piso de seu ateliê foi alterar a situação não contam avaliações de ordem social, histórica monolítica distinta, referida a outro lugar. ou política. Não existe formato algum capaz de Esta é outra forma de circulação infinita que a precisar suficientemente quais são os domínios da obra de Daniel Senise adota. Nela, o passado é memória, pois esta é, afinal, a matéria que compõe sempre presente. cada sensação, percepção, reflexão e concepção vi- De fato, a primeira impressão não foi con- tal. São incontáveis as maneiras de se aproximar sequência de uma indagação de registro, mas um dela e de expressá–la. acidente que apresentou novas possibilidades de No caso da obra de Daniel Senise, o ar- representar o material, quando a obra do artista tista pensou na matéria como uma voz autônoma e ainda podia ser definida mais estritamente como como expressão per se desde os primeiros trabalhos pintura. Uma tela que preparava para usar em um nos quais investigou imagens e processos que lhe trabalho aderiu com mais força ao solo do ateliê permitiram revelar sua forma de perceber o mundo e por um excesso de aplicação de tinta acrílica. suas questões. A tinta traspassou a tela fina, provocando assim O exemplo mais claro desse modo de operar a aderência. A separação da tela trouxe então é constituído pelos traços de movimentos infinitos consigo camadas da história do espaço em que feitos com a oxidação de pregos, um exercício mais estava, e as mais visíveis foram os rastros do direto desse pensamento. O desenho que o artis- trabalho que Daniel Senise estava então desenvol- ta dispôs em determinado percurso sobre a tela vendo. Naquele momento, sua experimentação con- fez dele o elemento mesmo com sua própria oxida- sistia em sobrepor superfícies de material, nas ção. Depois de ocorrido esse fenômeno de tempo e quais depois fazia extrações para deixar desta de vida, a realidade como matéria foi retirada da maneira traços de uma atividade distinta sobre a obra para que ela fizesse de si mesma sua evocação. pintura. No entanto, essa primeira tela impressa, Ausência, então, é um conceito chave na que recolheu os resíduos que haviam caído no chão obra do artista, com o qual edifica um jogo de durante a elaboração de vários exercícios, pare- acesso às diferentes camadas da memória. Nesta cia também uma obra sua, como o próprio artista obra, os pregos se fazem presentes como rastros, esclareceu em várias entrevistas. 30150006 miolo.indd 27 Territórios de infinitude perda e o descontrole da memória a que levaram a 27 12/04/11 17:36 28 Só encontra quem está procurando, e nesse mantêm ausentes a coisificação e a realidade viva sentido foi que aquele acaso desembocou em refle- e mutável do material. xões e concepções sobre a memória, a imagem e o Com essa lógica, em obras como as aqui men- espaço de crescente complexidade. cionadas, o projeto de Daniel Senise já entrara em Enquanto experimentava a oxidação dos pre- um tempo e um espaço metafísico, percepção que em gos e de outros sólidos metálicos, Daniel Senise seguida ele incrementa bastante por meio da auste- também estudava, com suas pinturas, imagens icô- ra construção de espaços e estruturas a partir das nicas da história da arte e da ilustração como impressões tiradas dos pisos e pelo desaparecimen- representação e ausência, como formas de habitar to total em suas imagens de qualquer esquema do o espaço e de se expressar nele em distintas or- corpo humano. dens. A essas séries pertencem obras como Retrato Embora no começo tenham representado cons- da mãe do artista (1992, p.215), Despacho (1993, truções reais, esses espaços levaram o trabalho p.220) e Casamento (1994, p.224), inspiradas do artista a passar radicalmente ao terreno da na conhecida pintura do artista norte–americano reflexão abstrata, e isto em uma solução de todo James Whistler; Mountain e Cliff (1994, p.132– pessoal. O que não está neles são muitas coisas: 133), inspiradas na obra do pintor alemão Caspar o lugar e a realidade de onde provêm, os seres David Friedrich, assim como Ela que não está que os habitam e o interminável entorno em que (1994, p.126–131), inspirada no esquema de restau- se projetam, e o chamado ao infinito em que se ração por perda de material de um dos afrescos do sustentam. Com esses mecanismos, Daniel Senise pintor italiano Giotto, na capela Barci da Igreja leva a sonoridade e a importância do imenso mundo, da Santa Cruz, de Florença. O artista conheceu a que por força se distancia de qualquer proposta imagem nos livros em que estudava história da arte