FACIP/UFU Ituiutaba, 2010 I SEMANA DE HISTÓRIA DO PONTAL III Seminário de Práticas Educativas De 22 a 24 de novembro de 2010 I SEMANA DE HISTÓRIA DO PONTAL ANAIS FACIP/UFU Ituiutaba, 2010 Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 Cultura, educação e ambiente 2 I SEMANA DE HISTÓRIA DO PONTAL III Seminário de Práticas Educativas De 22 a 24 de novembro de 2010 COORDENAÇÃO: Profa. Dra. Angela Teles Prof. Dr. Eduardo Giavara Prof. Dr. Marco Antonio Cornacioni. Sávio Profa. Dra. Janaina Zito Losada FACIP/UFU Ituiutaba, 2010 Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 ANAIS 3 I Semana de História do Pontal Promoção e organização Curso de História/Faculdade de Ciências Integradas do Pontal Universidade Federal de Uberlândia Pró-reitoria de Extensão, Cultura e Assuntos Estudantis/PROEX Pró-reitoria de Pesquisa e Pós-graduação/PROPP Comissão Organizadora Dra. Ângela Aparecida Teles Dr. Eduardo Giavara Dra. Janaina Zito Losada Dr. Marco Antonio Cornacioni Sávio Comitê Científico Dra. Ana Paula Spini Dra. Daniela Magalhães da Silveira Dr. Jean Luiz Neves Abreu Ms. Jiani Fernando Langaro Dra. Mara Regina do Nascimento Comissão de Cultura Dr. Angela Teles Diego de O. Ribeiro Caio Vinicius de Carvalho Ferreira Comissão de Divulgação Dr. Eduardo Giavara Bárbara Rufino de Carvalho Camilla Aparecida Nogueira de Souza Glaucia Silva Souza Jurandir Ribeiro Muniz Luana Ferreira Santana Renata Alexandre da Costa Campos Comissão de Infraestrutura Dr. Marco A. C. Sávio Anderson Aparecido G. de Oliveira Fernanda Domingos Naves Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 Anderson A. G. de Oliveira 4 Filipe Silva Limonta Iza Costa Luciene Maria Nascimento Andrade Túlio Andrade dos Santos Comissão de Inscrições Dra. Janaina Zito Losada Bruno Taumaturgo Bandeira Cristiele Nascimento Daniela Cristina Borges Maria Thereza Gomes da Silva Vasconcelos Organização e preparação dos ANAIS Dra. Janaina Zito Losada Capa Dr. Eduardo Giavara (sobre a obra de Vladmir Tatlin (1885-1953) - Monumento à III Internacional, 1919) Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Sistema de Bibliotecas da UFU, MG, Brasil. Semana de História do Pontal (1. : 2010 : Ituiutaba, MG) I Semana de História do Pontal : cultura, educação e ambiente : anais ; III Seminário de práticas educativas, de 22 a 24 de novembro de 2010, em Ituiutaba, Minas Gerais ; coordenação: Angela Teles, Eduardo Giavara, Marco A. C. Sávio, Janaina Zito Losada. – Ituiutaba: UFU, FACIP, 2010. 1 CD-ROM Inclui bibliografia. ISSN: 2179-5665 1. História - Congressos. 2. Cultura - Congressos. 3. Meio Ambiente - Congressos. 4. Educação - Congressos. I. Teles, Ângela. II. Universidade Federal de Uberlândia. Faculdades Integradas do Pontal. III. Seminário de práticas educativas (3. : 2010 : Ituiutaba, MG). IV. Título. CDU: 930(061.3) Elaborado pelo Sistema de Bibliotecas da UFU/Setor de Catalogação e Classificação Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 S471h 5 Apresentação A I Semana de História do Pontal - Cultura, Educação e Ambiente apresenta-se como o resultado de um trabalho de instalação e de fortalecimento do curso de história na FACIP. Iniciado no ano de 2007, o curso passou por um período de estruturação e assiste ao encerramento de sua primeira turma no primeiro semestre do ano de 2011. Por outro lado, ao longo desses três anos, o curso consolidou seu quadro de professores. É nesse momento que o evento se inscreve como uma primeira oportunidade de apresentar para a universidade e para o público em geral o resultado desses anos de trabalho. Fruto do trabalho compartilhado e do envolvimento de professores, alunos e técnicos, a I Semana de História do Pontal recebeu mais de uma professores e alunos de universidades como a Universidade Federal do Rio Grande – FURG/RS ou da Universidade Federal do Rio Grande do Norte/UFRN. A opção pelos temas dos simpósios está diretamente ligada com a necessidade de consolidar linhas/espaços/campos de pesquisa que atravessam e propõem os professores do curso e que agrupam alunos e interesses de pesquisa. Os simpósios entrecruzam os temas Cultura, educação e ambiente, que também organizam a ordem das palestras dos professores doutores Tania Regina de Lucca, Lana Mara Castro Siman e Paulo Martinez que gentilmente aceitaram o convite para participar do evento. Ainda aqui se encontram articuladas as mesas redondas que terão espaço nas manhãs, com professores da nossa Universidade. Dentro desse espírito esperamos atingir as seguintes finalidades: Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 centena de inscrições de cinco estados diferentes do país, contando com uma variada amplitude temática, temporal e teórica. São sete os Simpósios Temáticos que constituem a I Semana e que propiciarão aos docentes, alunos e professores da Facip/UFU e da rede de ensino de Ituiutaba e região contato com os debates historiográficos e as pesquisas realizadas dentro e fora da unidade. É marcante a circulação de alunos provenientes de Uberlândia, da própria UFU e também de acadêmicos e professores da Universidade Federal de Goiás, campus de Jataí. Ainda devemos apontar a participação de 6 1. Divulgar as atividades do curso de história da FACIP-UFU para a comunidade acadêmica e o público em geral; 2. Possibilitar a apresentação dos trabalhos e pesquisa na área de história à comunidade acadêmica e ao público em geral; 3. Propiciar a docentes, alunos e professores da rede de ensino de Ituiutaba e região contato com os debates historiográficos e as pesquisas realizadas dentro e fora da unidade; 4. Convidar professores de outras instituições para debater temas de interesse para a pesquisa e o ensino de história; 5. Propiciar aos alunos da instituição uma maior densidade nos debates e apresentar outras visões acerca do ensino e da pesquisa em história; 6. Proporcionar um espaço de participação nos debates travados pela historiografia nacional, bem como apresentar o curso de história e a FACIP como um espaço aberto para a reflexão acerca do ensino de história e das demandas educacionais brasileiras; 7. Divulgar, através de anais eletrônicos, os resultados do evento, história no ambiente acadêmico do Pontal. Este evento não aconteceria sem a participação decisiva da Pró-reitoria de Extensão, Cultura e Assuntos Estudantis, da Pró-reitoria de Pesquisa e Pós Graduação e do auxílio da Diretoria da Faculdade de Ciências Integradas do Pontal. Também temos que marcar o papel fundamental dos funcionários destas e da Gráfica da UFU. Mas fundamentalmente é importante apontar o empenho dos acadêmicos que se envolveram nas comissões e dos professores do Curso de História da Facip, que conceberam este evento que este busca sistematizar. Assim desejamos a todos um excelente evento! Comissão Organizadora Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 ampliando seu alcance e marcando, assim, a consolidação do curso de 7 PROGRAMAÇÃO GERAL Segunda-Feira, 22 de novembro de 2010. 08h00 - 11h30 Credenciamento – LAPEH – Bloco A II 10h00 - 12h00 Apresentação do III Seminário de Práticas Educativas - FACIP/UFU 12h00 - 14h00 Almoço 14h00 - 17:00 Apresentação dos trabalhos e banners de PIPE IV. 19h00 - 21:00 Palestra Inaugural - Profa. Dra. Tânia Regina de Luca (Unesp/Assis). "Cultura, imprensa e mídia". 21h00 - 22h00 Evento cultural (organizado pelos alunos do Curso de História) Terça-Feira, 23 de novembro de 2010. 10h00 - 12h00: Mesa Redonda: "Abordagem interdisciplinar da Lei 10.639/2003 - História e Cultura Afro-Brasileira. Debatedores: Prof. Dr. Cairo Mohamad Ibrahim Katrib (FACIP/UFU); Profa. Dra. Cristiane Coppe (FACIP-UFU); Prof. Ms. Luciane Ribeiro Dias Gonçalves (FACIPUFU). Local: FTM II - ala 6 - sala 03 12h00 - 14h00 Almoço. 14h00 - 17h00 Simpósios Temáticos. 20h00 - 22h00 Apresentação da palestra da Profa. Dra. Lana Mara Castro Siman (UFMG). "Educação, patrimônio cultural e ensino de história". Quarta-feira, 24 de novembro de 2010. 10h00 - 12h00: Mesa Redonda: "História, Natureza e Sociedade". Debatedores: Prof. Dr. Jean Luiz Neves Santos (INHIS-UFU); Prof. Dr. Marcelo Lapuente Mahl (INHIS-UFU); Prof. Dr. Marco A. C. Sávio (FACIP-UFU). – Local: FTM II - ala 6 - sala 03 12h00 - 14h00 Almoço 14h00 - 17h00 Simpósios Temáticos 18h00 - 20h00 Lançamentos de livros. "A cidade e as máquinas: bondes e automóveis nos primórdios da métropole paulista": Marco A. C. Sávio. "Do público ao privado, do confessional ao laico: a história das instituições escolares na Ituiutaba do século XX": Betânia de O. Laterza Ribeiro e Sauloéber Társio de Souza. 20h00 - 22h00 Palestra de encerramento - Prof. Dr. Paulo Martinez (Unesp/Assis). "História Ambiental e museus: um debate contemporâneo. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 18h00 - 20h00 Apresentação dos trabalhos e banners de PIPE IV. 8 SUMÁRIO Simpósio Temático 1 - Cidade, patrimônio e memória............................................................... 10 Simpósio Temático 2 – Natureza, espaço e técnica .................................................................... 96 Simpósio Temático 3 – Cultura popular, oralidades e linguagens audiovisuais ....................... 175 Simpósio Temático 4 – História e literatura.............................................................................. 250 Simpósio Temático 5 – Escravidão: fontes, historiografia e perspectivas de pesquisa ............. 282 Simpósio Temático 6 – História, memória, teoria da história e historiografia.......................... 310 Simpósio Temático 7 – História da educação escolar e do ensino de história .......................... 376 Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 Indice de Autores .....................................................................................................................497 9 SIMPÓSIO TEMÁTICO 1 - CIDADE, PATRIMÔNIO E MEMÓRIA Coordenação: Profa. Dra. Dalva Maria de Oliveira Silva e Prof. Ms.Jiani. Fernando Langaro CATALOGAÇÃO E DIGITALIZAÇÃO DE ACERVOS PAROQUIAIS DA DIOCESE DE ITUIUTABA. .............................................................................................................................. 11 Pedro Affonso de Oliveira Filho CATALOGAÇÃO E DIGITALIZAÇÃO DE DOCUMENTAÇÃO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA .................................................................................................................................... 19 Francelly Helena Santos e Dalva Maria de Oliveira Silva COMEMORAÇÃO DO PRIMEIRO CENTENÁRIO DE ITUIUTABA, RELAÇÕES AFETIVAS OU QUIMÉRICAS? ............................................................................................... 27 Paula Marcele Ferreira Oliveira e Iago de Paula Barbosa DESLOCAMENTO SOCIAL, TRABALHO E RESISTÊNCIAS: MIGRAÇÃO DE ALAGOANOS PARA AS USINAS DE CANA-DE-AÇÚCAR. TRIÂNGULO MINEIRO MG 2005-2008. ........................................................................................................................... 37 Gláucia Silva Souza HISTÓRIA, MEMÓRIA, CULTURA E SOCIEDADE:UM OLHAR SOBRE O PATRIMÔNIO CULTURAL DA CIDADE DE ITUIUTABA/MG .................................................................... 43 Renato Mateus e Sidney Leopoldino da Mata Lara Denise Muntaser e Dalva Maria de Oliveira Silva IMPRENSA E MEMÓRIA: REFLEXÕES SOBRE A CONSTRUÇÃO DE MEMÓRIAS PÚBLICAS EM TOLEDO/PR A PARTIR DE UMA NOTÍCIA POLICIAL DE 1954 ............ 64 Jiani Fernando Langaro INVENTÁRIO E CATALOGAÇÃO DE ACERVO PAROQUIAL E FORENSE NA CIDADE DE MONTE ALEGRE DE MINAS ........................................................................................... 76 Fabiana Conceição de Moura Gonçalves Rodrigues e Dalva Maria de Oliveira Silva LEVANTAMENTO DOS BENS CULTURAIS DE ITUIUTABA- MG .................................. 83 Filipi Silva Limonta e Cairo Mohamad Ibrahim Katrib POLÍTICAS PÚBLICAS E RELAÇÕES PRIVADAS COM O TOMBAMENTO EM ITUIUTABA ............................................................................................................................... 89 Leonardo Silva Oliveira e Luana Regina Mendes Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 IMIGRAÇÃO ÁRABE PARA ITUIUTABA - PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XX ....... 56 10 CATALOGAÇÃO E DIGITALIZAÇÃO DE ACERVOS PAROQUIAIS DA DIOCESE DE ITUIUTABA. Pedro Affonso de Oliveira Filho Graduando do curso de História da Universidade Federal de Uberlândia/ UFU/Campus Pontal Introdução A região do Triângulo, Estado de Minas Gerais, possui um expressivo acervo documental histórico referente à atuação da Igreja Católica, presente na região desde os primórdios da ocupação deste território. Esses acervos podem ser encontrados, em grande parte, nas cúrias diocesanas nas cidades de Uberaba, Uberlândia, Patos de Minas e Ituiutaba sendo que muitos ainda se encontram dispersos em paróquias pertencentes às mesmas dioceses. Trata-se de acervos importantíssimos para a recuperação da memória desta região e que, geralmente, não são acessíveis para os pesquisadores, seja devido à sua dispersão ou por resistência de alguns dirigentes da igreja que proíbem o acesso aos mesmos em algumas localidades. Em face desta realidade o Projeto Memória, História e Cidadania, que tem por objetivo preservar a memória local, bem como a identidade histórica e cultural da região, têm trabalhado no sentido de inventariar e catalogar esta documentação, visando preserva-la e disponibiliza-la ao publico de pesquisadores, Mineiro. Tendo em vista os avanços tecnológicos do século XX e inicio do XXI, era em que se pode encontrar grande parte de informações em suportes de software, na internet, ou mesmo em acervos digitais virtuais, pode-se notar que esta alternativa se revela em uma ferramenta eficaz no que se refere à preservação e conservação da memória regional, local e até mesmo nacional. Sendo assim os objetivos do Projeto Memória, História e Cidadania: os sujeitos sociais e históricos e as suas relações nas e com as cidades no Pontal do Triângulo Mineiro, coordenado pela professora Dra. Dalva Maria de Oliveira Silva, faz parte deste campo de pesquisa, atuando, também, como projeto de extensão ligado à Pró-reitoria de Extensão da Universidade Federal de Uberlândia. O principal objetivo deste projeto, em sua primeira etapa no ano de 2009 e janeiro de 2010, foi a catalogação e digitalização dos acervos das paróquias pertencentes à diocese de Ituiutaba que, em sua maioria, atualmente se encontram no Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 através da criação de um centro de documentação na região do Pontal do Triangulo 11 arquivo diocesano da mesma cidade. Nosso objetivo com este trabalho é poder disponibilizar estes acervos no centro de documentação, que atualmente se encontra em processo de construção, através da conversão de arquivos fotografados em JPG em arquivos no formato PDF, possibilitando assim uma consulta mais rápida e eficiente, uma vez que os arquivos se encontraram em seqüência. Durante este trabalho, privilegiamos os assentos de batismo, casamento, óbito e livros tombo da paróquia catedral São José de Ituiutaba e os assentos de batismo e matrimonio da paróquia de Nossa Senhora Mãe dos Homens de Campina Verde (atual Nossa Senhora da Medalha Milagrosa), por serem os registros paroquiais mais antigos do arquivo e por estarem em estado de parcial degradação, devido ao manuseio e à ação do tempo. Com base no material digitalizado foi possível tecermos algumas considerações a cerca da região do Triangulo Mineiro na ultima década do século XVIII e primeira metade do século XIX, o trabalho que apresentamos agora é o resultado parcial desta pesquisa, bem como o apontamento de possíveis pesquisas a partir desta documentação e, também o relato de experiências e reflexões construídas por nossa participação como bolsistas de extensão no projeto durante o período de junho de 2009 a janeiro de 2010. Os registros eclesiásticos e seus usos na pesquisa histórica. Américas, principalmente na América Latina a partir do Concílio de Trento no século XVI, como forma de controle sobre os fiéis da paróquia ou capela de uma cidade, vila, ou freguesia. As Ordenações Filipinas no século XVII vieram reafirmar a utilidade desses registros e ordenar que também os escravos fossem batizados, como forma de controle da igreja sobre todos os segmentos da sociedade, o que é explicitado no Livro V, capítulo 99, das Ordenações Filipinas: Mandamos que qualquer pessoa, de qualquer estado e condição que seja que escravos de Guiné tiver, os faça batizar e fazer cristãos, do dia que a seu poder vierem até seis meses, sob pena de os perder para quem os demandar. E se algum dos ditos escravos que passe de idade de dez anos 1 se não quiser tornar cristão, sendo por seu senhor querido, faça-o seu senhor saber ao prior ou cura da igreja em cuja freguesia viver, perante o qual fará ir o dito escravo; e se ele, sendo pelo dito prior e cura admoestado e requerido por seu senhor, perante testemunhas, não quiser ser batizado, não incorrerá o senhor em dita pena. (LARA, 1999, p. 308) 1 Na nota 242 consta que segundo as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia a idade mínima para poder escolher a religião era de sete anos. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 Os assentos de batismo, crisma, casamento e óbito generalizaram-se nas 12 Durante os séculos XVIII e XIX em todo o território nacional e mais especificamente em Minas Gerais, estando a igreja ligada ao Estado, a produção destes documentos ganha características especificas, devido a ligação do clero com a máquina burocrática do Estado colonial e imperial. O clero era pago pelo Estado e em troca deveria cuidar de aspectos da vida religiosa e social da comunidade por ele dirigida. Todas as ações da Igreja sejam elas religiosas, sociais, burocráticas, administrativas, eram registradas, uma vez que os clérigos deveriam, caso fossem solicitados, prestar contas a seus superiores. No caso do batismo que era e ainda continua sendo considerado como uma inserção do individuo no cristianismo, os registros são mais numerosos uma vez que a grande maioria das pessoas era batizada após o sétimo dia de nascimento, como explica Miriam Moura Lott (2004). Devemos considerar que no século XIX e primeira metade do XX, em virtude de varias causas, o índice de mortalidade infantil era muito alto, sendo assim o numero de assentos de matrimonio é relativamente menor que o de batismo e o de óbitos, sendo que os registros de óbitos podem nos fornecer inúmeras pistas sobre as enfermidades sofridas nos séculos XIX e XX, além de revelar as praticas religiosas ligadas à morte, como encomendação do corpo, enterro em solo sagrado e outras mais. Como podemos observar estes registros fizeram e ainda fazem parte da vida da grande maioria dos habitantes da região do Triangulo Mineiro dos séculos XIX e XX, independente da condição social ou da cor. O conteúdo dos registros pode variar em tinha uma forma de relatar o assento. Os registros de batismo trazem, quase sempre, o nome da criança primeiramente, depois da mãe, do pai e dos padrinhos, caso os pais sejam casados na igreja aparece no assento o termo ―filho legitimo‖, caso não seja aparece ―filho natural‖, o local da cerimônia, a data e o nome do padre, como podemos ver no primeiro registro de batismo feito em Ituiutaba, antiga freguesia de São José do Rio Tijuco: Aos vinte de março de mil oitocentos e quarenta e oito baptizei solenemente ao inocente Porfírio filho legitimo de Vicente Quirino Alberto e Donancia Felizarda da Conceição, foram padrinhos Antonio de Freitas Ribeiro e Ana Joaquina de São José, Padre José Fortunato Alves Pedrosa de Resende. (I Livro de assentos de Batismo da Igreja matriz de São José do Rio Tijuco, 1848 pag. 2). Na seqüência dos registros durante o ano de 1848 constam sete batizados, dezesseis no ano de 1849, vinte e seis no ano de 1850, sendo que destes dez eram cativos, e vinte e dois batismos no ano de 1851, sendo que destes treze eram escravos. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 numero de detalhes, pois não eram prescritos sempre pelo mesmo clérigo e cada um 13 Os registros de casamento geralmente apresentam mais dados do que os de batismo, pois os mesmos informam se ambos são livres ou escravos, o nome dos pais, dos noivos, local de batismo e residência, nome das testemunhas, data e hora da cerimônia, nome do padre, sua qualificação e assinatura, como podemos observar em um acento de casamento da paróquia de Nossa Senhora Mãe dos Homens do Campo Belo, atual município de Campina Verde: Aos nove de abril de mil oitocentos e cinqüenta o padre Antonio Valeriano Gonçalves de Andrade da Congregação da Missão Brasileira, sob licença do visitante ordinário deste bispado de Goiás, o padre Jerônimo Gonçalves de Macedo, da mesma congregação, depois de proclamados canonicamente e tomados os depoimentos verbais e sem impedimento algum, nesta capela do Campo Belo, o recebe em face da Igreja em matrimonio, os contratantes Joaquim Ourives de Nação e Benedita Criola, filha legitima de Manoel de Nação e Maria de Nação, todos escravos da Congregação da Missão, sendo testemunhas Joaquim Pereira e Maria Cunha, para constar fiz este acento no qual assigno Pe Antonio Valeriano Gonçalves de Andrade, padre da missão. (I Livro de Registros de Casamento da paróquia de Nossa Senhora Mãe dos Homens do Campo Belo, 1850, pag. 13). Vale observar que o maior ou menor detalhamento de informações observado nos registros de casamentos se dava de acordo com o estado social dos noivos, bem como das informações adicionais que estes dispunham. Os registros de óbitos por sua vez informavam sobre as circunstancias da morte do individuo, sua condição social, sua idade, a causa da morte, estado civil, se o corpo recebeu ou não encomendação e em caso negativo é informado, também o porquê de ver em um registro de óbito feito em Ituiutaba, antiga freguesia de São José do Rio Tijuco: ―No dia 6 de julho de 1884 no cemitério publico desta igreja Matriz, foi sepultado o cadáver de Joaquim Antonio de Moraes, com idade de 55 anos, morrendo repentinamente, não recebeu encomendação por não se achar o vigário no lugar. Vigário Ângelo Tardio Bruno‖. (II Livro de registros de óbitos da Igreja matriz de São José do Rio Tijuco, 1884, pag. 1). Deve-se ainda acrescentar que o fato de o defunto ter deixado testamento e recebido os três sacramentos do ritual católico da morte – confissão, eucaristia e extrema-unção – também costumam, eventualmente, ser mencionados no registro. Histórico da Cidade de Ituiutaba visto através dos registros do livro tombo: do surgimento do povoado a emancipação política em 1901. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 não tê-lo recebido, quase sempre por motivos de ausência do vigário, como podemos 14 As informações contidas no Livro de Registro de Atas da Matriz, o livro tombo, pela riqueza do seu documentário, traça um histórico do município e se revela ao pesquisador como uma das mais importantes contribuições para o conhecimento da história local, uma vez que quase todos os aspectos da vida religiosa e social da comunidade eram registrados neste livro. Pode se conhecer assim a origem do território destinado a construção da Igreja Matriz, que foi doado por José da Silva Ramos e Joaquim Antonio de Moraes, por volta do ano de 1820. Este relato se encontra na primeira ata do livro em sua primeira pagina escrita primeiramente pelo padre Francisco de Sales e Souza Fleury, segundo capelão da região em 1831 e reescrita pelo padre Ângelo Tardio Bruno em 1884, e dá conta do perímetro da doação sendo Duas léguas do sul ao norte e Uma légua e meia do nascente ao poente. É relatado também que a primeira capela, construída pelo primeiro capelão e vigário padre Antonio Dias de Gouvêa, se encontrava nas proximidades do córrego sujo. Em 1842 é construída a matriz onde hoje se encontra a atual Catedral Diocesana, pelos esforços do padre Gouvêa e José Fortunato. No período que antecede a 1882 os dados eram escritos na forma de correspondência, deixadas aos novos vigários por seus predecessores, estas cartas quase sempre eram guardadas dentro dos livros como forma de conhecimento sobre o perímetro de terras pertencentes à paróquia, bem como seus doadores e vizinhos paróquia em 1839, da criação da freguesia, e da suspensão deste ato em 1840, sendo que neste período o vigário responsável era o padre Antonio Dias de Gouvêa, que após a suspensão passou a ser vigário da povoação da atual cidade de Prata. Em 1845 chegou ao povoado o terceiro capelão, Padre José Fortunato Alves Pedrosa de Resende, sendo que durante o tempo em que esteve presente foram concluídas as obras da matriz e a mesma foi elevada a paróquia em 1862, com a recriação da freguesia. Em 1869 o padre Fortunato foi transferido para a vila de Monte Alegre, ficando a paróquia sobre os cuidados do padre José Gomes de Lima, vigário da vila de Prata e em 1872 chegou à freguesia o padre Manuel Esteves Balonçoela Lira, que embora tenha deixado a povoação no mesmo ano, organizou toda a documentação da matriz, inclusive as cartas deixadas por seus antecessores. Ainda em 1872 chegou o padre Tristão Carneiro de Mendonça que organizou o cemitério publico, localizado atrás da igreja matriz. Consta, em alguns registros avulsos encontrados dentro do livro tombo, que antes de sua chegada os mortos eram sepultados dentro da igreja ou em suas proximidades. Padre Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 confrontantes. Além da construção da matriz, encontramos o registro de criação da 15 Tristão permaneceu no Arraial pouco mais de um ano e, novamente, o mesmo passou a ser atendido pelo vigário de Prata. No ano de 1882, por pedido e insistência de fazendeiros, a freguesia recebeu a visita do Cônego Ângelo Tardio Bruno e durante a sua estada os habitantes do povoado pedem para que ele fique responsável pela paróquia e pelos assuntos políticos da região. Consta que alguns fazendeiros chegaram a propor-lhe uma considerável soma em dinheiro em troca de sua permanência na freguesia, sendo que esta passagem foi relatada pelo próprio Cônego nas primeiras folhas do livro tombo. Padre Ângelo aceitou a proposta e se estabeleceu como pároco da freguesia recebendo provisão interina em 1884 e neste mesmo ano ele se tornou, também, vereador responsável pela freguesia que até então era ligada à comarca da cidade de Prata. Pelo que podemos perceber nos relatos feitos pelo Cônego, são muitas as ações por ele lideradas em beneficio da povoação e de toda a região, sendo que aqui permaneceu até o ano de 1917, ocupando por mais de três vezes o cargo de vereador. Todo o território onde se encontrava a povoação pertencia à Igreja Católica e foi por iniciativa do Cônego Ângelo que os terrenos e construções foram registrados através de cartas de aforamento no nome dos respectivos proprietários. Encontramos também registro de vários empréstimos provenientes do fundo paroquial a pessoas que pretendiam construir, mas não possuía capital, consta que as com telhas de barro, neste período a maioria das construções do arraial eram cobertas com capim ou folhas de coqueiro, as de telha eram aproximadamente em numero de 16. As primeiras ruas e avenidas da cidade, tal qual encontramos ainda hoje no centro, foram planejadas por ele, que pagou esta empreitada com o dinheiro do próprio bolso. No do ano de 1901, depois de muitos esforços por parte do Cônego e do povo, conseguiram a emancipação da freguesia, desmembrada da cidade de Prata e que passou a se chamar Vila Platina. Consta nos registros do tombo que o Cônego Ângelo, durante o período que atuou na região, liderou diversos atos como a construções de estradas, pontes, edifícios públicos, construção de capelas nas vilas da região e que por muitas vezes assumiu as paróquias de Monte Alegre de Minas e Campina Verde, alem de acumular vários cargos políticos em toda a região. Analisando esses registros podemos concluir que as ações lideradas por Cônego Ângelo Tardio Bruno foram de fundamental importância para o desenvolvimento da Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 condições impostas pelo Cônego Ângelo era que fosse construído prédio em alvenaria e 16 região e para a sua emancipação como município, sendo que, segundo os registros ocorre em 1901, sendo que em 1917 passou a ser denominada com o nome atual de Ituyutaba, significando na língua tupi guarani Povoação do Rio Tijuco. Os registros também dão a conhecer que algumas categorias eram excluídas da participação social, um exemplo claro que podemos citar são os escravos que até a chegada do Cônego realizavam festejos próprios de sua irmandade e possuíam uma capela por eles construída no largo da matriz. Por ocasião da visita pastoral do senhor bispo diocesano Dom Cláudio José Gonçalves Ponce de Leão em 1884, Cônego Ângelo o convenceu de que fossem tomadas decisões a respeito das crenças africanas, ele descreveu a Capela de Nossa Senhora do Rosário como estando em péssimo estado de conservação e pediu ao Bispo autorização para demoli-la uma vez que já havia um altar dedicado a Nossa Senhora do Rosário na Igreja Matriz. Consta que o Bispo consentiu, ordenou que toda a quantia que a irmandade possuísse fosse entregue ao padre e a capela foi demolida, a imagem confiscada e os membros da irmandade, a maioria escravos e alguns libertos, manifestaram a sua revolta não comparecendo à procissão e ao terço rezados por Cônego Ângelo por ocasião da festa naquele ano. Era naquela capela que realizavam as festas do Rosário no mês de outubro, as comemorações da Páscoa e a festa de São Benedito em oito de setembro. Sendo assim não compareceram as festividades de Nossa senhora do Rosário naquele As tramas sociais que vão sendo reveladas através da análise minuciosa desse tipo de documento estão permeadas de casos como este. Cabe ao historiador desvelar estas informações, cuja verdade encontra-se constantemente encoberta pelo véu do silencio e da aparente regularidade formal da documentação eclesiástica. Durante os trabalhos do Projeto Memória, História e Cidadania estivemos em constante contato com vários tipos de documentos, procurando entender a lógica e o sentido destes registros com o intuito de nos capacitarmos para a prática da pesquisa histórica que pretendemos perseguir. REFERENCIAS BIBLIORÁFICAS CARVALHO, José Geraldo Vidigal, “A Igreja e a Escravidão. As Irmandades de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos”. Instituto Histórico e Geográfico do Brasil, Rio de Janeiro, 1988. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 ano de 1884. 17 CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. Tradução Maria de Lourdes Menezes. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000. FREYRE, Gilberto. Casa-Grande e Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 51 ed. São Paulo: Global, 2006. LARA, Silvia H. (org). Ordenações Filipinas, Livro V. São Paulo: Companhia das Letras. 1999. p. 308. Coleção Retratos do Brasil, 16. LOURENÇO, Luis Augusto Bustamante. A Oeste de Minas. Escravos, índios e homens livres numa fronteira oitocentista. Triângulo Mineiro 1750-1861. Uberlândia, Edufu, 2005. Fontes Primárias Livro 1 de atas (Livro Tombo) da igreja matriz de São José do Tijuco, 1884 e 1912. Livro 1 de registros de batismos da igreja matriz de São José do Tijuco 1848. Livro 1 de registros de batismos da igreja matriz de Nossa Senhora das Graças do Campo Belo,1835. Livro 1 de registros de óbitos do cemitério publico da igreja matriz de São José do Tijuco, 1884. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 Livro 1 de registros de casamento da paróquia de Nossa Senhora Mãe dos Homens do Campo Belo, 1850. 18 CATALOGAÇÃO E DIGITALIZAÇÃO DE DOCUMENTAÇÃO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA Francelly Helena Santos Acadêmica do Curso de História - FACIP-UFU Dra. Dalva Maria de Oliveira Silva Curso de História – FACIP-UFU Introdução O projeto Memória História e Cidadania visa a criação de um Centro de Pesquisa, Documentação e Memória na Universidade Federal de Uberlândia – Campus Pontal, onde futuramente alunos e pesquisadores possam realizar as suas pesquisas e desenvolver sua investigação acerca do município de Ituiutaba e região do Pontal. Para que este projeto se concretize, uma das frentes de trabalho do mesmo, em parceria com a Prefeitura Municipal de Ituiutaba, é a catalogação e digitalização de documentos do arquivo da Secretaria Municipal de Planejamento, Administração e Recursos Humanos em cujo acervo encontramos uma vasta documentação sobre questões administrativas do município tais como: Livros de lançamento de contribuintes da Vila Platina, Livros de recenseamento da população, Livros de lançamento de imposto territorial, Livros de empenho de despesas, Livro de cadastramento de cães e outros que datam da primeira Estes documentos (livros), sendo que alguns se encontram em estado de conservação delicada, estão sendo catalogados, digitalizados, organizados e guardados de forma provisória até que possam ser transferidos para um local adequado e submetidos a tratamento e restauração visando a sua melhor conservação. Estes documentos contêm informações relevantes e de suma importância para a compreensão da história regional2 e para a pesquisa histórica sobre uma variedade de temáticas. Através deste trabalho poderemos preservar a memória documental e também trazer à tona a contribuição de agentes cuja ação foi fundamental na construção da história vivida e que estão sendo esquecidos pelo foco nos detentores do poder publico. O projeto, assim que consolidado e que tiver uma sala própria, visa atender à demanda de pesquisa, não somente da área da história, dado a riqueza e importância 2 Os livros datados da primeira metade do século XX referem-se a dados e apontamentos do município de Ituiutaba, mas que nesse período compreendia uma área mais abrangente e que hoje corresponde a vários dos municípios vizinhos como Capinópolis, Cachoeira Dourada, Ipiaçu, Santa Vitória e Gurinhatã. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 metade do século XIX. 19 desta documentação para todas as áreas do conhecimento. Os trabalhos caminham em ritmo lento devido à má conservação dos documentos, que exige maior atenção dos estagiários e também devido à falta de infra-estrutura, dado às condições inadequadas do local onde estão guardados os livros, o que consequentemente tem submetido a equipe a condições de trabalho igualmente inadequadas. Um galpão sem ventilação, com muita poeira, sem mobiliário e com pouco espaço, já que os livros e demais documentos não podem ser retirados do espaço de guarda dos mesmos. Memórias fragmentadas: a cidade e suas memórias Tendo como ponto de partida o acúmulo do conhecimento sobre a temática da memória, originada por uma infinidade de pesquisas a partir de diferentes visões e problemáticas, bem como a partir da sua utilização como fonte, nos permite afirmar sobre o seu caráter tênue e seletivo, o que a torna também fragmentada3. Milhares de informações são processadas por nossas mentes ao longo de uma vida e as mesmas vão sendo depositadas nos mais variados campos, sitiadas conforme a sua maior ou menor importância ou, quem sabe, conforme temáticas. Informações vão se sobrepondo e algumas memórias vão ficando esquecidas em um canto qualquer. Um esforço quase sobre-humano poderá trazê-las de volta em algum momento em que um fragmento se tornar importante, imprescindível para desvendar um lapso, como uma peça ausente em negando lucidez e clareza a acontecimentos que jamais serão conhecidos como de fato se deram ou deles poderiam se lembrar. Esquecer e lembrar faz parte de um mesmo movimento da memória, seja individual ou coletiva, entretanto à memória histórica é reservado um papel fundamental à nossa existência como nos lembra o autor: A memória histórica se nos apresenta idealmente como âncora e plataforma. Enquanto âncora, possibilita que, diante do turbilhão da mudança e da modernidade, não nos desmanchemos no ar. Enquanto plataforma, permite que nos lancemos para o futuro com os pés solidamente plantados no passado criado, recriado ou inventado como tradição. Esta por sua vez, toma o sentido de resistência e transformação. (LOVISOLO, 1989, 16) 3 Para citar apenas alguns autores ver: LE GOFF, J. História e Memória. Campinas: Unicamp, 2003; POLLACK, M. Memória, Esquecimento, Silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro: v. 2, n. 3, 1989, p. 3-15; GIDDENS, Anthony. As conseqüências da modernidade. São Paulo: UNESP, 1991; HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Trad. Beatriz Sidou. São Paulo: Centauro, 2006. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 um quebra-cabeça. Mas também poderão permanecer para sempre na penumbra, 20 Nesse sentido se para cada ser humano de forma individual a memória constitui um ―porto seguro‖ e um ponto de partida, também uma cidade que não conta com um arquivo público ou qualquer instituição que se proponha a zelar pela preservação da memória material, através da guarda, conservação e acessibilidade da documentação que as suas instituições produzem ao longo da sua existência, não tem âncora e nem plataforma, se transforma em uma cidade sem passado, sem memória. Para não dizer sobre a importância e preponderância que a informação assumiu no século XXI e que não se trata de qualquer informação, pois há que estar fundamentada e muito bem estruturada por bases sólidas cuja memória constitui ingrediente principal. Das (des) memórias que reportam aos primeiros habitantes desta região, os Caiapós, aos primeiros forasteiros que vieram de outras regiões em busca de terra e riqueza, muito pouco ou quase nada foi conservado. A documentação sobre a cidade e a região encontra-se dispersa em várias repartições e não se tem um conhecimento do teor desta documentação e muito menos sobre o estado de conservação em que se encontra. Esta região começou a ser desbravada nos finais da primeira metade do século XIX e de lá para cá muitos foram os que aqui se fixaram ou por aqui passaram deixando pequenos ou grandes testemunhos, entretanto pouco se conhece sobre essa trajetória histórica que somente enquanto município autônomo soma-se longos cento e nove anos de existência. Dentre outros projetos o trabalho desempenhado pela equipe do Projeto área de esquecimento e penumbra que cerca a memória e a história sobre esta região e o seu povo. Uma dentre as ações desenvolvidas pelo projeto está sendo executada em um arquivo da Prefeitura Municipal de Ituiutaba, que se encontra sobre a guarda da Secretaria de Fazenda, Administração e Recursos Humanos e que reúne uma vasta documentação, considerando-se tanto a quantidade quanto a espécie e tipo de documentos reunidos nem sempre de forma organizada e em um espaço também inadequado. Apesar das condições em que os documentos se encontram, sendo que alguns estão quase totalmente destruídos e, portanto sendo impossível promover a sua recuperação através da técnica do restauro, causam-nos uma fagulha de conforto o fato de ainda podermos contar com alguns vestígios de tempos mais recuados e de ter nos sido dada a oportunidade, mediante parceria com aquela Secretaria, de contato com essa documentação visando o seu inventário e catalogação. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 Memória, História e Cidadania representa um pequeno esforço, frente a uma enorme 21 Relato de experiência do trabalho no arquivo Iniciamos o trabalho do projeto em fins do mês de maio quando realizamos a nossa primeira visita ao arquivo da Prefeitura Municipal ao qual se convencionou chamar de ―arquivo morto‖. Constatamos que os documentos a partir do ano de 1960 estão organizados em caixas arquivo com identificação por setor e data, sendo que a documentação anterior a esta década se encontra distribuída em grandes livros, nos quais consta o registro manual das informações referentes às atividades e ao expediente cotidiano da prefeitura. Estes livros não se encontravam organizados, estavam dispostos em diversas pilhas e espalhados pelo chão do prédio, no qual foi improvisado um arquivo, cobertos por grossas camadas de poeira, sendo que alguns em péssimo estado de conservação. Começamos realizando uma limpeza no local e nos livros visando remover a poeira e em seguida iniciamos o inventário e a catalogação dos mesmos, utilizando uma ficha contendo informações tais como: nome da instituição, setor, órgão, tipologia do documento, conteúdo do documento, a data e estado de conservação em que se encontra. Após a catalogação de cada livro segue a parte mais minuciosa do trabalho, que consiste em digitalizar os livros, página por página. Este trabalho exige perícia e paciência, pois há que se tomar cuidado com os livros que se encontram em situação de conservação delicada, o que também dificulta o trabalho de digitalização. O fato de trabalho o torna ainda mais criterioso4. O material produzido a partir deste trabalho – as fichas e as imagens da totalidade dos livros digitalizados após o término da ação – constituirão em acervo do Centro de Documentação e futuramente será disponibilizado, em forma de arquivo digital, para pesquisadores e comunidade, preservando desta forma essas informações e tornando possível o acesso às mesmas pelas gerações futuras. Pois, caso contrário, em função do estado de conservação dos livros essa documentação além de não estar acessível, desapareceria mediante a ação do tempo, da poeira e das más condições do local onde estão guardados. 4 Dado que a realização deste trabalho não altera Sobre a legislação e produção referente a organização e conservação de arquivos ver: Arquivo Nacional; CONARQ; FIOCRUZ; HERRERA, Antonia H. Arquivos, documentos e informação. In.: SÃO PAULO. Secretaria Municipal de Cultura. Departamento do Patrimônio Histórico. O Direito à Memória: patrimônio histórico e cidadania. São Paulo, DPH, 1992. p. 113-120. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 ainda não contarmos com a técnica e equipamentos adequados para a realização deste 22 substancialmente, pelo menos por enquanto, as condições de guarda do material, que depois de limpos e digitalizados estão sendo acondicionados em caixas de papelão que continuam a ser mantidas no chão por falta de mobiliário e local adequado. Durante o processo de inventário e catalogação dos livros nos deparamos com diversas séries e tipologias de documentos referentes a atividades e ações públicas empreendidas no expediente cotidiano do município, desde o período em que ainda era denominado Vila Platina. Encontramos, por exemplo, um Livro de Lançamento de Contribuintes e Impostos de Vila Platina, datado do ano de 1902, com o registro de impostos e respectivos contribuintes. Em outro livro, datado de 1908, encontramos o registro de receitas, despesas e balancetes da Prefeitura, sendo que estes são pequenos exemplos das séries de livros referentes à cobrança de impostos municipais e contabilidade do município, fontes imprescindíveis à pesquisa e produção do conhecimento sobre diferentes temáticas, como a distribuição territorial e posse da terra, por exemplo, mas que fornecem principalmente dados elucidativos sobre a história econômica do município no inicio do século XX. A riqueza e a diversidade deste acervo se apresentam a cada momento que manuseamos um novo livro, quando outras possibilidades de pesquisa vão se configurando, outros caminhos vão se abrindo através da existência de dados sobre distritos, comunidades, novos sujeitos e agentes da história do município que vão se historiador, que se vêem instigados à procura de novas descobertas, o que nos reporta a Lucien Febvre na obra Combats pour l‘histoire quando nos afirma que a história se faz com documentos escritos, quando os encontramos, mas também com toda a engenhosidade do historiador, com palavras e sinais, na busca minuciosa nas fontes que sinalizem sobre o não dito (1965, 428), o que nos estimula a dedicar à pesquisa histórica e a desenvolver o trato intelectual necessário à investigação e análise das fontes. Em um balanço parcial do trabalho no arquivo em questão, considerando cerca de noventa livros já digitalizados e visando apresentar nesta comunicação uma mostra da riqueza documental deste acervo, passamos a listar alguns exemplares do referido acervo já catalogado: 1. Livros relativos a impostos receitas e despesas do município Quantidade Tipologia Período 7 Livros de lançamento de Contribuintes Dentre o material Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 descortinando aos olhos ainda inexperientes, mas curiosos dos aprendizes de 23 5 Livros de lançamento de Imposto Territorial 1 Livro de relação de Inadimplentes 3 Livros de Registro de Receitas, Despesas e Balancetes 2 Livros Caixa de Posto de Gasolina 1 Livro de Despesas Gerais 1 Livro de Contribuintes da Zona Rural 8 Livros de Registro da Dívida Ativa 1 Livro de Lançamentos de impostos, taxas e rendas 1 Livro Caixa da Prefeitura Municipal de Ituiutaba 1 Livro de Registro de Impostos catalogado encontramos documentos datados de 1901 a 1950. Quantidade Tipologia Período 4 Livros de Cartas de Aforamento 6 Livros de Registro de Imóveis 3 Livros de Alvarás Diversos 1 Livro de Lançamento de Fazendas Dentre o material catalogado encontramos documentos datados de 1901 a 1950. 2 Livros de Relação de Patrimônio das Fazendas 3 Livros Índice de Registro de Fazendas 1 Livro de Registro de Veículos 3. Livros relativos ao registro populacional Quantidade Tipologia Período 4 Livros de Recenseamento de População 1901 a 1915 1 Livro de Registro de Cães 4. Livros Diversos Quantidade Tipologia Período 1 Livro Índice com nomes diversos Dentre o material Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 2. Livros relativos ao registro de propriedades e estabelecimentos comerciais 24 1 Livro de Editais 1 Livro de Registro de Profissões e Licenças catalogado encontramos documentos datados de 1901 a 1950. Esta constitui apenas uma pequena mostra em relação ao acervo já digitalizado e, principalmente, em relação à grande quantidade de livros que já foram separados para serem catalogados e digitalizados. Trata-se de atividade delicada e minuciosa e que em função da riqueza, também numérica da documentação ainda teremos vários meses de trabalho até a conclusão da ação, que ainda engloba em torno de cem metros de prateleiras de caixas arquivo para serem catalogadas. A partir da catalogação deste e de outros arquivos que constitui frentes de trabalho do Projeto Memória, História e Cidadania pretende-se organizar um guia preliminar de fontes visando informar a comunidade quanto à existência desse patrimônio público e instrumentalizar os pesquisadores sobre a tipologia e espécie da documentação disponível para pesquisa, bem como a sua localização. Com esta ação e outras que serão necessárias objetiva-se combater a fragmentação e principalmente a perda da memória histórica regional. ARQUIVO NACIONAL. Projeto Conservação Preventiva em Bibliotecas e Arquivos. CPBA. Rio de Janeiro, 2001. BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. Trad. Carlos Felipe Moisés, Ana Maria L. Loriatti. São Paulo: Companhia de Bolso, 2007. FEBVRE, Lucien. Combats pour l’histoire. Paris: Armand Colin, 1965. FIOCRUZ. CICT. Noções Básicas de Conservação Preventiva de Documentos. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2003. GIDDENS, Anthony. As conseqüências da modernidade. São Paulo: UNESP, 1991. HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006. HERRERA, Antonia H. Arquivos, documentos e informação. In.: SÃO PAULO. Secretaria Municipal de Cultura. Departamento do Patrimônio Histórico. O Direito à Memória: patrimônio histórico e cidadania. São Paulo, DPH, 1992. p. 113-120. LE GOFF, J. História e Memória. Campinas: Unicamp, 2003. LEVISOLO, Hugo. A Memória e a Formação dos Homens. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, nº 3, 1989, p. 16-28. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 25 Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 POLLACK, M. Memória, Esquecimento, Silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro: v. 2, n. 3, 1989, p. 3-15. 26 COMEMORAÇÃO DO PRIMEIRO CENTENÁRIO DE ITUIUTABA, RELAÇÕES AFETIVAS OU QUIMÉRICAS? Paula Marcele Ferreira Oliveira Graduando do curso de História da Universidade Federal de Uberlândia – UFU/Campus Pontal Iago de Paula Barbosa Graduando do curso de História da Universidade Federal de Uberlândia – UFU/Campus Pontal Introdução Uma cidade de progresso, assim é vista Ituiutaba por seu crescimento populacional e econômico, que tem vivido nos últimos dez anos. Houve de fato avanços, mais devemos ter cuidado ao caracterizá-los, e não imbuir no contexto histórico um caráter generalista. Porém, foi dessa forma que foi visto o aniversário de cem anos de emancipação da cidade, com um cunho extravagantemente louvável, ou seja, era a história embebida do néctar patriótico, que só se dá em datas estritamente comemorativas. Para se entender essa relação supostamente afetiva entre centenário e moradores, e consolidar tal relação ao patrimônio histórico da cidade que é usado como conceitos que serão vistos mais a frente, pois há lugares tanto valorizados quanto não valorizados, quando nos referimos a lugares, são aqueles de cunho histórico com valor supostamente sentimental tais que se ligam a população local por um forte vínculo de memória ou afetivo. São por vezes patrimônios históricos, tombados e preservados, ou não. Ituiutaba por não ser um centro histórico e possuir pouco mais de cem anos, mais especificamente 109, não possui muitos patrimônios tombados. Apenas nove foram tombados, e poucos deles são de fato preservados. Sendo que os primeiros tombamentos possuem relativamente pouco tempo datando de meados de 1999, e sendo a ponte Raul Soares e o MUSAI (Museu Antropológico de Ituiutaba). Podemos ver aí certa valorização e preocupação com a história tijucana, pois a preservação de pontos importantes na cidade é de fato proveitosa, porém o que não é tão proveitoso é o fato de a população local não possuir um caráter afetivo com seus bens patrimoniais, e esse Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 merchandising ou propaganda em datas comemorativas, se faz necessários certos 27 caráter, aparecer imbuído apenas em épocas comemorativas. Se considerados os fatos anteriores essa suposta relação sentimental seria então uma tradição inventada, levando em consideração essa colocação, faremos aqui uma análise crítica das comemorações do centenário da cidade, tentando desvendar os pormenores e intenções atrás dos fatos citados, como o desinteresse da população local para com seus bens patrimoniais e com as próprias efemérides. Patrimônio e memória Podemos afirmar com muita clareza, que a memória vem sendo um artigo indispensável na construção de padrões de registros historiográficos regionais. Registrar uma memória de determinada região (tarefa de memorialistas) requer um abrangente conhecimento dos fenômenos de memória que cercam a mesma região. A história regional é certamente um tipo de história onde a memória se encontra mais viva, mais arraigada e extremamente presente nos meios onde ela algum dia fez parte do cotidiano. A história regional por mais que busque se isentar de qualquer desvio com a história padrão (dos estados e das grandes nações passadas) jamais poderá se considerar como livre de ser uma história das proximidades, da relação mais próxima, uma história aonde não se vê um abismo tão grande entre o sujeito social e a narrativa histórica. Isto se deve a memória, pois aqui ela está no calçamento das ruas, nas paredes das catedrais, no virar regionalistas, e talvez por isto a uma primeira vista a história regional se pareça tão interessante, porque é a nossa memória. A memória, no entanto não é algo indiferente, ou livre de qualquer tipo de elemento tendencioso ou mau uso, a memória histórica não é tudo que lembramos, mas tudo que legitima um tipo de passado que para aquele meio social (ou seus meios dominantes) considera-se vantajoso. A memória para este tipo de escrita é seletiva e factóide, isso em casos como o regionalista, ou até mesmo nacional. Veremos isso claramente mais a frente, com a memória cuidadosamente recolhida, para a construção de uma bela história como a de Ituiutaba, ressaltando apenas as belas passagens e escondendo as negritudes, ou os conflitos que ali aconteceu. 5 SAMUEL, Raphael. História local e história oral. Revista Brasileira de História, São Paulo, ANPHU, v. 9, n. 19, p. 219-243, set. 89/fev. 90. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 das esquinas5. Talvez por isto a memória esteja tão presente nas palavras dos 28 Este artifício de memória ―legitimista‖ não é utilizado somente no âmbito regional, mas também em estratos culturais e espaciais muito mais amplos como nações e estados. No entanto é interessante vermos as diversas convergências da memória nos núcleos sociais, pois se de um lado ela legitima a identidade, de outro ela cabe como legitimadora do próprio esquecimento e do desuso de algo. Isso se fará constantemente presente no estudo do caso de Ituiutaba e seu primeiro centenário, uma relação um tanto quanto calorosa com a ―memória‖, numa data especifica, como se tivéssemos data e hora marcadas para consultar nossa memória, tomando-a um arquivo pessoal. O patrimônio também não pode ser desmerecido de seu mérito, já que entra como numa co-relação com a memória. O patrimônio, diferente da memória, pode ser visto, vivido e visitado, ele legitima a memória e o que merece ser lembrado, alem de mostrar a sociedade seu passado ―tal qual ele foi‖. O patrimônio se torna um ―monólito‖ do passado estacionado no meio do presente, onde por mais que se busque seu verdadeiro contexto, jamais poderá assumir as mesmas funções que originalmente possuía. O patrimônio cultural tombado em Ituiutaba que conta com nove itens, sendo eles o MUSAI (Museu Antropológico de Ituiutaba), a ponte Raul Soares, a Selaria do Capitão, o Parque do Goiabal, a Congada, a Praça Cônego Ângelo, panelas indígenas, indígenas, datando de meados do século XIX á frente. Sendo que inventários e dossiês de muitos outros estão sendo encaminhados para o tombamento. Apesar de possuir nove bens tombados, algo considerável se levarmos em consideração que a cidade não possui bens coloniais e é relativamente nova se comparada com outras cidades de Minas como Mariana ou Ouro Preto, a maioria desses bens patrimoniais não estão devidamente preservados, ainda que seja destinado a sua preservação e manutenção uma quantia pelo ICMS cultural. Bens como o Parque do Goiabal que é tombado e deveria servir de lazer e uso dos moradores locais, está vetado a entrada dos cidadãos devido ao seu mal estado de conservação, e falta de mão de obra. Outros como a Congada (bem imaterial), que tem como função primeira legitimar e solidificar uma manifestação cultural para que não se perca, é pouco difundida como patrimônio, mais ainda atrai muitos adeptos. Ituiutaba Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 escola João Pinheiro e Teatro Vianinha, e todos eles com a exceção das panelas 29 Agora procuraremos focalizar a discussão em torno de sua principal temática, que tem como plano de fundo o município de Ituiutaba, localizado no Pontal do Triângulo Mineiro. No entanto antes de adentrarmos neste dialogo patrimonial, é necessário que se mostre o contexto histórico da cidade Ituiutaba. Ituiutaba, como dito antes, está localizada no Triângulo Mineiro, no Planalto Central, tendo sua estimativa populacional em 96.759 mil habitantes6 e estando 685 km da capital Belo Horizonte, e a 137 km de Uberlândia78. Ituiutaba atualmente possui 109 anos, tendo sua fundação datada de 16 de setembro de 1901. Atualmente seu cargo de prefeito vem sendo exercido por Luís Pedro, do partido Democrata (DEM), tendo assumido o cargo após o prefeito eleito Públio Chaves, de quem era vice, se ausentado do cargo por questões de saúde9. Ituiutaba tem sua economia baseada principalmente na pecuária e no agronegócio, com a exploração da cultura da cana de açúcar para produção de etanol. A cidade não possui espaços turísticos e recebe uma demanda baixa de turistas, sendo que a presença dos mesmos se torna mais intensa em festividade como a EXPOPEC (Exposição Pecuária de Ituiutaba), onde se comemora o aniversário da cidade e no carnaval, que atrai muitos turistas interessados na folia e nos shows, além de algumas festas de cunho religioso como a Congada10. No entanto, Ituiutaba não conta com um efetivo turismo histórico, já que conta com poucos patrimônios tombados. E em sua construídos recentemente, quando comprado com Ouro Preto, ou Mariana. No entanto mais adiante, iremos falar da construção de uma idéia de cidade histórica, criada em meados de seu centenário que ocorreu em 2001. Apesar de possuir 109 anos atualmente, a formação de Ituiutaba se remete ao séc. XIX, onde dois sertanejos Joaquim Antônio de Morais e José da Silva Ramos, 6 IBGE, senso 2009. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/municesportes/tabelas.php?codmun=3420&uf=31&descricao=Ituiutaba. Acesso em: 10 de outubro de 2010 7 Divisão Territorial do Brasil e Limites Territoriais. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) (1 de julho de 2008). Disponível em: http://www.ibge.gov.br/municesportes/tabelas.php?codmun=3420&uf=31&descricao=Ituiutaba. Acesso em: 10 de outubro de 2010. 8 Estimativas de População. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), (14 de agosto de 2009). Disponível em: http://www.ibge.gov.br/municesportes/tabelas.php?codmun=3420&uf=31&descricao=Ituiutaba. Acesso em: 10 de outubro de 2010. 9 Prefeitura Municipal de Ituiutaba. Visitado em 13 de outubro de 2010. 10 Festa organizada pela irmandade de São Benedito, onde a comunidade negra local realiza festividades ligada a religiosidade católica, negra e popular, contando com o desfile de ternos, que é inclusive um dos bens patrimoniais tombados. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 maioria foram tombados em um período muito recente (a partir de 1999), e também 30 chegaram na região na época habitada por índios Caiapós, e realizaram uma série de batalhas que culminou com a expulsão dos indígenas da região em 1820. Em 1830 o padre Antônio Dias Gouveia chegou e adquiriu várias terras, e foi responsável pela construção da primeira capela as margens do Córrego Sujo em 1832, o primeiro nome do município foi Arraial do Rio Tijuco. O primeiro capelão só chegou a cidade em 1833, sendo ele Francisco de Sales Souza Fleury, fazendo o antigo padre Dias Gouveia regressar para Goiás. Em 1939 é criada a freguesia de São José do tijuco, sendo que somente em 1882 é construído o primeiro sobrado11, construído por José Esteves de Andrade, este prédio de dois andares foi sede da primeira câmara dos vereadores, cadeia pública e fórum. Em 1883 chega a cidade, vindo de Nápoles, o Padre Ângelo Tardio Bruno, figura de grande destaque na cidade, que planejou junto a outros, as primeiras ruas da cidade, e construiu as primeiras casas e pontes, a praça Cônego Ângelo bem patrimonial tombado é em sua homenagem nomeada, Padre Ângelo também financiou a formação da primeira banda da cidade, tendo como maestro Francisco Gonçalves Moreira (guató) que doou os primeiros instrumentos. No mesmo ano em 16 de setembro o então Governador de Minas Gerais Salviano de Almeida Brandão, eleva Ituiutaba ao posto de Vila Platina, concedendo-lhe sua emancipação político-administrativa. Em 1910, o padre Ângelo é elevado a categoria de cônego pelo cabido diocesano de Uberaba, e em 21 de janeiro é diretor, Benedito Chagas Leite. Em 1914 chega a cidade o primeiro automóvel, e o primeiro cinema12. E em 1925 com a concordância do Governador do estado Delfim Moreira a cidade passa a se chamar Ituiutaba13. No entanto é preciso ressaltar que diferente de outras cidades de Minas como Mariana, Ouro Preto ou Tiradentes, Ituiutaba não possui um patrimônio cultural que se remeta ao Brasil colônia, mais sim meados e fim do século XIX, sendo algo mais recente, e por tal motivo menos favorecido turisticamente. Ituiutaba e o centenário: Ituiutaba comemorou seu centenário no ano de 2001, tendo no momento o prefeito Publio Chaves, que acabava de ser reeleito. Publio Chaves tem bastante projeção política na região, tendo sido prefeito de Cachoeira Dourada de Minas, e 11 12 13 Localizado na Avenida 18, esquina com a 9,onde hoje fica a quadra do tiro de guerra. Na Av. 11 entre as ruas 20 e 22. Prefeitura Municipal de Ituiutaba. Visitado em 13 de outubro de 2010. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 instaurado o primeiro grupo escolar, nomeado de ―Vila Platina‖, tendo como primeiro 31 herdando um nome político de bastante força14. Chaves sempre contou com o apoio das oligarquias regionais, onde famílias influentes como os Vilela, os Gouveia e os Cancella, exercem grande influência política também, sendo que no momento do centenário tais famílias contavam com representações na câmara de vereadores. O centenário ocorreu em meio ao ano de eleições presidenciais, e do tombamento de patrimônios em Ituiutaba15. Inicia-se uma tentativa de impor uma identidade cultural a população, até aqui leiga no assunto, cuja história da cidade passava a ser uma tradição inventada16, ou seja, a criação de um pseudo laço sentimental dos cidadãos tijucanos para com sues bens patrimoniais junto a um senso histórico que é forjado com o centenário. As festividades acima citadas, como as de aniversário da cidade, são aclamadas pela população, mas essa mesma relação calorosa não é expressa com os marcos da cidade contidos em patrimônio, tombados ou não. Muitos moradores do município quando questionados17 não saberiam dizer se a cidade possui algum patrimônio histórico de fato tombado. Porém em 2001, mais especificamente entre os meses de setembro e outubro, foi realizada uma apologia (principalmente entre os meios de comunicação) absurda ao patrimônio, e a história que o antigo arraial de São José do Tijuco veio a ter, era objeto de comemoração no centenário da cidade. Podemos considerar esse centenário de 2001 como uma ―tradição inventada‖. As determinados valores e normas. Para tanto, utiliza-se, sempre, de um passado histórico devidamente recortado, capaz de criar a idéia de uma continuidade histórica e, assim, legitimar a tradição. (HOBSBAWM, 2008) A ―criação‖ quimérica de uma cidade que, desde tempos mais remotos, foi sempre pacata e amena, sem o menor conflito, prevaleceu. Em meio às comemorações, foi criada uma cartilha que remontava a história do lugar intitulada Ituiutaba Conta a Sua História18, que foi distribuída nas escolas públicas, com o provável intuito de imbuir nos jovens cidadãos uma idéia de civismo. Ali estaria contida toda a história da cidade, a igreja que sofreu dois incêndios catastróficos para a sua arquitetura, 14 Filho de Camilo Chaves Jr, e neto de Camilo Chaves, político muito influente em Minas Gerais. Selaria do Capitão. 16 HOBSBOWN, Eric; RANGER, Terence. A invenção das tradições. 6. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2008. 9-22 p. 17 Entrevista oral realizada com jovens a cima de 16 anos e idosos até 95 anos, em Ituiutaba no mês de outubro de 2010. 18 CORTÊS, Carmem Dalva Cunha. Ituiutaba Conta a Sua História. 2. ed. Ituiutaba: EGIL, 2001. 157 p. 15 Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 tradições inventadas são conjuntos de práticas rituais e simbólicas que visam transmitir 32 aparentemente causados por causas naturais, o padre Ângelo Tardio Bruno considerado um dos mais importantes personagens19. O ano de 1883 marcou um passo decisivo para o meu futuro com a chegada do Padre Ângelo Tardio Bruno. Foi o meu maior benfeitor (…) Padre Ângelo foi um homem providencial. Aqui chegando, simpatizou logo comigo e com o povo simples do sertão (…) Sempre alegre, começou a trabalhar com afinco a meu favor, que nesta época, era um pequeno arraial. (CORTÊS, 2001, p. 42-43) Foi citada com grande ênfase a participação das famílias tradicionais que concederam sua grande ―contribuição‖ para o avanço da cidade20, porém muita coisa não foi colocada nessa bela história de bons homens e paz latente, como a escravidão negra, que foi pouco citada em qualquer meio de propagação do centenário de Ituiutaba, tendo dedicada apenas meia lauda numa cartilha mais completa, e de pouca utilização didática que também tinha como principio a celebração da festividade. De acordo com Hobsbawm, esse caráter de invenção e de súbitas práticas sentimentais, está estritamente ligado a funções sociais e políticas (Hobsbawm, 1984). No trecho que se segue, há uma citação na cartilha do primeiro centenário tijucano, de um político renomado que ―contribui‖ enormemente com a cidade, e por acaso é o avô do então Devo a escolha de meu nome ao Senador Camilo Chaves, homem culto e político prestigiado na vila (…) A sua personalidade de homem público, cultor das letras e das atividades espirituais, fez de Camilo Chaves uma figura de saudosa memória, deixando marcos duradouros e inesquecíveis em todos os setores da vida humana. (CORTÊS, 2001, p. 77-78) A citação a cima se refere ao avô do atual prefeito, a família Chaves a qual pertence possui longa carreira política sendo grande parte dela em Ituiutaba e região, a família é de uma elite econômica que a muito prevalece, e está presente no cenário político até mesmo nos dias atuais. Jornais locais que quase todos os dias, durante dois meses dedicaram colunas especiais para a difusão do centenário, relatavam história de figurões que ajudaram na ―construção‖ de nossa identidade cultural. Um breve resumo da história desse ou daquele bem tombado era apresentada, ao lado da brilhante carreira de uma família de 19 Seu nome foi inclusive dado a praça principal da cidade, que também é um bem tombado, e um dos mais ―requisitados‖. 20 Famílias essas que possuem participação maciça na política tijucana, e em outros meios públicos da cidade em tempos atuais. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 prefeito em 2001, Públio Chaves. 33 políticos que estão no poder até hoje. Impôs-se ainda a falsa idéia de que tudo sempre foi tão pacifico por ser uma cidade do interior de Minas, e que continuará assim por muito tempo. A história como ―a reconstrução sempre problemática e incompleta do que não existe mais‖ 21 se fez muito presente, porém uma história bem conveniente a políticos ou a famílias ilustres que tem por finalidade enaltecer sua participação na construção de uma ―identidade‖ tijucana. A tentativa de criar uma idéia de Ituiutaba como centro histórico foi colocada e difundida pela mídia, como os jornais que, conforme citei anteriormente, foram os grandes propulsores dessa idéia, embora outros meios também o foram, como as cartilhas, folhetos de caráter histórico e educacional foram espalhados por toda a cidade, foi criada inclusive uma série de cartões de telefones públicos com oito unidades e com caráter de coleção, sobre pinturas feitas especialmente para o centenário. Vemos aí uma intencionalidade maior do que difundir a ―nobre‖ história da cidade, ou incentivar uma consciência histórica nos moradores locais. É latente a intencionalidade de usar a história como propaganda política, pois a história é forma de dominação e poder. Porém algo que não foi levado em consideração ao criar tal tradição é o fato de que ―as idéias-imagens precisam ter um mínimo de verossimilhança com o mundo vivido para que tenham aceitação social, para que sejam críveis‖ 22. A criação da idéia de um centro histórico foi elaborada por razões econômicas e município uma economia baseada principalmente no comércio e na produção agrária. Existe até mesmo uma desvalorização da população local que não integra a elite econômica, pois seus feitos não aparecem e sua contribuição física e cultural também não é mencionada. Existe ainda uma imposição sutil dos valores da elite, principalmente quando se colocam ―figurões‖ como representantes maiores da cidade. 23 Vemos tal situação de forma clara num trecho de agradecimento presente em Ituiutaba Conta a Sua História: Aos meus poetas que aproveitando elementos concretos de minha natureza, do viver cotidiano exaltam a sua terra,a pátria, as grandes efemérides, os grandes vultos nacionais. Cada poeta é um mundo e cada poesia, uma experiência criadora. 21 NORA, Pierre. Entre memória e história: A problemática dos lugares. In: Projeto História, São Paulo: PUC-SP , n. 20, p. 9-27, abril de 2000. 22 PESAVENTO, Sandra Jatahy. Em busca de uma outra história: Imaginando o imaginário. Revista Brasileira de História, São Paulo, ANPUH, v. 15, n. 29. 1995. 23 Quando me refiro a figurões, digo participantes de uma elite econômica que participaram de algum modo da politica ou história local. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 até mesmo turísticas, quando a realidade da cidade está bem distante disso, tendo o 34 Aos meus historiadores e pesquisadores de minha realidade histórica e dos fatos reais da minha evolução. Lembro: Dr. Hélio Benício de Paiva, Dr. Petrônio Rodrigues Chaves, Dr Edelweiss Teixeira, Aloísio da Silva Novais, João Petráglia, José Benedito Zócoli e Senador Camilo Rodrigues Chaves. (CORTÊS, 2001, p. 97) Todos os homens acima citados são de uma elite econômica, que residem em Ituiutaba, ou já residiram e participaram ativamente da política tijucana de alguma forma e são enaltecidos no centenário, poetas populares se existiram não são lembrados e se o são é com um caráter generalista que os inferioriza. Um trecho de engrandecimento aos ―grandes homens‖ fica explicito, e uma tentativa de imbuir nas jovens mentes uma identidade sólida municipal, ligada às elites, é o seguinte: Na política, administração, comércio, indústria, agropecuária, assim como na cultura, medicina, advocacia e filantropia surgiram valores excepcionais. Outras gerações continuam o meu progresso e fazendo minha história. Crianças, se vocês seguirem o exemplo dos grandes homens que eu acabei de nomear, se trabalharem, se estudarem, se cultivarem a inteligência, eu amanhã poderei ser uma das mais belas e ricas cidades do Estado de Minas Gerais. Daqui para diante, confiando na geração de hoje, espero a de amanhã que irá encontrar uma `ITUIUTABA` diferente, uma Cidade orgulhosa de seus filhos. Jovens vocês devem se orgulhar de terem nascido aqui. Pensem no antigo São José do Tijuco, arraial de sete casas e vejam-me agora progressista e bela, nos meus `CEM ANOS`. A vocês, crianças e jovens hoje e adultos amanhã, eu confio a continuação da minha história, pois a `HISTÓRIA DE UMA CIDADE NÃO TEM FIM`... (CORTÊS, 2001, p. 100) outras festividades relacionadas ao centenário de Ituiutaba, ainda que um esforço para a criação de uma identidade sólida tenha se formado, ainda é mínima a relação de afetividade entre os moradores tijucanos e seus bens patrimoniais. Uma política de maciça de conscientização e preservação terá que ser realizada, para que surta um efeito benéfico nos moradores, e que esses por sua vez tenham a consciência que a história é tão somente deles, e não algo separado e excluído do tempo e da ação humana. É evidente o uso dos ―grandes‖ nomes dos benfazejos da elite econômica, e seu exemplo a ser seguido é notoriamente claro na citação a cima, para que a marcha do progresso continue a prosperar. O centenário de Ituiutaba teve a finalidade de criar uma identidade ao município, se valendo dos patrimônios culturais para tal fim, e tentar vinculá-los sentimentalmente aos tijucanos. Porém uma contradição aí se firma, quando se leva em consideração que os órgãos municipais que são responsáveis por sua preservação e Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 As intenções presentes nesse breve recorte são claras, assim como o são todas as 35 manutenção, não estão preocupados com sua estrutura, e tentam fazer com que os cidadãos se preocupem. É nesse contexto que o primeiro centenário de Ituiutaba se concretiza como uma tradição inventada, que privilegia uma elite político-econômica e religiosa e exclui o cidadão como sujeito social ativo. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: CORTÊS, Carmem Dalva Cunha. Ituiutaba Conta a Sua História. 2. ed. Ituiutaba: EGIL, 2001. 157 p. HOBSBOWN, Eric; RANGER, Terence. A invenção das tradições. 6. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2008. 9-22 p. INSTITUTO Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), disponível em: http://www.ibge.gov.br/municesportes/tabelas.php?codmun=3420&uf=31&descricao=Ituiutaba. Consultado em: 10 de outubro de 2010. LANGARO, Jiani Fernando. Histórias locais, projetos culturais: construindo lembranças e esquecimentos. (Santa Helena – PR, 1987 – 2000). Revista Espaço Plural, Santa Helena, v. 8, n. 17, p. 25-32 , 2° Semestre 2007. NORRA, Pierre. Entre memória e História: A problemática dos lugares. In: Projeto História, São Paulo: PUC-SP, n. 10, p. 7-28, dez. 1993. NORA, Pierre. Entre memória e história: A problemática dos lugares. In: Projeto História, São Paulo: PUC-SP , n. 20, p. 9-27, abril de 2000. PESAVENTO, Sandra Jatahy. Em busca de uma outra história: Imaginando o imaginário. Revista Brasileira de História, São Paulo, ANPUH, v. 15, n. 29. 1995. PREFEITURA Municipal de Ituiutaba, visitada em 13 de outubro de 2010. SAMUEL, Raphael. História local e história oral. Revista Brasileira de História, São Paulo, ANPHU, v. 9, n. 19, p. 219-243, set. 89/fev. 90. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 PEREIRA, L. M.; OLIVEIRA, M. F. M. A invenção do 03 de Julho em Montes Claros. UNIMONTES CIENTÍFICA, Montes Claros, v. 5, n.1, p. 1-10, jan./jun. 2003. 36 DESLOCAMENTO SOCIAL, TRABALHO E RESISTÊNCIAS: MIGRAÇÃO DE ALAGOANOS PARA AS USINAS DE CANA-DE-AÇÚCAR. TRIÂNGULO MINEIRO - MG 2005-2008. Gláucia Silva Souza Discente do curso de História da Universidade Federal de Uberlândia/UFU/ Campus do Pontal. Introdução Este trabalho é fruto de uma pesquisa realizada para a conclusão da disciplina Projeto Integrado de Práticas Educativas (PIPE IV) do curso de História / UFU/FACIP, no 2° semestre de 2009, procurando atentar para um assunto que se encontrava em foco naquele momento: o aumento do número de usinas na região do Triângulo Mineiro MG, o que proporcionou um grande fluxo de trabalhadores que passaram a migrar para esta região em busca de trabalho nas usinas de cana-de-açúcar. Buscando entender o que os faziam saírem de sua terra natal, como viviam aqui na região, se haviam alcançado o que buscavam, e como se viam inseridos cultural e socialmente no novo contexto de uma cidade tão diferente das quais migraram, cidades do estado de Alagoas. Na região do Triângulo Mineiro o processo de deslocamento social para a região pode ser observado a partir da década de 50, quando trabalhadores da região nordeste se deslocaram para as lavouras de arroz. Jovens, adultos e famílias inteiras se aventuraram migrações sempre ocorreram de forma a super-povoar regiões como o Sudeste e, ao mesmo tempo, criar vazios demográficos como na região norte e algumas partes da Amazônia. Triângulo Mineiro: cana-de-açúcar, deslocamento social e desilusão. Ao iniciar a pesquisa, constatei a grande dificuldade em encontrar material produzido sobre o tema, pois este assunto na região era um pouco recente. Dificuldade agravada ainda mais por percalços de acesso a arquivos de jornais e das próprias usinas, aliada a resistência dos trabalhadores em se abrirem à pesquisa, por medo de represálias por parte dos usineiros ou por sentirem se envergonhadas por terem suas vidas expostas. Embora ao mesmo tempo tenha sido possível encontrar trabalhadores que se sentiam felizes por serem lembradas e de poderem contar um pouco de suas experiências. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 a enfrentar uma longa viagem para um destino incerto. Já no Brasil como um todo, as 37 As usinas foram incentivadas a se instalarem na região do Triângulo MineiroMG a partir do ano de 2006 a fim de plantarem cana-de-açúcar para abastecer as indústrias sucroalcooleiras que se encontravam em pleno vapor. Usinas estas que se encontram ligadas a grupos importantes no setor canavieiro como, por exemplo, Grupo João Lyra, de Alagoas, e Grupo Santa Elisa de São Paulo, entre outros. O Triângulo Mineiro também conta com outras usinas entre elas: Coruripe, filial de Limeira do Oeste (município de Limeira do Oeste) Coruripe, filial de Iturama (município de Iturama) Frutal (município de Frutal) Samagro (município de Fronteira) Santa Vitória (município de Santa Vitória.) Estudo recente da Universidade de São Carlos (SP) mostrou que o Estado de São Paulo que é o maior produtor de cana do país, revelou-se que a cada dia trabalhado o trabalhador percorre 9 km a pé, defere 72 mil golpes de facão, se abaixa 36 mil vezes, carregando 800 montes de 15 kg cada de cana. Ainda de acordo com o estudo, de cada 100 acidentes com trabalhadores que tem carteira assinada, cinco ocorrem no setor no sucroalcooleiro. Destaca-se, portanto, que o trabalho no corte da cana é exaustivo e penoso devido à grande jornada e péssimas condições de trabalho, à exposição trabalhadores. No tocante ao trabalho no corte de cana na cidade de Ituiutaba, o Jornal do Pontal, em sua edição de 24 de novembro de 2006, trouxe a seguinte reportagem: Em 2005, a área cultivada em Ituiutaba foi de 7,2 mil hectares. Em 2006 chegou a 8,1. A produção saltou de 502,5 mil toneladas para 720 mil toneladas um crescimento 43,28% devido principalmente a investimentos na preparação do solo. No ano passado, a previsão de colheita era de 75 toneladas por hectare por ano, a produção subiu para 100 toneladas por hectare. O grupo Santa Elisa investira 450 milhões de dólares em Ituiutaba "A usina deve entrar em operação 2008. A capacidade inicial de moagem fica entre 1 e 1,2 milhões de toneladas e deve chegar à capacidade máxima em 2010, com 2,5 milhões de toneladas o que garantira empregos na indústria. Contrataremos em torno de 1200 a 1500 pessoas, imediatamente, temos a necessidade de contratar 700 pessoas entre tratoristas, motoristas, operadores de máquinas e pessoas para trabalhar na lavoura. Isto proporcionará um grande crescimento populacional pela vinda de pessoas o que necessariamente requer um maior investimento no lazer, educação, saúde, para atender essas pessoas. (Jornal do Pontal 23 e 24 de setembro de 2006). Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 constante ao sol e às chuvas corriqueiras, desgastando mais ainda a saúde dos 38 A partir desses dados podemos notar que o trabalho no corte da cana-de-açúcar é bem exaustivo, debilitando os trabalhadores, o que acarreta inúmeras doenças para estes, condições que se agravam mais devido às péssimas condições de alimentação e moradia em que estes se encontram, na maioria dos casos, na região. Destas constatações surgiu meu grande interesse por este recorte temático. O aumento da área destinada à produção de cana-de-açúcar e o aumento do número de empregos na região tornou-se o motivo pelos qual o território do Triângulo Mineiro viu aumentar consideravelmente o número de migrações e o constante fluxo de deslocamento social de trabalhadores que buscavam preencher as novas vagas de emprego geradas pelo setor sucroalcooleiro, que nos últimos anos se tornou um dos ramos que mais empregam e crescem na região. Trabalhadores que todos os anos, quando se inicia a safra, saem de suas cidades em Alagoas e vem para a região, retornando às suas cidades de origem após a safra. É importante ressaltar que a grande maioria desses trabalhadores se encontra em uma faixa etária de 24 a 35 anos e se instalaram na região em busca de melhorarem suas condições de vida, de melhores salários e na tentativa de oferecerem melhores condições de vida para suas famílias. A jornada de trabalho destes cortadores varia muito, alguns chegam a sair de madrugada e só retornam ao entardecer, variando de 6 a 8 horas de trabalho por dia, trabalhadores que se instalaram na cidade de Ituiutaba, residem em bairros mais periféricos da cidade de como Novo Tempo I, Novo Tempo II, Tupã, Santa Maria e Pirapitinga, devido ao preço dos aluguéis serem mais acessíveis nestes bairros e por que muitos de seus amigos, que migraram anteriormente, terem se instalado nesses locais quando aqui chegaram. Relatam que ao permanecerem perto uns dos outros estabelecem e/ou reforçam laços culturais de sociabilidades e solidariedades que remontam às suas origens, tornando o dia-a-dia menos difícil. Constata-se que a partir do exercício da lembrança destes trabalhadores, somos capazes de rememorar fatos que nos dizem muitos sobre o passado e permitem que a partir deles possamos relacioná-los como nosso dia a dia como forma de entender o presente e as transformações que desencadeiam esse processo que é individual e ao mesmo tempo coletivo da construção da história dos sujeitos. "Quando evocamos o tempo e o espaço que responde ao chamado" a arte de lembrar é um ato de recuperação Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 fazendo uma escala de 5 por 1, a cada 5 dias trabalhados folga-se 1. A maioria desses 39 do "eu" e a história de vida é uma interpretação atual da vivencia do passado.‖ (LUCENA, 1999 p.79) No tocante ao cotidiano na labuta com a cana, é possível observar que as maiores dificuldades diz respeito às precárias condições de trabalho: exposição excessiva ao sol, às chuvas, a comida que já se encontra fria na hora do almoço e a longa jornada agachando e levantando, debilitando assim bastante o corpo. Como forma de resistência diária a esta realidade, nas horas vagas e como formas de distração, costumam se reunir para conversarem, freqüentarem alguns bares perto de casa e às vezes, aos sábados, irem ao Palmeira Clube para dançarem. Apesar disso é possível notar que esses trabalhadores demonstram certa tristeza ao lembrarem de seus familiares que deixaram em suas terras de origem, e, principalmente, uma profunda decepção por a vida não ser como imaginaram que seria na nova cidade. Alguns dos trabalhadores entrevistados relatam que saíram de suas cidades de origem em Alagoas primeiramente para a região Centro-Oeste (Brasília), Sudeste (São Paulo) e por último vieram para o Triângulo, pois as usinas da região, a partir daquele ano, precisavam de mão-de-obra, e eles já estavam acostumados ao trabalho exaustivo do corte de cana. Mas o ―sucesso‖ sucroalcooleiro na região que tanto os atraiu trouxe também a decepção e a desilusão, decepção marcada por manifestações pelo atraso de pagamentos existente preconceito que estes trabalhadores sofrem por parte da população da região, uma vez que em suas manifestações, fecham a estrada que dá acesso à outras cidades, a BR 365, deixando-as isoladas, fazendo com esses trabalhadores sejam vistos como um perigo para a ordem, dificultando a sua relação com a cidade. Deslocamento social e trabalho feminino A mulher também trabalha no corte da cana, em um número bem menor, mas é possível ver sua grande presença pelos canaviais. A mulher se vê obrigada a sair para o corte da cana, que antes era dominado pelos homens, devido às dificuldades econômicas, levando-as a exercerem, em alguns casos, um papel masculino, embora não perdendo sua condição feminina e apesar de vestirem calças compridas como homens, cobrem-nas com saias, conservando assim um símbolo de feminilidade. A partir da inserção da mulher no corte da cana esta passa a contribuir no orçamento doméstico, e além de trabalhar para fora ainda consegue tempo para os Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 entre outros fatores. Manifestações estas que só contribuíram para aumentassem o já 40 afazeres domésticos, e cuidar da educação dos filhos. Ou seja, se vê numa dupla jornada de trabalho exaustiva, mas necessária, às vezes exerce dupla função, de pai-mãe dos filhos em casa e trabalhadora nos canaviais. Na região do Triângulo as mulheres costumam trabalhar como bituqueiras nos canaviais. 1. Conclusão Enfim, se as usinas proporcionaram algum desenvolvimento econômico para a região, também proporcionaram grandes impactos ambientais, sociais e demográficos, pois toda a estrutura da região foi radicalmente modificada, as estradas que cortam a região tornaram-se um emaranhado de cana por todos os lados, o movimento e os acidentes nas estradas aumentaram consideravelmente, passaram a ser vistos grandes caminhões transportando máquinas para as usinas e ocorreu um crescimento populacional enorme graças às migrações que se tornaram constante. São vários os problemas enfrentados por esses trabalhadores, é muito triste constatar que governos e usineiros com seus discursos demagógicos, apontarem apenas ―benefícios‖ do plantio de cana e da exportação do álcool, enquanto a realidade é outra, uma vez que já somam milhares de caso de mortes de cortadores de cana por exaustão física, péssimas condições de trabalho e baixos salários. Greves e manifestações estouram em todo pais por parte dos trabalhadores rurais contra esta situação, mas essa o lado do ―progresso‖ do setor sucroalcooleiro. São vários os casos de falecimento de trabalhadores que morrem por estafa física, ou por doenças geradas pela exposição excessiva ao sol, problemas respiratórios agravados pela foligem da cana que são encobertos a fim de passarem apenas a idéia de que o setor sucroalcooleiro se encontra em pleno desenvolvimento e que não existem problemas. Mas no final a realidade não é bem esta, e podemos vivenciar todos os anos o grande número de trabalhadores que começam a chegar à região por volta de março para ao início da safra e retornam para suas cidades de origem no mês de novembro quando a safra se encerra - bastante vulneráveis e debilitados, em geral, com pouco ou sem nenhum dinheiro no bolso. Cada grupo social que se propõe a se deslocar carrega consigo esperanças, sonhos e objetivos que acreditam se realizar nesse novo destino, mas quando isso não é alcançado resta apena o sofrimento da frustração, que, em na grande Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 situação, na maioria dos casos, não vem à tona, pois se torna necessário mostrar apenas 41 maioria dos casos, os levam novamente para suas origens, já em outros os impulsionam a seguir migrando em busca de sua realização pessoal. A contribuição desses migrantes é muito importante, pois eles ajudaram a produzir grande parte da ―riqueza do país‖, mas infelizmente continuam a viver na miséria, impossibilitados de usufruírem delas como mereciam. Queremos através deste trabalho chamar a atenção para a importância desses sujeitos sociais que constroem e reconstroem suas histórias todos os dias para que possam ser valorizados em situações em que o diferente torna-se alvo de perseguições, marginalização e exclusão. REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS LUCENA, Célia Toledo. Artes de lembrar e de inventar (re) lembranças de migrantes. São Paulo: Arte e Ciência, 1999. KHOURY, Yara Aun. Historiador, as fontes orais e a escrita da história. In: Outras Histórias: Memórias e linguagens. Olho d‘ água Dezembro de 2006. SILVA, Dalva Maria de Oliveira. Memória: Esquecimentos trabalhadores nordestinos no Pontal do Triângulo Mineiro nas décadas de 1950 e 60. Tese de Mestrado: História PUC-SP. 1° Edição, S SILVA, Maria Aparecida. Errantes do fim do século. 1° Edição, São Paulo, UNESP, 1999. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 FONTES JORNAL do Pontal. Ituiutaba, Minas Gerais, setembro de 2006. 42 HISTÓRIA, MEMÓRIA, CULTURA E SOCIEDADE:UM OLHAR SOBRE O PATRIMÔNIO CULTURAL DA CIDADE DE ITUIUTABA/MG Renato Mateus Acadêmico do curso de História Universidade Federal de Uberlândia/Faculdade de Ciências Integradas do Pontal [email protected] Sidney Leopoldino da Mata Acadêmico do curso de História Universidade Federal de Uberlândia/Faculdade de Ciências Integradas do Pontal [email protected] [...] A destruição do passado – ou melhor, dos mecanismos sociais que vinculam nossa experiência pessoal à das gerações passadas – é um dos fenômenos mais característicos e lúgubres do final do século XX. Quase todos os jovens de hoje crescem numa espécie de presente contínuo sem qualquer relação orgânica com o passado público da época em que vivem. Por isso, a função dos historiadores é lembrar do que os outros esquecem. (HOBSBAWM, 1994, p. 13). Introdução: A relação entre passado e presente é marcada por inúmeras discussões historiográficas que confluem sempre na importância das transformações e seus significados sociais, que se manifestam como o motor da História. Um importante elemento cultural que articula dimensões materiais e simbólicas, envolvendo passado e presente, é o ―patrimônio‖ que em sua representação material e imaterial se posiciona como mediador de produções do conhecimento histórico, podendo ser uma possível ferramenta para produção de significados artísticos, históricos, identitários, políticos e, sobretudo sociais, possui todo um envoltório que possibilita o acesso à memória unindo o real ao simbólico para diversos grupos sociais. Em seu sentido etimológico ―Patrimônio‖ evidencia o legado de uma geração ou de um grupo social segundo Chauí (1992), portanto, o reconhecimento e trabalho com o patrimônio se tornam essenciais para uma melhor compreensão das dimensões Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 O passado conta ao presente como as obras foram produzidas, individualizadas, e como passaram a fazer parte de um organismo vivo em contínuo processo de evolução. Por isso é inerente, à história da cidade, a sua percepção como um organismo vivo e como tal em permanente mutação. (TOLEDO, 1994, p.82). 