de representação, a uma instância de maior poder e depois diretamente em uma viagem àquela cida- metafórico e poético. de italiana, em 1994. O fato de tê–la estudado Interpretei com insistência em outros es- primeiro em um impresso no qual se manifestava a tudos e textos que esse chamado ao infinito e a um deterioração e o processo de restauração da obra tempo–espaço circular, instável e complexo na arte gerou a ênfase na observação e reflexão que Daniel e no pensamento que amadureceu sob os esquemas do Senise fez do ausente nela. moderno e do contemporâneo na América Latina — ou no campo de ação latino–americano — tem uma Em especial neste último trabalho, a observação do artista se concentra naquilo que relação direta com a libertação do tempo–espaço desapareceu, uma questão vital que encerra uma único, plano e quieto da fotografia. E também com explicação do mundo e sem a qual é impossível o das importações discursivas de diferentes or- decifrar um conteúdo ou uma mensagem. É uma dens: políticas, econômicas, sociais, artísticas reflexão muito semelhante a que faz o artista e intelectuais em geral, que submeteram os Estados francês Marcel Duchamp na obra Tu manque qui latino–americanos, em sua nascente história, a uma (1918), a marca final de seu trabalho em pintura ordem rígida, central, monocular, na qual pareciam e o começo do desenvolvimento de sua reflexão ter resolvido de muitas maneiras o problema de sobre o mundo objetal. Em Tu manque qui, Duchamp interpretação do real, a partir da compreensão do representou apenas a sombra do cabide e com o tempo, do espaço e da história, comparáveis às do título apontou sua ausência, para se referir, plano fotográfico. com esse ato, a uma falha da representação Em primeiro lugar, concebi–o desta maneira pictórica e inclusive fotográfica, que consiste porque lembrei que no continente, na maioria dos em fornecer uma expressão acerca do real ao casos, as academias de arte foram fundadas depois retrato de um fragmento aplanado, enquanto se de a fotografia ter sido amplamente experimentada. 30150006 miolo.indd 28 12/04/11 17:36 para se integrar com a mesma velocidade ao estudo com seu apoio para o treinamento em padrões rígi- da imagem nos ateliês de pintura e escultura. dos da correta representação do real, alimentados Como complemento a essa situação de descon- por um neoclassicismo e romantismo que se preten- certo acerca do que implica a apreensão do real, dia aclimatar. se soma o fato de que mais tarde aparece o cine- Isso implicou o achatamento e a simplifica- ma, integrando–se ao mesmo entendimento plano e ção da dificílima apreensão do real que havia sido fragmentado, mas agora em movimento, poucos anos trabalhada por séculos nas academias históricas, depois de seus primeiros passos na Europa. e também, em consequência, a destruição do exercí- Como consequência desse processo, não é de cio filosófico e de observação em que a realidade se estranhar que quando teve início a assimilação se compreende inabarcável e inapreensível e, por dos trabalhos vanguardistas na América Latina — essa razão, sujeita a uma interpretação, através quando, na Europa, através das imagens do cubismo de códigos e símbolos como os do horizonte, da e do surrealismo estava sendo entendida a ruptura fuga, ou da estrutura geométrica, etc. do tempo único e se desenvolvendo uma filosofia da Pelo contrário, a fotografia chega com simultaneidade — esse produto tenha sido acolhido essa abstração resoluta no interior de um aparato no novo mundo de maneira plana e frontal e dentro construído a partir da lógica cartesiana, na qual da lógica estrutural do tempo linear e inerte da o mundo se ordena em um eixo matemático simétrico. fotografia. Não era possível conceber no continente A realidade que se observou então foi a da câmera, a transcendência do tempo único refutada desde o que faz um registro exclusivamente frontal e, Impressionismo sem que se tivesse especulado sobre além disso, fragmentado e compactado em um único a instabilidade do real e quando, pelo contrário, plano, no qual o horizonte se transforma em linha os avanços da fotografia, que era trabalhada como reta e finita, apagando desta maneira a noção da o principal apoio do entendimento da imagem na circularidade do mesmo, e da mesma forma a do academia, afirmava a possibilidade de congelar o tempo–espaço. instante e, com ele, a imagem. México, Brasil e Cuba tiveram a sorte No século XX, a fotografia se transformou em de ter fundado as primeiras academias da Améri- texto que documenta e testemu