43 históricas que vão do individual ao coletivo, englobando áreas das sensibilidades, crenças, ideologias e vivências sociais que transitam entre a memória e a História. Quando se menciona ―patrimônio‖ o termo não se limita somente a patrimônio arquitetônico ou edificações históricas que foi denominado com ―Patrimônio Histórico‖, trata-se também de um conjunto de bens materiais e imateriais que atestam ou denotam a trajetória histórica de uma sociedade de acordo com Oriá (2004), por isso o conceito de patrimônio se expande a diversos bens culturais sendo definido como patrimônio cultural. Desenvolvimento: O Patrimônio no Brasil tem seu histórico marcado pelo projeto de instituir uma identidade coletiva que incorporasse um ideal único nacional na população brasileira, através de monumentalizações, criada a proposta indicativa de uma tradição que seria concebida pela memória ou pelo ―esquecimento‖, ou ainda por uma (re) construção da memória. Nesse sentido é importante notar o exercício interpretativo que é oferecido pela análise do patrimônio em suas múltiplas representações, numa trajetória que vai desde sua construção até o momento atual, pois a tentativa de se concretizar memórias sugere intenções que possibilitam análises ideológicas que envolveram determinado período. manifesta como instrumento, para a construção da cidadania sendo que, contribui para o incentivo à preservação e valorização do patrimônio público e exercendo também, apoio no trabalho com a diversidade e pluralidade cultural, abrindo caminhos para a exploração de patrimônios culturais multifacetados. A construção da consciência patrimonial em conjunto com a História local pode efetivar práticas direcionadas ao conhecimento físico de patrimônio complementando tanto a compreensão como a aplicação de conceitos referentes ao tema. A questão da cidadania ampliada possibilita a melhoria da educação patrimonial e em conjunto com a História local apresenta novas possibilidades para um melhor aproveitamento dos locais de memória de forma a contribuir para a construção de possíveis acervos históricos da própria cidade ainda que não seja representada como um local turístico ou tombado pelo patrimônio como é o caso da cidade de ITUIUTABA-MG – parte do objeto de estudo do trabalho – uma cidade, que carrega poucos registros históricos reconhecidos e conhecidos pela Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 Partindo de pressupostos que definem o papel do patrimônio cultural, este se 44 população, apesar de apresentar ―locais da memória‖ não valorizados ou ―esquecidos‖ pela memória coletiva, mas que contemplam valores múltiplos na memória individual de pessoas da cidade. Para o desenvolvimento da pesquisa foram utilizados instrumental teórico que tecem discussões fundamentadas por meio da História Cultural e da Memória, reunindo em geral nomes como: Pesavento (2002), Halbwachs (1990), Oriá (2004), Bittencourt (2005) e ainda reflexões acerca do tema por Chauí (1992), Paoli (1992), entre outros que nos fornecem subsídios para argumentação do tema. O patrimônio como incentivo à pluralidade cultural se dá pelo conceito ampliado da legislação, atualmente, englobando bens materiais e imateriais que contenham valores culturais: da memória ou de identidades em referência a diversos grupos sociais brasileiros, envolvendo, em geral, ―bens culturais históricos, ecológicos, artísticos e científicos‖ (BITTENCOURT, 2005, p. 278). Estes novos conceitos contribuem para que setores ―não privilegiados‖ possam ser também preservados e rememorados, e a expansão dessa valorização cria novas oportunidades para ampliar a consciência patrimonial em âmbito local, tendo como referência também os bens culturais contidos na própria cidade contribuindo para uma maior difusão cultural à comunidade em geral. Um bom exemplo a citar é o projeto ―Conhecer para Preservar‖ de Ricardo Oriá, em sua aplicação em Fortaleza-CE, que assim como cultivam princípios de preservação do outras memórias, estas que nem sempre são lembradas, consagradas ou reconhecidas pela História oficial, espaços que carregam significados e que correm o risco de serem esquecidos. A importância em desvendar esses diversos ―locais da memória‖ cria possibilidades para o reconhecimento, destas, frente a toda a população de uma localidade, e marca a valorização não só dos monumentos relacionados aos domínios políticos ou de poder como também a outros bens que guardam significados sociais, desmistificando a imagem, por muitas vezes equivocada da História como o estudo somente dos ―grandes acontecimentos políticos‖. Essa valorização é essencial para a preservação de bens patrimoniais enquanto a modernidade aflora e antecipa as ações de mudança. O projeto citado acima de Ricardo Oriá ilustra nossa intenção de buscar o reconhecimento da comunidade local, no que se refere aos pontos não consagrados pela elite política ou econômica da cidade, o nosso propósito é também despertar um olhar Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 patrimônio, atenta-se também para a intenção de abrir caminhos para o conhecimento de 45 para integrar estes locais de memória ao complexo arquitetônico da cidade de ItuiutabaMG, que a muito tem sido ―esquecidos‖ ou desvalorizados, uma vez que acreditamos ser a conscientização uma forma importante de alcançar a preservação de modo a evitar a destruição de lugares significativos da memória e da identidade cultural da cidade. A busca pela preservação de nossa identidade cultural é o objetivo primeiro de toda política de proteção dos bens culturais. Essa política nasce de um comprometimento com a vida social. O acervo a ser preservado, recebido de gerações anteriores ou produto do nosso tempo, será referido como ‗histórico‘ por sua significância, por sua maior representatividade social (TOLEDO, 1994, p. 81). Assim como fica explícito na citação acima, pretende-se sugerir métodos para a tentativa de preservação do patrimônio local, visto que este representa significado para a população e ainda maior para a História que se sustenta nas investigações ao passado e ao que este representa ao presente, por meio de ações que levem a uma maior compreensão sobre a importância do patrimônio como objeto de conhecimento e que tende a se expandir podendo alcançar toda a comunidade. Pretendemos aqui delinear alguns objetivos específicos de forma a contribuir para os campos de pesquisa em âmbito local; produzindo propostas de incentivo ao trabalho com a História local num contexto mais abrangente, sugerindo atividades que remetam o cidadão à percepção mais efetiva dos significados culturais da cidade em que vive; uma vez que estas práticas tendem a integrá-los ao acervo disponível, que ao se construir nova concepção de patrimônio e sentidos de preservação deste, se pode elevar a compreensão do conceito de cidadania ampliando as reflexões e o senso crítico sobre as questões sociais, econômicas e políticas da região e do país. Para a realização da pesquisa foram feitas investigações arquivísticas, consultas nos acervos documentais contidos nos domínios municipais, especificamente nos órgãos de cultura para conhecer os bens patrimoniais e pontos históricos importantes para a cidade. Após a consulta dos bens arquitetônicos já elencados, acrescidos de outros pontos levantados como possíveis locais de memória, e ainda não listados, e que consideramos importantes para a formação da cidade de Ituiutaba-MG, foram feitas visitas aos mesmos para verificar os seus reais estados de conservação a fim de serem elencados como sugestão a Comissão de Patrimônio do município para um possível tombamento. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 possibilitando uma maior familiarização com a questão patrimonial em geral, uma vez 46 A partir de alguns achados importantes, foram elencadas algumas possíveis medidas que pudessem auxiliar nas práticas de conscientização da sociedade. Dentre estas foi sugerido um planejamento de roteiro de visitas a alguns locais importantes da memória local, como se fossem estes, componentes de um museu a céu aberto. Este roteiro teria a composição de alguns pontos da cidade que acrescentasse informações que a historiografia regional não contempla. Deparamo-nos com algumas dificuldades, constatamos, por exemplo, que o acervo historiográfico local, disponível para consulta é bastante escasso e que os itens tombados ou protegidos e catalogados, que fazem parte do acervo oficial do município, sobre a gestão da Fundação Cultural, é bastante reduzido. Estas adversidades nos chamaram a atenção para o fato de que, uma cidade com 188 anos de história produziu, seguramente, um acervo cultural muito mais amplo e que este como já dissemos na sua maioria não foram catalogados, por mero descaso ou desconhecimento dos órgãos competentes. Mas uma afirmativa é possível ser feita: eles existem em parte ou na íntegra e estão guardados em diferentes lugares da memória da cidade e da sociedade tijucana e devem ser resgatados, tornando-os conhecidos e disponibilizando-os como forma pública de produção de conhecimento. Há de se ressaltar que ações inovadoras têm sido desenvolvidas pelo departamento de História da UFU/FACIP no intuito de resgatar registros históricos nos diversos acervos públicos da cidade que se encontram nosso maior desafio, buscar representações e apropriações que revelem mudanças físicas, sociais e identitárias a partir de um olhar interior no sentido de comparar os significados do hoje com o ontem, buscando uma interação na vida dos que habitam esta cidade e os diversos momentos históricos transcorridos até aqui. Quando observamos a cronologia histórica local, no seu eixo evolutivo, podemos claramente perceber, através do processo de transformação, pelo qual passou a cidade de Ituiutaba, houve momentos distintos como: mineração, e o período agrícola que tanto a marcou positivamente, além da fase de industrialização. Podemos hoje ainda percebê-los sem que, no entanto estas vertentes estejam devidamente representadas no seio cultural da população local, e se assim persistir, as pessoas que vivenciaram parte dessa realidade ainda se lembrarão dos fatos, alguns jovens terão ouvido falar sobre eles, e os seus sucessores simplesmente desconhecerão completamente a trajetória de seus antepassados, tirando-lhes a possibilidade de pertencimento da cidade diante da modernidade que se apresenta em curso. No sentido de tornar conexa a temporalidade Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 inapropriados para a prática da boa pesquisa acadêmica. Neste momento continua sendo 47 buscamos trabalhar com as hipóteses apresentadas e procuramos reconstruir o histórico da cidade mais atenciosamente reunindo fontes quantitativas tais como o IBGE (2005) e qualitativas como RODRIGUES (1988). De acordo com a historiografia consultada os primeiros habitantes da região foram ameríndios pertencentes ao grupo ―Gê‖, também conhecidos como Caiapós. Seus vestígios, ainda são encontrados através de estudos arqueológicos realizados as margens dos rios Prata e Tijuco. Os Ameríndios diante da chegada dos exploradores brancos, inicialmente resistiram, mas optaram por migrar para os Estados de Goiás e Mato Grosso. Segundo narrativa do memorialista regional Edelweis Teixeira, várias expedições foram feitas para explorar esta região central das Minas Gerais, situada entre os rios Grande e Paranaíba. Como resultados destas incursões surgiram vários povoados, dentre os quais o de Ituiutaba, este emergiu a partir da sesmaria doada ao pai de José da Silva Ramos em carta datada de 1753, cujo propósito inicial era o de construir uma capela que atendesse a fazendeiros da região. Esta capela só foi de fato edificada no ano de 1832, ao entorno da qual se ergueram as primeiras moradias, dando origem ao povoado. Após sua consolidação político-administrativa chamou-se num primeiro momento: Arraial de São José do Tijuco (1839), Vila Platina (1901) e finalmente em 1915 foi elevada à condição de cidade, recebendo o nome de Desde a sua fase mais primitiva de organização social, é óbvio que este município já produziu um considerável patrimônio histórico cultural, uma vez que o decurso do tempo, forma ou delimita aquilo que se torna histórico, em razão de sua representatividade simbólica, para as gerações vindouras, como bem salientou Telles, falando sobre as edificações da cidade: ―Uma cidade sem os seus velhos edifícios, é como um homem sem memória‖. (TELLES, 1977. P.12). Portanto não é incorreto afirmar que o patrimônio arquitetônico de uma cidade contempla grande significado histórico, mas não como sendo o único, ou, o mais importante, mas sim como sendo parte integrante do amplo e variado universo que compõe o patrimônio cultural de um povo, ou de uma nação, pois serve como elo entre o passado e o presente, dando-lhe o sentido de continuidade e atribuindo valores que compõe a memória coletiva, demonstrando por meio desta uma determinada tradição. Por isso entendemos a relevância de sua preservação, na medida em que estando ele ―vivo‖, as pessoas que o cercam possam usufruir dele, como se estivesse neste contexto, Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 ―ITUIUTABA‖ que tem origem e significado indígena: ―cidade do rio Tijuco‖. 48 unindo o corpo e a alma da cidade, onde o prédio, o monumento ou a praça faça sentido aos olhos, hoje tão voltado para o moderno. No entanto, determinar o que uma sociedade deve ou não manter preservado para o seu futuro requer um ato de decisão pública, e de interesse de toda a população, pois representa suas culturas históricas, sendo isto, algo essencial para a determinação de como a sociedade tratará o seu passado e fará a ligação deste com as memórias locais. Com base no trabalho de campo realizado nos deparamos com uma realidade, bastante distante das pretensões ou metas que demonstrem a presença de valorização ou reconhecimento da pluralidade cultural no município de Ituiutaba, o diagnóstico feito, constatou em curto período de pesquisas uma situação de descaso e destruição do rico patrimônio cultural da cidade e esta realidade nos levou a considerar algumas hipóteses, que justifiquem este quadro que coloca Ituiutaba em nosso entendimento, na contramão da valorização Histórica Cultural que é defendida mundialmente por correntes de pesquisadores, cientistas, historiadores e que é amplamente difundida nos meios acadêmicos. Esta realidade local nos levou ao seguinte questionamento: Porque preservar? De acordo com o dicionário Aurélio, preservar é livrar de algum mal, manter livre de corrupção, perigo ou dano, conservar, livrar, defender e resguardar. Todas essas providências deveriam estar incidindo sobre uma amostragem representativa da sobre todos; porque havendo tal entrelaçamento entre eles, se um deles não é guardado o conjunto se desarmoniza e se desequilibra o que no fundo não é desejável, pois o resultado demonstraria um retrato da realidade cultural local desarticulado. Se pretendemos preservar as características de uma sociedade, teremos forçosamente que conservar as suas condições mínimas de sobrevivência, todas elas sem exceção. Assim, deveriam ter prioridade de atenção os elementos componentes dos recursos tanto materiais quanto os imateriais, representados no saber social. Pois, preservar não é só guardar alguma coisa, um objeto ou uma construção. É também gravar depoimentos, sons, manter vivos, mesmo que alterados usos e costumes populares. Devemos então, garantir a compreensão de nossa memória social preservando o que for significativo dentro de nosso vasto repertório de elementos componentes do Patrimônio Cultural. Não seria também a modernidade sempre presente, por desejo de seus habitantes um possível causador deste fenômeno? Grammont descreve esta situação com palavras fortes: Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 totalidade dos elementos que compõem o amplo Patrimônio Cultural da cidade tijucana; 49 A distância entre as autoridades e o povo é a mesma daquela entre a sociedade civil e o passado, devido à falta de informação, ainda que os habitantes das cidades coloniais dependam do turismo para sua própria sobrevivência. (GRAMMONT, 1988, p.3). Ainda dentro do contexto, de priorizar a modernidade desenfreada, os governos municipais têm realizado demolições de monumentos isolados ou mesmo de um conjunto deles, para permitir a abertura de vias públicas ou para possíveis construções futuras, isso nos recorda a chamada ―Regeneração‖ de Pereira Passos em 1898, que ocorreu no Rio de Janeiro para a modernização da capital do Brasil na tentativa de uma (re) construção da memória. ―Conjuntos‖ característicos de épocas desaparecem ou já desapareceram nesse culto à modernidade. Igualmente, esses mesmos governos locais, sonhando com uma atualização das suas respectivas cidades, permitem a construção de edifícios com a anterior demolição de exemplares preciosos do acervo arquitetônico. A ausência de um assessoramento adequado por parte de técnicos e arquitetos preservacionistas tem permitido ser reduzida a pó boa parte do patrimônio cultural. Outra possibilidade que consideramos foi o interesse econômico local através de análises. A especulação imobiliária nas áreas urbanas tem sido a principal fonte de destruição do patrimônio histórico, isso tem acontecido também na cidade de Ituiutaba. A valorização espacial urbana tem gerado a demolição dos antigos casarões para em seu lugar serem construídos prédios ou às vezes simplesmente para livrar-se da possível município tijucano, a exemplo podemos citar práticas recentes de desrespeito ao acervo local quando se demoliu sem o menor constrangimento o prédio mais antigo do município situado na esquina da Avenida 9 (nove) com a rua 18 (dezoito), centro da cidade, para abrigar uma quadra esportiva da corporação militar (Tiro de guerra) que passou a habitar as dependência anexas. Condutas desta natureza nos deixam perplexos uma vez que, na Europa existem prédios de 300, 500, 600 anos, no Brasil, imóveis de 80, 100, 150 anos estão maltratados, com os belos trabalhos artesanais de ferro tomados pela ferrugem, o cupim consumindo o madeirame, a ação do tempo se fazendo sentir nas paredes, predominando, igualmente, a falta de pintura das fachadas. Tais prédios, cuja falta de conservação se deve em sua maioria à inércia dos proprietários, são presas fáceis para as grandes imobiliárias, que se acercam dos relapsos detentores dos mesmos com propostas tentadoras, e sem qualquer hesitação são os mesmos vendidos ou até trocados Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 ameaça do tombamento. Constatamos alguns fatos ocorridos nestas circunstâncias no 50 por área construída, e no lugar do monumento importante, surge o novo prédio moderno. Tendo em vista a análise conjuntural do quadro apresentado, sugerimos a adoção de práticas conscientizadoras. Uma delas seria a criação de um roteiro de visitas a locais de ―guarda da memória‖ da cidade, onde não apenas os bens patrimoniais tombados seriam contemplados nesta visita, mas também lugares e manifestações culturais não consagrados pela história oficial poderiam ser incluídos. Na cidade de Ituiutaba-MG tem-se o tombamento oficializado de seis bens culturais: a Praça Cônego Ângelo (decreto nº 5.778 de 10/04/2006), a Escola Estadual João Pinheiro (decreto nº 5.780 de 10/04/2006), a Ponte Raul Soares (decreto nº 5.777 de 10/04/2006), o Parque do Goiabal (decreto nº 5781 de 10/04/2006), o MUSAI (Museu Antropológico de Ituiutaba), (decreto n º4.519 de 16/04/1999) e finalmente as Panelas Indígenas (decreto nº 5.242 de 03/04/2003), estas últimas, resultado das inúmeras escavações arqueológicas existentes neste município. Como opção de ampliação da listagem oficial, sugerimos à inclusão da Ponte Velha construída em 1880, exemplo do esquecimento de fase histórica vivida pela cidade uma vez que foi o único meio de transposição das águas do Rio Tejuco e que passou despercebido após a sua derrubada pela enchente em meados de 1958. Outros pontos que devemos considerar e que dão sinais do processo de beneficiamento e abrigo às máquinas que processavam o produto na época e que hoje são usados para outros fins, como comércio varejista, templos religiosos ou quando não, são abandonados ou derrubados para fins especulatórios, fazendo com que se perca importante parcela do acervo arquitetônico. Sugerimos ainda acrescentar no roteiro visita à Praça 13 de Maio considerada um marco da cultura afro-brasileira, construída na década de 1970, tendo sido projetada pelo engenheiro Costa Melo, esta se apresenta como relevante no contexto sóciocultural da cidade de Ituiutaba, sendo que além de sua arquitetura ser um marco de referência moderna para a comunidade local, seu valor se acentua ainda mais se elencarmos as manifestações culturais e religiosas que ali se encerram, construindo um quadro de heterogeneidades pouco observado em outro local público desta cidade. Percebe-se logo, que a praça abriga uma infinidade de movimentos religiosos, culturais e até mesmo políticos. Daí, sua importância dentro do contexto histórico, o que nos incita em sugerir sua inclusão na lista de tombamento tornando-a definitivamente Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 comercialização do arroz produzido no município, são os vários imóveis que davam 51 patrimônio cultural da cidade, onde as comunidades que ali freqüentam a exemplo da Irmandade de São Benedito e comunidade evangélica Sal da Terra, além de outras entidades que a circundam, tais como, a Fundação Zumbi dos Palmares, que representa a cultura afro-descendente. Estas prerrogativas justificam por si só ação pró-ativa no sentido de preservá-la. Para completar o roteiro sugerimos a visitação ao prédio de valiosa historicidade para a comunidade, este se encontra localizado à Avenida 5 (cinco) entre as rua 20 (vinte) e 24 (vinte e quatro), que representa incontável importância dentro do quadro educacional ituiutabano, uma vez que por diversos anos abrigou o Colégio São José e ainda é palco de escola privada. Sua importância arquitetônica é visível, além de que área que o circunda abriga o já desativado primeiro cemitério da cidade. Têm-se registros de que o Colégio São José iniciou as suas atividades por volta do ano de 1940 através de uma Instituição ligada à Congregação Estigmatina que propugnava os valores difundidos pela Igreja Católica. O reconhecimento da edificação como instrumento cultural, educacional e patrimonial que permeou a vida dos contemporâneos tijucanos é notório e carece ter seu valor histórico regatado visto que o prédio foi palco durante décadas de práticas educacionais importantes para a formação do pensamento da sociedade local. Pensamos que estas visitas direcionadas poderiam ser incluídas e administradas do acervo municipal, possibilitaria a comunidade interessada, ter uma opção mais ampliada que fomente as discussões sobre o patrimônio cultural da cidade. Ressaltamos que já tendo sido objeto de pesquisa desenvolvida pelo próprio órgão municipal constatou-se que há um déficit de conhecimento por parte da população sobre a existência do museu, suas funções, e os eventos por ele promovidos; sendo que em nosso entendimento a ampliação de suas funções estendidas às atividades externas, poderiam reverter este quadro em curto período de tempo. Acreditamos que a baixa frequência indicada pela referida pesquisa que aponta para baixos índices de uso do museu seriam melhorados com a ampliação das visitações periódicas das escolas e da comunidade em geral. Entendemos que um maior envolvimento por parte do órgão de cultura através do departamento de ação educativa melhoraria sensivelmente a sua divulgação perante a comunidade, exercendo a partir daí uma maior significação para a população e conseqüentemente, propiciando uma maior freqüência deste público aos eventos e exposições realizadas em suas dependências. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 pelo MUSAI (Museu Antropológico de Ituiutaba), que além de guardar parte importante 52 Conclusão: As questões levantadas neste trabalho refletem em parte o descaso com que é tratada a realidade histórica da cidade de Ituiutaba, no âmbito sociocultural, fazendo-se necessário enfatizar em caráter de urgência o uso da educação patrimonial como possível solução na valorização tanto da arquitetura urbana, como também lugares, que até então não são considerados como ponto de valor para a memória da sociedade local, mas que indubitavelmente estão carregados de significados que lhe atribuem tal importância. Consideramos que os elementos expostos aqui sirvam para dar um impulso inicial, nas práticas conservacionistas na cidade de Ituiutaba, a fim de que os locais de memória nela existentes possam ser mais bem aproveitados, dando ênfase à história local, e possibilitando as gerações futuras conhecer os estágios pregressos que a conduziram até os dias de hoje, criando assim uma amálgama de ligação entre passado e presente que lhes crie a noção de pertencimento, imprescindível ao desenvolvimento de uma consciência histórica que lhe proporcione melhor uso da cidadania na sua práxis cotidiana. Dessa forma nossa pesquisa procurou dar ênfase ao patrimônio cultural como forma de renovação da consciência histórica, propondo, a revalorização dos bens tombados, a eleição de novos componentes para o acervo com a participação efetiva da do reconhecimento dos referenciais culturais, onde os habitantes da cidade possam neles se reconhecer como referencial histórico que lhes permitiu chegar até aqui. Apesar de não estar concluída, disponibilizamos esta pesquisa como sendo uma forma de contribuição e a colocamos como fonte de informações, por traçar uma diagnose histórico-cultural do município sobre uma nova ótica, ensejando elementos estimuladores à sua continuidade e aprimoramento como colaboração científica na produção de conhecimento. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: ALMEIDA, Adriana Mortara; VASCONCELOS Camilo de Mello. Por que visitar museus. In: BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes (org). O saber histórico em sala de aula. São Paulo. Contexto, 2008. BARBOSA, Vilma de Lourdes. Ensino de história local: redescobrindo sentidos, in: Saeculum – Revista de História [15]; João Pessoa, PB, julho./dez.2006. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 sociedade, resultando numa iniciativa que propicie a valoração do bem público, através 53 BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de História: fundamentos e métodos. São Paulo, Cortez editora, 2005. BOBEK, João Vinícius. Ensejos de uma síndrome Patrimonial: Reflexões sobre a destruição do Patrimônio Histórico Edificado e sua relação co um objeto. Disponível em: http://www.historiaehistoria.com.br/materia.cfm?tb=alunos&id=187#_ftn1 – Data do acesso: 30/10/2010 às15h03min. CASTELLS, Manuel. A questão urbana. 3ª ed. Rio de Janeiro. Ed. Paz e Terra, 1993. CERTEAU, M. A invenção do cotidiano. Rito de Janeiro: Vozes. 1994. FILHO, Fortunato Ferraz Gominho. Bens patrimoniais e escolas públicas: uma aproximação necessária. Disponível em: http://virtualbib.fgv.br/dspace/handle/10438/2114 - Data do acesso: 14/07/2010, 13h32min . GRAMMONT, Guiomar de. Reflexões à beira de uma cratera. Estado de Minas, Pensar, January 10th, 3-4. Gussiyer. 1998. HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo, Vértice, 1990. HORTA, Maria de Lourdes Parreiras. Educação Patrimonial PGM1- O que é Patrimonial. TVE/BRASIL. 2003. Disponível em: http://www.tvebrasil.com.br/salto/boletins2003/ep/tetxt5.htm. Data do acesso 07/10/2010, 17h34min. HUNT, L. A Nova História Cultural. São Paulo: Martins Fontes, 1992. LE GOFF, Jacques. História e Memória. 5ª edição. Campinas, SP: UNICAMP, 2003. NORA, Pierre. Entre Memória e História: A Problemática dos lugares, in: Projeto História: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da PUC-SP, São Paulo, SP, 1981. NORA, Pierre. Entre memória e história. [1984], prefácio do v. 1 de Lês Lieux de Mémoire, Paris, Gallimard, 1984. Tradução de Yara Aun Khoury, Projeto História, São Paulo, (10), dez. 1993, p. 7-28. ORIÁ, Ricardo. Memória e o ensino de História. In: BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. (org). O saber histórico em sala de aula. São Paulo. Contexto, 2008. PESAVENTO, Sandra J. Memória, História e Cidade: Lugares no tempo, momentos no espaço. In: ARTCULTURA. Uberlândia-MG. VOL. 4 n° 4. p. 23-35, jun/2002. PESAVENTO, Sandra Jatahy. O imaginário da cidade: visões literárias de urbano – Paris, Rio de Janeiro, Porto Alegre, 2ª edição- Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2002. ____________________. História & História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2004. POLLAK, Michael. Memória, Esquecimento, Silêncio. In: CPDOC, Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol.2. n. 3. 1989, p.3-15. RODRIGUES, Maura A. Fagulhas de Histórias do Triângulo Mineiro. Ed. ABC, Sabe, Uberlândia-MG, 1998. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 LOSEKANN, Silvana.Patrimônio cultural: a percepção da natureza como um bem não renovável. In. Revista Brasileira de história São Paulo. Vol. 26 p.51, 2009. 54 TELLES, Leandro Silva. Manual do Patrimônio Histórico. Porto Alegre – Escola Superior de Teologia são Lourenço de Brindes, Caxias do Sul, Universidade de Caxias do Sul, Rio Pardo, Prefeitura Municipal, 1977. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 TOLEDO, Benedito Lima de. Preservação de bens culturais. In: Revista da Biblioteca Mário de Andrade. São Paulo. V.52. jan/dez. 1994. 55 IMIGRAÇÃO ÁRABE PARA ITUIUTABA - PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XX Lara Denise Muntaser Acadêmica do Curso de História - FACIP-UFU Dra. Dalva Maria de Oliveira Silva Orientadora – Curso de História - FACIP-UFU O presente projeto de pesquisa está sendo desenvolvido no âmbito da disciplina trabalho de conclusão de curso, visa a redação de uma monografia que se propõe a responder algumas questões referentes à imigração e aos imigrantes árabes, libaneses e turcos presentes na cidade de Ituiutaba. A imigração de sujeitos dessas etnias para esta região ocorreu principalmente na primeira metade do século XX e a participação dos mesmos na história da cidade é visivelmente significativa, tanto no aspecto cultural como no aspecto econômico, tendo em vista a quantidade de estabelecimentos comerciais que foram abertos na cidade, principalmente a partir da década de 1950, sendo que alguns deles ainda se encontram em pleno funcionamento. Segundo um artigo publicado na revista Acaiaca, por ocasião do cinqüentenário de Ituiutaba no ano de 1951. a cidade recebeu o primeiro representante da colônia síriolibanesa em 1888 sendo ele o senhor Miguel Zackarias, que aqui constituiu família e se juntamente com sua família, porém depois de alguns regressou à sua terra natal para anos mais tarde retornar para Ituiutaba onde fixou morada definitiva. A partir de 1900, mais especificamente em 1901, as irmãs Maria e Nacibe Noyanne aumentavam o grupo, tendo, de maneira direta, contribuído grandemente para o desenvolvimento da cidade, edificado o prédio comercial localizado à Rua 22, esquina com Avenida 13, no Centro da cidade (GOMES, 1953,83). Ainda de acordo com Teodoro Gomes entre os anos de 1910 e 1920 várias outras famílias chegaram à cidade e ele cita como exemplo as famílias Dib, Faissol, Jacob e Feres. Nos anos que se seguiram e no rastro das famílias que já haviam fixado residência na região, vieram muitas outras pessoas, incentivados por parentes e amigos aumentando o fluxo migratório para Ituiutaba e região. Segundo contam alguns relatos a viagem era feita por navio e chegavam geralmente no Porto de Santos ou no Rio de Janeiro e dali muitos viajavam por grandes cidades em busca de trabalho ou de oportunidade para fixarem um pequeno comércio e Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 fixou. Mais tarde, em 1894, seguindo seus passos chegou à cidade o senhor Abrão Calil, 56 acabavam vindo para o interior dos Estados. Em outros casos como eles já tinham familiares ou conhecidos em alguma localidade, quando chegavam ao Brasil já tinham um destino certo e então procuravam logo encontrar a direção a seguir. Quando chegavam ao destino logo buscavam uma ocupação que, geralmente estava ligada ao ramo comercial e dessa forma, como podemos constatar no caso de Ituiutaba, contribuíram para o desenvolvimento comercial e econômico da região, além de trazerem a sua cultura que se mesclou com a maneira tijucana de viver. Tendo em vista essa realidade, constatada devido ao grande número de famílias libanesas, árabes e turcas existentes nesta região, sendo que em algumas ainda se encontram vivos os seus patriarcas, é que surgiu a problemática desta pesquisa que visa investigar as razões que levaram esses sujeitos a abandonarem os seus países de origem e o contexto que os levaram a decidir pela fixação em uma pequena cidade e numa região distante dos grandes centros comerciais brasileiros. Conforme leituras já realizadas constata-se que a partir de 1900 a imigração para o Brasil cresceu muito, devido à fama de grande capacidade comercial e desenvolvimento existente aqui e que corria por todo o mundo. Eram as terras férteis, a suposta grande oferta de trabalho e emprego e as grandes proporções do país os maiores atrativos aos estrangeiros. Além disso, o fato de ter uma política relativamente neutra, sem perseguições ideológicas e religiosas, nesta época, sugeria refúgio para aqueles em De acordo com algumas entrevistas já realizadas, a maioria dos migrantes provenientes de países árabes chegou à cidade na primeira metade do século XX. Podese inferir que, além dos fatores acima citados e que podem ter acasionado o processo migratório, há que considerar também a crise do Oriente Médio (conflito Israel Palestina), que teve origem devido ao movimento zionista (fim do século XIX), que tinha como objetivo a volta dos judeus à terra natal. No entanto, Israel estava povoada pelos árabes devido ao aumento da população e à migração para o país. Em 1947 a ONU aprovou um plano de partilha da Palestina entre um estado judeu e outro palestino, sendo que todo o território tinha a extensão aproximada de 27.000 km² e um terço correspondia ao deserto de Neguev. Irrompe, então, a guerra da independência, na qual a nova metade do Estado de Israel enfrentou o Egito, Síria, Transjordânia, Líbano, Iraque e os próprios palestinos, muitos dos quais se viram forçados a abandonar suas terras na esperança de retornar quando uma futura vitória dos exércitos árabes acontecesse. Acredita-se que este conflito foi responsável não somente Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 cujos países sofriam com a perseguição e dificuldades econômicas. 57 pela migração árabe, mas de todos os países citados, principalmente dos homens, terem saído de suas terras em busca de lugares onde não correriam constantes riscos de guerra. No que se refere à Crise do Oriente Médio encontrei um dos entrevistados que residia em Jerusalém. Muçulmano, se diz palestino e tem uma evidente aversão por Judeus e norte americanos. Comecei a colocar as questões perguntando quais foram os motivos de ter deixado sua terra natal e sua família, ao que ele respondeu: "Eu tinha vinte e poucos anos. Tinha meu esposa, meus filhas, mãe, irmãos. Meu pai já tinha morrido muitos anos. Eu sai de lá porque mãe fala assim: você vai embora, ou você morre nesse guerra. Não quis ficar. Pega navio, vem vindo embora."24 A pesquisa pretende questionar sobre os fatores que motivaram estas pessoas à migração, buscando conhecer sobre a trajetória de sua vinda para o Brasil, investigando sobre a sua contribuição para nossa economia, para o comércio da cidade e, também, sobre a relação entre a cultura árabe e tijucana. Mas pretende principalmente se enveredar pelo caminho das experiências adquiridas e pelas histórias vividas. Conhecer as razões a respeito da escolha das cidades e regiões em que decidiram morar e sobre as atividades que decidiram realizar; além de todas as peculiaridades deste povo. Ao se falar sobre migração é bastante comum simplesmente se pensar nas pessoas de um modo geral e esquecer os casos particulares. Nestes, porém, é que se pode perceber o que significa ser um migrante, a coragem de se mudar para lugares uma nova família, apesar daquela que muitas vezes foi deixada para trás. Adquirir novos hábitos em choque com aqueles que já, há muito, se possuía. Conviver com novas crenças e religiões sem muitas vezes poder cultuar a que lhe foi ensinada. É de suma importância considerar o que estas pessoas viveram em sua transição, pelo que passaram e quais são as lembranças que trazem consigo de todas essas experiências. Dois imigrantes que já foram entrevistados um deles mostrou imenso orgulho e disposição de contar a sua história, enquanto o outro deu apenas informações que julgou ser necessárias para a pesquisa, podendo-se entender, nestes casos, que certas lembranças desenterram sentimentos dolorosos ou desconfortáveis. Ambos afirmam ter sido uma experiência difícil, porém necessária. Carregam o sotaque típico de imigrantes árabes e ambos foram comerciantes. Um deles ainda possui sua loja e dá aulas de língua árabe. O outro ainda participa ativamente no comércio de veículos, mas não possui seu 24 Muhammad Khalil Muntaser, imigrante árabe, de Jerusalém, hoje residente em Ituiutaba. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 desconhecidos e passar neles toda uma vida sem se quer retornar à terra natal. Construir 58 próprio negócio. Vieram praticamente pelo mesmo motivo: busca de melhores condições de trabalho e fuga de conflitos políticos e religiosos em seus países de origem, nos quais corria risco de morte. Mostraram muita simpatia com o nosso país e preferiram se estabelecer definitivamente aqui. Não deixam de ressaltar, porém, em quase todas as falas, sobre as dificuldades que aqui encontraram não pelo país em si, mas pelo fato de ser migrante. O migrante é quase sempre uma pessoa de coragem. Lança-se ao desconhecido e chega muitas vezes ao seu limite, pois as circunstâncias quase sempre o exigem. É necessário reconstruir sua cultura, seus hábitos, ao mesmo tempo em que se necessita lidar com a ausência daqueles que ficaram para trás. Sabe que o que vai ocorrer em sua nova morada é diferente de tudo o que já presenciou. Há o conflito de seu passado com seu presente, pois ao mesmo tempo em que as memórias perduram é necessário deixar grande parte de lado, por questão de sobrevivência. Além disso, conta com um futuro inimaginável, do qual pode não fazer idéia. Impossível apagar tudo o que viveu e que constitui a sua pessoa, como também não se vive em um lugar sem se deixar influenciar pelo meio. É quando acontece a mescla entre o presente e o passado, o desconhecido e o conhecido; a mistura de línguas e hábitos religiosos. É onde surge o personagem característico, único, misturado. Aquele que depois que vive em seu novo país por muito tempo já não define mais onde é sua verdadeira casa, onde realmente pertence, migrante que se estabelece em um determinado lugar é o choque cultural personificado. Ainda que ame o presente, jamais deixará de lado seu passado e vice versa. A história de um migrante é marcada para sempre, reafirmando as palavras de Rusen: Todo aquele que migra, sabe de onde parte, mas não sabe aonde chega; sabe o caminho que deixa, mas não sabe o que encontra. Lança-se em uma travessia sem fim, acreditando-se sempre o mesmo, mas poucas vezes dandose conta de que se preserva e transforma, reafirma e transfigura, afina e desafina. Lá longe, em outro lugar, país ou continente, continua a rememorar a partida e o caminho percorrido, recriando situações, pessoas, vivências, imagens, diálogos, sentimentos, memórias, fragmentos, esquecimentos. É assim, com recordações e esquecimentos, que o migrante nutre a nova situação, seja ela de êxito ou frustração. (2007) Desta forma a metodologia de pesquisa, além de lançar mão de documentação escrita como jornais, atas da Câmara Municipal e documentação pessoal dos migrantes, está sendo desenvolvida, também e principalmente, através de entrevistas orais semi dirigidas, com roteiro pré-definido. Conforme autores nos quais tenho buscado embasamento para o desenvolvimento da pesquisa, a utilização de roteiro semi dirigido Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 pois será sempre dos dois lugares, pertencerá às duas culturas, aos dois povos. O 59 facilita a localização dos fatos mais importantes e significativos, já que a parte principal da pesquisa se desenrola no decorrer da vida dos imigrantes cobrindo um período de vários anos25. No decorrer das entrevistas há que se ter muito cuidado e desenvolver uma relação de respeito e ética inerentes à fonte oral (PORTELLI, 1997,13), pois lidamos com sentimento e neste caso procurarei interpretar o tipo de sentimento que resta hoje sobre estes fatos passados na vida destas pessoas e em relação à terra natal. Além das entrevistas e durante a realização das mesmas, pretendo também procurar fotografias, documentos pessoais, cartas ou qualquer outro tipo de documento que essas pessoas ainda tenham consigo e que possam contribuir de alguma forma para melhorar compreender e interpretar o contexto estudado, seja contribuindo para trazer à tona memórias que estejam esquecidas (THOMSON, 1997, 51) seja para localizar ou ilustrar um fato histórico referente ao tema abordado. Tenho também como objetivo apreender e analisar, um dos pontos que considero importante neste trabalho, a experiência pessoal dos imigrantes no processo que consiste desde a decisão por migrar até ao estabelecimento em Ituiutaba. Através da fala dos mesmos, procurarei extrair o que consideraram mais e menos importante, difícil, penoso, gratificante, bom e prazeroso, e ao mesmo tempo localizar, também através dos depoimentos, fatos históricos que coincidem como motivação específica e Pretendo também traçar o panorama político e econômico brasileiro da época, pois com o fluxo crescente de imigrantes foram criadas leis e condições de infraestrutura para abrigá-los, assim como programas de apoio ao imigrante e transporte que atendesse pelo menos à maioria deles. Pelo fato de o Brasil carecer de mão de obra, tornou-se objetivo de muitos estrangeiros por todo o mundo, que vir em busca de trabalho ou mesmo de segurança, no caso daqueles que veio de países conflituosos, principal foco desta pesquisa. Além desse panorama político e econômico buscarei nos casos individuais de migrantes locais apreender suas experiências e extrair destes casos a parte humana destas experiências. Os conflitos internos, o sofrimento, a coragem de se lançar no novo e desconhecido, especialmente os que vieram sozinhos. A adaptação difícil e repentina em um lugar diferente, o que parece ser uma realidade em relação a quase todos aqueles 25 Sobre a utilização de fontes orais na pesquisa ver: PORTELLI, 1997,13-49; 25-39; THOMSON, 1997, 51; FERREIRA, 1996. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 comum entre patrícios para a imigração. 60 que vieram. A busca incessante por sobrevivência e bem estar. Os motivos de terem ou não voltado às suas terras para rever as suas famílias ou a impossibilidade de voltar, no caso de terem constituído nova família no Brasil. Como este relato de um dos entrevistados que deixou para traz a mãe e outros familiares: "Eu gosta daqui. Eu passa por todo lugar, por muito país. Eu fui em Estados Unidos e não gosta. Não gosta Estados Unidos, lugar ruim de gente que não presta, malandro, vagabundo sô. Estados Unidos ruim, triste. Eu vem porque gosta. De tudo que conheci, acha esse melhor, bonito, grande." 26 Outro objetivo da pesquisa será inventariar os estabelecimentos comerciais de propriedade de imigrantes árabes, levantando a sua história, o modo como trabalhavam ou trabalham, os métodos que trouxeram de sua terra e incorporaram aos nossos. Neste contexto, tenho como objetivo também traçar a trajetória daqueles tão comuns imigrantes que optaram por trabalhar como viajantes para vender sua mercadoria na zona rural e nas cidades vizinhas da região, os chamados ―mascates‖. Estes angariaram conhecimentos interessantes sobre toda a região e, principalmente estabeleceram contatos que podem ser importantes para compreender aspectos outros da relação com as pessoas do lugar. É importante para este trabalho, no meu ponto de vista, entender o que os estrangeiros conhecem da região, quais suas primeiras impressões, como eram efetuadas sendo um complemento do foco principal desta pesquisa, é conhecer também a visão daqueles que os recebiam em suas casas e fazendas. Como viam os estrangeiros, primeiras impressões, como se formaram relações amistosas ou não, profissionais e pessoais. Segundo o artigo ―As influências das interações étnicas na formação da cidade de Ilhéus/Bahia‖, de Maria Luiza Silva Santos, não há relatos satisfatórios de repulsa, preconceito ou rejeição contra os árabes no Brasil. O que se percebe na sociedade em que estes imigrantes adentraram, é simplesmente uma espécie de caracterização do árabe, de seu idioma, de seus hábitos cotidianos e principalmente alimentares, sua vestimenta e seu famoso tino comercial. Como afirma SANTOS, seus estereótipos ―são mais engraçados do que ofensivos‖ talvez pelo fato de estas pessoas não representarem nenhum tipo de ameaça, sendo muitas vezes vítimas das circunstâncias que os levaram a 26 Muhammad Khalil Muntaser. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 as vendas e como se dava todo o trabalho de negociação. Não menos importante, mas 61 se deslocar por tantos lugares longínquos e desconhecidos. Quando chegaram, não tinham outro objetivo, senão o de se estabelecerem, temporariamente ou não. Precisavam, antes de tudo, sobreviver. Proteger suas famílias, quando as traziam, ou garantir o sustento das que ficou em suas terras de origem. Como relata um dos entrevistados: ―Não penso. Quando resolvi largar tudo não pensa, a gente não pensa em tudo que vai mudar. Você pensa em dinheiro. Você pensa em colocar família em segurança, melhorar a vida. Só pensei nisso (...)‖27 A maioria dos árabes e sírio-libaneses encontrou sustento no comércio. Por já ser uma atividade comumente desenvolvida há muito em seus países, cujos mercados são famosos mundialmente, vieram com o ofício de vendedor fixo ou viajante. Compravam mercadoria e vendiam nas praças, em lojas (quando, mais afortunados, conseguiam ter um estabelecimento próprio), ou viajando pela região, tanto em cidades vizinhas quanto na zona rural, criando, além de clientes, novos amigos e conhecidos. Eram encarados com estranhamento, mas com simpatia pelos habitantes locais. Apesar de serem mundialmente taxados e, atualmente, terem sua figura associada ao terrorismo, aqui no Essa necessidade é ainda mais evidenciada porque estamos tomando como objeto um grupo étnico que sempre foi e continua sendo, mais do que nunca, alvo de preconceitos e discriminações em grande parte do globo. Mas essa perspectiva é minorada em termos de nação brasileira, pois é comum nos depoimentos os imigrantes afirmarem que no Brasil não tenham passado por nenhum tipo de preconceito ou discriminação. É evidente, porém, que em termos de mundo esse preconceito seja latente. Se antes o árabe era rotulado de turco, em função da dominação turco otomana, hoje são tachados de inimigos terroristas. Entende-se que os brasileiros encontraram nestas pessoas aliados, amigos, parceiros profissionais e os aceitaram cordialmente em seu território. Adquiriram hábitos seus, principalmente no tocante à culinária árabe, que foi não só bem recebida, mas incorporada ao cardápio brasileiro. Este, também deixou que se mesclasse sua cultura, ainda que em dimensões bem menores, ao aceitar o estrangeiro árabe, ao observá-lo, ao imitá-lo, ao aprender com ele. Comumente há exceções, mas pode-se crer que a maioria foi bem aceita simplesmente pelo fato de um grande número de imigrantes árabes, turcos, sírio-libaneses ter se estabelecido no Brasil até a sua morte, deixando aqui seus descendentes e seus negócios. Por tudo o que foi exposto esta pesquisa trata-se de uma temática extremamente importante para o melhor conhecimento da história regional e, também, muito 27 Schmuller Charlin, 80 anos, comerciante aposentado, residente em Ituiutaba-MG, imigrante libanês. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 Brasil isso parece não ter ocorrido, como diz SANTOS: 62 interessante e instigante para o pesquisador que se propõe a desvendar as relações e diferentes nuances do estabelecimento dos migrantes árabes nessas terras. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS FERREIRA, Marieta M.; AMADO, Janaina (orgs) Usos e abusos da História Oral. Rio de Janeiro: FGV, 1997. GOMES, Humberto Teodoro. A colônia Sírio-Libanesa em Ituiutaba. Revista Acaiaca, Belo Horizonte, p. 83-84, 1953. PORTELLI, Alessandro. Tentando aprender um pouquinho. Algumas reflexões sobre a ética na história oral. Projeto História, São Paulo, n. 15, pp. 13-49, 1997. PORTELLI, Alessandro. O que faz a história oral diferente. Projeto História, São Paulo, n. 14, pp. 25-39, 1997. RUSEN, Jorn. Reconstrução do passado. Brasília: Ed.UNB, 2007. SANTOS, Maria Luiza Silva. As influências das interações étnicas na formação da cidade de Ilhéus/Bahia. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 THOMSON, Alistair. Recompondo a memória: questões sobre a relação entre História Oral e as memórias. Projeto História, São Paulo, n. 15, pp. 51-71, abr/1997. 63 IMPRENSA E MEMÓRIA: REFLEXÕES SOBRE A CONSTRUÇÃO DE MEMÓRIAS PÚBLICAS EM TOLEDO/PR A PARTIR DE UMA NOTÍCIA POLICIAL DE 195428 Jiani Fernando Langaro Mestre, UFU, Doutorando /PUC-SP, bolsista CAPES, UFU/FACIP) [email protected]. Imprensa e memória: Reflexões metodológicas Inicialmente, gostaríamos de discutir os referenciais que nos orientam no trabalho que desenvolvemos. A noção de memória pública é muito importante para nossas análises e adquirem centralidade em nossas análises. Utilizamos esse conceito para discutir as memórias que são difundidas no espaço público, através de meios de comunicação (entre eles, jornais e revistas), projetos culturais, impressos produzidos pelos poderes púbicos, esculturas, monumentos e a arquitetura de espaços que se relacionem a elementos do passado. Para nós, são muito caros os argumentos elencados pelo Grupo Memória Popular, principalmente no que tange à sua proposta de realização de ―estudos ...gostaríamos de enfatizar que o estudo da memória popular não pode se restringir somente a este nível. Este é necessariamente um estudo relacional. Deve-se incluir tanto a representação histórica dominante no âmbito público quanto procurar ampliar ou generalizar experiências subordinadas ou privadas. Como todas as disputas, deve ter dois lados. Nos estudos concretos, memórias privadas não podem ser facilmente desvinculadas dos efeitos dos discursos históricos dominantes. Muitas vezes são estes que suprem os próprios termos por meio dos quais uma história privada é pensada. (GRUPO MEMÓRIA POPULAR, 2004, p. 286). Conforme apontam os autores, um estudo que pense as memórias dos grupos populares não pode se furtar de considerar os processos que engendram as memórias hegemônicas no espaço público. Do contrário, poderíamos pressupor uma divisão ou até mesmo embate entre ambas, o que nem sempre ocorre efetivamente na realidade social e quando ocorrem, não se dão por motivos naturais ou a-históricos. Sendo assim, não pensamos o público e o privado como espaços onde se produzem memórias diversas, 28 Notas de pesquisa de doutorado em desenvolvimento junto ao Programa de Estudos Pós-Graduados em História, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), projeto intitulado Cultura e Memória, Região e Mobilidade: O Oeste do Paraná em noções e vivências. (1940-2007), sob orientação da Profa. Dra. Olga Brites, financiado com bolsa CAPES – Modalidade II. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 relacionais‖: 64 mas onde diferentes versões circulam e conquistam status diferenciados, sendo o espaço público geralmente o das cristalizações hegemônicas do passado. Portanto, as notas de pesquisa que apresentamos neste texto apresentam parte dos esforços que realizamos em buscar as memórias que se tornaram hegemônicas no espaço público de Toledo, que cristalizaram determinadas versões do passado local e regional, as quais entendemos como formas de construção e exercício de poder. Em um segundo momento, na pesquisa maior que desenvolvemos, analisaremos então as memórias populares sobre esse mesmo passado da cidade. Infelizmente, sobre essa parte da pesquisa não será possível tratar aqui, pois extrapolaria os limites deste texto. Neste trabalho, nosso foco ficará restrito às memórias públicas e à imprensa. Sobre as relações entre memória e imprensa, cabe ressaltar que a historiografia que trata desse tema é muito vasta, pois existem diferentes perspectivas teórico-metodológicas. Optamos por dialogar com trabalhos de História Social, que pensam a imprensa como produto de relações sociais, que se articulam no espaço da cidade, construindo noções e versões que se produzem como memórias. O espaço da cidade, em tais trabalhos, aparece como o espaço do conflito, das tensões que se produzem na sociedade.29 A cultura letrada e, consequentemente, o periodismo, são dimensões em que se estabelecem essas tensões, sendo elementos de luta social, articuladores de grupos, classes, valores e memórias. Esses trabalhos adotam em disputa no social. O passado, e o seu recordar se constituem como dimensões de um campo de disputas, que possui sua base nas relações sociais.30 Um dos trabalhos que adota essa perspectiva é de Heloisa de Faria Cruz, São Paulo em papel e tinta: Periodismo e vida urbana – 1890-1915 (2000). A autora realiza um estudo sobre a imprensa de variedades na cidade de São Paulo, na virada do século XIX para o XX. Nele, rejeita a perspectiva de trabalho na área da ―História da Imprensa‖, sem desmerecer sua contribuição intelectual e efetua seu diálogo com a imprensa a partir da história social. Considera que o periodismo se configura em meio instituinte de formas de viver e pensar, em articulação com a vida urbana. 29 Essa concepção de cidade é discutida por Déa Ribeiro Fenelon na introdução ao livro Cidades. (FENELON, 2000). 30 A esse respeito ver: FENELON, Déa Ribeiro; MACIEL, Laura Antunes; ALMEIDA, Paulo Roberto de; KHOURY, Yara Aun. (orgs.). Muitas memórias, outras histórias. São Paulo: Olho d‘Água, 2004 e MACIEL, Laura Antunes; ALMEIDA, Paulo Roberto de; KHOURY, Yara Aun. (orgs.). Outras histórias: memórias e linguagens. São Paulo: Olho d‘Água, 2006. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 a concepção de que a memória é plural, portanto adotam o termo memórias, que estão 65 Cruz confere visibilidade à formação de uma cultura letrada na cidade de São Paulo, a qual adentrou o campo da imprensa como espaço de disputa. Os viveres urbanos e as novas formas de se viver a cidade, apresentados na imprensa de variedades, ganham visibilidade no trabalho da autora, assim como as tensões e relações de trabalho que envolveram os gráficos e trabalhadores da imprensa. Outros trabalhos significativos que discutem as relações entre historiografia e imprensa são de Laura Antunes Maciel, que problematiza a imprensa em sua dimensão instituinte de memórias e chama a atenção para a complexidade dos processos sociais que a envolvem. Conforme aponta em ―Produzindo notícias e histórias: algumas questões em torno da relação telégrafo e imprensa – 1880/1920‖: Entre nós, historiadores, há algum tempo superamos a rejeição à imprensa ou sua incorporação a-crítica como um documento histórico cuja validade estaria exatamente no caráter objetivo e isento reivindicado pelo texto jornalístico, desde o início do século XX. No entanto, ainda é preciso refletir sobre procedimentos e os modos como lidamos com a imprensa em nossa prática de pesquisa para não tomá-la como um espelho ou expressão de realidades passadas e presentes, mas como uma prática social constituinte da realidade social, que modela formas de pensar e agir, define papéis sociais, generaliza posições e interpretações que se pretendem compartilhadas e universais. Como expressão de relações sociais que se opõem em uma dada sociedade e conjuntura, mas os articula segundo a ótica e a lógica dos interesses de seus proprietários, financiadores, leitores e grupos sociais que representa. (MACIEL, 2004, p. 15). destacando correlações de forças sociais e políticas que envolvem a cultura letrada. Propõe uma reflexão sobre a imprensa que não se paute apenas na análise textual dos periódicos, mas que avance na análise de aspectos que são extratextuais, como as relações entre o telégrafo e a imprensa. Em outro artigo, ―‗Imprensa de Trabalhadores, feita por trabalhadores, para trabalhadores‘?‖, Maciel realiza um levantamento, analisando os diferentes materiais de imprensa produzidos por trabalhadores e suas associações, para ―instruir‖ seus colegas de ofício. Destaca os esforços dos trabalhadores do Rio de Janeiro, no final do século XIX, para ter acesso ao letramento e para utilizar a linguagem escrita como forma de luta política. A autora situa a imprensa operária em um contexto amplo, que discute o próprio letramento, entendido como historicamente construído, em um momento histórico preciso em que os trabalhadores assumem a linguagem escrita como instrumento de luta social e de construção da sua coesão de classe. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 A autora destaca todo um conjunto de relações que envolvem a imprensa, 66 Outra grande contribuição da autora é ―De ‗o povo não sabe ler‘ a uma história dos trabalhadores da palavra‖ (2006) em que discute a visão depreciativa criada sobre a cultura popular no Brasil, tomada como ―iletrada‖ e ―ignorante‖. Revela como tais imagens são perpetuadas pela historiografia, quando as fontes são tomadas sem se realizar indagações que de fato estejam preocupadas em pensar as relações de poder que engendraram aqueles enunciados. Aponta como essas noções foram construídas pelos grupos letrados e dominantes da sociedade, que assim construíam instrumentos de controle sobre os grupos subalternos. A autora discute não apenas os textos veiculados pela imprensa, mas as relações que a classe trabalhadora estabelecia com o letramento e a cultura letrada. Aponta a crescente alfabetização da população da cidade do Rio de Janeiro na virada do século XIX para o XX, as leituras e publicações de livros voltados às camadas populares, além das escolas voltadas à alfabetização de trabalhadores. Salienta, então, o silenciamento construído em torno das relações da cultura popular com o letramento, com cujo esquecimento a historiografia colabora, ao não reconhecer a classe trabalhadora daquele período como um grupo letrado em potencial. Entendemos que esses trabalhos nos oferecem como grande contribuição não um modelo para ser aplicado em qualquer lugar e tempo, no que tange as relações existentes entre história, memória e imprensa. Ao contrário, chamam a atenção para a necessidade disputas e lutas políticas e sociais em que existiam em sua produção. Assim, é de extrema importância pensar nas particularidades da documentação periódica que analisamos e efetuar um contraponto com a bibliografia com que dialogamos. Isso porque o jornal que analisamos neste texto não foi produzido por uma imprensa operária ou mesmo popular e nem pela grande imprensa de abrangência nacional da década de 1950, produzida em uma das grandes cidades do país (que tinha entre seus expoentes a revista O Cruzeiro e o jornal O Estado de São Paulo, por exemplo). A contribuição das autoras citadas reside no pensar o campo de possibilidades e de questões que podem ser realizadas quando pesquisamos a imprensa, pondo em foco sua historicidade. Portanto, longe de trazer respostas prontas, seus trabalhos abrem espaços para reflexões que entendam os periódicos em sua complexidade. O jornal e o arquivo: Itinerários de pesquisa Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 de se situar as publicações periódicas em sua historicidade, e recuperar o campo de 67 O jornal do qual extraímos a matéria que analisamos neste trabalho denominavase O Oéste e foi produzido em Toledo-PR, 31 na década de 1950. Seu primeiro número foi veiculado em 6 de setembro de 1953 e o último número disponível no acervo pesquisado é de 25 de dezembro de 1955. Sua circulação era semanal e o jornal se outorgava ―órgão independente‖, impresso na ―Impressora Toledo Ltda.‖, tendo como diretor-gerente Clécio Zenni (O OÉSTE, 1955, capa), então vereador e comerciante, cuja família ainda hoje se destaca como tradicional na cidade e é atuante no ramo comercial. Trata-se do primeiro jornal impresso de Toledo, com circulação comercial, contando com vendas de assinaturas e exemplares avulsos. Apesar de ter sido editado após a emancipação de Toledo, O Oéste mantinha fortes relações com a MARIPÁ, de onde eram oriundos diversos de seus colaboradores. Essa relação muito próxima com a colonizadora era muito comum no período, pois o próprio poder público tinha em seus principais quadros nomes que emergiram do trabalho na MARIPÁ. A pauta do jornal concentrava-se nas notícias locais, sendo poucas as matérias e informações veiculadas sobre o restante do Brasil e do mundo. Possivelmente essas últimas eram mais comuns no rádio, não havendo necessidade de serem reproduzidas em um jornal semanal. Essas notícias locais também se referem principalmente às ações município. Assim, eram anunciadas inaugurações de órgãos públicos, novas obras e investimentos estatais no município, além de ações desenvolvidas pela prefeitura municipal e câmara de vereadores. Diversas as matérias têm como eixo central efetuar elogios a Toledo, repletos de exaltações a ―harmonia‖ e o ―progresso‖ reinantes no 31 Atualmente, Toledo é um dos municípios que compõem a mesorregião do Oeste Paranaense e possui uma população de aproximadamente 116 mil habitantes. É a terceira maior cidade da região e seu maior pólo industrial, com destaque para o setor agroindustrial e de alimentos. A economia da região é agrícola e agroindustrial, com destaque para a produção de milho e soja, e criação de aves e suínos em pequenas e médias propriedades. Os latifúndios existem, porém, não conferem a tônica da dinâmica agrícola regional. A ―Colonização do Oeste do Paraná‖ é considerada o marco fundador dessa cidade e da sociedade regional. Por meio desse processo costuma-se caracterizar as décadas de 1940 e 1950 como sendo o período em que diversas fazendas da região foram compradas por empresas colonizadoras privadas, loteadas e vendidas para pequenos proprietários rurais, geralmente vindos do Rio Grande do Sul e Santa Catarina, descendentes de imigrantes italianos e alemães. Em Toledo diversas obras de memorialistas destacam a atuação da Industrial Madeireira Colonizadora Rio Paraná S. A. – MARIPÁ, nesse período, na compra da fazenda Britânia e posterior loteamento em áreas rurais e urbanas, com a formação do que viria a ser a sede municipal de Toledo e de diversas outras cidades e vilas da região. Tradicionalmente, considera-se que esse período se estende, em Toledo, de 1946 – com a chegada na região dos primeiros trabalhadores a serviço da empresa colonizadora – até a emancipação, em 1952 ou mesmo fins da década de 1960, quando a venda de lotes rurais pelas empresas colonizadoras já havia praticamente cessado. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 do poder público municipal, uma vez que, quando esse jornal foi criado, Toledo já era 68 local, além do papel dos ―pioneiros‖ e das pessoas em geral, entendidas como elementos importantes para a construção de tal obra, graças ao seu trabalho de ―desbravador‖. O acesso e consulta a esses material, por sua vez, foram possíveis graças ao acervo mantido pelo Museu Histórico ―Willy Barth‖ de Toledo, mantido pela Prefeitura Municipal de Toledo e submetido a Secretaria Municipal de Cultura. O museu foi criado por meio da Lei n. 834/76 de 23 de agosto de 1976 (PREFEITURA MUNICIPAL DE TOLEDO) e chamava-se ―Museu Histórico de Toledo‖. Sua denominação mudou ainda nesse ano, através da Lei n. 844/76, (PREFEITURA MUNICIPAL DE TOLEDO, 1976) quando passou a ter a sua denominação atual, cujo homenageado, Willy Barth, foi diretor da empresa colonizadora MARIPÁ. Como se pode notar pela própria denominação do museu, existe entre seus propósitos a intenção de cristalizar e manter viva a memória da ―colonização‖. Esse museu possui características que lhe são peculiares, pois além dos objetos e espaços para exposição e visitação pública, funciona como centro de referência e apoio a projetos culturais e de pesquisa histórica em Toledo. Como parte dessas funções, existe no museu um centro de documentação, em cujo acervo encontra-se O Oéste e diversos outros conjuntos de jornais e revistas. O acervo do museu possui diferentes características e funções, que explicam sua preservação. Parte dos materiais está arquivada por colaborar, de alguma forma, com as caso de O Oéste. Outra dimensão desse acervo é sua função de arquivo público. Os jornais e revistas mais atuais são geralmente consultados também por cidadãos, que os procuram constantemente. O Oéste, portanto, não chegou até nossas mãos por acaso, mas como resultado de uma seleção que o escolheu para compor o acervo de um órgão voltado à preservação de determinadas memórias. A formação desse acervo, por sua vez, não se deu por meio de critérios muito fixos, como pudemos notar em conversas com a equipe do museu. Em certos casos, a inclusão de um jornal ou revista no acervo dependia da disponibilidade do periódico em fornecer exemplares de cortesia para o órgão. Outros jornais e revistas foram doados por memorialistas e/ou levantados pelo ―Projeto História‖, realizado em 1988.32 Alguns dos memorialistas da cidade, vale frisar, atuaram 32 O ―Projeto História‖ foi viabilizado a partir da Secretaria Municipal de Cultura da Prefeitura Municipal de Toledo e efetuou a publicação de diversas obras sobre ―a‖ história do município. Algumas dessas obras compilam dados sobre o município e seus distritos, a fim de fornecer subsídios a professores para o Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 memórias da colonização de Toledo, sendo consultado mais por pesquisadores, como no 69 de forma muito vivaz na imprensa local, por isso mantinham certos materiais desse gênero em seu arquivo pessoal. Portanto, ao se pensar uma matéria jornalística na construção de uma memória pública, é preciso levar em consideração não apenas o jornal em si, mas a trajetória que o levou a se tornar fonte histórica,33 com os processos de seleção e de formação de um conjunto documental. É preciso considerar também o papel do museu, como instituição voltada a preservação de certas memórias e as funções que essa documentação assume em seu acervo. A Matéria policial e as pistas sobre a construção de uma memória pública Conforme apontamos em nota anterior, as memórias públicas de Toledo costumam remeter-se à ―colonização‖, processo entendido como o momento fundante da cidade e região. Tais versões ressaltam em maior proporção a presença dos agricultores gaúchos e catarinenses, descendentes de alemães e italianos que migraram para Toledo para trabalhar no campo, na condição de pequenos e médios proprietários rurais. O processo de ―colonização‖ também é apresentado como algo que se procedeu de forma racional e pacífica, graças a atuação eficiente da MARIPÁ. O Oéste, ainda na década de 1950, colaborava com a construção dessas imagens populacional existente no município e na região, já naquele período. O jornal apresenta, mesmo que topicamente, trabalhadores que não atuavam no campo e nem eram proprietários, de nacionalidade argentina ou paraguaia, além de indígenas. A notícia policial que escolhemos como elemento central desta análise, permite observar um pouco da complexidade dessa sociedade que existia em Toledo na década de 1950. A matéria apresentava um crime cometido contra uma família indígena, em que uma ―menor‖ também foi estuprada: Écos de um crime bestial O municipio de Toledo, nos poucos anos de sua existência com núcleo populoso, surgido miraculosamente em plena selva e, vivendo uma vida trabalho no ensino fundamental, enquanto que Toledo e sua história (SILVA; BRAGNOLLO; MACIEL, 1988), seguramente a obra de maior importância publicada pelo projeto, se constitui ainda hoje em uma referência básica adotada na cidade, em termos de história local. Nele atuaram memorialistas conhecidos na cidade, como Oscar Silva, que assinou alguns dos livros e Ondy Hélio Niederauer, que acompanhou o projeto. 33 Uma discussão sobre o documento histórico e as relações de poder que o cercam podem ser observadas em Jacques Le Goff, ―Documento/Monumento‖ (LE GOFF, 1994). Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 e versões do passado. Todavia, em diversos momentos fica patente a diversidade 70 trepidante de trabalho e progresso, pouco assunto tem fornecido até hoje à cronica policial. Pequenas rusgas, de vez em quando, ou mesmo, de tempos em tempos, algum conflito mais grave, provocado pelo [sic] excitação alcoólica, geralmente nos dias de pagamento, entre os elementos vindos de alémfronteira que aqui chegam em busca de trabalho assalariado, são ocorrências banais que em nada afetam a sociedade toledana. Há alguns dias porém, ou precisamente, no dia 2 do corrente a opinião pública de Toledo foi abalada por um bestial e monstruoso crime cujos protagonistas foram Tomaz Salina, Roberto Espindola, José Rodrigues, Marcelino Alegre, Miguel Benitez e João Tomaz, todos operários vindos de além do Paraná, e a vítima uma infeliz menor, de família indígena, residente no interior do Município. Os criminosos, depois de terem libado nas tabernas e, tendo os seus instintos bestiais e exacerbados pelos vapores do alcool, assaltaram a humilde residencia dos pais da infeliz menina e, depois de espancarem os seus familiares, raptaram-na, levando-a para o mato, satisfazendo a sua sanha de bestas desclassificadas. O fato alarmou, justamente, a população do interior [do município] que, vendo-se ameaçada pelas possiveis repetições, exige ação enérgica das autoridades policiais. Os monstros foram presos, graças a ação pronta e decidida do delegado sr. Arthur Mazzaferro e sargento Aparício Lara, comandante do Destacamento Policial, e remetidos para a cadeia em Fóz do Iguaçú, onde permanecerão aguardando julgamento. (O OÉSTE, 1954, p. 2). Importante observar como a matéria fornece indícios para se entender as memórias que se cristalizaram sobre Toledo, nas décadas seguintes. Logo no início do texto pode-se observar o enredo ufanista, que aponta para a formação do núcleo populacional que surge em meio a ―selva‖, obra edificada com ―trabalho‖, do qual resulta um lugar de ―progresso‖. Esses temas foram insistentemente repetidos nas 1950. Na notícia, essas imagens são evocadas justamente para destacar o clima de tranqüilidade que reinaria no lugar. Os crimes seriam pontuais, praticados por estrangeiros, considerados como elementos externos à sociedade local cujos atos não afetariam o conjunto social. Porém, o espancamento da família indígena seguido do estupro da jovem rompe com tal clima, espalhando temor entre as populações rurais do município de que suas filhas também pudessem ser vítimas de brutal violência. Dialogando com a situação, a matéria tenta tranqüilizar a população, destacando que os criminosos são ―desqualificados‖, que cometeram o crime sob efeito do ―álcool‖ e são vindos de ―além Paraná‖. Portanto, são elementos exógenos e não fazem parte da ―gente ordeira‖ que construía Toledo ―miraculosamente‖ em meio a ―selva‖, na década de 1950. Frisa ainda que os responsáveis pelo crime já haviam sido presos, elogiando a Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 décadas seguintes, principalmente quando se apresenta o local nas décadas de 1940 e 71 rápida ação da polícia. Portanto, sugere que não existiam mais motivos para preocupação, uma vez que não haveria impunidade para o crime. Esse esforço em tranqüilizar os moradores de Toledo, possivelmente estava relacionado ao próprio processo de comercialização de terras e de expansão populacional do lugar, que ocorria fortemente naquele momento. Vale a pena lembrar que a venda de terras em Toledo era o grande negócio empreendido pela MARIPÁ que, depois de um período de crise,34 conseguiu reaquecer as vendas de lotes rurais. Como frisamos anteriormente, essa mesma colonizadora mantinha relações íntimas com o jornal, fornecendo colaboradores para o O Oéste, entre eles Ondy Hélio Niederauer, que se tornou memorialista, fato que fornece novas pistas para entender a repetição de determinadas imagens, no espaço público, sobre a formação de Toledo. A matéria, por sua vez, noticia o crime, pois o fato abalou os moradores e não podia ser ignorado mesmo que se quisesse fazê-lo. Porém, o texto é construído de forma a destacar o acontecido como um fato isolado e que já fora solucionado. Ou seja, evitase construir a idéia de que a violência compunha o cotidiano de Toledo, o que poderia afastar possíveis compradores de terras e investidores. A violência, portanto, ao ser admitida, é tratada como algo extraordinário – como no caso do estupro – ou como atitudes corriqueiras, mas sem grande gravidade, que não afetariam a sociedade como um todo, pois estaria restrita aos trabalhadores na época por pessoas que produziam o jornal, constroem a noção de que atitudes violentas não seriam comuns entre proprietários de terras, que poderiam ser vizinhos dos possíveis novos compradores, mas de pessoas com residência não muito fixa no local. A necessidade de se construir uma imagem positiva do município, a fim de não prejudicar a negociação de terras se torna ainda mais significativa quando percebemos que o principal veículo de comunicação desse período era o rádio. Eventualmente, o jornal poderia não ser tanto um veículo de informação de central importância para a população local, mas um instrumento que servia para comunicar os acontecimentos do lugar em outros espaços, como naqueles onde viviam os possíveis compradores de terras, principalmente no restante do Sul do Brasil, nos quais as notícias de Toledo raramente chegariam de outra forma. Tal fator pode ser reforçado ao observarmos no 34 A idéia de crise nos negócios da MARIPÁ é discutida por Marcelo Grondin, em sua obra sobre a ―colonização‖ de Toledo (GRONDIN, 2007, pp. 216-220). Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 estrangeiros assalariados. Tais elementos, além de indicar uma série de valores nutridos 72 acervo do museu que outro periódico só viria a ser produzido em Toledo em 1967, portanto, doze anos após o fechamento de O Oéste. Portanto, as relações entre as imagens positivadas do lugar com as vendas de terras são importantes para se perceber como foram sendo construídos certos silêncios em torno das tensões e conflitos que pontuaram a história local e seu processo de ―colonização‖.35 Também auxiliam a pensar sobre os silêncios em torno da presença indígena na região e no município, nas memórias públicas existentes sobre o lugar. Apesar de não ser seu propósito, a matéria reproduzida anteriormente, com seu caráter trágico, confere visibilidade a esses sujeitos históricos, demonstrando inclusive o espaço que eles ocupavam nessa sociedade. Ao nosso ver, não é obra do acaso uma família indígena ter sido alvo de crime tão violento e de uma jovem indígena ter sido estuprada de tal forma. Apesar dos criminosos estarem sob ―efeitos do álcool‖, supostamente não tendo planejado muito o crime, é possível conjecturar que o reconhecimento do indígena como ser ―inferior‖ – e não como um ―igual‖ – possa estar na base de tamanha violência. Portanto, o lugar social ocupado por essas populações indígenas, nessa sociedade em transformação, na década de 1950, certamente era de marginalidade. Quanto a notícia, cabe frisar que ela reforça a noção de que pertenciam à ―sociedade toledana‖ apenas pessoas brancas, nacionais, de boa índole, pois seriam valores e preconceitos que povoaram a construção dessa memória. Os demais sujeitos que sinalizavam para a diversidade social e cultural existente no lugar são silenciados ou quando isso não é possível, como no momento retratado pela matéria citada, são tratados como elementos menores, exteriores a sociedade local. Muitas dessas imagens continuaram sendo repetidas nas memórias públicas que se produziram sobre Toledo e sua ―colonização‖. Outras, que se remetiam às tensões, conflitos, e a diversidade social e populacional existentes no lugar, indicadas mesmo que topicamente por matérias como aquela de 1954, foram minimizadas ou esquecidas, pois atrapalhariam a construção da imagem romantizada da fundação do lugar. Tal tendência já estava presente em 1954, pois como se pode observar, a matéria construía toda uma denúncia da violência sofrida pela família indígena, porém, seu texto 35 Uma das poucas referências sobre conflitos de terra no processo de formação de Toledo foi escrita por Pitágoras da Silva Barros e publicada na coluna ―Opinião!‖ do jornal Tribuna D’Oeste. (BARROS, 1977. p. 2). Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 honestos, trabalhadores e proprietários de algum bem, o que demonstra uma série de 73 buscava aliviar a população que era entendida como integrante da sociedade local (pequenos proprietários), indicando que fatos como aqueles não se repetiriam. Elementos ufanistas, que operavam a romantização da ―colonização‖ e do lugar também são observados na matéria, apesar de seu conteúdo, o que permite observar que tais elementos já se faziam presentes naquele momento, possivelmente com o objetivo de facilitar o comércio de terras. As memórias públicas que foram construídas sobre Toledo, operaram a seleção dessas visões mais positivas sobre o local, e trataram de repeti-las constantemente no espaço público. Certamente, entre os critérios que selecionaram O Oéste para integrar o acervo do museu, estava o ufanismo com que se caracterizava o município e a região em suas páginas, até mesmo em situações que colocavam em cheque o caráter pacífico do processo de formação do lugar. Portanto, o jornal oferece elementos para a continuidade das memórias que se cristalizaram no espaço público, embora ofereça outras possibilidades de leitura desse passado, caso o pesquisador queira explorá-las. Dessa forma, essas memórias sustentam determinadas relações de poder que foram construídas historicamente na cidade. Na atualidade, são evocadas para ancorar os projetos dos grupos dominantes locais, que na sua busca por coesão interna ou adesão a seus projetos, remetem-se a um passado idealizado para se apresentar como portadores dos nobres ideais construídos outrora e como continuadores, no presente, da aspectos inglórios daqueles tempos e realimentar sua romantização. Constatamos, portanto, que o uso de memórias e imagens sobre a formação de Toledo, como forma de referenciar e viabilizar projetos (entre eles a ―colonização‖), iniciou-se ainda na década de 1950, sendo realimentado no período seguinte. Esse investimento na construção de elementos simbólicos sobre a formação do lugar, ainda naquela década, pode explicar a centralidade da memória como elemento de referência e disputa por projetos de cidade e região que existe em Toledo, mesmo na atualidade. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARROS, Pitágoras da Silva. Opinião. Tribuna D’Oeste, Toledo, n. 110, ano II, 14 a 21 de dezembro de de 1977. FENELON, Déa Ribeiro (rog.) Cidades. São Paulo: Olho dágua, 2000. FENELON, Déa Ribeiro; MACIEL, Laura Antunes; ALMEIDA, Paulo Roberto de; KHOURY, Yara Aun. (orgs.). Muitas memórias, outras histórias. São Paulo: Olho d‘Água, 2004. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 obra de ―progresso‖, iniciada no passado. Nesse caso, é importante silenciar sobre os 74 MACIEL, Laura Antunes; ALMEIDA, Paulo Roberto de; KHOURY, Yara Aun. (orgs.). Outras histórias: memórias e linguagens. São Paulo: Olho d‘Água, 2006. LE GOFF, Jacques. Documento/Monumento. In: História e Memória. São Paulo: Ed. UNICAMP, 1994. pp. 535-549. CRUZ, Heloisa de Faria. São Paulo em papel e tinta: periodismo e vida urbana – 1890-1915. São Paulo: Educ; FAPESP; Arquivo do Estado de São Paulo; Imprensa Oficial SP, 2000. GRONDIN, Marcelo. O alvorecer de Toledo: Na colonização do Oeste do Paraná (19461949). Marechal Cândido Rondon: Germânica, 2007. pp. 216-220. GRUPO MEMÓRIA POPULAR. ―Memória popular: teoria, política, método‖. In: FENELON, Déa Ribeiro; MACIEL, Laura Antunes; ALMEIDA, Paulo Roberto de; KHOURY, Yara Aun. (orgs.). Muitas memórias, outras histórias. São Paulo: Olho d‘Água, 2004. pp. 282-295. MACIEL, Laura Antunes. ―Produzindo notícias e histórias: algumas questões em torno da relação telégrafo e imprensa – 1880/1920. In: FENELON, Déa Ribeiro; MACIEL, Laura Antunes; ALMEIDA, Paulo Roberto de; KHOURY, Yara Aun. (orgs.). Muitas memórias, outras histórias. São Paulo: Olho d‘Água, 2004. pp. 14-40. MACIEL, Laura Antunes. De ―o povo não sabe ler‖ a uma história dos trabalhadores da palavra. In: MACIEL, Laura Antunes; ALMEIDA, Paulo Roberto de; KHOURY, Yara Aun. (orgs.). Outras histórias: memórias e linguagens. São Paulo: Olho d‘Água, 2006. pp. 273-298. O Oéste, Toledo, n. 1, ano I, 6 de janeiro de 1953. O Oéste, Toledo, n. 16, ano I, 24 de janeiro de 1954. O Oéste, Toledo, n. 48, ano II, 6 de março de 1955. O Oéste, Toledo, n. 73, ano III, 25 de dezembro de 1955. PREFEITURA MUNICIPAL DE TOLEDO. Lei n. 844/76 de 29 de setembro de 1976. Toledo, 1976. SILVA, Oscar; BRAGAGNOLLO, Rubens; MACIEL, Clori Fernandes. Toledo e sua história. Toledo: Prefeitura Municipal de Toledo, 1988. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 PREFEITURA MUNICIPAL DE TOLEDO. Lei n. 834/76 de 23 de agosto de 1976. Toledo, 1976. 75 INVENTÁRIO E CATALOGAÇÃO DE ACERVO PAROQUIAL E FORENSE NA CIDADE DE MONTE ALEGRE DE MINAS Fabiana Conceição de Moura Gonçalves Rodrigues Acadêmica do Curso de História - FACIP-UFU Dra. Dalva Maria de Oliveira Silva Orientadora – FACIP-UFU Introdução O historiador Marc Bloch, em seu precioso ―manual‖ sobre o ofício de historiador, expõe sobre as dificuldades encontradas para se reunir os documentos necessários à execução de um projeto de pesquisa: A despeito do que às vezes parecem imaginar os iniciantes, os documentos não surgem, aqui ou ali, por efeito [de não se sabe] qual misterioso decreto dos deuses. Sua presença ou ausência em tais arquivos, em tal biblioteca, em tal solo deriva de causas humanas que não escapam de modo algum à análise, e os problemas que sua transmissão coloca, longe de terem apenas o alcance de exercícios de técnicos, tocam eles mesmos no mais íntimo da vida do passado, pois o que se encontra assim posto em jogo é nada menos do que a passagem da lembrança através das gerações. (BLOCH, 2001: 83) Inventariar, catalogar e reunir documentos constitui em um dos objetivos do Projeto ―Memória, História e Cidadania: os sujeitos sociais e históricos e as suas relações nas e com as cidades no Pontal do Triângulo Mineiro‖ em execução desde o autorização para o acesso aos seus arquivos visando inventariar e catalogar os acervos ali reunidos. Esta ação pode se apresentar longa e difícil dependendo das condições de conservação e organização em que se encontram os documentos. Trata-se de trabalho minucioso que exige paciência e dedicação de infindáveis horas, dependendo da vastidão do acesso. Cada documento ou série deve ser fichado com as informações necessárias à sua identificação e conteúdo. Após a realização do inventário dos acervos das instituições, constitui também, objetivo do referido Projeto a confecção de um guia com a relação de documentos existentes nesses arquivos, visando orientar os pesquisadores e a comunidade em geral sobre a existência, localização e estado de conservação de documentos, importantes para a preservação da memória e imprescindíveis à produção do conhecimento histórico sobre a história regional e local. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 ano de 2009. A tarefa se inicia com o contato com as instituições e a busca de 76 Memória, patrimônio e cidadania: reflexões e experiências O trabalho realizado na cidade de Monte Alegre de Minas conseguiu, nesta primeira etapa, inventariar o acervo da Paróquia São Francisco das Chagas, composto inicialmente de livros de registro de batismos, de casamentos, de crismas, de missas e livro de atas de reuniões da referida paróquia, bem como das Capelas da Prata e dos Garcias. Constam ainda deste acervo os Livros caixa e Livro de Termo de posse da sede da paróquia, sendo este último datado do ano de 1918. Inventariou-se, também o acervo do Fórum de Monte Alegre de Minas composto de Livros de audiências, Livros de carga e descarga de juizes e advogados, Livros dos cartórios de 1º e 2º ofício, Livros de Registro de sentenças cíveis e criminais e Livro do Tombo e Feitos, documentos que datam dos séculos XIX e XX. A importância de tais inventários e identificação dos acervos presentes nessas instituições está em consonância com um dos objetivos a serem alcançados pelo Projeto, que é contribuir com a preservação da memória e patrimônio histórico documental da região, suscitando a discussão sobre a importância da preservação da documentação produzida pelo expediente das instituições públicas, privadas e religiosas que prestam serviço à comunidade, bem como da documentação que é acumulada pelas famílias ao longo de suas existências. Promover a difusão de uma mentalidade preservacionista em desenvolvimento tecnológico capitalista, significa despertar a sociedade para a importância da memória para a conquista da cidadania plena e ativa dos sujeitos históricos. Esta tarefa apresenta-se imprescindível, principalmente na região do Pontal do Triângulo Mineiro, onde a comunidade, carente desta discussão e, portanto não consciente de sua importância, ainda não se mobilizou para reivindicar do poder público a criação de arquivos para guarda e disponibilização de documentos de domínio público. É diante desta realidade que o Curso de História do Campus Pontal da Universidade Federal de Uberlândia, com sede em Ituiutaba, se mobilizou para projetar e colocar em prática a criação do Centro de Pesquisa, Documentação e Memória do Pontal, a ser instalado no Campus Tupã, visando atender à demanda de reunir a documentação que se encontra dispersa e, portanto muitas vezes inacessível ao público, para promover a sua preservação e disponibilização aos alunos da Universidade, pesquisadores e comunidade. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 uma sociedade envolta pelo efêmero e conduzida pela aceleração imposta pelo 77 Situando esta ação dentro do contexto dos objetivos do referido projeto, faz-se necessário refletir sobre alguns conceitos referentes à guarda da memória e ao direito ao passado a partir da contribuição de Maria Célia Paoli e Almeida, M. A: A memória como um direito não se esboçou em claro discurso sobre a exclusão e a identidade, mas numa reflexão conjunta de sujeitos históricos envolvidos com o trabalho reflexivo com a memória. Para estes, o sentido cultural e político de seu trabalho reconduz ambas, a memória e a história, para além dos limites já conhecidos e já esperados. Isto abriu um desafio absolutamente novo para o historiador, cientista social ou agente cultural, pois seu trabalho passou a ser realizado numa condição dialógica e não mais puramente informativa e interpretante. (p.186) A preocupação em preservar não somente a memória oficial36, mas também as várias memórias históricas dos sujeitos ―comuns‖ se faz urgente, pois se considera que não somente a falta de fontes documentais escritas, impressas e iconográficas, mas também orais, tem se colocado como um importante desafio a ser enfrentado para a construção e preservação da memória popular. Tendo em vista tais faltas, a preservação, organização, catalogação e inventário se faz necessária e urgente. No intuito de melhor alcançar esses objetivos faz-se necessário recuperar outras tradições e memórias, a escrita de outras histórias a partir de novas temáticas e perspectivas de pesquisa, construindo assim, novos olhares e contribuindo para o debate sobre novas formas de relações sociais em todas as instancias. A produção de entrevistas com pessoas da cidade de Monte Alegre de Minas faz o registro de memórias individuais e coletivas sobre o viver na cidade, visando a sua guarda e a preservação de memórias da cidade segundo diferentes pontos de vista. As gravações e transcrições dessas entrevistas constituirão acervo do futuro Centro de Pesquisa, Documentação e Memória e serão disponibilizadas, futuramente, a pesquisadores, memorialistas e estudantes que delas necessitarem para a realização de suas atividades de pesquisa. Há que se pontuar, sem a pretensão de reproduzi-la na totalidade, a existência de ampla discussão e sobre o necessário diálogo, no âmbito da pesquisa histórica, entre a Memória e a História: 36 Entende-se aqui como memória oficial, uma política de preservação que, via de regra, propõe-se a preservar apenas documentos/testemunhos de grupos em torno do poder, seja no campo político ou econômico. Como destaca PAOLI, pouco importando que nesses não tenha restado nem um traço das servidões e dos conflitos neles inscritos. Afastando-se, assim, o sentido da história como memória social, apostando-se que não há memória popular e/ou alternativa à do poder que seja suficientemente valiosa (ou documentada) para merecer ser recriada. PAOLI, Maria Célia. Memória, História e cidadania: direito ao passado. In: SÃO PAULO. Secretaria Municipal de Cultura. DPH. O Direito à Memória: patrimônio histórico e cidadania. São Paulo: Departamento do Patrimônio Histórico, 1992. p.25-28 Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 parte de uma das etapas do projeto Memória, História e Cidadania, e têm como intuito a 78 A primeira é essencialmente mítica, deformada, anacrônica, mas constitui o vivido desta relação nunca acabada entre o presente e o passado. É desejável que a informação histórica, fornecida pelos historiadores de ofício, vulgarizada pela escola (ou pelo menos deveria sê-lo) e os mass media, corrija esta história tradicional falseada. A história deve esclarecer a memória e ajudá-la a retificar os seus erros. (LE GOFF, 1992, p. 29). Para o autor, portanto, há dois tipos de histórias: ―a da memória coletiva e a dos historiadores‖. Considerando a vulnerabilidade da memória, cabe ao historiador, comprometido com a verdade histórica, estar atento às informações dadas pela memória, a fim de esclarecê-la e corrigi-la de seus possíveis erros. Tendo em vista que o tempo transforma a memória coletiva, na sua essência seletiva, alguns acontecimentos são esquecidos e suprimidos por não serem considerados importantes para aqueles que os vivenciaram ou, ainda, manipulados e sujeitos a interpretações várias: A memória é a vida, sempre guardada pelos grupos vivos e em seu nome, ela está em evolução permanente, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento, inconsciente de suas deformações sucessivas, vulnerável a todas as utilizações e manipulações, suscetível de longas latências e de súbitas revitalizações. (NORA apud DE DECCA, 1992, p. 130). Os arquivos inventariados por este projeto constituem-se em registros produzidos no fazer cotidiano de personagens da história vivida, durante o processo de ocupação desta região ao longo do século XIX e da consolidação da cidade no início e decorrer do século XX. Portanto, é inegável a sua importância posto que detentores de viver nesta região. Levando em conta que a mesma, devido à inexistência de políticas de preservação, incorre em risco de deterioração e desaparecimento total e parcial, torna-se urgente a implementação da Lei nº 8.159, de janeiro de 1991, que rege sobre a preservação e guarda de arquivos públicos ou privados e que em seu Artigo 1º determina que ―É dever do Poder Público a gestão documental e a de proteção especial a documentos de arquivos, como instrumento de apoio à administração, à cultura, ao desenvolvimento científico e como elementos de prova e informação‖. (Diário Oficial da União, de 09 janeiro de 1991). Além da questão exposta acima é, também, fundamental reconhecer que a documentação existente nos arquivo das instituições, como atualmente pode-se encontrá-los, via de regra são o resultado de opções de guarda que testemunham a Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 uma documentação imprescindível ao conhecimento e à compreensão da dinâmica do 79 trajetória da própria instituição no processo de organização e arquivamento37 desse acervo: A constituição de conjuntos documentais implica, necessariamente, processos seletivos: não se guarda ―tudo‖. (...) O que ―resta‖ em um arquivo, resulta diretamente de pessoas que definem, em diferentes momentos, certos materiais – e não outros – como coisas ―que vale a pena guardar‖. Isso obedece a uma lógica de acumulação, nem sempre consensual entre os responsáveis pelo arquivo: por que guardar isso e não aquilo? E mais: onde guardar? E em que ordem? (CASTRO, 2005, 36) O acesso aos arquivos, às informações, considerando-se as questões da proteção, da privacidade e do grau de generalidade da lei, tem permitido que o trabalho venha sendo realizado em Monte Alegre de Minas e demais cidades do Pontal do Triângulo Mineiro. A Lei de Arquivos representou um enorme avanço no preenchimento a lacunas existentes neste setor no país a partir de 1990, particularmente, à constituição de um corpo de leis regulamentando a gestão, preservação e o acesso aos arquivos públicos e privados. Cabe aqui ressaltar que, por mais abertura que tais leis e decretos viabilizam, muito ainda tem que se avançar, pois, talvez por desconhecimento, descaso ou ainda propositalmente o acesso a documentos considerados de domínio público fica restrito à livre vontade dos dirigentes e, no caso de arquivos privados, continua dependendo da vontade de seus proprietários. É importante salientar que ao pesquisador cabe compreender e respeitar as leis e decretos que regem sobre o legitimo sigilo e proteção em relação às informações que o acesso se amplie, possibilitando e viabilizando que a guarda e o direito a memória seja realmente efetivado. No que se refere ao acervo da Paróquia foram catalogados 56 livros e uma pasta contendo assentamentos de batismos de um acervo declarado como desaparecido, que foram transcritos pelo Pároco José Magalhães. Entretanto é importante registrar que o trabalho realizado na Paróquia São Francisco das Chagas, de certa forma, deixa lacunas, pois segundo informações levantadas não se sabe a localização de uma documentação que data de 1815, que versa sobre a fundação da Matriz. Não tivemos acesso a Livros Tombo e a um livro de Crônicas, cuja existência é declarada, mas que não foram disponibilizados para inventário e catalogação, pois não 37 Entende-se por arquivamento a guarda documentos no local estabelecido, de acordo com a classificação dada. Manual de gestão de documentos do Estado do Paraná. / Departamento Estadual de Arquivo Público. – 2. ed. rev. e ampl. – Curitiba : O Arquivo, 1998. vii, 72 p. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 constantes dos documentos, mas também ressaltar que muito se precisa avançar para 80 se sabe a localização dos mesmos. Em prol da efetiva catalogação38 e considerando a importância social e histórica desses documentos, continuaremos insistindo junto aos dirigentes da paróquia na localização dos mesmos. Em relação às experiências adquiridas no trabalho realizado junto ao arquivo do Fórum é importante salientar as dificuldades encontradas durante a catalogação dos documentos em função do desconhecimento de termos jurídicos, necessários à efetiva compreensão do significado e valor dos mesmos. Entretanto o encarregado do arquivo se disponibilizou a orientar, tornando o trabalho possível e ainda mais prazeroso devido ao conhecimento adquirido. Outra dificuldade se deu devido ao fato de o arquivo ter mudado de endereço recentemente e ainda estar em fase de organização no novo prédio. Os livros encontravam-se empilhados no chão e o trabalho foi para além da simples catalogação, mas também de limpeza e organização provisória em armários de aço. Foram catalogados 154 Livros contendo documentos dos cartórios de 1º e 2º ofício até o ano de 1990 quando os cartórios foram desmembrados da Comarca. Temos ainda a descrição de 349 caixas arquivo contendo documentos de inventário e ações cíveis dos respectivos cartórios que ainda não foram catalogados. É importante salientar que mesmo estando em fase de organização e adaptação ao novo prédio, os documentos estão acondicionados em caixas arquivo devidamente organizadas e numeradas. A digitalização do acervo, em ambas as instituições, não foi Centro de Documentação. Sendo que os mesmos serão apenas listados em guia de fontes parcial, a ser confeccionado pelo Projeto, a fim de informar aos pesquisadores e à comunidade sobre os tipos de documentação existente nestas instituições. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BLOCH, Marc. Apologia da História ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. BRASIL. Lei nº 8.159, de 08 de janeiro de 1991. Dispõe sobre a política nacional de arquivos públicos e privados e dá outras providências. Diário Oficial da União. 28 de janeiro de 1991. 38 Entende-se por catalogação: catalogar um objeto significa descrevê-lo por meio de seus diferentes aspectos e características. O objetivo da catalogação é fornecer uma representação do objeto, permitindo identificá-lo, representá-lo e localizá-lo. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 autorizada o que inviabiliza a futura disponibilização desses acervos para pesquisas no 81 CASTRO, Celso. A trajetória de um arquivo histórico: reflexões a partir da documentação do Conselho de Fiscalização das Expedições Artísticas e Científicas no Brasil. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n.36, jul-dez de 2005, p.33-42. CHAUÍ, Marilena. Política Cultural, Cultura Política e Patrimônio Histórico. In: SÃO PAULO. Secretaria Municipal de Cultura. Departamento do Patrimônio Histórico. O Direito à Memória: patrimônio Histórico e Cidadania. São Paulo: DPH, 1992. p. 37-46. LE GOFF, Jacques. História e Memória. 2ªed. Campinas: Editora da UNICAMP, 1992. MEYER, Eugenia. O fim da memória. Estudos históricos, Rio de Janeiro, vol. 22, nº43, janeiro-junho de 2009, p. 31-44. NORA, Pierre (org). ―Les lieux de mémoire‖. Paris: Gallimard, 1984. p. XIX-XX. apud DE DECCA, Edgar Salvadori. Memória e Cidadania. In: SÃO PAULO. Secretaria Municipal de Cultura. Departamento do Patrimônio Histórico. O direito à memória: patrimônio histórico e cidadania. São Paulo: DPH, 1992. p. 129-136. PAOLI, M. C., ALMEIDA, M. A. Memória, Cidadania, Cultura Popular. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, n.24, 1996, p.185-193. PAOLI, Maria Célia. Memória, História e cidadania: direito ao passado. In: SÃO PAULO. Secretaria Municipal de Cultura. DPH. O Direito à Memória: patrimônio histórico e cidadania. São Paulo: Departamento do Patrimônio Histórico, 1992. p.25-28. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 PARANÁ. Manual de gestão de documentos do Estado do Paraná. Departamento Estadual de Arquivo Público. 2. ed. rev. e ampl. Curitiba: O Arquivo, 1998. 82 LEVANTAMENTO DOS BENS CULTURAIS DE ITUIUTABA- MG Filipi Silva Limonta Universidade Federal de Uberlândia – FACIP, Curso de História [email protected] Dr. Cairo Mohamad Ibrahim Katrib Universidade Federal de Uberlândia – FACIP, Curso de História [email protected] O município de Ituiutaba encontra-se localizado no estado de Minas Gerais, na região do Triângulo Mineiro e limita-se com os municípios de Gurinhatã, Ipiaçú, Capinópolis, Canápolis, Santa Vitória, Monte Alegre de Minas, Prata, Campina Verde e com o estado de Goiás. Sua economia esta baseada na indústria, comércio e agricultura. Entre as décadas de 1950 a 1960 foi a região do Pontal do Triângulo que mais se desenvolveu economicamente, pelo seu vigor agrícola, e, com isso, sua vida cultural tornou-se expressiva nessa época. Mesmo diante do processo de estagnação econômica vivenciada, Ituiutaba nos anos de 1980 e 1990 continuou sendo importante cidade produtora de cultura, entretanto, elegeu como patrimônio cultural alguns bens materiais representativos de uma sociedade da época, enquanto muito das suas riquezas culturais esquecidas ou pouco valorizadas pelos setores culturais. Ressalto que o Patrimônio Cultural de Ituiutaba mesmo sendo protegido pela Lei Orgânica Municipal nos seus artigos 112, 113, 114 e 123 e pela Lei Municipal nº 3806 de 27 de junho de 2006, e tendo como gestora, na cidade, a Fundação Cultural de Ituiutaba auxiliada pelo Conselho Municipal do Patrimônio Cultural, pouco se tem feito em termos de políticas públicas para manutenção e conservação dos bens culturais do município. Ela reconhece apenas os seguintes bens culturais já tombados e protegidos no município de Ituiutaba: Panelas Indígenas; Selaria do Capitão; Parque do Goiabal; Ponte Raul Soares; Praça Cônego Ângelo; Escola Estadual João Pinheiro; MUSAI (Museu Antropológico de Ituiutaba). A maioria desses bens encontram-se em estado de abandono, salvo algumas exceções como é o caso do Colégio Estadual João Pinheiro e a Praça Cônego Ângelo. Portanto, esse resumo baseia-se no projeto que desenvolvo, o qual tem por finalidade o levantamento, o mapeamento, a catalogação e o estudo do significado dos Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 rurais e urbanas não foram privilegiadas pelo poder público local, tornando-se 83 bens culturais de Ituiutaba sejam eles os que compõem a memória oficial da cidade, como também àqueles que ainda se encontram restritos a determinados grupos sociais ancorados as práticas populares recriados através das manifestações da cultura popular como o Congado, a Folia de Reis, a Catira, as manifestações festivo-devocionais; os saberes na forma de benzeções, uso das plantas na medicina popular, causos e muitas outras expressões que povoam o imaginário local. Esse contexto de bens faz parte do patrimônio municipal. Entendo Patrimônio como sendo o conjunto de valores ou objetos, seja ele material ou imaterial, com pleno significado e importância para um grupo de pessoas. Nesse contexto, o patrimônio cultural de certa sociedade, está atribuído a sua cultura, o qual é um produto coletivo formado pelo conjunto das realizações de uma sociedade. Os bens materiais e imateriais que compreendem o patrimônio cultural são considerados "manifestações ou testemunho significativo da cultura humana", reputados como imprescindíveis para a conformação da identidade cultural de um povo (ZARINATO & RIBEIRO, 2006). Valorizá-los torna-se necessário, visto que significa a possibilidade de mantermos a cultura de um dado lugar ou grupo entrelaçada ao social, fazendo dos sujeitos que compõem esses espaços, cidadãos participativos, e dinâmicos. Nesse sentido, recriadores da sua própria identidade. Conservar os bens culturais é conservar nossa identidade e valores com os quais nos reconhecemos (MOLINARI et al. 2001). cultura do grosso da população, quer isto dizer que é aquela que diz respeito à imensa maioria numérica da coletividade estudada; Podem, evidentemente, fazer subdivisões dentro de tal maioria e distinguir, por exemplo, classes sociais, grupos rurais e urbanos, etc., mas não é isto o essencial: a cultura material, cultura do coletivo, contrapõe-se, sobretudo a individualidade (BUCAILLE; PESEZ, 1989, p. 13). Segundo as normatizações do IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional -, são considerados patrimônio os bens pertencentes a uma pessoa, a uma família ou a uma comunidade. Patrimônio é sinônimo de riqueza desde que entendida como expressão de uma tradição, de uma identidade cultural, das crenças e valores cultivados coletivamente. Nessa lógica, a Cultura se faz e se refaz na ação interação dos sujeitos sociais com seus costumes, com sua tradição. Está relacionado às artes de fazer de uma dada comunidade. A cultura se reinventa constantemente e se insere num processo histórico em transformação. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 No que tange a cultura material, ela pode ser definida antes de mais como a 84 Por outro lado, a Cultura se delineia, no universo das pessoas comuns, expressa suas maneiras de crer, fazer e saber, muitas vezes não valorizadas dentro do conjunto dos bens culturais de uma dada sociedade. Ela manifesta-se quase sempre de forma oral, é transmitida com a tradição ou como herança numa comunidade na qual tal ação faz sentido. Dessa forma, a memória acaba sendo uma das formas de guarda das práticas e saberes de muitas manifestações que compõem a cultura de um determinado grupo social. A história cultural das cidades se (re) fazem, então, no ir e vir das muitas memórias, principalmente daqueles que revivem a cidade, que dão novos contornos a ela, pois: A cidade vive sem a lembrança de informações históricas, mas com a memória que tem a força do mito como chave de leitura do passado. Entre memória e história é que o acontecimento é verdadeiramente constituídoentre o discurso afetivo da memória e o discurso crítico da história (KNAUSS, 2007, p.47). Entretanto, o município de Ituiutaba e sua cidade, têm diversos patrimônios para serem levantados, principalmente pela sua riqueza cultural de saberes, sabores e fazeres pouco reconhecidos e valorizados pela população local. Essa proposta de pesquisa centra-se no fato de como compreendemos a preservação cultural. Conforme indicativos do IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, toda ação empreendida no sentido de proteger e, ações planejadas; deve incluir alguns métodos, tais como: classificação, identificação, conservação, proteção, restauração, renovação, manutenção e revitalização. A falta de conhecimento sobre o que é patrimônio, como preservá-lo é, talvez, uma das maiores dificuldades encontradas no processo de proteção ao patrimônio cultural, porque não basta apenas tombar um bem; é preciso mantê-lo e conservá-lo. A valorização do que é constitutivo da bagagem cultural local, seja por meio dos bens edificados ou dos saberes e práticas herdados, vão além do simples estimular e despertar o sentimento de pertencimento cultural nos grupos sociais. Portanto, o levantamento de bens culturais como objetos significativos da cultura material, dos saberes e práticas da cultura imaterial, torna-se essenciais para se pensar a dinâmica cultural de uma cidade como Ituiutaba, uma vez que o levantamento e o mapeamento funcionarão como mecanismos importantes para se reivindicar ações contínuas de Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 portanto, impedir a degradação do bem cultural de uma comunidade deve se pautar em 85 preservação, de manutenção e socialização da cultura e da memória coletiva da cidade de Ituiutaba. Pensamos o Patrimônio cultural em Ituiutaba como um conjunto de todas as demonstrações e manifestações culturais. Assim, o mapear, o analisar e o difundir a importância dos bens culturais no contexto dessa pesquisa, ajuda-nos a repensar as possibilidades que a guarda da memória exerce nesse contexto, principalmente através do mapeamento e/ou catalogação de documentos ainda não conservados nos arquivos locais, de bens antigos, casas, prédios, monumentos, objetos, hábitos alimentares, vestimentas, modos de vida, fazeres e saberes manuais, artesanias, crenças, dentre outras tradições que constituem e constroem a identidade cultural local. O patrimônio é considerado um dos campos instituidores da memória (RODRIGUES, 1996, p.175). Essa proposta de pesquisa centra-se no fato de como compreendemos a preservação cultural. Preservar é toda ação empreendida no sentido de proteger e, portanto, impedir a degradação do bem cultural de uma comunidade. Esse processo deve incluir alguns métodos, tais como: classificação, identificação, conservação, proteção, restauração, renovação, manutenção e revitalização. A falta de conhecimento sobre o que é patrimônio, como preservá-lo é, talvez, uma das maiores dificuldades encontradas no processo que busca resgatar e proteger o patrimônio cultural. Buscamos nessa pesquisa levantar e identificar os bens culturais de Ituiutaba, para os diferentes grupos sociais. Procuraremos desenvolver nossas reflexões pautadas no que reza as diretrizes do IPHAN- Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional nos respaldando na dinâmica da História Oral por compreender que ela propicia ao pesquisador, enquanto procedimento metodológico, a possibilidade de buscar nas fontes e documentos alternativos possibilidades de reflexão e caminhos de análise diferentes daqueles que, muitas vezes incorporamos como únicos e insubstituíveis como é o caso dos registros oficiais vistos como fonte única de manutenção de uma história tida como verdade ou no caso do patrimônio tratá-lo como tal apenas se referendado pelos grupos sociais de maior expressão cultural na sociedade. Desse ponto de vista: Registrar, através de narrativas induzidas e estimuladas, testemunhos, versões, interpretações sobre a História em suas múltiplas dimensões, sejam elas factuais, temporais, espaciais, conflituosas, consensuais‖ estamos Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 além de mapear os bens da cultura material e imaterial da cidade mais significativos 86 redimensionando o nosso olhar sobre o Patrimônio Cultural, procurando entender cada uma dessas formas de registro das histórias de vida, sejam elas individuais ou coletivas como mediadores da sustentabilidade do trabalho do historiador, rumo ao entendimento da história pelo viés da verossimilhança e não da verdade sedimentada em registros tidos como inquestionáveis. (DELGADO, 2006, p.15). E, com isso, sustentamos nossa metodologia ainda na identificação dos saberes e fazeres constitutivos da cultura dos diversos grupos sociais na área da pesquisa Segundo Michael Pollack, ―ao privilegiar a analise dos excluídos, dos marginalizados e das minorias, a história oral ressaltou a importância de memórias subterrâneas que, como parte integrante das culturas minoritárias e dominadas, se opõem à "Memória oficial", no caso a memória nacional‖39. Então, seguindo a esta abordagem podemos compreender que trabalhar com a história oral nos permitem e nos levam a ouvirmos ―memórias silenciadas‖, onde na maioria das vezes estão escondidos pela memória oficial, nesse sentido vamos ter uma base do que é realmente significativo para a população. Enfim, ―a história oral é uma metodologia de pesquisa que consiste em realizar entrevistas induzidas, estimuladas e gravadas, com pessoas que podem testemunhar sobre acontecimentos, conjunturas, instituições, modo de vida ou outros aspectos da história contemporânea.‖ 40 DELGADO, Lucila de Almeida Neves. História oral: memória, tempo, identidades. Belo Horizonte: autêntica, 2006. 136p. DIRETORIA de Promoção Gerência de Cooperação Municipal. Pontuação definitiva ICMS Patrimônio Cultural Exercício 2009. IEPHAN. 2009. Disponível em: http://www.iepha.mg.gov.br/component/docman/cat_view/23-legislacao/40-pontuacaofinalicms. Acesso em: 20 de fevereiro de 2010. INSTITUTO do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Disponível em:< http://portal.iphan.gov.br/portal/montarPaginaInicial. do>. Acesso em: 8 outubro. 2009 GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1987. KNAUSS, Paulo: a cidade como sentimento: história e memória de um acontecimento na sociedade contemporânea – o incêndio do Gran Circus Norte-Americano em Niterói, 1961. In: REVISTA BRASILEIRA DE HISTÓRIA, n° 53. São Paulo: ANPHU, 2007. 39 POLLACK, Michael. Memória, Esquecimento, Silêncio Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol.2, n. 3, 1989, p. 3-15. 40 Ibdem 3. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 87 LE GOFF, Jacques. História e Memória. 5 edição. Campinas, SP: UNICAMP, 2003. MOLINARI, R., FERRARO, L., PARADELA, H., CASTAÑO, A. E CARCHOTCHE, S. 2001 Odisea del Manejo: Conservación del Patrimonio Arqueológico y Perspectiva Holística. 2do Congreso Virtual de Antropología y Arqueología. 2000. http://www.naya.org.ar/congreso2000/ponencias/Roberto_Molinari2.htm 20/11/2009) (Acesso em: NORA, Pierre. Entre Memória e História: A Problemática dos lugares, in: PROJETO HISTÓRIA: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da PUC-SP, São Paulo, SP, 1981. PESAVENTO, Sandra J. Memória, História e Cidade: Lugares no tempo, momentos no espaço. In: ARTCULTURA. Uberlândia - MG. Vol. 4, n°4. P. 23-25, jun/2002 POLLAK, Michael. Memória, Esquecimento, Silêncio. In: ESTUDOS HISTÓRICOS, CPDOC, Rio de Janeiro, Vol. 2, n°3. 1989, p.3-15 RODRIGUES, Marli. ―Por que vocês querem conservar o Patrimônio?‖ REVISTA HISTÓRIA, São Paulo, 15. 1996, p.161-174. ZANIRATO, H. S., RIBEIRO, W. C. Patrimônio cultural: a percepção da natureza como um bem não renovável. Revista Brasilera de Historia, São Pulo, v. 26, n. 51, Junho, 2006. HALL, Stuart. A identidade cultural na Pós-Modernidade. Rio de Janeiro, DP&A Editora, 1997 Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 ______. Representation : Cultural Representations and Signifying Practices. London: SAGE Publications, 2003. 400p. apud MORPHEUS. Ano 3, n° 07, 2005 . Disponível em <http://www.unirio.br/morpheusonline/numero07-2005/apresentacao.htm> Acesso em: 28 de agosto de 2007). 88 POLÍTICAS PÚBLICAS E RELAÇÕES PRIVADAS COM O TOMBAMENTO EM ITUIUTABA Leonardo Silva Oliveira Aluno de graduação da UFU/FACIP – Campus Pontal Luana Regina Mendes Aluna de graduação da UFU/FACIP – Campus Pontal Quando a mudança social altera ou transforma a sociedade para além de um certo ponto, o passado deve cessar de ser o padrão do presente, e pode no máximo, tornar-se modelo para o mesmo. (HOBSBAWM, p. 25, 1998) A memória, seja como história da sociedade, seja como crônica das classes sociais e de seus homens ilustres, tem o papel de nos liberar do passado como fantasma, como fardo, como assombração e como repetição. (CHAUÍ, p. 43, 1992) Introdução A nossa pesquisa parte de uma inquietação que se deu no ingresso à universidade, a partir do momento que passamos a discutir sobre tombamento, através de dois trabalhos sobre Patrimônio histórico em Ituiutaba na disciplina ―Patrimônios, memórias e histórias‖, utilizamos informações retiradas do trabalho e aprofundamos O nosso objetivo é mostrar as leis que regem o Patrimônio Histórico na cidade de Ituiutaba, a sua aplicação na prática e o conflito que isso gera entre os moradores. Daí analisaremos brevemente à primeira década onde foi decretada a lei estadual do ICSM cultural que incentivou Ituiutaba a ter uma política de preservação do patrimônio histórico e, consequentemente, tombar alguns bens materiais e registrar outros imateriais, como a congada. Para discutirmos patrimônio, devemos definir este conceito. De um modo geral são conjuntos de objetos de uma relevância histórica para um determinado grupo como uma forma de pluralidade. Ele mostra o passado como dimensões múltiplas da cultura, como uma forma de manter o passado vivo através de objetos que merecem ser preservados, isso pelo grande número de pessoas que se identificam com determinado bem41 41 PAOLI, Maria Célia. Memória, história e cidadania: o direito ao passado. In. O direito à memória: patrimônio histórico e cidadania. São Paulo: DPH, 1992, p. 25-28. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 mais um pouco. 89 Para o desenvolvimento dessa pesquisa iremos utilizar bibliografias que de alguma forma discuta essa relação com o patrimônio histórico e sua preservação, como Paoli (1992), Chauí (1992), e com o conceito de ―lugar de memória‖ de Pierre Nora (1981). Através destes conceitos, vamos analisar neste ensaio o Patrimônio histórico em Ituiutaba, através do âmbito social em que convivemos e de nossas análises pessoais, junto com as informações que nos foram dadas quando visitamos a fundação cultural no início do ano para a realização do trabalho da disciplina ―Patrimônios, memórias e histórias‖. usando o conceito de Nora acerca dos bens tombados como ―Lugares de memória‖, como sendo uma forma de materializar o passado através de objetos, mesmo que em sua obra ele trate da França. Se partirmos para uma caminhada no centro da cidade de Ituiutaba, vamos nos deparar com uma ausência do passado, encontraremos lojas que escondem suas fachadas antigas e casas antigas em ruínas ou sendo modernizadas. Este problema, em partes, se dá pela questão imobiliária. Todavia, isso não impede a existência de bens tombados como Patrimônio Histórico da cidade, como a Ponte Raul Soares, Praça Cônego Ângelo, Parque do Goiabal, Selaria do capitão, Escola Estadual João Pinheiro e MUSAI (Museu Antropológico de Ituiutaba). O patrimônio tem como principal função a valorização da pluralidade cultural da cidade, mas o que se pode notar é uma perda, uma desvalorização da cultura histórica de Ituiutaba. Pode-se dizer até um esquecimento por parte da população e do poder público, mesmo que quatro artigos da lei orgânica municipal estabeleçam normas de preservação e difusão do patrimônio histórico-cultural no município. São estes os artigos: Art. 112 - O Município garantirá a todos pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura municipal a apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais (CF-215). Parágrafo único - O Município protegerá as manifestações das culturas populares. Art. 113: Constituem patrimônio cultural brasileiro, para o qual o Município, em sua área de competência, dirigirá ação de incentivo, apoio e assistência, os bens de natureza natural e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade nacional. nos quais se incluem (CF-216): (...) V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, rqueológico, paleontológico, ecológico e científico. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 O patrimônio visto a partir da lei 90 § 1° - O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, além de outras formas de acautelamento e preservação. § 2° - Cabem à Administração Pública, na forma da lei, a gestão da documentação governamental e as providências para franquear sua consulta e a quantos dela necessitem. § 3° - A lei estabelecerá incentivos para a produção e o conhecimento de bens e valores culturais. § 4° - Os danos e ameaças ao patrimônio cultural serão punidos, na forma da lei. Art. 114 - O Município desenvolverá sua ação de apoio, assistência, estímulo e orientação, no setor da cultura, através da Fundação Cultural do Município, à qual serão destinados recursos compatíveis com os projetos, programas e iniciativas que o Conselho Curador da referida fundação entender conveniente e necessários. Art. 123 - Os bens do patrimônio natural e cultural, uma vez tombados pelo Poder Público Municipal, Estadual ou Federal, gozam de isenção de impostos e contribuição de melhorias municipais, desde que preservados por seu titular. (2006) 42 Além da lei orgânica, existe a lei do ICMS cultural, que só existe no estado de Minas Gerais. Esta lei incentivou a criação de leis municipais que preservassem o Patrimônio histórico local. A lei estadual nº. 12.040, foi sancionada em 28 de dezembro de 1995 e modificada em 27 de dezembro de 2000, e atualmente se trata da lei 13.803. Esta lei repassa uma porcentagem da arrecadação de impostos aos municípios, tendo em vista tais aspectos: A área territorial, população e a receita própria de cada município, além de investimentos em agricultura, educação, preservação do meio ambiente e do patrimônio cultural. 44 No caso da variável Patrimônio Cultural, coube ao Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais - IEPHA/MG a elaboração e implementação dos critérios para o repasse de recursos do ICMS aos municípios. No anexo III da Lei n.º 12. 040/95, foi publicada a tabela de 42 ITUIUTABA. lei nº 3806, de 27 de Junho de 2006. Lei orgânica do município de Ituiutaba. Artigos: 113, 114, 115 e 123. Disponível em: http://www.ldi.kit.net/municipal.pdf Acesso em: 12 de outubro de 2010. 43 Disponível em: http://www.iepha.mg.gov.br/component/docman/cat_view/23-legislacao/37-icmspatrimonio-cultural-o-que-e. Acesso em 12 de outubro de 2010. 44 Idem. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 A Constituição Federal determina que 75% do Imposto sobre a Circulação de Mercadoria e Serviços - ICMS dos Estados devem ser repassados aos municípios de acordo com o volume de arrecadação e que 25% devem ser repassados conforme a regulamentação dada por Lei Estadual. Em 28 de dezembro de 1995, o governo mineiro criou a Lei N.º 40/95 que estabeleceu a redistribuição do ICMS através de novos critério.43 91 pontuação que define como critério básico as ações e políticas culturais e, principalmente, o tombamento dos bens culturais nas categorias: Núcleos Históricos (NH), Conjuntos Paisagísticos (CP), Bens Imóveis (BI) e Bens Móveis (BM), nos três níveis: federal, estadual e municipal, sendo que os bens tombados pelo IPHAN e pelo IEPHA/MG recebem uma pontuação maior de acordo com sua categoria.45 Por esta lei, a cidade recebe um incentivo financeiro para a preservação da cultura. Este é o único meio que a cidade tem para preservar os seus bens culturais, pois esta verba vai diretamente para a Fundação Cultural de Ituiutaba, que é o órgão responsável por isso.46 O estado do patrimônio na cidade de ituiutaba A realidade parece ser outra. Não que a prefeitura, junto com a Fundação Cultural, não incentivem a cultura, a população em geral não possui muito interesse nisso. A cultura em geral, é incentivada. Mas não percebemos muito isso através da perspectiva histórica, apenas na época de aniversário da cidade. No caso do tombamento, muitas pessoas não queremm ver o seu imóvel tombado como Patrimônio Histórico pelo fato do imóvel ser simplesmente tombado oficialmente, sem receber ações que de fato o preservem e restaurem. Esse é o caso da selaria do capitão, localizada na rua 16 com avenida 7, no públicos municipais para sua preservação. Portanto, além de não existir uma consciência entre as pessoas sobre a importância de se conservar o patrimônio arquitetônico, por não receberem vantagens econômicas, vários são os proprietários que não permitem que se tombe o seu imóvel. É o caso de uma casa velha que se localizava na rua 22, entre avenidas 7 e 9, a casa entrou em processo de tombamento e o dono a demoliu antes que fosse tombada, pois não queria perder o terreno.47 Outro problema é a falta de conhecimento das leis que se aplicam após ao tombamento, se o dono não possuí meios de preservar ou restaurar seu imóvel, deve recorrer ao órgão responsável pelo tombamento para que faça a obra e se o mesmo não 45 Idem. Informação que tivemos quando visitamos a Fundação Cultural de Ituiutaba, na realização do trabalho em Abril de 2010. 47 Informação que também nos foi dada quando fomos a Fundação Cultural no início do ano. 46 Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 centro da cidade. Hoje ela está em estado de ruínas e não tem nenhum apoio dos órgãos 92 resolver a situação dentro de seis meses, o dono do imóvel pode pedir que se cancele o tombamento.48 Bens de relevância histórica que não são tombados Existem alguns bens que possuem uma relevância histórica para a cidade e não estão tombados como Patrimônio Histórico. Um dos exemplos é a indústria de laticínios Baduy, que mostra o desenvolvimento da indústria, resultado de um aumento industrial no Brasil que refletiu na cidade de Ituiutaba que chegou a conter 100 mil maquinas de beneficiar arroz. As Indústrias Baduy estão entre as mais significantes indústrias de Ituiutaba. No ano de 1938, as indústrias passaram a ter máquinas de beneficiar algodão, motivo de orgulho dos moradores de Ituiutaba49, e também possuía o apito, o qual se pode ouvir por praticamente toda a cidade às 8:00 e 11:00 horas, 12:30 e às 17:30. O apito fazia e ainda faz parte da rotina da cidade, ele é mantido em funcionamento, mesmo a fábrica não estando mais em atividade, no entanto não faz parte da lista de bens tombados. Em certo ponto, não é difícil compreender porque a indústria não teria o interesse no seu tombamento, seja do apito ou do prédio todo, pois quando se tomba à propriedade, ela deixa de ser privada e passa a ser pública e, conseqüentemente, não se poderia mais vendê-la, alterá-la ou etc. Isto se tornaria um grande empecilho para a privilegiada. Considerações finais Devemos entender que o tombamento é o único incentivo financeiro que a cidade tem para promover a cultura, é o único dinheiro que vem especificamente para isto. Porém, o tombamento gera controvérsias. A maioria população não possui sentimentos de indentificação com os bens tombados, então a criação de ―Lugares de memória‖50, acaba gerando lugares de esquecimento. O patrimônio não se relaciona 48 BRASIL, Decreto-Lei nº 25, de 30 de novembro de 1937. Art: 19, Parágrafo 1. Código civil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil/Decreto-Lei/Del0025.htm. Acesso em 16 de outubro de 2010 49 50 NOVAES, Aloísio Silva. Industrilização. In: História Antiga de Ituiutaba. s/, s/ed), 1974. Conceito de Pierre Nora. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 especulação imobiliária, afinal tal terreno se encontra no centro, em uma área 93 com a vontade que a cidade possui de se modernizar. É uma constante busca pelo novo, o moderno, enquanto o passado e a preservação criam a nostalgia51 ou se tornam empecilho ao ―desenvolvimento‖ de certos projetos imobiliários. O patrimônio perde a sua importância, assim entra a especulação imobiliária que encontra espaço com o mau estado de conservação do patrimônio e a perda de seu significado entre as pessoas. O patrimônio deixa de ser a materialização da memória coletiva e passa a ser um lugar de esquecimento, um local em ruínas, desconexo com a vida da cidade. Se o patrimônio perde o seu significado de pluralidade cultural, passa a ser um problema para a cidade. No entanto, devemos deixar claro que não estamos pretendendo tomar parte de nenhum lado. Nossa intenção é apenas mostrar as controvérsias que existem, mostrando as diversas visões sobre o tema. As políticas públicas e o interesse privado entram em conflito devido às opiniões diversas sobre o assunto. Percebemos que muitos habitantes desejam uma modernização da cidade. Para eles, deve-se demolir o que é ―velho‖ e trazer o ―moderno‖. Esta ―modernização‖ se trata de grandes empresas, lojas, e outros que, com seus projetos e fachadas inspirados em novos estilos arquitetônicos fazem com que a cidade cresça e abandone seu passado. Temos como uma das causas disso, o fato de a história ―oficial‖ de Ituiutaba tratar apenas de figuras importantes, a ―elite‖, então muitos dos cidadãos contemporâneos, geralmente migrados para a cidade em períodos recentes, não sentimentais com ela e com o patrimônio existente. Dessa forma concluímos que o problema é cultural, e não devemos apenas questionar ou culpar o poder público ou os cidadãos. Poucos são os que possuem uma visão abrangente da questão, como conhecimentos sobre as políticas de preservação e as leis que envolvem o tombamento. Então não cabe a nós criticar tais pessoas e sim tentar, como for possível, colocar o assunto em debate. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRASIL, Decreto-Lei nº 25, de 30 de novembro de 1937. Art: 19, Parágrafo 1. Código civil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil/Decreto-Lei/Del0025.htm. Acesso em 16 de outubro de 2010 51 PAOLI, Maria Célia. Memória, história e cidadania: o direito ao passado. In. O direito à memória: patrimônio histórico e cidadania. São Paulo: DPH, 1992, p. 25-28. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 conseguem se enxergar nesta história, consequentemente não possuem relações 94 CHAUI, Marilena de Souza. Política cultural, cultura política e patrimônio histórico. In. O direito à memória: patrimônio histórico e cidadania. São Paulo: DPH, 1992, pp. 3746. CORTÊS, Carmem Dalva Cunha. Ituiutaba Conta a Sua História. 2ª. ed., Ituiutaba. EGIL, 2001. COSTA, Marli Lopes da; CASTRO, Ricardo Alves de. Patrimônio Imaterial Nacional: preservando memórias ou construindo histórias? Esutd. Psicol. v.13 n.2 Natal, maio/ago, 2008. HOBSBAWM, Eric. Sobre história. São Paulo: Companhia das letras, 1998. 2ª ed. IEPHA.http://www.iepha.mg.gov.br/component/docman/cat_view/23-legislacao/37icms-patrimonio-cultural-o-que-e. Acesso em 12 de outubro de 2010. ITUIUTABA. lei nº 3.806, de 27 de Junho de 2006. Lei orgânica do município de Ituiutaba. Artigos: 113, 114, 115 e 123. Disponível em: http://www.ldi.kit.net/municipal.pdf Acesso em: 12 de outubro de 2010. NORA, Pierre. Entre memória e História: A problemática dos lugares. In: Projeto História, São Paulo, PUC-SP, n. 10, pp. 7-28, dez. 1993. NOVAES, Aloísio Silva. História Antiga de Ituiutaba. s/, s/ed, 1974. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 PAOLI, Maria Célia. Memória, história e cidadania: o direito ao passado. In. O direito à memória: patrimônio histórico e cidadania. São Paulo: DPH, 1992, pp. 25-28. 95 SIMPÓSIO TEMÁTICO 2 – NATUREZA, ESPAÇO E TÉCNICA Coordenação: Prof. Dr. Eduardo Giavara e Prof. Dr. Marco A. C. Sávio. A AÇÃO CIVIL PÚBLICA COMO INSTRUMENTO DE GESTÃO AMBIENTAL .............. 97 Hailton Antonio Nunes ANÁLISE DO CONTROLE SOCIAL EXERCIDO DURANTE AS REFORMAS URBANAS E SANITÁRIAS NO RIO DE JANEIRO NO INÍCIO DO SÉCULO XX ............................... 107 Renato Mateus COOPERATIVISMO : UMA POSSIBILIDADE DE EMANCIPAÇÃO: O CASO DA COOPERATIVA DE RECICLADORES DE UBERLÂNDIA (CORU) ................................. 114 Leandra Ramim EDUCAÇÃO AMBIENTAL: PRINCÍPIOS E PRÁTICAS (1987-1999) ................................ 123 Cristiele Maria de Souza Nascimento MUDANÇA CLIMÁTICA, POLÍTICAS DE MITIGAÇÃO E A TEORIA DO ATOR-REDE ................................................................................................................................................... 134 Jéssica Garcia da Silveira RIO GRANDE, A CIDADE DO FUTURO? NATUREZA, DESENVOLVIMENTO E DISCURSOS HEGEMÔNICOS ONTEM E HOJE ................................................................. 145 TRABALHO DE CAMPO PARA AS REGIÕES AMAZÔNIA E NORDESTE ROTEIRO: ITUIUTABA-MG – XAMBIOÁ- TO – MARABÁ-PA – SÃO LUÍS-MA – BARREIRINHASMA – ARAGUAÍNA-TO.......................................................................................................... 156 Carolina dos Santos Camargos e Elaine Aparecida Ramos UM BREVE OLHAR SOBRE O CRIACIONISMO................................................................ 160 Leonardo Flausino Araujo Silva e Marília Christina Arantes Melo VIAGEM PITORESCA POR GOYAZ: O OLHAR DOS VIAJANTES SOBRE GOYAZ .... 166 Adriano Freitas Silva Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 Diego Mendes Cipriano 96 A AÇÃO CIVIL PÚBLICA COMO INSTRUMENTO DE GESTÃO AMBIENTAL Hailton Antonio Nunes Advogado, Bacharel em Direito, Graduando em História e Pós-Graduando em Meio Ambiente: Educação e Gestão Ambiental, UFG/Jataí [email protected] Um provérbio indígena questiona se somente quando for cortada a última árvore, pescado o último peixe, poluído o último rio, é que as pessoas vão perceber que não podem comer dinheiro.52 Desde tempos pretéritos, a humanidade sempre buscou melhorias no modo de vida, estando o uso dos recursos naturais sempre presente no cotidiano das concentrações humanas. É oportuna a seguinte exposição acerca do tema: Nos primórdios da humanidade, o homem utilizou-se de diversos instrumentos como auxílio na caça e coleta de alimentos, além de ter aprendido a construir suas próprias habitações ao invés de competir por tocas e cavernas com os demais animais selvagens. Do uso de peles mal cheirosas, o homem passou a tecer suas vestimentos utilizando-se de fibras vegetais e desenvolveu a técnica do cortume. De uma ou de outra maneira, contudo, o ser humano sempre teve nos recursos naturais do meio que o cerca sua fonte de subsistência. Dos recursos minerais, o homem passou a fabricar seus utensílios; espécies "comestíveis" passaram a ser criadas e/ou cultivadas, e assim por diante. (Morato, 2010, p.2) Em virtude das modificações nos processos de industrialização, bem como o transformações nos meios natural e antrópico. (SILVA, 2000). A crise ambiental mundial, como toda e qualquer situação de grande amplitude e conseqüências danosas, teve sua origem com as atividades humanas no planeta, através da busca desenfreada da humanidade pela industrialização e desenvolvimento econômico. Nesta linha de raciocínio, se torna primordial tecer algumas considerações acerca do surgimento dos direitos transindividuais53, preliminarmente ao estudo da Ação Civil Pública como instrumento de gestão ambiental. Na Idade Média, o poder era concentrado nas mãos de monarcas e da nobreza, isto através da sociedade feudal, com divisão das terras em feudos, mantidos pela relação existente, entre reis, senhores feudais e seus vassalos, estes últimos parte da 52 http://www.coljoaoxxiii.com.br/?secao=42941&id_noticia=183310&categoria=44238 De natureza indivisível, de que sejam titulares uma pluralidade de sujeitos vinculados por um objetivo comum, de uma circunstância de fato, que não resulta da soma dos interesses individuais, mas sim de toda uma coletividade estruturada. inúmeras 53 Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 modo de consumo de bens, o que tornou o supérfluo em essencial, constatam-se 97 classe inferior, juntamente com os escravos, serviam aos primeiros em permuta à proteção, inexistindo direitos civis garantidos. Em evolução ao modelo feudal, houve o surgimento da sociedade de castas ou classes ligadas a um modelo político-jurídico fulcrado na produção de forma artesanal, com eliminação gradativa da propriedade individual e instituição da enfiteuse como regra dominial, o que redundava em impossibilidade de disposição dos bens por seus possuidores, o que de certa forma obstava a negociação mediante celebração de contratos bilaterais, com obstáculo à livre circulação de bens, serviços e de moeda. Através da linha temporal dos séculos iniciais da Era Medieval, a Igreja Católica consolida-se como a instituição mais poderosa do período. O alcance de sua influência consegue alcançar toda a Europa, atingindo várias áreas tais como: religião, política, economia, conflitos estatais e familiares, detendo imenso poder decisório acerca destes mais diversos assuntos. O autoritarismo por parte da instituição religiosa católica romana era tamanho, que tornava sua aceitabilidade, praticamente insustentável, pois o catolicismo não satisfazia os anseios espirituais da sociedade, a qual almejava uma religião, que respondesse a seus anseios, pautada nos ensinamentos de Cristo e de seus apóstolos. Pode-se afirmar que as mudanças no espírito humano decorrentes da evolução do pensamento da época, bem como de novas práticas de comércio, aliadas aos abusos incontroverso do Clero Católico. As práticas Renascentistas amoldavam-se na forma de uma oposição a determinados preceitos católicos, incentivando a busca do conhecimento, à razão, verdadeiramente a uma racionalização das justificativas mediante a experimentação. O conhecimento até então monopólio do clero católico, encravado nos porões das Bibliotecas, Igrejas e monastérios, torna-se mais acessível ao povo, em total demérito das explicações transcendentais pregadas pela cúpula católica, havendo uma democratização do conhecimento. O catolicismo na Idade Média pode ser definido como um abominável comércio da salvação e até mesmo do céu, o qual favorecia diretamente o enriquecimento da Igreja Católica, levando a nobreza e burguesia, a se oporem ao poder absoluto papal. Com a concentração do poder em mãos dos monarcas e do Clero Católico, os privilégios e recursos econômicos permaneciam em poder destes, sendo oportuno salientar que a Igreja contava com os grilhões da Inquisição para fazer valer suas regras, Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 por parte da Igreja Católica, abrem espaço para contestações ao poderio, até então 98 assim como os Imperadores mantinham seu domínio mediante a utilização da força bruta, tudo com vistas a permanecer na boemia e luxúria nos palácios. Todo este contexto serviu de estopim para o declínio deste sistema baseado na exploração das classes menos favorecidas e maioria da sociedade feudal, o que conjugado com adversidades climáticas, que impunham crises de alimentos e constante miséria, desencadearam movimentos de reformas do sistema. Nascia então a idéia de Reforma da Igreja, que consistia no conjunto de movimentos com caráter religioso, político e econômico, que contestavam os dogmas católicos, que sucumbem ao movimento de reforma, e as monarquias absolutistas que chegam ao fim, com a deposição de monarcas, mediante violência e decapitações, ocorridas no período da Revolução Francesa de 1.789. Com a passagem do período medieval para a Idade Moderna, houve uma maior centralização do poder político nas mãos dos monarcas, mediante o surgimento das monarquias nacionais, com enfraquecimento dos vassalos do modelo feudal e instituição de fato do Estado Moderno. Este Estado moderno surge alicerçado no contrato social e nos valores que servirão de sustentação à Revolução Francesa54: liberdade de ir e vir, igualdade através dos mesmo direitos e deveres, e fraternidade mediante a solidariedade entre todos na coletividade. sendo observada a nível de continente europeu, quanto a nível mundial, ou até mesmo sua importância à nível de lapso temporal, ou seja histórica, há de se trazer a baila os dizeres de Hobsbawm: A França forneceu o vocabulário e os temas da política liberal e radicaldemocrática para a maior parte do mundo. A França deu o primeiro grande exemplo, o conceito e o vocabulário do nacionalismo. A França forneceu os códigos legais, o modelo de organização técnica e científica e o sistema métrico de medidas para a maioria dos países. (HOBSBAWM, 1998, p.71). Este movimento ideológico e eminentemente de cunhos sociais, certamente teve suas raízes provavelmente na crise do antigo regime, a qual assolou os regimes absolutistas de toda a Europa, atingindo até mesmo as colônias do velho mundo, principalmente nas Américas, face o grande índice de insatisfação dos dominados, em aversão aos costumes aristocráticos, totalmente voltados para o privilégio desta classe em detrimento dos demais, em suma a França: 54 Marco histórico do início da Idade Contemporânea. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 Para se ter uma noção da dimensão e relevância da Revolução Francesa, quer 99 Ela era a mais poderosa, e sob vários aspectos a mais típica, das velhas e aristocráticas monarquias absolutas da Europa. Em outras palavras, o conflito entre a estrutura oficial e os interesses estabelecidos do velho regime e as novas forças sociais ascendentes era mais agudo na França do que em outras partes. (HOBSBAWM, 1998, p.73). Conclui-se que com a Revolução desencadeada em 1.789, a França passou por um longo período de instabilidade política, em dado momento uma determinada classe no poder em detrimento da outra e vice-versa, sendo a guilhotina o instrumento símbolo de todo este período, a qual foi amplamente utilizada como meio de cortar literalmente as ―cabeças‖ da oposição. Mediante a instituição do Contrato Social, a garantia de ordem e segurança nacional passam a serem tuteladas pelo Estado, o qual assume o dever-poder de julgar, através do monopólio da força, aplicando-se as normas jurídicas aos casos concretos, coibindo a lei do mais forte, pois não mais a sociedade poderia ser regida pelo modelo do homem primitivo, imperada pelo vigor físico e violência, definidores do certo e do errado, vencedor e perdedor, a força bruta dava espaço para o monopólio estatal, das decisões entre particulares. A liberdade de contratar, o liberalismo e o conceito de propriedade privada, ganham relevância, principalmente com a edição do Código Civil Francês de 1.804, um marco do Direito moderno, tendo inspirado até mesmo o Código Civil Brasileiro de 1.916. inauguram o movimento sindical na história mundial, que pode ser considerado como marco da hodierna tutela jurisdicional dos interesses transindividuais, protegidos juridicamente. Volvendo a questão ambiental propriamente dita, podemos afirmar que durante vários anos, o desenvolvimento econômico decorrente da revolução industrial impediu que os problemas ambientais fossem considerados. A poluição e os impactos ambientais do desenvolvimento desordenado eram visíveis, mas os benefícios proporcionados pelo progresso eram justificados com um ―mal necessário‖, algo com qual todos deveriam se resignar. Os impactos ambientais foram intensificando-se de molde que tornaram-se mais visíveis a toda humanidade, em razão de seus efeitos negativos impostos sobre o homem, tais como: A poluição da água, do ar e ambiente, o efeito estufa, a chuva ácida, Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 É inegável também que, após a Revolução Industrial na Inglaterra, os operários 100 as enchentes, o desmatamento com consequente extinção da biodiversidade, o aumento do buraco na camada de ozônio, o derretimento acelerado das geleiras, entre outros. Somente na década de 1.960 que o termo meio ambiente foi utilizado pela primeira vez, isto em uma reunião do Clube de Roma55, cujo objetivo era a reconstrução dos países devastados pela 2ª Guerra Mundial, estabelecendo-se então a discussão da problemática das questões ambientais. Neste sentido ocorre a Convenção sobre Meio Ambiente, ocorrida em Estocolmo, em 1.972, ocasião do surgimento do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente. O Brasil enfrentava neste mesmo período, uma forte Ditadura Política, embalada pela idéia incondicional de crescimento econômico nacional, pouco importando os meios utilizados para alcançar este desiderato, entre este, a degradação ambiental. Não é demasia afirmar que o Brasil recebeu grande influência internacional no que tange ao desenvolvimento de uma consciência ambiental, com crescimento da preocupação com o destino do planeta, uma vez que a industrialização acelerada, o rápido crescimento demográfico, a escassez de alimentos, o esgotamento de recursos não-renováveis, e a deterioração do meio ambiente, eram o tema das principais reuniões da agenda de governantes à nível mundial. Os movimentos ambientalistas ganhavam força no âmbito internacional, ainda mesmo período em que o Brasil enfrentava problemas ambientais, tais como a poluição oriunda das indústrias localizadas no litoral de São Paulo, principalmente em Cubatão, gerando incontáveis infortúnios aos trabalhadores daquelas empresas de altíssimo potencial poluidor. No início da década de 1.980, houve um gradual caminhar pela redemocratização do Brasil, criando campo fértil para a propagação dos novos ideais ambientalistas, juntamente com outros anseios da sociedade brasileira. A semente do ―desenvolvimento sustentável‖56 estava germinada, de forma que um novel modelo de desenvolvimento era pregado por estudiosos, baseado na proteção da biodiversidade nacional, principalmente da Floresta Amazônica, com uso racional 55 Instituído em 1.968, composto por cientistas, industriais e políticos, com o objetivo de discussão e análise do crescimento econômico levando em conta o uso crescente e contínuo dos recursos naturais. 56 Desenvolvimento apto a suprir as necessidades da geração presente, sem comprometimento da capacidade de atender as necessidades das gerações futuras, de forma que não haja um esgotamento dos recursos naturais. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 mais que contavam com a adesão da Organização das Nações Unidas (ONU), isto no 101 dos recursos naturais, respeitados os valores sociais, um verdadeiro ―desenvolvimento socioambiental‖57. No ano de 1.981, diante da constante pressão social, bem como pela mobilização de juristas adeptos das teorias protecionistas ambientais pregadas em todo o mundo, surgiu a Lei 6.938/81, a qual instituiu a Política Nacional do Meio Ambiente. Vale salientar que com o surgimento deste novel diploma legal, houve uma legitimação do Ministério Público, para a responsabilização penal e civil dos agentes infratores e criminosos ambientais. Embora a instituição de uma Política Nacional de Meio Ambiente, através da edição da Lei 6.938/81, representasse um marco nacional em termos de proteção ambiental, havia uma brecha na lei, pois embora o Ministério Público detivesse anterior legitimidade para intentar com a Ação Penal para responsabilização de ilícitos ambientais, não havia previsão de um instrumento adequado para atuação do Parquet na esfera civil, na busca da reparação de danos ambientais, não existindo ainda previsão para ajuizamento de ações individuais com este escopo. O desenvolvimento desenfreado, continuava a todo vapor, atingindo as regiões urbanas, impondo sofrimento a populações inteiras, as quais somente contavam com as previsões contidas no Código Civil, e caso objetivassem uma providência judicial, deveriam ajuizar ações individuais para cessar a atividade poluidora, as quais deveriam saúde, em suma, somente os vizinhos que detinham legitimidade para solicitar providências judiciais. Como o máximo que se podia obter em termos de ação civil ambiental, era um litígio entre vizinhos, aliada a dificuldade da imensa maioria da população em obter um serviço de assistência jurídica gratuita, altas tabelas de custas judiciais, e ainda ao desconforto causado com o vizinho que morava ao lado causador do dano, este conjunto de fatores favorecia a atuação das empresas poluidoras. Os dirigentes de empreendimentos potencialmente poluidores, conhecedores de todos estes fatores impeditivos por parte da sociedade, no que tange a busca pelo direito de proteção ambiental, criaram uma eficiente e simples mecanismo de estratégia. Esta estratégia consistia em comprar ou alugar áreas circunvizinhas a seus empreendimentos, destinando tais locais para a construção e oferecimento de moradias 57 Desenvolvimento que leva em consideração a sociedade e o meio ambiente, ou seja, busca-se a proteção ambiental, porém atenta aos problemas sociais. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 ser pautadas em temas genéricos, tais como: perturbação do sossego, da segurança ou da 102 para seus trabalhadores, eliminando quase que integralmente o risco de pendengas judiciais, em função de reclamações ambientais. Até então somente se podiam contar com instrumentos de gestão ambiental reguladores58, os quais ―correspondem ao sistema onde o poder público estabelece os padrões e monitora a qualidade ambiental, regulando as atividades e aplicando sanções e penalidades, via legislação e normas (LEAL, 1997), e intrumentos de mercado ou também chamados de instrumentos econômicos59: Em 1972, a OCDE, (Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico), adotou o princípio poluidorpagador como base para o estabelecimento de políticas ambientais nos países membros. Este princípio é a base para o enfoque econômico da política ambiental (BURSZTYN e OLIVEIRA, 1982). Neste momento, durante este contexto social, surge o instrumento judicial, denominado Ação Civil Pública, pela edição da Lei nº. 7347, de 24 de julho de 1985, outorgando à sociedade legitimidade para ingresso em juízo, através de atores sociais, tais como as associações originadas com o fito de proteção de direitos sociais, bem como por intermédio de representante do Ministério Público, em busca da satisfação de interesses e direitos difusos e coletivos, e entre estes, o meio ambiente, nosso objeto de estudo. O art. 1º da epigrafa lei, elencou no rol de atos que causem danos morais e patrimoniais, a serem objeto de tutela mediante Ação Civil Pública, e entre estes Lei, sem prejuízo da ação popular, as ações de responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados: l - ao meio-ambiente; (Redação dada pela Lei nº 8.884, de 11.6.1994)‖ Já no que tange a legitimidade ativa, para ajuizar este intrumento processual, esta por sua vez é elencada no art.5º, a saber: Art. 5º Têm legitimidade para propor a ação principal e a ação cautelar: (Redação dada pela Lei nº 11.448, de 2007). I - o Ministério Público; (Redação dada pela Lei nº 11.448, de 2007). II - a Defensoria Pública; (Redação dada pela Lei nº 11.448, de 2007). III - a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios; (Incluído pela Lei nº 11.448, de 2007). IV - a autarquia, empresa pública, fundação ou sociedade de economia mista; (Incluído pela Lei nº 11.448, de 2007). V - a associação que, concomitantemente: (Incluído pela Lei nº 11.448, de 2007). 58 Proibição total ou parcial de exercício de determinadas atividades, controle do uso dos recursos naturais. 59 Aplicação de taxas ambientais. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 encontra-se o meio ambiente, senão vejamos: ―Art. 1º Regem-se pelas disposições desta 103 a) esteja constituída há pelo menos 1 (um) ano nos termos da lei civil; (Incluído pela Lei nº 11.448, de 2007). b) inclua, entre suas finalidades institucionais, a proteção ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem econômica, à livre concorrência ou ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico. (Incluído pela Lei nº 11.448, de 2007). (g;n). A resposta aos anseios da sociedade, sedenta por mecanismos de proteção de interesses transindividuais, era concebida mediante a condição da sociedade como autora de ação e requerente da tutela jurisdicional do Estado, como meio de concretização de direitos e garantias fundamentais constitucionalmente previstos. Oportuna as considerações da organização não-governamental Human Rights Watch, em seu relatório do ano de 1994: (...) Para nós, um governo não pode chamar a si próprio democrático ao menos que seus agentes sejam responsáveis por suas ações; suas Cortes e Promotores sejam protetores dos direitos dos cidadãos e ofereçam respostas para as injustiças; seu Governo permita e encoraje o desenvolvimento de independentes organizações da sociedade civil; e os conflitos políticos e sociais sejam geralmente resolvidos de forma pacífica.‖ (Apud Flávia Piovesan, in Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional, São Paulo: Max Limonad, 1996, p. 288.) Entre as principais vantagens que foram conquistadas mediante a edição da Ação Civil Pública em matéria ambiental pode-se explicitar-se as seguintes: fixação do foro do local do risco ou do dano como competente para conhecimento e julgamentos da mesma, facilitando o acesso ao Poder Judiciário pela parcela menos favorecida da coletividade; inexigibilidade de antecipação de custas ou depósito inicial, bem como de honorários de perito e outros profissionais que venham a atuar no feito, que só podem ser exigidos ao término do processo, a serem arcados pela parte sucumbente, estando o Ministério Público, bem como as Associações imunes ao pagamento de custas e honorários advocatícios, salvo se comprovada má-fé destes; e finalmente a economia processual, tendo em vista que mediante um único litígio coletivo, pode trazer uma resolução para inúmeras pessoas que casos fossem ajuizar demandas individuais, abarrotariam os Tribunais com milhares de ações sobre o mesmo fundamento. Porém nem tudo são flores, como toda e qualquer atividade estatal, existem alguns fatores de desestímulos ao manejamento da Ação Civil Pública como instrumento de gestão ambiental, tais como o ônus probandi, que não raras vezes dificultam os co-legitimados, em razão das extremas dificuldades de produzir provas técnicas, uma vez que peritos experientes, provavelmente não aceitarão prestar seus Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 sociedade; a responsabilização solidária de todos os envolvidos no dano ambiental à 104 serviços de forma graciosa60, ou para recebimento a posteriori; a morosidade da máquina judiciária é outro entrave à eficiência da Ação Civil Pública; a ausência de Varas e Juizados especializados para julgamento de Ações Civis Públicas, o que resulta que estas se aglomeram em meios aos milhares de processos que preenchem os armários e mesas do Poder Judiciário. Não menos importante, existe ainda o entrave da cassação de liminares e sentenças pelos Tribunais Superiores e em Segunda Instância, o que gera descrédito ao trabalho desenvolvidos pelo Ministério Público, Associações autoras e Juiz Monocrático de 1º grau, gerando um clima de impunidade e favorecimento dos interesse econômicos em detrimento dos valores sociais. Mesmo ante todas estas considerações, pode-se concluir que a Ação Civil Pública Ambiental não pode ser considerada apenas como um novel procedimento judicial destinado a invocar a tutela jurisdicional do Estado para prevenir ou dirimir conflitos envolvendo interesses transindividuais, mas sim um verdadeiro instrumento político de exercício da cidadania, da democracia pelo titular do poder, o povo, e que embora possua alguns entraves a seu manejamento, mesmo assim mostra-se como um eficiente mecanismo de gestão ambiental a disposição de toda a sociedade, que pode REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRASIL. Lei 6.938 - 31 de agosto de 1981. Dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, seus fins e mecanismos de formulação e aplicação, e dá outras providências. BRASIL. Lei 7.347 - 24 de julho de 1985. Disciplina a ação civil pública de responsabilidade por danos causados ao meio-ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico (VETADO) e dá outras providências. BURSZTYN, M. A. A., OLIVEIRA, S. L. 1982. Análise da experiência estrangeira no gerenciamento dos recursos hídricos. Brasília: Secretaria Especial do MeioAmbiente. CAMADA DE OZÔNIO: UM PROBLEMA PESSOAL. Disponível em: http://www.coljoaoxxiii.com.br/?secao=42941&id_noticia=183310&categoria=44238 . Acesso em: 09/11/2010. COMPARATO, Fábio Konder. Os problemas fundamentais da sociedade brasileira e os direitos humanos. In: __________. Para Viver a Democracia. São Paulo: Brasiliense. 1989. __________. Novas Funções Judiciais no Estado Moderno. In:_________.Para Viver a Democracia. São Paulo: Brasiliense. 1989. 60 Sem remuneração. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 ver-se salvaguardada dos abusos cometidos em prejuízo do meio ambiente 105 HOBSBAWM, Eric J. A Era das revoluções: Europa 1789 – 1848, tradução de Maria Tereza Lopes Teixeira e Marcos Penchel. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1998. LEAL, M. S. Gestão Ambiental de Recursos Hídricos por Bacias Hidrográficas: Sugestões para o Modelo Brasileiro. Rio de Janeiro: UFRJ – Curso de Pós-Graduação em Engenharia. 1997. 230f. Diss. Mestr. Engenharia Civil. MORATO, Sérgio Augusto Abrahão. Introdução: Aspectos históricos e filosóficos do uso dos recursos naturais pelo homem e seus efeitos sobre a diversidade biológica. Curitiba: [S.n.], 2010. (Apostila da disciplina Biologia aplicada ao Direito, Curso de Pós-Graduação em Direito Ambiental, Universidade Federal do Paraná). PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional, São Paulo: Max Limonad, 1996. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 SILVA, M. M. P. Estratégias em educação ambiental. In: IX SIMPÓSIO LUSO-BRASILEIRO DE ENGENHARIA SANITÁRIA E AMBIENTAL, 2000, Porto Seguro (BA). Anais... Porto Seguro: ABES, 2000. 106 ANÁLISE DO CONTROLE SOCIAL EXERCIDO DURANTE AS REFORMAS URBANAS E SANITÁRIAS NO RIO DE JANEIRO NO INÍCIO DO SÉCULO XX Renato Mateus Acadêmico do curso de História da FACIP/UFU [email protected] Introdução A linguagem é pública e dependente de interações sociais e ela é lugar comum para movimentos estratégicos e táticos. Michel de Certeau As camadas populares brasileiras desde os primórdios de sua formação vêm sofrendo com as inquietações de pertencer a um país cuja desigualdade é evidente no seio de sua sociedade e que as classes dominantes coloniais portuguesas, a elite imperial e depois surpreendentemente até as republicanas, não se preocuparam nenhum pouco com a realidade social enfrentadas por esta já tão desfavorecida fatia de população e mesmo com a República e seus comandantes que se diziam detentores dos ideais iluministas franceses de igualdade, não conseguiram ou não se interessaram em promover um melhor ajuste desta questão tão proeminente ou ao menos tentar amenizar Desde meados do século XIX, começam surgir propostas para modernizar o país e colocá-lo nos trilhos do desenvolvimento. Para (IANNI 2004:15): ―já neste período, quiseram realizar reformas institucionais e sociais, de modo a jogar o país mais perto do seu presente, interpretando as sugestões e os interesses do capitalismo mundial, principalmente o inglês, que preconizavam a modernização e o progresso.‖ Suas idéias liberais, positivistas e evolucionistas propunham uma mudança nos paradigmas da sociedade, uma reorganização do ambiente social e institucional e estava mesclada de pensamentos e correntes, cujos objetivos finais eram nada mais que o lucro econômico burguês. As campanhas abolicionistas e republicanas foram conseqüências destes pensamentos e o liberalismo prevaleceu. Ianni (2004) complementa que continua a diferenciação das relações sociais, sendo privilegiadas no âmbito das elites, que saiu da casa-grande para os sobrados, se contrapondo com os conflituosos movimentos populares do final de século XIX e início de XX. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 os problemas sociais que desde então eram bem visíveis. 107 Um estudo mais aprofundado de um destes relevantes movimentos, a Revolta da Vacina (1904) pode nos fornecer elementos esclarecedores que permeiam e repercutem as discussões sobre o tema até mesmo no dias atuais, como a implantação gradativa proporcionada pelo poder público, das Unidades de Polícias Pacificadoras, as UPPs, nos morros cariocas. Em ambos os casos a conseqüência é a mesma: o sacrifício das camadas urbanas populares, que tanto no período republicano com Rodrigues Alves comandando um processo de urbanização, limpeza sanitária e até mesmo étnica da população, usando contraditoriamente na fase dita democrática e liberal pósmonárquica, de ações autoritárias, arbitrárias e impositivas para com a população desprovida de meios mais justos de se defender. Já estas mesmas atitudes enérgicas e repressivas, encontramos na tentativa de substituição do comando paralelo civil, até então estabelecido em alguns morros da cidade do Rio de Janeiro pela implantação de tais unidades de polícia, que na sua essência, apesar do válido intuito de combate ao crime organizado, visa ao seu final, o controle social e a regulação da conduta, posturas e manifestações destas camadas desprivilegiadas. Estas reflexões de cunho social e humano é que permeia minhas reflexões e que procuro entender o porquê da persistência das mesmas. Os projetos político-econômicos que realizam as transformações sociais, quase na sua totalidade não consideram as reivindicações de seus membros menos notórios. Tomemos por base a tanta relevância, mas que certamente está entre os mais intensos momentos de manifestação de descontentamento destas classes sociais menos ouvidas. Uma revolta pelos desmandos e imposições de regras e leis e reprimendas de um governo dito democrático e que o vislumbre de melhorias nas condições de vida não eram visível e nem sonhado. Neste momento, o país precisava mostrar ao mundo sua intenção de alcançar linearmente o progresso e modernização. Já se livrara das ditas agitações sociais como a de Canudos (1896/97) e até mesmo de militares, a da Armada (1893), a economia pretendia se voltar para os interesses paulistas e sua lavoura cafeeira, mas havia empecilhos urbanos a serem resolvidos, Para (SEVCENKO 2010:59) não bastava que a nação estivesse pacificada sob o poder civil, como conseguiu Prudente de Morais, ou que estivesse com as finanças controladas, conforme o esforço de Campos Sales, para que os capitais estrangeiros afluíssem ao Brasil, havia ainda outros obstáculos, o primeiro era o do Porto do Rio de Janeiro e, além disso, a cidade vivia sucessivos surtos endêmicos de uma infinidade de moléstias. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 Revolta da Vacina (1904), um movimento que talvez a historiografia brasileira não dê 108 A febre amarela era apenas um dos exemplos que assustava visitantes e fez apressar o projeto de reformas urbanas e sanitárias na capital federal. Tanto na questão das reformas urbanas como sanitárias o que predominou foram imposições de leis aprovadas através de apoio parlamentar já previamente sabido que conjugavam dos mesmos interesses e que incluíam ditames muitas vezes inconstitucionais e para tanto, Pereira Passos, reformador urbano e o médico Osvaldo Cruz conseguiram poderes ilimitados e em nome do progresso a cidade do Rio de Janeiro não poderia se mostrar ao mundo com uma população doente, ociosa, mestiça ou negra em sua grande maioria, pobres e sem emprego e destino certo. Para (COSTA MATTOS 2007): Assim como os cortiços, as favelas do início de século XX eram vistas como um problema de saúde pública e segurança. Mas o contexto no qual elas ganhavam notoriedade era outro. O Rio de Janeiro estava sendo construído como uma nova cidade, moderna, europeizada, capaz de ser o cartão-postal da nova República. Contrariando esse ideal, as favelas passaram a ser vistas como outras cidades, corpos estranho dentro da urbe formal. Sendo assim a reação popular se deu, pois se via acuada, reprimida e sem perspectivas. Para (SEVECENKO 2010:81), ―O objetivo era deslocar aquela massa temível do centro da cidade, eliminar os becos e vielas, abrir amplas avenidas e asfaltar ruas‖. A determinação obrigatória da vacina contra varíola foi o estopim desta relação. Não cabe aqui, a descrição pormenorizada dos acontecimentos deste movimento dias 9 e 16 de novembro de 1904 deixaram profundas cicatrizes na sociedade carioca. As violentas reações das autoridades competentes achavam respostas no mesmo nível por parte dos revoltosos, e o que se viu foi uma batalha sangrenta e com baixas numerosas de ambos os lados. Para (JOSÉ MURILO DE CARVALHO 2006: 130), a Revolta da Vacina teve na sua gênese essencialmente a invasão autoritária ao valor moral desta população tão sofrida. Ele discorda de autores que apontam causas econômicas como a falta de emprego, pois segundo ele, a essa altura as reformas urbanas já proporcionavam ofertas trabalhistas de razoável quantidade. Esse mesmo autor escreve nesta mesma obra que: a explicação mais óbvia é que o motivo da revolta foi a obrigatoriedade da vacina. Há evidências da irritação popular com a atuação do governo na área de saúde pública, de modo especial no que se refere à vistoria e desinfecção das casas‖. Compartilho da opinião de que um movimento de tal invergadura não se determina apenas uma explicação para sua gênese, pois vejo que o momento de fragilidade das instituições políticas era evidente, onde a República e seus conceitos Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 de indignação popular urbano, mas o caos e o terror vivido na capital federal entre os 109 ainda não estavam assimilados pela elite mandatária e muito menos pelos seus comandados. Até mesmo o próprio (JOSÉ MURILO DE CARVALHO 2006: 136), afirma que: ―Os princípios liberais da liberdade individual e de um governo nãointervencionista, a retórica liberal difundida pelos positivistas, chegou mesmo atingir a classe operária. Portanto fica evidente que estes valores republicanos passaram a ser questionados diante do quadro prático proporcionado por atitudes não condizentes com os ideais republicanos. A economia estava sim muito aquém do aceitável e mesmo com as reformas urbanas, o contingente de desocupados era grande, ao passo que a invasão pelo poder público nas entranhas sócio-culturais desta gente, com a tentativa de promover uma mudança de costumes e tradições no seio do elemento mais importante que era a família, foi sim um fator preponderante. É o que nos confirma SEVECENKO (1998:143): Agindo tanto no controle dos espaços privados como no dos logradouros públicos, as reformas urbanas cariocas expulsariam grande parte da pobreza e da miséria, das manifestações populares e das atividades tradicionais visíveis nas ruas e casas modestas da cidade. Também a inspeção sanitária nos lares e a vacinação obrigatória desestabilizaram as relações entre estranhos e agentes componentes da estrutura familiar, onde se colocou à prova até mesmo a procedência dos instrumentos e a índole de quem os manipulava, dão uma visão de como estes fatores externos formaram Como estamos observando, um levante como este traz à tona elementos que nos ajudam a perceber um universo destas relações entre o poder estatal e seus calejados membros pertencentes às camadas menos abastadas e que sempre se inserem nestas disputas: a obrigação, a determinação, a imposição de regras e mandos no qual apenas um lado sente as suas conseqüências e onde a fragilidade ou as incompetentes das políticas públicas fazem com que estas populações sempre se deparem com insatisfações em seu seio. Tomando por base a atual política governamental implementada nesta mesma cidade do Rio de Janeiro, onde as Unidades de Polícia Pacificadoras que estão funcionando em algumas comunidades carentes estratégicas, que trazem o conceito de alta criminalidade, proporciona a reflexão de que estas ações nada mais são que o Estado tomando para si o comando social daquela localidade. A partir daí passa a regular as condutas, os hábitos e costumes, proibindo manifestações Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 condições para um levante de tal magnitude. 110 culturais daquele ambiente em nome da ordem. Esta opressão é analisada pelo sociólogo Luís Antônio da Silva que escreveu em seu artigo intitulado ―Qual é a das UPPs: que a violência interpessoal e cotidiana tem convivido com o fortalecimento do monopólio da violência legitimada pelo Estado. (...) No caso da atividade policial, estou convencido de que não é a truculência extralegal que é questionada, mas sim seu caráter arbitrário e indiscriminado‖.(MACHADO DA SILVA 2010). Penso que esta política de maior presença do Estado no ambiente comunitário seria dispensável se este cumprisse com os quesitos básicos de atendimentos das reivindicações sociais, lhes proporcionando uma melhoria nos atendimentos de saúde, moradia, empregos dignos e educação de qualidade. Não há sentido em tentar resolver situações isoladas ou apenas fazer com que o problema se desloque de lugar, aliás, este fato se repete quando observamos a migração de indivíduos indesejados para áreas distantes, tanto no caso da urbanização e sanitarização de Pereira Passos e Osvaldo Cruz, como no da ressocialização das favelas cariocas do século XXI. Considerações finais O foco deste trabalho voltado para a História Social busca entender outras vertentes além daquela vista pelas elites, dando possibilidades de compreensão dos reclames destas classes inferiores e como foram realocadas do seu ambiente social cultura local. Estas ações possibilitaram até mesmo o enfraquecimento das relações com culturas que poderiam ter sobressaído com maior impulso perante outras que por imposição, acabaram prevalecendo. Este pensamento vale para as questões de hábitos e costumes, influências lingüísticas, artes em geral e posturas que deixaram de perpetuarem. As concepções positivistas inseridas nas reformas urbanas vêm desde as modificações urbanísticas promovidas por Hausmann em Paris no fim do século XIX, onde depois de revoltas populares, colocou em prática um plano ousado de limpeza sanitária e uma revitalização urbana, expulsando os indesejáveis para longe do centro de Paris. Para (COUTINHO 2007): ―A principais críticas a essa reformas recaíam sobre o excesso de gastos financeiros, a falta de habitações populares para os desalojados e a denúncia de estratégias militares, como a de dificultar revoltas com as grandes avenidas.‖ Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 original sem dar razão quando estas reclamavam de seus direitos em viver sob sua 111 Podemos observar o mesmo processo no Rio de Janeiro, com a Regeneração urbana, acompanhada do saneamento e a realocação dos grupos sociais menos privilegiados marcam drasticamente as ações discriminatórias e de controle social. A reação que vimos quando da Revolta da Vacina mostra que a insatisfação era generalizada e mesmo sendo usados como massa de manobra, era certo que o queriam era mais inserção de suas necessidades pelo poder governante. (SEVECENKO 2006:150) explica que esta massa vivia na instabilidade social e que isso já era como uma identidade, A ―desordem‖ e o ―tumulto‖ eram dimensões eficientes e que lhes garantiam a sobrevivência. A Regeneração e o sanitarismo vieram quebrar esta ordem. Temos que ter em mente também que a aurora do regime Republicano trouxe com ele, além do fim da escravidão e da acentuação do processo de estímulo à imigração, um elemento até então novo - o crescimento populacional das cidades como o caso da então Capital Federal. (SEVECENKO2010:119) sustenta a tese de que: ―fatores como os conceitos de capitalização, aburguesamento e cosmopolização sejam aqueles que identificam as raízes mais profundas destes acontecimentos do início do século XX‖. Vejo que o ponto crucial do debate está sobre a inquietação deste movimento social no qual gira em torno do descaso e da falta de interesse por parte das elites em enxergarem uma solução para seus problemas cotidianos. Acharam melhor reprimi-los e direitos individuais da Revolução Liberal ficaram para trás e a repressão estatal e a truculência de seus agentes, ecoa até os dias atuais, não dando voz a essas classes, nem possibilitando lhes escolher seus dominantes. Concordo com (JOSÉ MURILO DE CARVALHO 2007) quando este fala que ―a ausência de povo, foi o pecado original da República‖. Quando nos deparamos com trabalhadores cada vez mais sendo deslocados para áreas distantes das grandes cidades brasileiras, fazendo com que a rotina de deslocamentos até os pontos de vazão trabalhistas, podemos concluir que não é uma escolhas destas pessoas em viver nestas áreas, muitas vezes de risco, mais sim uma necessidade e uma realidade imposta pelas ações do Estado. REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS SEVECENKO, Nicolau. A Revolta da Vacina; Mentes insanas em corpos rebeldes. São Paulo: Coasac Naiify, 2010, 114pp. IANNI, Octávio. A idéia de Brasil moderno. São Paulo: Brasiliense, 2004. p. 102 a 112. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 transferi-los a localidades mais distantes para que não se notassem as desigualdades. Os 112 CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: O Rio de Janeiro e a República que não foi/ José Murilo de Carvalho. São Paulo: Companhia das Letras, 1987 História da vida privada no Brasil/ coordenador-geral da coleção Fernando A. Novais: organizador do volume Nicolau Sevcenko. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. (História da vida privada no Brasil: 3) MACHADO DA SILVA, Luiz Antônio. Afinal, Qual é das UPPs? In: http://www.observatoriodasmetropoles.ufrj.br/artigo_machado_UPPs.pdf, acesso em 10/10/10 as 15h33min CARVALHO, José Murilo. O pecado original da República. Revista de História da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro. 2007 In: http://www.revistadehistoria.com.br/v2/home/impressao.php?id=700&pagina+2 acesso em 14/10/2010 às 18h24min. MATTOS, Rômulo Costa. Aldeias do Mal. Revista de História da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro. 2007. In.: http://www.revistadehistoria.com.br/v2/home/?go+detalhe&id+1152. Acesso em 14/10/2010 às 19h12min Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 TOURINHO, Adriana de Oliveira. A influência das reformas parisienses no Rio de Janeiro nos anos 20. In: ANAIS das jornadas de 2007 do programa de pós graduação em História social da UFRJ. 2007 In.:http://revistadiscenteppghis.files.wordpress.com/2009/05/adriana-tourinho-ainfluencia-das-reformas-urbanas-parisienses-no-rio-de-janeiro-dos-anos-20.pdf. acesso em 13/10/2010 ás 16:45 hs. 113 COOPERATIVISMO : UMA POSSIBILIDADE DE EMANCIPAÇÃO: O CASO DA COOPERATIVA DE RECICLADORES DE UBERLÂNDIA (CORU) Leandra Ramim Graduando em História Universidade Federal de Uberlândia No limiar do século XXI o lixo é tido como algo, pela grande população brasileira, que deve ser retirado o mais rápido possível e com o menor desprendimento de gasto e trabalho presumível. ―Uma primeira característica econômica peculiar do lixo é seu preço negativo. É negativo porque proprietário ou detentor – ao contrário do que ocorre usualmente com os demais bens da economia – está disposto a pagar para dele se descartar.‖ (CALDERONI, 2003, p.65) Esta mesma população que em seu cotidiano o produz. Paga impostos para que entre outros serviços urbanos tenhamos a coleta de lixo constante e regular, que retira das calçadas e forja um cumprimento de responsabilidade com seu lixo. Transferimos a responsabilidade pelo lixo produzido para o setor público que é incapaz de encaminhar os resíduos para um desfeche seguro e econômico. ―O preço é negativo porque há sempre um custo de disposição final. Trata-se de positivo esse preço negativo ao transformar o lixo em insumo produtivo.‖ (CALDERONI, 2003, p.108) Outro fator que amplia a dimensão do dilema do lixo é o continuo aumento do consumo dos bens de produção, que é um fermento necessário para o sistema econômico de produção capitalista. E nisso o avanço exacerbado tecnológico ocorrido no século passado e continuado no atual, transformador de ferramentas, meio ambiente, culturas, e o próprio homem. A produção de lixo é inevitável, e se dá em dois momentos, em primeiro, como conseqüência do próprio ato de produzir e no segundo momento após a utilização ou tempo de vida útil dos produtos. O que nos mostra que tudo que esta sendo produzido hoje será lixo amanhã. Daí a necessidade e importância da reciclagem. E algumas condicionantes fundamentais para tanto são: a exaustão das Matérias-Primas que são finitas não apenas Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 uma externalidade negativa. A reciclagem vem a ser uma alternativa para tornar 114 no mundo como um todo, mas, de maneira diferenciada em cada um dos países consumidores. A acessibilidade diferenciada às fontes de suprimento de matérias-primas, ao longo do tempo, constitui a base geográfico-econômica deste problema. Mesmo em situação em que as matérias-primas se acham disponíveis, tendem a ser crescentes seus custos de extração e transporte. No caso da extração, isto se dá porque são normalmente exploradas primeiramente as áreas mais próximas, e assim sucessivamente, até atingirem-se as mais distantes, que podem situar-se no exterior. (Calderoni, 2006, p.25) A economia de energia representa um outro forte condicionante para reciclagem, no Brasil a forma mais usual e econômica de se produzir energia elétrica é através de usinas hidrelétricas, mas devido a irregular distribuição regional de recursos hídricos e o ineficiente investimento, vivemos a eminência em períodos de estiagem de novos apagões. 61 O dilema dos aterros sanitários, indisponibilidade e custo crescente, vivenciado por diversos municípios, inclusive pelo município de Uberlândia 62 , pois, segundo o Jornal Correio de Uberlândia na repórter Andréia Candido apresenta que até o fim de setembro de 2010 um novo aterro sanitário localizado no Distrito Industrial, na zona norte da cidade, passará a ser utilizado em substituição do anterior que teve sua lotação antecipada em três anos. A professora Marlene Colesani do Instituto de geografia da Universidade A preocupação deve girar em torno da vida do aterro sanitário, cujo o tempo pode ser menor que o projetado, uma vez que o consumo da população cresce a cada ano. Destinar uma área ao aterro sanitário é abrir mão de um espaço que poderia abrigar um parque ou moradia habitacional, por exemplo. (Jornal Correio de Uberlândia, 20/07/2010) O atual aterro tem área equivalente a trinta campos de futebol, com o custo de R$25 milhões, que se localiza ao lado do anterior, em projeto, sua vida útil é de 21 anos. E está de acordo com os critérios da Superintendência Regional de Meio Ambiente (Supram). Critérios estes, por exemplo: como possuir a impermeabilização de argila, 61 A reciclagem de resíduos significa considerável economia de energia. Por exemplo, o papel produzido através de reciclagem permite redução de 71% da energia total necessária; o plástico 78,7%; o alumínio 95%; o aço 74%; o vidro 13%. Dados retirados do livro: CALDERONI, Sabetai. Os Bilhões Perdidos no Lixo. 4ª ED., São Paulo: Humanitas Editora / FFLCH/USP, 2003 62 Apesar de em 25 de setembro de 2007 Uberlândia ter ganho durante o encontro “ICMS Ecológico: Saneamento á mais de 100”, com destaque de Ouro na classificação aterro sanitário. Demonstrando assim ser a cidade mineira que melhor se adequou as normas ambientais de acordo com a Fundação Estadual do Meio Ambiente (Feam) Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 Federal de Uberlândia (UFU) aponta que: 115 que tem como função proteger o solo e os lençóis freáticos do chorume 63 , e conter distância do meio urbano e do rio Uberabinha que no caso deu origem a cidade. Acrescentando outra condicionante que é o aumento do custo do transporte, a empreitada de coleta de lixo tradicional já requer por natureza grande demanda de transporte e ao ponto em que os aterros se situam ainda mais longe a demanda de transporte aumenta. A má destinação do lixo gera poluição e prejuízos a saúde pública, os resíduos orgânicos ou inorgânicos jogados em lugares indevidos como estradas, a rios e mares, próximos a áreas residenciais, ou mesmo em aterros irregulares contaminam o solo e conseqüentemente aqüíferos e lençóis freáticos. E também se torna um vetor de moscas e animais peçonhentos, agentes de transmissão de doenças. Estas são as principais condicionante que estão presentes nos debates e norteadores da legislação ambiental presentes nesta primeira década do século XXI, mas a prática da reciclagem ainda não é efetiva, por exemplo a separação do lixo domiciliar em orgânico e inorgânico junto a população do município de Uberlândia iniciou-se a poucos anos e ainda é uma prática pouco usual pela maioria dos habitantes, e é perceptível na fala dos catadores, quando questionei a catadora Luciene se já deu para perceber se modificou o hábito da população no aspecto da divisão do lixo na fonte, ou seja se a população esta separando o lixo proveniente dos lares antes de entregá-lo a Algumas pessoas mudaram. Quando agente esta catando lá de fora na rua, algumas pessoas a gente passa e já tem aquele material todo separadinho nas lixeiras, ou tem uns que já abrem a porta e já te entregam, mas nas empresas não, as empresas continuam mandando comida, põem lixo orgânico mesmo põem fraldas, folhas, pacotes de folhas para aqui dentro, são coisas assim, tem vez que até bicho morto, abre o saco e aquele cheiro insuportável, como você vai reciclar um passarinho morto, como você vai reciclar uma comida que você já jogou fora, todo mundo sabe disso. No caso das empresas a gente ta procurando saber o que vai fazer, colocar um de nós lá dentro ou tentar de novo fazer uma palestra com eles. (entrevista, 2010, coletora Luciene) E a resposta do senhor Vagner catador de outra região da cidade sobre se a população esta separando o lixo, dividindo em casa. ―Tem muita gente que sim... e muita gente que não tá separando o lixo...entrega tudo misturado.‖ (entrevista, 2010, coletor Vagner) 63 chorume: liquido escuro proveniente do processo físico químico da decomposição de materiais orgânicos, somados a ação das chuvas ocasionam a lixiviação. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 coleta. 116 E quando foi perguntado se ele acha que está aumentando nestes onze anos que ele coleta, o número de pessoas que separam, que dividem o lixo. ―Muita gente tá e muita gente não tá ainda dividindo o lixo, continua a mesma coisa, não mudou nada, as pessoas continuam colocando o lixo da mesma forma.‖ (entrevista, 2010, coletor Vagner) É certo que estamos vivenciando uma mudança de consciência e atitude em relação ao meio ambiente, mas existe um longo caminho a ser percorrido, pois tal mudança de atitude a nível global, ou seja até que todos se tornem responsáveis pelo lixo, desde a extração da matéria prima até o descartamento por termino de tempo útil, que vai do consumo consciente ou mesmo da prática da tão propagandeada atitude dos ―3R‖, que consistue em Reduzir, Reutilizar e Reciclar, também controle do destino dos resíduos e até a reciclagem. Assim pressupondo a prática da Teoria do Desenvolvimento Sustentável.64 Pois o reaproveitamento de matérias primas (ou seja economia de capital natural) proporcionado pela reciclagem expõem um contribuinte para o desenvolvimento sustentável. A forte referência do século XXI é que as ações humanas devem estar focadas na preservação e na sustentabilidade do planeta. Prova disto é a busca da estruturação e implementação da Agenda 2165, em todos os municípios brasileiros, inclusive Uberlândia que ainda em prática se distancia dos preceitos da agenda, tal atitude é 64 Sobre sustentabilidade: (pode ou não ser rodapé) A Teoria do Desenvolvimento Sustentável segundo o economista Sabetai Calderoni (Calderoni, 2003) pode ser resumida em sua principais contribuições que são: Os limites da capacidade de suporte do planeta; A questão da irreversibilidade das ações; A ética da solidariedade diacrônica; A necessidade de mudança no estilo de desenvolvimento; E a importância da Contabilidade Ambiental como instrumento para introduzir o valor do ambiente e o consumo do capital natural como fator integrante das medidas do produto das nações. Não considerando a riqueza presente na nação como um triunfo sobre as outras, mas considerando a iminência de escassez de algumas matérias primas a médio prazo. 65 Agenda 21: Principal documento formulado na RIO-92, é um programa de ação que viabiliza o novo padrão de desenvolvimento ambientalmente racional. Ele concilia métodos de proteção ambiental, justiça social e eficiência econômica. Este material está estruturado em quatro seções subdivididas num total de 40 capítulos temáticos. Eles tratam dos temas como: Dimensões econômicas e sociais, conservação e questão dos recursos para o desenvolvimento, revisão dos instrumentos necessários para a execução das ações propostas e a aceitação do formato e conteúdo da Agenda. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 Essa conceituação ressalta a questão da solidariedade diacrônica, imperativo ético segundo o qual as gerações presentes devem assumir a responsabilidade pelo ambiente que legarão as gerações futuras. Contudo, a tradição e as práticas vigentes de mensuração de renda nacional não incorporam considerações a cerca das conseqüências ambientais do desenvolvimento econômico, não levando em conta, portanto, as relações do presente com o futuro.‖(Calderoni, 2003, p. 56) 117 facilmente observada em relação da reciclagem no município, pois em exemplo em órgãos públicos como a própria prefeitura ainda não há separação de lixo. É certo afirmar que chegamos ao inicio do século XXI, com uma consciência maior do que é sustentabilidade ambiental. A prática da sustentabilidade começou-se a se fazer presente em alguns aspectos do cotidiano tanto dos cidadãos comuns que iniciam um consumo mais consciente e encetam a responsabilidade com seu lixo, quanto de empresas que produzem, vendem ou prestam serviços de forma a atender a demanda do desenvolvimento sustentável, tanto para obterem incentivo junto ao município e conseqüentemente do Estado, quanto a atender as novas exigências de consumo consciente nascente. Mas como foi dito antes ainda há um longo caminho a ser percorrido. Os agentes da reciclagem estão divididos na atualidade brasileira em: sucateiro ou atravessador, catador, empresas de reciclagem e consumidor. Sucateiros: Na cidade de Uberlândia existem inúmeros tipos de sucateiros, por ser dotada de um extenso perímetro urbano e grande densidade demográfica, facilmente encontramos estes agentes que exercem como função remunerada, a compra e venda de materiais recicláveis, encaram como primeiro e ou segundo emprego esta atividade. O sucateiro O oficio a grosso modo, é comprar e vender material reciclável. O que os diferencia um do outro dentro desta ação autônoma sem registro ou legalidades, são diversos fatores relacionados a estrutura física que dispõem o sucateiro, como por exemplo: qual tipo de balança, se ele tem prensa ou não, o tamanho do espaço de armazenagem do material, meio de transporte, qual material prefere comprar, como faz pagamentos e recebe. A balança é a ferramenta principal de seu trabalho, pois é nela que se visualiza o que entrou e o que saiu em peso de seu depósito, ou seja, o que foi comprado do catador e o que foi vendido para as indústrias de reciclagem ou até mesmo para outro atravessador de maior porte. O espaço que é disponibilizado pelo sucateiro também agrega valor ao produto, pois as indústrias de recicláveis só compram em peso e, a cima de uma tonelada, e quanto mais limpo e bem dividido e organizado o material menos desvalorizado será. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 também é conhecida como atravessador. 118 Os caminhões ou peruas são necessários para os atravessadores de pequeno a médio porte, pois podem transportar e vender aos lugares possíveis que mais lhe interessam, e como disse a pouco as indústrias de reciclagem só vão buscar e compram em quantidades acima de uma tonelada. O atravessador pode escolher vender cada tipo de material para qual comprador que preferir. Catadores: No caso de Uberlândia a realidade dos catadores se assemelha e se distancia em alguns pontos em comparação a outras cidades que existe maior literatura sobre o assunto reciclagem, como as cidades de Rio de Janeiro RJ e São Paulo SP. Onde é apontado que os catadores têm como primeiro oficio e subsistência a atividade de coleta. Aqui em Uberlândia foi percebido através de uma pesquisa quantitativa realizada, mas ainda não divulgada, pela Secretária do Meio Ambiente de Uberlândia e idealizada por José Raul Peres responsável anterior pelo Núcleo de Coleta Seletiva de Uberlândia. Responsável anterior, pois, hoje o cargo esta de posse de Donisete Tavares. Percebido que no Município de Uberlândia que um número expressivo, pouco mais de cinqüenta e dois por cento dos indivíduos, que praticam a catação tem esta atividade como um complemento da renda, e que também contrariando as estatísticas desta outras regiões em Uberlândia a maioria dos catadores tem casa própria de alvenaria ou moram Mas como em todas as cidades brasileiras várias modalidades de catadores se fazem presentes. Tais como: os catadores moradores de rua, os coletores que encaram a atividade como profissão autônoma, os coletores que trabalham em outras profissões e captam alguns materiais apenas para a melhora da renda mensal ou também visualizamos os recicladores cooperados que é o foco que nesta pesquisa que se subscreve. Descrevendo a grosso modo estas principais modalidades que se apresentam no cotidiano urbano brasileiro e no caso Uberlândia, inicío com os moradores de rua que tem como fonte de subsistência, além da mendicância e o assistencialismo social, a coleta de materiais recicláveis. Estes indivíduos em sua maioria do sexo masculino que existem no dilema de não ter um lar para retornar ao final de cada jornada diária. São os que se encontram mais à margem do mercado de trabalho e subinseridos no sistema de reciclagem brasileiro, pois de um lado não encontram um trabalho regular e na atividade de catação Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 com familiares em tais. 119 encontram uma forma de arrecadação de capital. Subinseridos, pois são os mais explorados pelos atravessadores, facilmente substituídos por outro indivíduo e são os que trabalham em piores condições, sem equipamento algum de proteção, parda alimentação e, muitos são alcoólatras e ou adictos e ou também praticam pequenos crimes. Alguns destes portam carrinhos de coleta que em muitos momentos servem de moradia, pois utilizam seus carrinhos como dormitório ou proteção para dormirem nas calçadas, praças, a sombra de pontes e fachadas, entre outros espaços públicos. O mais habitual é estarem sempre juntos de seus carrinhos, pois no albergue de Uberlândia 66 não é permitido guardá-los, também ocorre de deixá-los com o sucateiro ou até mesmo trabalham para ele sem vínculo formal empregatício. Também existe a situação em que o sucateiro/atravessador empresta o carrinho para o coletor morador de rua. Estes indivíduos não tem lugar para acumular suas coletas então as vende diariamente o que gera sempre baixas remunerações. Outra modalidade de catadores presente na cidade de Uberlândia são os que agem de forma autônoma ou como um negócio familiar. Eles têm carrinhos, espaço para o armazenamento (junto à própria residência, sendo casa própria ou não) em muitos casos possui balança, vendem seus materiais para diversos sucateiros, para um os plásticos, para outro os metais e assim sucessivamente, podem levar até o sucateiro ou do coletor e separador senhor Vladimir que coleta diariamente, salvo os domingos, e acumula em seu quintal, em média no prazo de um mês uma tonelada e duzentas gramas em média só de papelão. Alguns coletores autônomos não se associam a outros coletores, pois acreditam em seu potencial e temem trabalhar mais que os seus parceiros e ganharem o mesmo. Já a modalidade de coletores como segunda renda em geral prezam mais ainda pela independência, já que conciliam seu horário com outro oficio e, na atividade de reciclagem experimentam serem seus próprios patrões. Sendo visto como uma atividade remunerada familiar, ocorre que a primeira experiência de trabalho para muitos adolescentes seja a coleta seletiva. 66 Grupo Ramatisiano Albergue Noturno Ramatis, localizado na Av. João Pinheiro, 3150 - Bairro Brasil. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 dependendo a quantidade em peso acumulada o atravessador vai buscar. Como no caso 120 Agora em foco nesta pesquisa estão os catadores de recicláveis cooperados que durante o convívio e entrevistas pude perceber claramente que estão mais conscientes do sistema de reciclagem brasileiro. Todos experimentaram outros ofícios e outras formas de contratos de trabalho e nesta de cooperativa encontram várias vantagens como serem tratados com mais respeito e confiança. Quando eu entrei eu entrei sem ser uma cooperada, sem registro nenhum. Foi mais pela união que a gente sentiu, mais pelo tratamento, que é bem melhor que um empregada doméstica, por exemplo, patrão não tem aquela convivência com a gente, né. Pela amizade se você estiver com algum problema eles tentam te ajudar e no que puder te ajudam, é por tudo. Ás vezes o que tenho aqui dentro eu não tenho nem com minha família. Bem melhor o tratamento mesmo. (entrevista, 2010, coletora Luciene) Observado na fala da coletora Luciene uma das principais vantagens que gerou a associação foi o aumento da dignidade no âmbito do trabalho e a luta contra a exploração cometida por parte dos atravessadores e sucateiros. Este foi o grande motivo de união destes homens e mulheres. REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS BAUMAN, Z. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. BOSI, A. P. Constituição do Espaço Urbano e Conflito Social: Uberabinha (1888-1922). Tese de Doutorado História, UFF, 2002. CALDERONI, Sabetai. Os Bilhões Perdidos no Lixo. 4ª ED., São Paulo: Humanitas Editora / FFLCH/USP, 2003 CAPRA, Fritjof. As conexões ocultas: ciência para uma vida sustentável. São Paulo: Cultrix, 2005. DUPAS, G. A lógica da economia global e a exclusão social. Estudos Avançados 12 (34), 1998. ELIAS, N.. O processo civilizador: uma história dos costumes. V. I, Rio de Janeiro: Zahar, 1994. FERNANDES, C. Análise do Discurso – reflexões introdutórias. São Carlos: Claraluz, 2ed. 2007. GINZURG, C. O Queijo e os vermes. 5ª Ed., São Paulo: Cia das Letras, 1991. GINZURG, C. Os Andarilhos do Bem. São Paulo: Cia das Letras, 1990. HARVEY, D. A globalização contemporânea. In: Espaços e Esperança. 2ª Ed., São Paulo: Loyola, 2006. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 BECHO, R. L. Problemas atuais do direito cooperativo. São Paulo: Dialética, 2002. 121 HELOANI, R. Gestão e Organização no Capitalismo Globalizado. São Paulo: Atlas, 2003. MAGERA, M. Os empresários do lixo: um paradoxo da modernidade. Campinas, SP: Átomo, 2003. MARX, K. O Capital: Crítica da Economia Política. São Paulo. Abril Cultural. 1984. MATOSSO, J. O Brasil desempregado: Como foram destruídos mais de 3 milhões de empregos nos anos 90. São Paulo: ABRAMO, 1999. MIURA, P. C. O. Tornar-se catador: uma análise psicossocial. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, SP. (Dissertação – Mestradro Psicologia Social) MORAES, M. Usos e Abusos da História Oral. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 1996 p.XIV. NORONHA, A. V. Cooperativismo. São Paulo. Capa de A. Pavan, 1976 PICCININI, V. C. Cooperativas de trabalho de Porto Alegre e flexibilização do trabalho. Sociologias, 6 (12), 68-105, 2004. PINHO, Diva Benevides. O Cooperativismo no Brasil: da vertente pioneira à vertente solidária. São Paulo: Saraiva, 2004. PLEKHANOV, G. V. O Papel do indivíduo na história. São Paulo: Expressão Popular, 2000. PORTO, M. F. S.; JUNCÁ, D. C. M.; GONÇALVES, R. S & FILHOTE, M.I. F. lixo, trabalho e saúde: um estudo de caso com catadores em um aterro metropolitano no Rio de Janeiro, Brasil. Caderno Saúde Pública, Rio de Janeiro, 20 (6), 1503-1514, 2004. QUEIROZ, M. I. Variações sobre a técnica do gravador no registro da informação viva. São Paulo: CERV/USP. 1983. THOMAS, K. O homem e o mundo natural: mudanças de atitude em relação às plantas e aos animais (1500-1800). São Paulo: Cia das Letras, 1988. VELHO, G. A utopia urbana. Um estudo de antropologia social. Rio de Janeiro: Zahar. YÚDICE, G. A conveniência da cultura: usos da cultura na era global. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 SILVA, F. C. V. Cooperativas de trabalho. São Paulo: Atlas, 2001. 122 EDUCAÇÃO AMBIENTAL: PRINCÍPIOS E PRÁTICAS (1987-1999) Cristiele Maria de Souza Nascimento Acadêmica do curso de História da Universidade Federal de Uberlândia - Faculdade de Ciências Integradas do Pontal (UFU – FACIP). E-mail: [email protected] Eduardo Giavara Doutor em Historia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, atualmente leciona na Universidade Federal de Uberlândia - Faculdade de Ciências Integradas do Pontal (orientador) (UFU – FACIP). E-mail: [email protected] Introdução As discussões sobre os usos e abusos da população em relação ao meio ambiente se tornam cada vez mais presente em nosso cotidiano, é evidente a preocupação em alguns setores sociais relativo aos rumos de nossa sociedade. Após o primeiro desastre ambiental em grande escala, ocorrido em Londres, no ano de 1952 provocando a morte de 1.600 pessoas, desencadeia-se um processo de discussão sobre a qualidade ambiental, resultando na Lei do Ar Puro67 pelo parlamento, em 1956. Este fato dá início a diversos debates em outros países, principalmente nos A década de 60 começava, exibindo ao mundo as conseqüências do modelo de desenvolvimento econômico adotado pelos países ricos, traduzidos em níveis crescentes de poluição atmosférica nos grandes centros urbanos [...]; em rios envenenados por despejos industriais; [...] em perda da cobertura vegetal da Terra, ocasionando erosão, perda de fertilidade do solo, assoreamento dos rios, inundações e pressões crescentes sobre a biodiversidade. Os recursos hídricos, sustentáculo e derrocada de muitas civilizações, estavam sendo comprometidos a uma velocidade sem precedentes na história humana. (DIAS, 2004. p. 77) 67 A chamada ―Lei do Ar Puro‖, aprovada em 1956 pelo Parlamento Inglês, estabeleceu limites para a emissão de poluentes e os níveis aceitáveis da qualidade do ar, visando controlar a poluição urbana. Em Londres, a lei sugiu em decorrência de sérios episódios causados por emissão de fumaça da queima do carvão, a qual era a responsável pelo famoso ―fog‖. Um dos mais graves episódios aconteceu em 1952, quando um nevoeiro muito intenso foi responsável por 4 mil mortes e mais de 20 mil casos de doença. Outras leis se seguiram no Reino Unido, na América do Norte, em muitos outros países da Europa Ocidental e no Japão. Nos Estados Unidos foi criada a lei do ar puro cuja sigla é CAA (Clean Air Act), também em 1956, que estabelece padrões de emissão para poluentes atmosféricos perigosos, fixando limites quanto à queima de resíduos de risco, limitando-a apenas àqueles que são combustíveis ou que possam sofrer decomposição térmica. Ela inclui indústrias, veículos e quaisquer outros meios emitentes de fumaça, como as queimadas agrícolas. É uma lei federal muito extensa e complexa, cujo texto e regulamento abrangem mais de 800 páginas (1007 artigos). Possui tipos penais abertos e fechados, dolosos e culposos, possibilitando ainda a responsabilização penal da pessoa jurídica. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 Estados Unidos, a partir de 1960. Dias relata que: 123 Neste mesmo período ocorrem reformas no currículo escolar estadunidense, onde a temática ambiental começa a ser abordada, mesmo que de forma superficial. Ao mesmo tempo os movimentos sociais, principalmente na Europa, ganhavam espaço. Em março de 1965 na Grã-Bretanha, durante a Conferencia em Educação realizada na universidade de Keele, surge o termo Educação Ambiental, onde esta ―deveria se tornar uma parte essencial da educação de todos os cidadãos e seria vista como sendo essencialmente conservação ou ecologia aplicada‖ (Dias, 2004. p. 78). Com o debate cada vez mais presente nas discussões mundiais, ocorrem diversas conferências com o intuito de solucionar os problemas ambientais. Devemos destacar alguns, como a Primeira Conferência Mundial de Meio Ambiente, promovida pela ONU em Estocolmo, no ano de 1972. Esta conferência desejava ―[...] discutir os problemas de poluição ambiental, acúmulo de dejetos industriais, explosão demográfica e diminuição dos recursos naturais, não renováveis do planeta‖ (CATALÃO 2009. p. 250). Fizeram parte desta conferência empresários e estudiosos que constituíam o chamado ―Clube de Roma‖, estes que produziram o relatório conhecido como ―Limites ao crescimento‖. Além da Conferência de Brundtland que resulta no livro conhecido como ―Nosso Futuro Comum‖. No Brasil um dos maiores eventos já realizado é a Rio-92, e entre os mais importantes acordos gerados a partir desta, encontramos a Agenda-21, e mais Clube de Roma Em abril de 1968, Aurélio Peccei68 e Alexander King69 convidam profissionais de diversas áreas a fim de discutir e realizar uma análise sobre os limites do crescimento econômico em relação ao uso crescente dos recursos naturais. Eles buscam dar uma nova abordagem ao tema, pois se concentram nas possíveis conseqüências em longo prazo ao meio ambiente. 68 Aurélio Peccei (04/07/1908 – 14/03/1984) nasceu em Turin, região Italiana de Peimonte. Formou-se no ano de 1930 em economia. Durante a Segunda Guerra Mundial, se envolveu no movimento anti-fascista e da resistência, onde era um membro da "Giustizia e Libertà". 69 Alexander King (26/01/1909 – 28/02/2007) era cientista e pioneiro do movimento sustentável do desenvolvimento. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 recentemente o Programa Nacional de Educação Ambiental. 124 No ano de 1972 publicam o ―Os limites do crescimento‖70, resultado de pesquisas que foram lideradas por Dennis L. Meadows71, realizando uma projeção para os próximos cem anos, afirmando que o devido o ritmo contínuo de crescimento da população e utilização dos bens naturais, a humanidade poderia não sobreviver pós século XXI. E importante relatar que o mesmo não considerou possíveis avanços tecnológicos e novas descobertas. Para eles, só era possível uma estabilidade econômica e duração dos recursos naturais, se existisse uma forma de congelar o crescimento populacional e efetivar uma ‗economia de estado estacionária‘. Podemos caracterizar esta obra como uma das iniciativas que obteve maior repercussão se comparada com tantas outras manifestações do período. Esta publicação em nível internacional reflete tanto no campo político quanto no econômico mundial, o próprio ―Clube de Roma‖ se intitula influenciador da criação de Ministérios do Meio Ambiente em vários países, como conseqüência fomentou os debates nas áreas educacionais. Nosso Futuro Comum Em abril de 1987, é divulgado ―O Relatório de Brundtland‖, produzido pela Comissão Mundial de Meio Ambiente e Desenvolvimento. Ele apresenta pela primeira vez a discussão acerca de um desenvolvimento sustentável que seria atender às gerações atenderem suas próprias necessidades. Este relatório, que resulta de pesquisas realizadas entre os anos de 1983 e 1987, e desejava propor várias estratégias ambientais a fim de obter um desenvolvimento 70 “Os Limites do Crescimento‖ é um estudo sobre o futuro do nosso planeta. Em nome do Clube de Roma, Donnella Meadows, Dennis Meadows, Jorgen Randers e sua equipe trabalhou em sistemas de análise no instituto Jay W. Forrester's no MIT. Eles criaram um modelo de computação que levou em conta as relações entre os vários índices de desenvolvimento global, além de utilizar simulações de computador produzido para cenários alternativos. Parte da modelagem utilizou diferentes quantidades de recursos disponíveis, possivelmente, diferentes níveis de produtividade agrícola, controle de natalidade ou de proteção ambiental. A maioria dos cenários resultou em um crescimento contínuo da população e da economia até a um ponto de viragem em torno de 2030. Somente medidas drásticas para a proteção ambiental mostraram-se adequadas para alterar esse comportamento de sistemas. 71 Dennis Meadows é Professor Emérito da Política de Sistemas da Universidade de New Hampshire. É Doutor em Gestão, pelo Massachusetts Institute of Technology, Cambridge, MA, EUA. Autor, co-autor ou editor de dez livros, coletivamente traduzido em 35 idiomas. Entre eles ―Os limites do Crescimento‖, foi agraciado com o Prêmio da Paz 1974 alemão e selecionado por uma associação de escritores ambiental como um dos dez mais influentes livros ambientais do século 20. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 necessidades das gerações atuais, não comprometendo a capacidade das futuras 125 sustentável72 a partir do ano 2000. Além indicar caminhos que fomentem a colaboração entre vários países, mesmo aqueles que se encontrava em diferentes estágios de desenvolvimento econômico e social. Ele também propõe maneiras e meios para que a sociedade se relacione intrinsecamente com os debates de cunho ambiental. Outra característica do Relatório de Brundtland é a preocupação em ajudar a definir ―noções comuns relativas a questões ambientais de longo prazo e os esforços necessários para tratar com êxito os problemas da proteção e da melhoria do meio ambiente‖ (Nosso Futuro Comum, 1991). Para o Relatório de Brundtland a principal preocupação é que o consumo, o crescimento populacional e o crescimento econômico não retirem os direitos de gerações futuras poderem utilizar os recursos naturais. Inicialmente ele discute uma possível garantia da manutenção de crescimento para todos os seres vivos, garantia esta que é buscada através de uma reorientação tecnológica, além da ajuda financeira aos países pobres, uma vez que a pobreza se torna uma das principais causas da deterioração ambiental. Consequentemente é sugerido um sistema de correções onde todos os países participam principalmente os mais ricos, pois as empresas multinacionais têm papel relevante a desempenhar. A fiscalização ocorreria através da conscientização de cada grupo social. Portanto, o desenvolvimento sustentável estaria diretamente ligado ao sistema Agenda 21 No ano de 1992, na cidade do Rio de Janeiro, 179 países se reuniram no evento que ficou conhecido como Rio-92, estes que se comprometeram em pautar suas políticas ambientais, econômicas e sociais de acordo com o conceito de desenvolvimento sustentável, para tanto formularam uma agenda contento quarenta capítulos e aproximadamente 2.500 recomendações. Essas recomendações ficaram conhecidas como Agenda21, e hoje muitos estados e cidades possuem suas próprias Agendas 21. 72 A definição mais aceita para desenvolvimento sustentável é o desenvolvimento capaz de suprir as necessidades da geração atual, sem comprometer a capacidade de atender as necessidades das futuras gerações. É o desenvolvimento que não esgota os recursos para o futuro. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 capitalista, este que sistema que é considerado umas das causas dos danos ambientais. 126 Podemos caracterizar a Agenda-21 como o programa mais avançado de preservação ambiental, pois o mesmo ―Reflete um consenso mundial e um compromisso político no nível mais alto no que diz respeito a desenvolvimento e cooperação ambiental. O êxito de sua execução é responsabilidade, antes de mais nada, dos Governos‖. (Agenda-21. Cap. 1, Parágrafo 1.3). A Agenda-21 possui entre suas principais finalidades, incentivar os países a construírem suas próprias agendas, inserindo-as em seu contexto. Particularmente no capítulo trinta e seis, encontramos discussões de âmbito educacional. A Agenda-21 acredita que: O ensino, o aumento da consciência pública e o treinamento estão vinculados virtualmente a todas as áreas de programa da Agenda 21 e ainda mais próximas das que se referem à satisfação das necessidades básicas, fortalecimento institucional e técnica, dados e informação, ciência e papel dos principais grupos. (Agenda-21. Cap. 36, Parágrafo 1) Neste sentido a Agenda-21 alguns principais objetivos seriam: (1) incentivar a escolarização de pelo menos 80% das crianças e reduzir o analfabetismo entre os adultos; (2) desenvolver a consciência ambiental o mais breve possível; (3) facilitar o acesso à educação ambiental nos diferentes níveis educacionais; (4) possibilitar a análise das principais causas de problemas ambientais e de desenvolvimento, recorrendo à provas cientificas de qualidade. O Protocolo de Kyoto é um acordo internacional assinado por 80 países, que fora aprovado em 1997, este se desdobra da Convenção-Quadro sobre Mudanças Climáticas. Ele estabelece que todos os países envolvidos precisariam diminuir sua emissão de gases causadores do efeito estufa73, em torno de 5,2% relativo aos dados apresentados no ano de 1990. Meta que deveria ser atingida entre os anos de 2008 a 2012, para tanto os países buscariam formas alternativas de energia. Ao fim do prazo inicial, estas metas não foram alcançadas. 73 O Efeito Estufa é a forma que a Terra tem para manter sua temperatura constante. A atmosfera é altamente transparente à luz solar, porém cerca de 35% da radiação que recebemos vai ser refletida de novo para o espaço, ficando os outros 65% retidos na Terra. Isto deve-se principalmente ao efeito sobre os raios infravermelhos de gases como o Dióxido de Carbono, Metano, Óxidos de Azoto e Ozônio presentes na atmosfera (totalizando menos de 1% desta), que vão reter esta radiação na Terra, permitindonos assistir ao efeito calorífico dos mesmos. Nos últimos anos, a concentração de dióxido de carbono na atmosfera tem aumentado cerca de 0,4% por ano; este aumento se deve à utilização de petróleo, gás e carvão e à destruição das florestas tropicais. A concentração de outros gases que contribuem para o Efeito de Estufa, tais como o metano e os clorofluorcarbonetos também aumentaram rapidamente. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 Protocolo de Kyoto 127 Alguns países em desenvolvimento, não possuem compromissos firmados com a redução de gases, como o Brasil. Atualmente é os Estados Unidos da América que emite cerca de 25% das emissões de gases-estufa, e por decisão do antigo presidente Bush, o acordo foi rompido em 2001. Atualmente um dos objetivos indicados pelo Protocolo encontra-se em efetivo debate, a definição de regras para emissão de créditos de carbono74. Outra discussão atual é a possível sucessão do Protocolo, prevista para o ano de 2013. ProNEA Em dezembro de 1994, é fundado o Programa Nacional de Educação Ambiental, no Brasil. O ProNEA surge em função dos vários compromissos que foram assumidos na Conferência do Rio de Janeiro, a Rio-92. Possuí parcerias com o Ministério da Cultura e com o Ministério da Ciência e Tecnologia. Entre seus principais objetivos encontramos: (1) capacitação de gestores e educadores; (2) desenvolvimento de ações educativas; (3) desenvolvimento de instrumentos e metodologias que contemplam as sete linhas de ação: I. Educação ambiental através do ensino formal; Educação no processo de gestão ambiental; III. Campanhas de educação ambiental para usuários de recursos naturais; IV. Cooperação com meios de comunicação e comunicadores sociais; V. Articulação e integração comunitária; VI. Articulação intra e interinstitucional; VII. Redes de centros especializados em educação ambiental em todos os Estados. É importante demonstrar que o ProNEA tem como missão ―estimular a ampliação e o aprofundamento da educação ambiental em todos os municípios [...] contribuindo para a construção de territórios sustentáveis e pessoas atuantes‖. Apesar de ser um programa de âmbito nacional, suas competências não dizem respeito somente ao poder público federal. 74 Os créditos de carbono são uma espécie de moeda que se pode obter em negociações internacionais por países que ainda desconsideram o efeito estufa e o aquecimento global. Esses são adquiridos por países que tem um índice de emissão de CO2 reduzidos, através desses fecham negociações com países poluidores. A quantidade de créditos de carbono recebida varia de acordo com a quantidade de emissão de carbono reduzida. Para cada tonelada reduzida de carbono o país recebe um crédito, o que também vale para a redução do metano, só que neste caso o país recebe cerca de vinte e um créditos. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 II. 128 Segundo o IBAMA - a preocupação central da proposta está em promover condições para que os diferentes segmentos sociais disponham de instrumental, inclusive na esfera cognitiva, para participarem na formulação de políticas para o meio ambiente, bem como na concepção e aplicação de decisões que afetam a qualidade do meio natural e sócio-cultural. Neste sentido, a Educação Ambiental enquanto prática dialógica que objetiva o desenvolvimento da consciência crítica pela sociedade brasileira, deve estar comprometida com uma abordagem da problemática ambiental que interrelacione os aspectos sociais, ecológicos, econômicos, políticos, culturais, científicos, tecnológicos e éticos. Baseada nos princípios de Participação, Descentralização, Interdisciplinaridade e Reconhecimento da Pluralidade e Diversidade Cultural, as Diretrizes tem como estratégia básica a articulação das ações de Educação Ambiental, desenvolvidas pelos três níveis de governo e pela sociedade civil organizada, através do estímulo a implantação e/ou implementação de um Programa Estadual de Educação Ambiental em cada Unidade da Federação75. Em 2003 o governo Lula elabora uma nova versão Programa Nacional de Educação Ambiental a fim de ―internalizar, por meio de espaços de interlocução bilateral e múltipla, a educação ambiental no conjunto do governo, nas entidades Educação Ambiental no Brasil No Brasil, segundo o ProNEA, o processo de institucionalização da educação ambiental no governo federal brasileiro teve início em 1973, com a criação, no poder executivo, da Secretaria Especial do Meio Ambiente, vinculada ao Ministério do Interior. A SEMA estabeleceu como parte de suas atribuições, ―o esclarecimento e a educação do povo brasileiro para o uso adequado dos recursos naturais, tendo em vista a conservação do meio ambiente‖, e foi responsável pela capacitação de recursos humanos e sensibilização inicial da sociedade para as questões ambientais. Mas somente no final da década 1980 a discussão sobre Educação Ambiental ganha visibilidade por ser inserida na Constituição Federal. Apesar do parecer 226/87 76, que relata a importância da inclusão da E.A. no currículo escolar e indica a 75 Informações retiradas do site: < http://www.ibama.gov.br/educacaoambiental/pronea.htm> Último acesso em: 8 nov. 2010 76 Este decreto lei é revogado pelo artigo 37.º do Decreto-Lei n.º 135/2004 Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 privadas, e no terceiro setor‖ (ProNEA, 2004. p. 33). 129 interdisciplinaridade da Educação Ambiental, a Educação Ambiental não se encontra consolidada. É importante ressaltar que o debate ambiental se insere no país no momento em que ele vive sob o regime militar: Num breve olhar para o passado, constatamos que o debate ambiental se instaurou no país sob a égide do regime militar nos anos setenta, muito mais por força de pressões internacionais do que por movimentos sociais de cunho ambiental, nacionalmente consolidados.(LOUREIRO, 2006. p.79-80) Período este que o movimento ambientalista não se encontra organizado de forma efetiva. De acordo com LOUREIRO (2006) discutir o movimento ambientalista ou propriamente falar em ambiente, dirigia-se ao ‗pensar‘ patrimônio natural e buscar formas de preservá-lo, efetivando-se em um viés mais técnico, ou seja, buscar soluções para os problemas que impediam o desenvolvimento do país. Para ele: [...] a Educação Ambiental se inseriu nos setores governamentais e científicos vinculados à conservação dos bens naturais, com forte sentido comportamentalista, tecnicista e voltada para o ensino da ecologia e para a resolução de problemas. (LOUREIRO, 2006. p. 80) Neste mesmo contexto, mais exatamente no ano de 1989, através da Lei n.º 7335, cria-se o IBAMA, a fim de formular, coordenar e executar a política nacional do meio ambiente, competindo-lhe ―a preservação, conservação, fomento e controle dos recursos naturais renováveis em todo o território federal [...] e estímulo à Educação Ambiental‖. (DIAS, 2004. p. 46-47). O IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) é resultado da fusão entre o Sema (Secretaria de Sudhevea (Superintendência de Desenvolvimento da Borracha) e IBDF (Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal). Apesar de certo ―empenho‖ governamental, a Educação Ambiental ―não era devidamente reconhecida pelas instituições oficiais‖ (LOUREIRO, 2006. p. 80). Em consequência a E.A. se constitui de forma precária como política pública educacional. Para LOUREIRO (2006) isso resulta em: Algo que se manifesta até hoje na ausência de programas e recursos financeiros que possam implementa-la como parte constitutiva das políticas sociais, particularmente a educacional, como uma política de Estado universal e inserida de forma orgânica e transversal no conjunto de ações de caráter público que podem garantir a justiça social e a sustentabilidade. (LOUREIRO, 2006. p. 82) Lei n.º 9.795 No fim da década de noventa é sancionada a Lei N.º 9.795, de 27 de Abril de 1999 que consiste na implantação oficial do Ensino de Educação Ambiental nas escolas Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 Estado do Meio Ambiente), Sudepe (Superintendência do Desenvolvimento Pesca), 130 através de um caráter formal e não formal. Com o intuito de definir políticas públicas que incorporem a dimensão ambiental e promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e o engajamento da sociedade na conservação, recuperação e melhoria do meio ambiente. Segundo a Lei: Entendem-se por educação ambiental os processos por meio dos quais o indivíduo e a coletividade constroem valores sociais, conhecimentos, habilidades, atitudes e competências voltadas para a conservação do meio ambiente, bem de uso comum do povo, essencial à sadia qualidade de vida e sua sustentabilidade.(Lei nº 9.795, Artigo 1º) Algo evidente na lei é a preocupação na formação de condutas que sejam compatíveis com a questão ambiental. Segundo Loureiro existe também certa ―preocupação em fazer com que os cursos de formação profissional insiram de modo transversal conceitos que os levem a padrões de atuação profissional minimamente impactantes sobre os bens naturais e aceitos como ecológicos‖. (LOUREIRO, 2006. p. 85) Podemos considerar a inserção da mesma, como um marco histórico nas discussões ambientais mundiais, principalmente para o Brasil, por ser o único país da América Latina a possuir uma política pública de nível nacional voltada diretamente para a Educação Ambiental. Comentários finais sustentável‘, este que reflete nas criações de medidas governamentais a fim de preservar o meio ambiente, e alertar a sociedade sobre eventuais consequências perante a existência de uma não conservação. Particularmente acredito que esse discurso ambiental está ligado intrinsecamente ao debate capitalista do mundo moderno, podemos falar que a preocupação real sobre a preservação do meio-ambiente fica em segunda ou até terceira instância. Notamos isso claramente no momento em que as indústrias chegam a faturar milhões por ano, com o discurso ecológico e mais recentemente com a política de crédito de carbono que rende milhões aos cofres particulares. Esta temática encontra-se também com os debates escolares, a partir das efetivações de leis, criadas com o intuito de preservar e salientar a importância do discurso ambiental nos currículos, de caráter formal e não formal, a fim de inculcar nos jovens conceitos morais e éticos, já que é evidente o distanciamento entre o que está Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 Atualmente se discute muito o conceito de ‗desenvolvimento 131 explícito nos documentos e o que está sendo praticado. Existem muitas falhas e ausências de explicações políticas, sociais e econômicas. No Brasil, podemos considerar que o processo de discussão ambiental chega tardiamente em relação aos outros países, um dos motivos elencados por alguns autores seria a Ditadura Militar que era vigente no país, no mesmo momento em que outras nações avançavam em seus debates. É evidente que o processo de consolidação no Brasil foi efetuado de forma plural e conturbado, onde os interesses de diversos núcleos estavam presentes, e até mesmo a existência de pressões internacionais. Porém, não podemos subjugar essas políticas públicas apenas como formas de ‗esconder‘ o debate capitalista e destrutivo que está presente em nossa sociedade, pois as mesmas são também resultados de mobilizações sociais. Portanto devemos compreender a complexidade desta temática, e ir além, buscando maneiras reais de se preservar os recursos naturais. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DIAS, Genebaldo Freire. Educação ambiental: princípios e práticas. 9ª Edição. São Paulo: Gaia, 2004. LEFF, Enrique. Saber Ambiental: sustentabilidade, racionalidade, complexidade e poder. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001. LOUREIRO, Carlos Frederico B. Trajetória e fundamentos da Educação Ambiental. 2º Edição. São Paulo: Cortez, 2006. MARTINEZ, Paulo. Ensino de História e Meios Ambiente. Cadernos de Formação: ensino de História. São Paulo. UNESP – Pró-Reitoria de Graduação, 2004. NOSSO FUTURO COMUM, Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. 2ª Edição – Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1991. PÁDUA, José Augusto (org.). Desenvolvimento, Justiça e Meio Ambiente. Belo Horizonte: Editora UFMG; São Paulo: Peirópolis, 2009. TOZONI-REIS, Marília Freitas de Campos. Educação Ambiental: natureza, razão e história. Campinas (SP). Autores Associados, 2004. (Coleção Educação contemporânea) AGENDA 21 on-line: Disponível em: <http://www.mma.gov.br/sitio/index.php?ido=conteudo.monta&idEstrutura=18&idConteudo=5 75> Último acesso em 08 nov. 2010 Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 HERCULANO, Selene. Desenvolvimento Sustentável: como passar do insuportável ao sofrível. Revista Tempo e Presença. Rio de Janeiro: CEDI, nº 261, ano 14, jan./fev1992, pp. 12 – 15. 132 RIO+10 on-line. Disponível em: <http://www.ana.gov.br/AcoesAdministrativas/RelatorioGestao/Rio10/Riomaisdez/index.html> Último acesso em: 07 nov. 2010. THE club of Rome. Disponível em: <http://www.clubofrome.org/eng/home/> Último acesso em: 07 nov. 2010. PROTOCOLO de Quioto on-line: Disponível em: <mudancasclimaticas.cptec.inpe.br/~rmclima/pdfs/Protocolo_Quioto.pdf> Último acesso em: 08 nov. 2010 Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 LEI 9.795/99 on-line: Disponível em: http://www.mma.gov.br/sitio/index.php?ido=conteudo.monta&idEstrutura=20&idConteudo=96 7 Último acesso em: 8 nov. 2010. 133 MUDANÇA CLIMÁTICA, POLÍTICAS DE MITIGAÇÃO E A TEORIA DO ATOR-REDE Jéssica Garcia da Silveira Graduação em História Faculdade de Ciências Integradas do Pontal (UFU) Introdução: Contexto Histórico Em passagem do último século para o presente século XXI é perceptível a emersão de novos temas em debate a nível mundial. Desde a década de 1960 discussões tocantes à questão ambiental já mobilizaram alguns grupos, dois acontecimentos que marcaram a iniciativa de inclusão da questão ambiental na agenda política internacional ocorreram em fins da década de 1960: a publicação do relatório Limites do crescimento pelo Clube de Roma e a Conferência das Nações Unidas sobre Ambiente Humano, em Estocolmo, na Suécia. A partir daí são demonstrados alguns questionamentos surgidos em volta das políticas de desenvolvimento, nos seus diversos setores, segundo Flávio Lúcio R. Vieira (2004). Durante a década de 1970 acaloraram-se as discussões sobre a temática entre os ecologistas. O contexto das chuvas ácidas e da crise do buraco na camada de ozônio, já não se fizera presente neste momento. As preocupações científicas consistiam em buscar o que fosse economicamente lucrativo (HOBSBAWM, 2008, p. 535), e como possíveis restrições à pesquisa ou críticas à ciência por parte do clero se dissolveram com a conquista da ―hegemonia do laboratório‖77, esta se via como ferramenta fundamental ao avanço social. Ainda que uma mobilização pela causa ambiental em oposição aos requisitos desenvolvimentistas industriais, inclusive ao rumo do desenvolvimento da ciência, tenha surgido por volta das décadas de 1960 e 1970, segundo Regina Horta Duarte (2005) em razão, por exemplo, de acontecimentos como as chuvas ácidas no Canadá, e alguns países já cogitassem medidas para seu controle (EUA e Canadá), oficialmente ainda não se apresentaram como preocupação mundial, e assim acordos internacionais só foram efetivados, em amplitude, da década de 1980 em diante. 77 Utilizo aspas para demarcar o termo utilizado por Eric Hobsbawm. Cf. Eric J. HOBSBAWM. A era dos extremos. O breve século XX. 1914-1991. São Paulo: Cia das Letras. 2008. p. 534. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 eram temas discutíveis, porém a introdução da questão na agenda política mundial ainda 134 A partir daí a questão ambiental passou a ganhar outros contornos perante a política e a ciência, trazendo também implicações à economia. Fenômenos climáticos, vinculados ao discurso que afirmam serem estes conseqüências da atividade humana, passaram a estimular pesquisas científicas e medidas governamentais para tentativa de controle do problema, tomando um espaço de discussão cada vez maior na opinião política e pública mundial. A estes fenômenos denominaram-se genericamente mudanças climáticas, e ao redor de toda essa movimentação relacionada ao meioambiente se definiu uma nomenclatura própria ao tratamento social da questão: políticas ambientais. Estas políticas ambientais trazem, portanto, à tona as chamadas políticas de mitigação78. Estas, por sua vez, entram como medidas de ajustamento às atividades humanas já existentes por meio de alternativas, que se por um lado causem prejuízos ou riscos ao ambiente, por outro tornam estes menos intensos, segundo um consenso adquirido. Este consenso é algo obtido primeiro por cientistas, que por meio de pesquisas chegam a um resultado que se torna comum pela sua capacidade de convencimento, e chegam até o meio político que o torna exeqüível. Apesar das etapas, o campo científico também engloba o meio político e institucional como aliado. Tendo este último, participação fundamental no desenvolvimento destas pesquisas, talvez até mesmo tornando-as possíveis, o que deverá ser desenvolvido ao longo da reflexão aqui Essa relação entre as políticas de mitigação e o fenômeno ambiental da mudança climática se enquadra na transformação da tecnociência em ciência e tecnologia, que como sugere Bruno Latour (2000) a respeito: esta última é o resultado ilusório de ações promovidas pelo trabalho da primeira, a tecnociência, que por sua vez é possível pelo desempenho de uma rede composta por múltiplos atores. Essa relação é a que move esse trabalho. Pretende-se através desta teoria denominada Ator-Rede, definida originalmente por Bruno Latour na segunda metade do século anterior, refletir acerca de como se desenvolvem os elos que ligam ciência, tecnologia, política e economia à sociedade em geral neste século XXI, tratando especificamente das mudanças climáticas como um ponto central da discussão. Tendo em vista a grande expressividade das políticas de mitigação no Brasil e sua posição de destaque em acordos internacionais é que me restrinjo a este para conduzir a reflexão proposta. 78 Lembrando que termo utilizado já se via em uso antes das políticas de caráter ambiental, abarcando em seu sentido originário a intenção de amenizar algo, uma proposta alternativa ou um desvio. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 proposta. 135 As mudanças climáticas como fato O conceito de mudança climática, difundido amplamente para considerar as alterações ambientais do clima no mundo, foi construído por meio de bases científicas que, em conjunto com aliados, por meio de pesquisas e investimentos, chegaram a adotá-lo. Passando a realizar mais pesquisas e discussões, generalizadas pelo mundo, para chegar a alternativas que reduzam ou amenizem os impactos ambientais gerados pelo desenvolvimento industrial massivo mundial, eclodiu um outro discurso construído para suavizar discussões mais ferrenhas entre economia e ecologia, o de desenvolvimento sustentável, a partir daí se demarcam aparentes limites para o desenvolvimento ou a obrigação de garantir condições futuras para próximas gerações. Estas medidas que carregam o discurso de amenizar os impactos ambientais são as políticas de mitigação. Latour, quando se debruça sobre o método científico, aponta que a ciência não sobrevive sozinha no laboratório, mas que sua existência só é possível com a construção de alianças que se estabelecem entre grupos interessados, que por sua vez são convencidos e conduzidos para seu interesse. Juntos formam a força que move a tecnociência. Considerando esse pressuposto teórico podemos pensar as políticas de mitigação como exemplo claro desta aliança estabelecida entre cientistas de laboratório e instituições políticas, que em conjunto com economistas discutem os argumentos entre estes grupos que atendam ou são conduzidos a atender interesses mútuos. Os interesses econômicos, políticos e científicos se reúnem no que se denomina ciência, pois estão todos empenhados na construção de fatos que mobilizem seus interesses comuns e se difundam consensualmente. Conforme o que considera Latour79 a construção de máquinas e fatos é um processo coletivo, seu destino depende de como as pessoas encaram estes. Segundo Latour a ciência é feita por pessoas que estão dentro do laboratório e também por pessoas que estão de fora. Estas pessoas que estão do lado de fora garantem as condições para que haja alguém trabalhando dentro do laboratório, pois exercem, em parte, uma função importante: a de negociadores. Estes últimos serão determinantes para o desenvolvimento do lado de dentro, devido às alianças conquistadas, recursos adquiridos e suas potencialidades. Estas alianças, de acordo com o que explica Latour, acontecem por meio de recrutamentos, que podem ser feitos 79 Cf. Latour (2000). Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 científicos lançados sobre o problema e suas possíveis respostas, construindo alianças 136 com os que vão para dentro dos laboratórios e para os que ainda estão de fora, grupos interessados externos que poderão se tornar ―aliados‖80. Feitas as alianças todos estarão fazendo ciência segundo Latour, pois o funcionamento do lado de dentro só é possível com um bom desempenho do lado de fora, e a partir daí, se sua difusão for bem realizada, a passagem pelo laboratório se tornará uma necessidade, obrigação. Porém os objetivos necessitarão alcance para que esta ciência se transforme em técnica e absorva as possíveis controvérsias que surgirem. E para que isso aconteça é preciso que tudo seja minuciosamente executado em perfeita harmonia. Esta, portanto dependerá de todos os elementos que estão envolvidos, até mesmo os não-humanos. Ator-Rede: a teoria Para refletir acerca de como se dá essa construção científica e política, e suas relações, em torno do conceito de mudança climática, propomos a utilização de uma teoria criada por Bruno Latour, denominada Ator-Rede. Nesta teoria Latour considera que todos os elementos que estão presentes no ato de se fazer ciência, seja ela na construção de um fato, tanto elementos humanos como também não-humanos, são considerados atores que estão envolvidos em uma rede. A metáfora da rede traz um sentido bem próximo ao material, onde há pontos de interseção (nós) que ligam fibras ou fios e chegam a determinado ponto se transformando em uma teia. A gradual confecção desta rede implica na definição da tecnociência como um empreendimento Se aplicarmos tal teoria, neste nosso caso específico, teremos inicialmente um grupo de aliados que executam funções associando interesses com um mesmo objetivo: um grupo de cientistas que desenvolvem pesquisas de dentro do laboratório; o IPCC (Intergovernmental Panel on Climate Change, ou Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas) como porta-vozes que investigam estas e produzem relatórios para demais órgãos institucionais; estes órgãos que recebem esses relatórios; e as ações desenvolvidas por líderes políticos que juntamente com economistas se concentram no objetivo de buscar alternativas para o problema ambiental a nível mundial. Essas pesquisas dependem da consolidação de uma alegação: a mudança climática é um problema que se agrava mediante as ações humanas. Depois de convencidos os grupos desta alegação, estes se tornam aliados para o desenvolvimento de medidas que tratem do problema, que é de seu interesse, mas que também sejam garantidos outros de seus 80 Termo utilizado por Bruno Latour. Cf. LATOUR (2000). Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 que multiplica o número de aliados e se expande. 137 interesses (econômicos e políticos), investindo em pesquisas científicas que tragam respostas capazes de resistirem a provas de força que lhes são lançadas. Como exemplo do desenvolvimento de possíveis respostas estão as políticas de mitigação. Com bases científicas as políticas ambientais de mitigação se apresentam sob o discurso, como o próprio nome diz, de medidas alternativas, amenizatórias, para o impacto ambiental causado pelas ações humanas. Um exemplo de causas do problema ambiental são as emissões de gases que provocam o efeito estufa, onde é incentivada sua redução por meio de alternativas energéticas (seu principal meio de emissões) que substituam a queima de combustíveis fósseis. Considerando esta premissa, cientistas de dentro do laboratório realizam pesquisas sobre as taxas de emissão e suas causas, na busca de alternativas que possam substituir os meios já existentes. A causa ambiental promove um discurso sem fronteiras, assim como a indefinição de onde acontecerá a próxima catástrofe natural, o que contribui para universalizar as propostas difundidas a cada Conferência das nações, divulgando os relatórios como mostradores resultantes de pesquisas científicas. O investimento mediante alianças entre grupos interessados em cada nação participante mobiliza também pesquisas locais que apresentam propostas alternativas. Os recursos energéticos são o alvo destas pesquisas, que com o apoio de órgãos estatais, propõem outras matrizes energéticas que supram o efeito das tradicionais como é o caso renovável), substituído pelo álcool (derivado de recursos renováveis). Os investimentos no desenvolvimento de biocombustíveis pelo mundo e a maior implantação de usinas hidroelétricas, assim como as expansões da energia eólica, demarcam iniciativas para alternativas energéticas ―limpas‖, ou que apresentam índice menor de poluição. Estes índices são inscrições, que são possíveis pela visualização em determinados mostradores, que dependem de instrumentos contidos nos laboratórios como aponta Latour - e por meio destes é que são feitas as mobilizações pelo mundo, garantida a estabilidade e permutando quando preciso. Deste modo acelera-se sua acumulação sob uma retórica forte. Apesar de ser questionável a contabilização, nos laboratórios, exata dos níveis de poluição por gases que provocam o efeito estufa, são feitos cálculos com base na taxa de poluição de diversos agentes e daí lançados os dados que exercem função de inscrições. Enfim todos os elementos envolvidos nas pesquisas que tem como objetivo a mitigação das alterações climáticas no mundo são como atores e depende-se das ações de todos estes para que o objetivo central seja alcançado. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 do combustível automobilístico derivado do petróleo, combustível fóssil (recurso não- 138 No caso das políticas ambientais de mitigação como o programa nacional do álcool, o de produção e uso de biodiesel, o programa proinfra, promoção do uso de veículos flex-fuel, todos os elementos envolvidos em rede como atores precisam se alinhar de tal sorte que a pesquisa se torne uma medida passível de ser desenvolvida e aplicada pela política estatal: os cientistas do clima, o IPCC, os relatórios do IPCC, os órgãos e ministérios ambientais, o clima, a pressão atmosférica, os gases que provocam efeito estufa, as empresas que financiam as pesquisas, a biomassa existente, as plantações de vegetais que servem como fonte de energia alternativa, os próprios vegetais, quem cultivaria estes vegetais, as áreas onde se cultivaria estes vegetais, ou as usinas hidroelétricas ou de energia eólica que serão implantadas como fonte de energia alternativa para o uso de recursos não renováveis, o potencial hídrico dos rios, etc. Os biocombustíveis como política de mitigação no Brasil Um claro exemplo que se tornou política de mitigação no Brasil são os biocombustíveis derivados da cana-de-açúcar: o álcool. Ainda que este tenha sido desenvolvido durante a década de 1970 em razão da dependência do petróleo, como alternativa à crise, sob o nome de Proálcool, isso não o coloca fora do que Bruno Latour considera como Ator-Rede, a única mudança são os objetivos que ligaram os grupos interessados para o desenvolvimento deste. Porém com o surgimento das alterações biocombustíveis voltam à cena sob a forma de Programa Nacional do Álcool, como é descrito atualmente no Ministério do Meio Ambiente, com o reforço de um novo apelo: o próprio meio ambiente. O desenvolvimento do biocombustível no Brasil esteve intimamente ligado a problemas advindos da economia no país na década de 1970. A intensificação da proposta de inserção do álcool como combustível pela causa ambiental não se desvincula por isso do plano econômico, e mobilizam diversos setores. As propostas de desenvolvimento limpo no Brasil apresentam um fundo econômico de apelo ecológico, tendo em vista o mercado de carbono, que investe créditos compensatórios por nível de emissão. O histórico do Brasil frente às discussões emergidas em razão dos processos naturais de transformação do ambiente é pontual. A participação brasileira nos debates acerca das preocupações com o meio ambiente é marcada incisivamente desde a II Conferência em função do desenvolvimento sustentável em 1992. Salientando a importância da reversão do Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 globais no clima, denominadas mudanças climáticas, e sua expressividade, os 139 processo de degradação ambiental, esta ocorre na cidade do Rio de Janeiro, ficando conhecida no Brasil como Rio-92 por ser realizada neste mesmo ano (Conferência das Nações Unidas sobre Meio-Ambiente e Desenvolvimento – UNCED). Este episódio contou com a presença de diversas ONGs e contribuiu para a difusão de conceitos mais emergentes para as discussões do Protocolo de Kyoto, alcançando dimensões mais amplas. Além disso, o Brasil conta com um elemento importante para as negociações para o ―futuro ambiental‖ mundial: A Amazônia. Esta atua seqüestrando carbono, e se torna outro ator na rede. A criação de órgãos institucionais que se ligam à temática ambiental é crescente desde final do século XX, no Brasil a criação do MMA (Ministério do Meio Ambiente) é um exemplo, criado durante a década de 1980 que hoje apresentam secretarias para áreas ambientais. Há hoje a secretaria de Mudanças climáticas e qualidade ambiental, onde há uma divisão por departamentos como o de Licenciamento e Avaliação ambiental; de Mudanças climáticas; e Qualidade Ambiental. Isso demonstra a abrangência que ganhou o tema até o momento atual. Contemporâneo ao MMA é o MCT (Ministério da Ciência e Tecnologia), que se ocupa das políticas tecnológicas e de pesquisas científicas brasileiras, onde a temática também se vê envolvida por meio das divulgações de medidas que respondam à necessidade, como é o Biocombustíveis como política de mitigação e a Teoria do Ator-Rede Os biocombustíveis no Brasil desempenham um papel importante na diminuição das emissões de dióxido de carbono (CO2), também conhecido como gás carbônico, que é um dos gases que provocam o efeito estufa. Com o aumento do número de veículos movidos a combustíveis fósseis, são lançados à atmosfera cada vez mais CO2, e este passa a ser o alvo central de combate. Os investimentos em meios para a substituição dos combustíveis tradicionais pelos chamados biocombustíveis consistem em uma das mais conhecidas políticas de mitigação desenvolvidas no Brasil para redução das emissões de gás carbônico. A preservação da Amazônia se torna também fator fundamental quando o assunto é seqüestrar carbono. As pressões internacionais para o fim das queimadas e do desmatamento na Amazônia representam as forças dos fatos. Tudo isso só foi possível com o desenvolvimento de pesquisas científicas em laboratórios financiadas por grupos interessados nos objetivos destes. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 caso dos biocombustíveis e do desenvolvimento do biodiesel. 140 Todos estão envolvidos em uma rede, para que seja possível o desenvolvimento do biocombustível: o cientista que desenvolveu o experimento, a cana-de-açúcar que foi a planta utilizada para extrair etanol, as inscrições mostradas pelas pesquisas desenvolvidas sobre o clima, o próprio clima, as empresas aliadas no empreendimento, os órgãos institucionais estatais em aprovarem e financiarem o empreendimento, as condições agrícolas para o plantio da cana-de-açúcar, o empreendimento de usinas sucroalcooleiras, a adesão por meio das fábricas de veículos na produção de carros movidos a etanol, os próprios automóveis, os consumidores que aderirem a estes. Tudo depende de como estes atores vão reagir à tentativa de inserção do biocombustível como medida de mitigação no Brasil para que se alcance os objetivos dos grupos aliados. A ação de todos estes elementos é fundamental para que o empreendimento seja executado. Sem que todos os atores executassem suas vontades e mobilizassem as vontades dos demais como uma máquina, nada disso seria possível. E assim também como as demais medidas implantadas com este objetivo. Os mecanismos para transformar os biocombustíveis em uma estrutura pronta perpassam pela sua mobilização, que gera a acumulação e combinação de vários elementos de distintas áreas do conhecimento com o objetivo de ampliar ainda mais seu alcance, assim como aponta Latour quando teoriza sobre as etapas, de construção à aplicação prática da tecnociência. As políticas de mitigação se tornaram estruturas reúne elementos que se amarram a uma afirmação: a mudança climática é um problema que se agrava mediante as ações humanas. E consigo estão as ciências acumuladas para tornar possível alguma resposta para o problema. Conclusão Concluindo o que foi apresentado, a teoria de Bruno Latour nos auxilia na compreensão de como se desenvolve a noção que temos de ciência e tecnologia como o todo do processo que envolve invenções e inovações restringindo seus atores ao lado de dentro do laboratório, sendo esta apenas uma ponta abstrata, como ele mesmo coloca, de um processo que se mostra muito mais amplo, como é possível ser observado com os atores participantes, formadores de uma rede, que se insere no que Latour denomina de tecnociência. A ciência e tecnologia se impõem como constante meio para se conhecer o mundo, porém Latour demonstra que isso faz parte do próprio discurso científico e o Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 prontas, assim como chegam até nós, no entanto se mostram como um processo, que 141 seu conhecimento só se torna possível após suas conseqüências. A causa da pesquisa científica não está associada à natureza, esta entra como causa depois de completado o empreendimento como adverte Latour. No caso das políticas de mitigação, tanto os conhecimentos acumulados, como a sociedade, estão juntos na criação desta rede. Não há ciência sem sociedade e não há determinismos por parte de algum destes, conforme aponta Latour. A universalização das políticas de mitigação pelo mundo, segundo as reflexões obtidas, se deu pelo processo de mobilização e difusão, a sua alegação se tornou estável e os Mecanismos de Desenvolvimento Limpo (MDL) implantados por alguns países, são resultantes da permutabilidade, assim como o mercado de carbono que se criou devido ao fato que se tornou as mudanças climáticas. Por fim, olhamos para as alterações climática, o buraco da camada de ozônio, as pesquisas científicas em busca de identificar os gases emitidos na atmosfera, as ciências que trazem o conhecimento da atmosfera, as pesquisas para o uso dos biocombustíveis, os automóveis que foram projetados para atender a demanda pela utilização dos biocombustíveis, a contenção das queimadas e do desmatamento da Amazônia, o mercado de carbono, o apelo político pelo desenvolvimento limpo, o discurso informativo sobre as políticas de mitigação, as políticas de mitigação, os relatórios institucionais estatais sobre as medidas adotadas. Enfim, se tornam todos elementos que Deste modo é possível compreender que sociedade, política, ciência, técnica e economia estão todos interligados em uma rede formada mediante atores que aglutinam elementos que expandem esta. A composição desta rede implica numa noção, criada por Latour, de tradução, aonde para se chegar a um mesmo objetivo, sendo que todos os atores envolvidos realizem a mesma vontade, é preciso que haja traduções de interesses para reunir diversos grupos. As políticas de mitigação representam, de certa forma, também os resultados desta tradução, do laboratório ao cotidiano: quando as pessoas vão aos postos de combustível e abastecem seus carros com etanol ou quando são impostos limites ao que se faz na Amazônia. O processo até chegar a estas situações é longo e passa por muitos caminhos. A pesquisa científica de laboratório; a transposição de relatórios científicos a institucionais; a adesão política às medidas propostas e, por outro lado, as pressões para 81 Cf. Latour (1994). Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 estão em uma rede tecida socialmente, ou que compõem a sociotécnica81. 142 o desenvolvimento científico de medidas que conciliem interesses mútuos; a produção de instrumentos que tornem possíveis a aplicação dessas medidas; a difusão e adesão social a estas; etc. A ciência pura não realiza isso sozinha, pois vários sujeitos ou atores estão envolvidos para que isso se torne uma realidade. Portanto para que se possa refletir acerca do desmembramento das políticas ambientais de mitigação nesta nossa sociedade não se podem afastar estudos que se restrinjam à sociedade ou à ciência. Assim como defende Latour, tendo como argumento esta complexa e híbrida82 rede onde se tece a sociedade moderna, a divisão destes dois campos, ou da política, ou economia, impossibilita a compreensão destes fenômenos contemporâneos que nos cercam. Sendo assim, enfatizamos a contribuição das reflexões desenvolvidas por Latour para se pensar estes novos fenômenos sociais, que se evidenciam a cada dia, permitindo a ampliação das discussões possíveis e reflexões a este respeito, como é o objetivo deste artigo. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: DUARTE, Regina Horta. História & Natureza. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. HOBSBAWN, Eric J. A era dos extremos. O breve século XX, 1914-1992. São Paulo: Cia. das Letras, 2008. ______________. Jamais fomos modernos: ensaios de antropologia simétrica. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1994. RIBEIRO, Wagner Costa. Políticas públicas ambientais no Brasil: mitigação das mudanças climáticas. Scripta Nova. Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales. Barcelona: Universidad de Barcelona, 1 de agosto de 2008, vol. XII, núm. 270 (25). Disponível em: <http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-270/sn-270-25.htm>. Acesso em: 03 de maio 2010. SUAREZ, Miriam Liliana Hinostroza. Política energética e desenvolvimento sustentável: taxa sobre o carbono para mitigação de gases de efeito estufa no Brasil. Campinas: UNICAMP, 2000. VIEIRA, Flávio Lúcio R. Desenvolvimento sustentável: a história de um conceito. Revista Saeculum, João Pessoa: Universidade Federal da Paraíba, n. 10 jan/jul 2004, pp. 79-112. Sítios na rede mundial de computadores: Ministério do Meio Ambiente: http://www.mma.gov.br/sitio/ 82 Idem. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 LATOUR, Bruno. Ciência em ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. São Paulo: Editora Unesp, 2000. 143 Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 Ministério da Ciência e Tecnologia: http://www.mct.gov.br/ 144 RIO GRANDE, A CIDADE DO FUTURO? NATUREZA, DESENVOLVIMENTO E DISCURSOS HEGEMÔNICOS ONTEM E HOJE Diego Mendes Cipriano Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Educação Ambiental da Universidade Federal do Rio Grande – FURG. Bolsista CAPES-DS. Introdução A expansão portuário-industrial em Rio Grande/RS, no atual contexto competitivo do MERCOSUL – se configura na concorrência entre portos brasileiros (como o de Santa Catarina) e de outros países latino-americanos (sobretudo Montevidéu), em propiciar condições de navegabilidade às embarcações comerciais nesta cidade. Todavia, mais do que isso, pretende-se no atual contexto de desenvolvimento econômico, ampliar a capacidade portuária para que Rio Grande tenha condições de receber, cada vez mais navios de maior calado. É neste sentido que, no contexto desta cidade, estão em andamento obras de infra-estrutura que procuram assegurar as ditas condições. Neste contexto, o Porto do Rio Grande recebe investimentos paralelamente à expansão dos molhes da barra, situados na Laguna dos Patos, e o ―aprofundamento do calado dos canais de acesso do porto‖; empreendimento liderado pelo governo federal. Wilen Manteli, considera que este aprofundamento dos canais irá "... trazer vantagens competitivas enormes ao porto do Rio Grande"83. Desta forma, conforme noticiado: ―os navios de grande porte poderão operar com capacidade máxima no terminal gaúcho‖, o que traz enormes vantagens para grupos econômicos interessados em otimizar o escoamento de suas produções, pois ―...os ganhos de escala devem reduzir os custos das empresas com frete...‖, conforme relatou a imprensa paulista84. Conforme o então superintendente do Porto do Rio Grande, Jayme Ramis, afirmou que ―... o calado deverá ter um aumento gradual para que ainda durante o escoamento da safra de grão os terminais sejam beneficiados...‖85. Assim, compreendemos que as ações destes empreendimentos na domesticação da natureza na cidade têm servido ao único interesse de grupos econômicos, à classe dos proprietários 83 O Estado de S. Paulo. São Paulo, 5 de Abril de 2010. O Estado de S. Paulo. São Paulo, 5 de Abril de 2010. 85 O Estado de S. Paulo. São Paulo, 5 de Abril de 2010. 84 Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 Desse modo, o presidente da Associação Brasileira dos Terminais Portuários (ABTP), 145 dos meios de produção, em expandir os seus negócios e potencializar os seus ganhos, à revelia das condições naturais existentes86. Estas obras de infra-estrutura fazem parte do Plano Nacional de Dragagem, sendo realizadas com recursos oriundos do PAC – Programa de Aceleração do Crescimento, do Governo Federal, cujos investimentos são orçados em R$ 196 milhões. De acordo com as informações veiculadas em um periódico local, Dilma Rousseff quando candidata à Presidência da República, colocou em destaque os ―empregos gerados‖ pela indústria naval no Brasil e na Região Sul, o que implica na modernização do cais do Porto rio-grandino, na dragagem para o aprofundamento do canal de acesso, na ampliação dos ―braços‖ dos Molhes da Barra e na duplicação da rodovia BR-392.87 Sabemos que desde o início do século XX, o planejamento e a implementação das obras de infra-estrutura relativas à construção dos molhes já faziam parte dos anseios das elites locais e nacionais, num contexto em que se podiam entrever impactos ambientais resultantes destas iniciativas. Assim, no alvorecer daquela centúria, Vale acrescentar, em nível introdutório, que a interferência promovida pela deposição natural de sedimentos no estuário inferior pode ser datada a partir do ano de 1833, por ocasião das atividades de dragagens ali realizadas à época. (Seeliger; Costa, , 1998). Este fato demonstra que, desde a primeira metade do século XIX, as elites/gestores locais e nacionais já promoviam significativas alterações neste ambiente natural, o que nos faz interrogar sobre as possíveis conseqüências desta relação dos humanos com a natureza ao longo do tempo ininterrupto: ...Devido à construção dos Molhes de estabilização do Canal de Acesso, a sedimentação natural sobre as áreas intermareais provavelmente intensificouse após 1917 no lado norte deste mesmo Canal. A expansão do Porto de Rio Grande entre 1909-1914 gerou... material dragado, que foi utilizado na construção de ilhas, e também depositado ao longo das margens do estuário inferior. ... Os navios modernos com grandes calados requerem águas profundas e, entre 1980 e 1996... materiais foram dragados do fundo do estuário para a manutenção da navegação... (SEELIGER; COSTA, 1998: 223-224). É neste sentido que nossa investigação buscará articular o processo de transformação da natureza às práticas discursivas dos agentes mais representativos na efetivação de ―melhores‖ condições de navegabilidade como necessidade de uma cada 86 87 Jornal Agora. Rio Grande, 29 de Abril de 2010. Jornal Agora. Rio Grande, 23 de Maio de 2010. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 .... o estreitamento da barra para cerca de 500 metros e o aprofundamento do canal de acesso de 3 para 12 metros após a construção do molhes provavelmente acarretou em mudanças ambientais desde que a maioria das funções ecológicas do estuário dependem das trocas de água através desta barra. (SEELIGER; COSTA, 1998: 240) 146 vez maior acumulação de capital nas mãos de poucos. E, do mesmo modo, perquirir sobre o conteúdo destes discursos desenvolvimentistas tendo em vista desmistificar o ideal de progresso que eles contém, de forma a interrogar se o concebido ao nível discursivo é efetivamente concretizado em termos de benefícios sociais e com a natureza na materialidade dos processos, enquanto qualidade de vida para todos. Objetivos da investigação Conhecer e interpretar nos discursos hegemônicos publicados na imprensa, as contradições referentes às representações sociais que os políticos locais têm sobre Natureza/Ambiente – Humanos/Sociedade – Cidade/Progresso, que podem ser considerados como problemas socioambientais contemporâneos trazidos pelas transformações efetivadas no Canal da Barra e expansão dos Molhes da cidade do Rio Grande; Conhecer, interpretar, explicar e descrever as influências dos discursos dos políticos locais em relação às perspectivas de futuro para a Cidade do Rio Grande, considerando seu complexo portuário-industrial; Propor sugestões, à luz dos resultados da investigação, de saberes e conhecimentos adequados para a realização de uma intervenção sustentável na realidade/meio ambiente, considerando a dragagem do canal de acesso ao Porto e a vivem na cidade do Rio Grande. Referencial teórico Para Borges, ao nos configurarmos como ―um país de jovens‖, marcado por altos índices de analfabetismo, em que ocorre um ―notável desprestígio das ciências humanas e da cultura e a um ensino antiquado e desmotivador‖, temos como resultante um desinteresse pela história de nosso país. (BORGES, 1980) Assim, torna-se necessário explicar o passado que nos constituiu no presente em que vivemos, no sentido de apreendermos conscientemente os fatos, processos e fenômenos do mundo atual que nos atravessa, mormente em nosso país. Este conhecimento, assim, necessita extrapolar o âmbito das instituições de ensino e pesquisa, à socialização de um conhecimento histórico consciente e politizado da sociedade brasileira para instrumentalizar uma fundamentada e esperançosa luta por um Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 ampliação dos braços dos molhes como ações importantes para todos, além dos que 147 modelo de sociedade justa, fraterna e igualitária em âmbito nacional. E na tentativa de reforçar e fundamentar estes argumentos recorreremos à mesma autora que defende o interesse no tempo em ―perspectiva tripla‖, relacionando passado, presente e futuro: ... O que é preciso fazer é uma história que, mesmo estudando o passado mais remoto, faça-o para explicar a realidade presente. Fazer uma história do presente não é, portanto, escrever sobre o presente, mas sobre indagações e problemas contemporâneos ao historiador... É preciso conhecer o presente e, em história, nós o fazemos sobretudo através do passado, remoto ou bem próximo... Conforme o presente que vivem os historiadores, são diferentes as perguntas que eles fazem ao passado e diferentes são as projeções de interesses, perspectivas e valores que eles lançam no passado... Mesmo quando se analisa um passado que nos parece remoto, portanto, seu estudo é feito com indagações, com perguntas que nos interessam hoje, para avaliar a significação desse passado e sua relação conosco. O passado nos interessa, hoje, pela sua permanência no mundo atual. (BORGES, 1980: 52). Para tanto, necessitamos de clareza quanto aos referenciais teórico-filosóficos empregados na problematização de nosso passado histórico brasileiro à interpretação do presente em que vivemos e interagimos. É neste sentido que o materialismo histórico, enquanto método e compreensão do mundo e das coisas, pode nos amparar na busca e O materialismo histórico mostra que os homens, para sobreviverem, precisam transformar a natureza, o mundo em que vivem. Fazem-no não isoladamente, mas em conjunto, agindo em sociedade; estabelecem, para tal, relações que não dependem diretamente de sua vontade, mas dependem do mundo que precisam transformar e dos meios que vão utilizar para isso. Todas as outras relações que os homens estabelecem entre si dependem dessas relações para a produção da vida, não sob uma forma de dependência mecânica, direta e determinante, mas sob forma de um condicionamento. O ponto de partida do conhecimento da realidade são as relações que os homens mantêm com a natureza e com os outros homens; não são as idéias que vão provocar as transformações, mas as condições materiais e as relações entre os homens, que estas condicionam. (BORGES, 1980: 35) Assim, os humanos estão constantemente transformando o mundo ao seu redor, nas relações que estabelecem com os seus pares e com a natureza de que dependem para sobreviver. Esta produção das condições de existência, em amplo sentido, não depende necessariamente de sua vontade, mas servem ao propósito e mecanismo da produção e reprodução da materialidade da vida. É neste sentido que, ao produzir o mundo, a exterioridade, os humanos produzem simultaneamente a si mesmos enquanto idéias, valores, representações e compreensões da sociedade em que vivem e interagem. Em outras palavras, Desde que existem sobre a terra, os homens estão em relação com a natureza (para produzirem sua vida) e com os outros homens. Dessa interação é que resultam os fatos, os acontecimentos, os fenômenos que constituem o processo histórico. (BORGES, 1980: 48). Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 efetivação destes anseios. Conforme Borges, 148 Para nós, um dos grandes desafios ao historiador brasileiro é no sentido de que este inevitável processo de transformação do humano e de seu mundo seja realizado conscientemente pelos seus agentes, pois só assim poderão eles adquirir uma profunda compreensão do que fazem, como fazem, porque fazem e para quem fazem. Aqui, recorremos novamente a Vavy Pacheco Borges para problematizar nossas premissas: O homem é um ser finito, temporal e histórico. Ele tem consciência de sua historicidade, isto é, de seu caráter eminentemente histórico. O homem vive em um determinado período de tempo, em um espaço físico concreto; nesse tempo e nesse lugar ele age sempre, em relação à natureza, aos outros homens... É esse o seu caráter histórico. Tudo o que se relaciona com o homem tem sua história; para descobri-la, o historiador vai perguntando: o quê? quando? onde? como? por quê? para quê?... (BORGES, 1980: 51) Assim, Borges (1980), afirma que os seres humanos revelam seu ―caráter eminentemente histórico‖ pelo fato de possuírem uma ―historicidade‖, o que nos significa, em termos gerais, nascer-viver-morrer fisicamente em determinado tempo e espaço na produção da vida, e ter algum nível de consciência deste ciclo da vida e de sua finitude, inscritos em referenciais próprios de cultura. Este seria o ―caráter histórico‖ apresentado pelos humanos, em nosso entendimento. Mas para nós, a consciência da historicidade por parte dos humanos não contempla apenas a compreensão superficial dos mesmos, – apreensível pelos seus sentidos –, do tempo e do espaço que ocupam na produção de sua existência, inscrita em determinado A própria consciência da historicidade de si, e mais do que isso, do mundo construído e reconstruído pelo que é humano, necessita ser compreendida dentro da perspectiva da (re) construção de um conhecimento histórico necessário à subversão consciente, práxica, utópica e transformadora do ―mundo da pseudo-concreticidade‖, da mera aparência que oculta a essência dos fenômenos. Pois a historicidade, em si mesma, nos aponta que nada é para sempre, tudo se transforma por encontrar-se em eterno movimento. Desse modo, pensar e lutar por outro mundo e outra sociedade não consiste apenas num sonho, mas sim numa utopia concreta do possível! Somente desse modo, visualizamos a possibilidade da construção coletiva de uma ―consciência histórica e de classe‖ necessária à transformação da sociedade brasileira. Agora concordando em essência com o que diz Borges, Uma sociedade sempre se estrutura em diferentes grupos ou classes, uma das quais detém o poder político, o poder econômico e o prestígio social. De uma forma sutil e muito bem articulada, não visível pelos incautos, e só é Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 horizonte cultural, e, portanto, histórico: dotado de historicidade. 149 perceptível numa análise muito acurada, o grupo social dominante acaba, por mecanismos complexos, impondo aos outros grupos seu modo de ver a realidade, o que vai reforçar os seus interesses, pois lhe permite manter sua situação de privilégio. Nessa visão de mundo que é imposta estão implícitos seus valores, seus preconceitos ... (BORGES, 1980: 41-42). Pensamos que a construção de um conhecimento e/ou consciência histórica necessita considerar a necessidade de nomear e conceituar o mundo em que vivemos, a partir da perspectiva do materialismo histórico, deixando transparecer as injustiças e desigualdades que marcam a nossa sociedade brasileira. Para que tenhamos consciência de que o nosso país, de forma geral, está em constante disputa em torno de projetos de futuro e de nação pelos seus diferentes e até antagônicos grupos e/ou classes. Esta perspectiva crítica da História, proposta por BORGES (1980), torna-se muito interessante para se pensar o próprio campo da História Ambiental no universo de nossa investigação. No caso mais específico do Brasil, contamos com os apontamentos do historiador Paulo Henrique Martinez, quando afirma que a História Ambiental em nosso país permitiria revisar a história do capitalismo em seu desenvolvimento, deixando transparecer as formas de exploração da natureza no tempo e no espaço. (MARTINEZ, 2006: 28). Em primeiro lugar, seria possível desmistificar a idéia de ―progresso‖ presente na conquista da natureza, assim como os benefícios e os prejuízos da ciência e da tecnologia utilizados nesta conquista. Em segundo, estudar o(s) uso(s) dos recursos(s) colocando em perspectiva ―desenvolvimento econômico‖ e ―desenvolvimento social‖. (cf. MARTINEZ, 2006). Concretamente em termos de realidade local, como já anunciado, problematizamos o incremento dos processos de dragagem do canal de acesso à Barra do Rio Grande e a extensão de seus dois ―braços‖, os Molhes. Este esforço de domesticação e adaptação da natureza à necessidade dos humanos – ou de uma pequena parte deles –, vai de encontro, como analisamos na imprensa local sobre o atual contexto, aos interesses de grupos econômicos em reduzir seus custos com transporte/frete, armazenando um maior número de mercadorias numa mesma embarcação de grande magnitude, como já referido anteriormente. Isto porque, com estas obras de infra-estrutura, o Porto do Rio Grande será capaz de receber os maiores navios do mundo em termos de calado e capacidade de armazenamento. Tudo em nome da acumulação de capital nas mãos de poucos em prejuízo das maiorias. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 naturais no Brasil, visando verificar quem se beneficiou/prejudicou neste processo, 150 Desse modo, para realizarmos uma análise aprofundada sobre os discursos do desenvolvimento na cidade do Rio Grande, é necessário historicizarmos os dois momentos no tempo que referimos, evidenciando que nestes contextos os discursos estão articulados à materialidade dos processos, à luta de classes em cada um destes recortes, com suas especificidades econômicas, políticas sociais e culturais. Metodologia 1. Os discursos sobre a natureza como ponto de partida Em termos gerais, buscaremos nestes discursos, os valores que estes agentes hegemônicos atribuem à natureza (DRUMMOND, 1991) nos dois recortes da história desta cidade. Em outras palavras, visamos perquirir sobre as representações enquanto ―diálogos‖ destas elites políticas com a natureza, isto é, como as suas relações com o mundo natural (WORSTER, 1991; 2003), – nos quadros do ecossistema de Rio Grande –, são concebidas a partir de seus discursos sobre estas obras de infra-estrutura Para os discursos pretéritos e atuais nos utilizaremos fundamentalmente de fontes jornalísticas, promovendo uma imersão nos periódicos O Tempo e Echo do Sul (1915) e Agora e Rio Grande (1970). Eventualmente, de relatórios da Intendência e da Câmara Municipal do Rio Grande ou mesmo documentos disponíveis na Prefeitura desta cidade. ou implícitas das fontes jornalísticas, a partir do escopo da História Ambiental, adotamos a metodologia da análise de conteúdo. Ela nos possibilitará uma identificação, organização e orientação na interpretação de mensagens existentes no texto rumo a uma maior e melhor compreensão dos significados para além de uma leitura mais apressada. (MORAES, 1999) Desse modo, visando interpretar estas fontes jornalísticas, procuraremos organizar os discursos em foco, vinculando o estudo ao seu contexto de produção, deixando entrever os elementos implícitos e explícitos, dados de autoria, e como todos estes elementos articulados determinam e/ou condicionam a transmissão/comunicação das mensagens (idem, 1999) Todavia, à medida que estes discursos jornalísticos são ―filhos do seu tempo‖, tentaremos compreendê-los com cautela sobre a realidade que pretendem descrever, à medida que os mesmos não são ―a própria e única realidade‖. Eles configuram Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 Neste sentido, ao buscarmos ―apreender‖ as informações e mensagens explícitas 151 representações, isto é, ―reinvenções de realidades‖ produzidas conforme ―componentes ideológicos‖ e ―equipamentos culturais‖ que condicionam a leitura de mundo destes agentes hegemônicos. É neste sentido que necessitamos adotar ―explicações e aparato crítico adequado‖ para um melhor entendimento dos conteúdos expressos nestes relatos conforme, o contexto histórico em que foram produzidos, para evidenciar os seus múltiplos condicionamentos socioeconômicos, políticos e culturais. (REICHEL, 2002:3). Por fim, ao buscarmos apreender os valores, as concepções e os juízos atribuídos à natureza nestas fontes jornalísticas, por sujeitos históricos situados em diferentes contextos, pretendemos uma melhor compreensão de como estes agentes hegemônicos pensavam as relações dos humanos com o ambiente de Rio Grande nos dois recortes já anunciados – os anos de 1915 e 1970. 2. As práticas sociais em relação à natureza como ponto de chegada Partimos dos discursos jornalísticos dos agentes hegemônicos situados em dois contextos distintos, relacionados ao tema das condições de navegabilidade do Porto do Rio Grande. Isto é, pretendemos descortinar representações/concepções ou valores sobre as formas pelas quais estes agentes hegemônicos - em diferentes contextos -, concebem as relações dos humanos com a natureza, justificando suas proposições. sociais concretas no meio e, inversamente, de que forma estas mesmas práticas, influenciam e modificam a própria forma de pensar/agir dos mesmos agentes hegemônicos. Isto por que sabemos que os discursos e/ou representações de uma época são capazes de moldar o pensamento de gerações, e assim, suas práticas sociais em relação à natureza. Do ponto de vista da História Ambiental, adotamos uma das categorias metodológicas mencionadas por José Augusto Drummond, focalizando ―uma região com alguma homogeneidade ou identidade natural‖ – que se concretiza no ecossistema costeiro e o estuário da Lagoa dos Patos de que faz parte à cidade do Rio Grande e seu complexo portuário-industrial. Mas como nos alerta Drummond, mesmo com esta delimitação ou recorte da região a ser estudada, torna-se necessário que não se esqueça as suas peculiaridades físico-ecológicas. É necessário acrescentar que, por enfatizar áreas delimitadas/específicas, a História Ambiental portuária de Rio Grande necessitará Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 Assim, deixaremos entrever como representações sobre a natureza configuram práticas 152 vincular-se com a História Regional, na medida em que visualiza processos sociais e naturais circunscritos do ponto de vista físico-geográfico. (cf. DRUMMOND, 1991: 5). Utilizaremos-nos fundamentalmente de estudos históricos, geográficos e oceanográficos desenvolvidos na FURG, relativamente aos impactos socioambientais decorrentes das obras de infra-estrutura do canal da Barra do Rio Grande, como ampliação das condições de navegabilidade no estuário. Neste cenário, adotamos uma perspectiva de longa duração histórica, na qual é necessária ―atentar para as mudanças e permanências‖ MARTINEZ (2006: 39) nas formas com que os seres humanos, em sociedade, relacionam-se com a natureza – em nossas palavras –, no tempo ininterrupto, e como concebem estas mesmas relações ao nível de suas práticas discursivas hegemônicas (cf. MARTINEZ, 2006: 40) Assim, ao tentarmos visualizar como as relações sociedade/natureza são pensadas e efetivadas na concretude do ―tempo longo‖, pretendemos do mesmo modo identificar e problematizar possíveis impactos destas ações sobre o meio em virtude dos projetos referidos, pensados e/ou implantados na realidade concreta, no quadro ecossistêmico costeiro em que as mencionadas obras de infra-estrutura ocorreram e ainda estão em andamento. Nesse sentido, adotamos a perspectiva de ―impacto ... Os estudos apoiados na visão acrítica deste conceito, com raras exceções, primam pela análise de causa e efeito de natureza linear, unicausal e determinista. Diversamente, trabalhamos com a visão de que, associados às condições de origem e de expansão dos fenômenos locais – físicos, químicos e topográficos, os novos objetos espaciais acarretam redirecionamentos de processos históricos, sociais e ambientais, dos quais resultam novos efeitos que afetam de forma sistêmica e diversificada as condições de reprodução da vida nos ecossistemas e das classes ou grupos sociais, que ocupam territórios diferenciados. (COELHO, 2006: 406) Desta forma, o estudo dos ―impactos ambientais‖ requer uma análise interdisciplinar própria aos esforços metodológicos da História Ambiental, à medida que busca perquirir sobre as ―interações entre os processos ecológicos ou bio-físicoquímicos, político-econômico-espaciais e socioculturais‖. Trata-se de investigar as relações dinâmicas entre ―natureza originária e sociedade‖, considerando as ―estruturas socioespacias‖ determinas sob o ponto de vista temporal. Do mesmo modo, .... a compreensão dos processos ambientais requer um esforço permanente de articulação da micro, meso e macroescala de análise. O mais importante, todavia, é que quando nos preocupamos com os impactos acarretados pela introdução de um objeto novo, associado a fenômenos globalizantes num dado espaço, encontramos, na análise do passado e do presente, elementos essenciais para explicar processos de desestruturação e Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 ambiental‖ de Maria Cecília Nunes Coelho, para quem: 153 reestruturação, ou seja, a natureza e espacialização (ou geografia) das transformações ou mudanças sociais. (COELHO, 2006: 408) Assim, pensamos que a definição metodológica de ―impactos ambientais‖ proposta por COELHO (2006) esteja coerente com um dos propósitos da História Ambiental no Brasil, o de perquirir sobre a relação entre os humanos e a natureza em perspectiva histórica, e como já referido, as conseqüências das mesmas para a sociedade e seu ambiente; deixando transparecer as classes sociais beneficiadas e as que são desfavorecidas em projetos de desenvolvimento e infra-estrutura (MARTINEZ, 2006). Em outras palavras, como as obras de dragagem e expansão dos Molhes da Barra do Porto do Rio Grande, efetivadas desde o século XIX, e ainda em curso e intensificada nos dias atuais, são justificados e referidas no nível dos discursos dos agentes hegemônicos já aludidos. Para nós, a História Ambiental também pretende estabelecer a relação entre as racionalidades culturais e as estruturas sociais, já que as concepções de mundo se traduzem em condutas que influenciam na produção da vida material, sendo que processos da materialidade também configuram a dimensão mental/cultural, isto é, as diversas ―racionalidades‖ sócio-culturais e/ou ambientais (LEFF, 2005). REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS COELHO, Maria Célia Nunes; MONTEIRO, Maurílio de Abreu; BUNKER, Stephen G.; FERREIRA, Bernardo. Impactos ambientais da estrada de ferro Carajás no sudeste do Pará-Brasil In: TEIXEIRA, João B. Guimarães; BEISEIGEL, Vanderlei de Rui (orgs). Carajás. Geologia e ocupação humana. Belém, Museu Paraense Emílio Goeldi, 2006. p. 405466. <http://www3.ufpa.br/projetomineracao/docs/estrut/Arq%2017-%20Impactos.pdf>. Acesso quatro out. 2010. DRUMMOND, J. A história ambiental: temas, fontes e linhas de pesquisa. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 4, n. 8, p. 177-197, 1991. LEFF, E. Construindo a História Ambiental da América Latina. ESBOÇOS – Revista do Programa de Pós-Graduação em História da UFSC, Florianópolis, Nº 13, p. 11-26, 2005. MARTINEZ, Paulo Henrique. História Ambiental no Brasil: pesquisa e ensino. São Paulo: Cortez, 2006. MORAES, Roque. Análise de conteúdo. Revista Educação, Porto Alegre, v. 22, n. 37, p. 7-32, 1999. Disponível em: http://cliente.argo.com.br/~mgos/analise_de_conteudo_moraes.html>. Acesso em 27 nov 2009. REICHEL, Heloisa Jochims. Os relatos de viajantes como fonte para o estudo da história. XIII Economic Hisrtory Congress, 2002. Disponível em <http://eh.net/XIIICongress/cd/papers/60JochimsReichel320.pdf>. Acesso 28 nov 2009. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 BORGES, V. O que é História.15 ed. São Paulo: Brasiliense, 1980. 154 SEELIGER, U.; COSTA, C. Alterações de Hábitats devido às atividades antrópicas na costa sul do Brasil. In: Os Ecossistemas Costeiro e Marinho do Extremo Sul do Brasil. Editora Ecoscientia, 1998. _____________. Impactos Naturais e Humanos. In: Os Ecossistemas Costeiro e Marinho do Extremo Sul do Brasil. Editora Ecoscientia, 1998. WORSTER, D. Para fazer história ambiental. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 4, n. 8, p. 198-215, 1991. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 _____________. Transformações da terra: para uma perspectiva agroecológica na história. Ambient. soc., Campinas, v. 5, n. 2, 2003. 155 TRABALHO DE CAMPO PARA AS REGIÕES AMAZÔNIA E NORDESTE ROTEIRO: ITUIUTABA-MG – XAMBIOÁ- TO – MARABÁ-PA – SÃO LUÍSMA – BARREIRINHAS-MA – ARAGUAÍNA-TO Carolina dos Santos Camargos Elaine Aparecida Ramos Alunas do Curso de Graduação de Geografia pela FACIP/UFU [email protected] [email protected] Introdução O trabalho de campo realizado teve como destino as cidades de Xambioá-TO, Marabá-PA, São Luís-MA, Barreirinhas-MA e Araguaína – TO, em que cada um desses municípios foram observados diferentes aspectos do meio físico e sócio-espacial. O presente relato de campo demonstra como os sujeitos se relacionam com espaço, a identificação dos usos dos recursos naturais, como o homem atua e interfere nesse meio, seja ele histórico ou natural, e também a caracterização dos diferentes biomas que pudemos observar ao longo do trajeto. Observações e impressões Norte, o que marcou para nós, foi a tamanha diferença cultural existente. Tudo era muito diferente do que estávamos acostumados, seja até mesmo de um simples tempero na comida, como o coentro. È outra realidade sócio-cultural. O tom de pele também é diferente, alguns do sol e outros vindos da mistura forte do caboclo nessa região. Em termos econômicos, o rio movimenta a maioria das cidades, como é o caso de XambioáTo e Marabá-Pa. Lá visitamos a Praia do Tucunaré, em que observamos o tipo de lazer que o rio Tocantins proporciona os paraenses e turistas. Consideramos uma praia de água doce com um cenário muito belo, no qual é caracterizado como um lugar de lazer para a população local, em que há música de vários estilos (forró, tecno-brega e axé), comida e muita dança. Contudo, não possui condições mínimas de segurança aos banhistas. Pois barcos, avoadeiras, jet-skis, dividem o mesmo espaço junto às pessoas. Em relação à alimentação, não existe higiene. Não há banheiros químicos, notamos grande quantidade de lixo na praia, não há salva-vidas. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 Durante os nove dias desse trabalho de campo, rumo primeiramente à região 156 Visitamos a Serra das Andorinhas, ainda em Marabá, em que observamos uma faixa de transição da vegetação, não era propriamente caracterizada como vegetação da Amazônia. Em São Luís ficamos impressionadas com a cidade, ela ―respira história‖. São quase 400 anos. A arquitetura é muito bonita na parte tombada pela UNESCO, algo interessante que foi possível observar foi a utilização em massa de azulejos para com a decoração das casas e até mesmo de alguns semáforos, o centro histórico é grande e com isso possui também problemas proporcionais. Existem vários casarões condenados, o que gerou outro grande problema: ocupações ilegais. Lá é um ponto forte de drogas, locais de prostituição, evidencia-se alto grau de violência nessa região onde localiza-se o centro histórico de São Luís. É um local que não deveria passar automóveis, pois são ruas estreitas, a calçada também e pelo fato de passar automóveis na área influencia na manutenção das estruturas das casas históricas. Percebemos também que São Luís é ―coordenada pela Família Sarney‖, inclusive a Fundação que leva o seu nome se encontra em uma parte importante da cidade que é o Centro Histórico. No espaço urbano de São Luís foi possível perceber uma diferença sócioespacial muito grande, tal constatação foi observada ao irmos à orla da cidade, onde localiza-se casas bem estruturadas, hotéis de luxo, ―barzinhos‖ que atendem a demanda de uma classe média. Carajás.Esse controle é feito por modernos equipamentos de monitoramento das estradas de ferro, da velocidade em que o condutor do maquinário o conduz. Para que a parte operacional funcione em completa sintonia a empresa oferece cursos de capacitação para seus empregados, afim de qualificar a mão-de-obra, favorecendo assim a produtividade dessa. O trem que transporta os minérios possui cerca de trezentos vagões. É uma capital com todos os problemas evidenciados em uma grande cidade, evidencia-se segregação social (a elite está concentrada à beira-mar), em algumas regiões da cidade falta de saneamento básico, no qual é possível perceber o mau cheiro, além dos índices de violência. Não há planejamento urbano e nenhum sistema de gestão ambiental. A diversidade cultural de São Luís é muito grande, no período que estávamos no município, estava acontecendo a Festa de São João, festa evento em que cada praça do centro histórico possuía um palco, e cada palco um estilo musical, variando entre forró, Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 A empresa Vale que visitamos, tem todo o controle da Estrada de Ferro 157 música local e reggae. Observa-se que o artesanato é algo que se faz presente na cidade e o que foi possível perceber que a maioria dos ―hippies‖ (artesãos de rua) são migrantes e há muitos na cidade. Barreirinhas é o município de entrada nos Lençóis Maranhenses, possui aproximadamente 47.850 habitantes, sendo que parte desta população vive na zona rural, nesta vive cerca de 29.826 habitantes e na zona urbana apenas 18.024, e de acordo com o IBGE de 1991 a 2000, a renda per capita média cresceu 59,98%, passando de R$ 37,98 em 1991 para R$ 60,76 em 2000. A cidade está entre os municípios menos desenvolvidos do país, com o índice de desigualdade bem elevado, onde o que se destaca mais como atividade produtiva é o setor de serviços e é o que mais tem mostrado crescimento. em que notamos que o Turismo movimenta toda a cidade. Entretanto, não gerou ainda benefícios suficiente para toda sua população. Em Barreirinhas não evidencia-se condições de conservação das edificações, observa-se um lugar com residências simples/humildes, ruas não pavimentadas, produtos com alto valor agregado, dificultando assim a qualidade de vida da população, já que a renda per capita não dá subsídios para essa manutenção do sujeito. Não foi observado edificações de interesse histórico, mas foi possível notar, próximo a área/rua central da cidade uma área dotada de restaurantes, restaurantes com comidas típicas (a base do pescado), bares com música ao vivo e em seu entorno lojas de artesanato. renda de Barreirinhas gira em torno do comércio, do artesanato e do turismo, há presença de migrantes vindos da região Sudeste e de São Luís, que viram no turismo uma nova fonte de renda, montando pousadas, restaurantes e ficando para a população local somente aqueles empregos de nível baixo. O custo de vida elevou-se e a renda deles não. O trânsito interno da cidade é bastante critico, com ruas mal conservadas, em sua maioria de pedras, poucas das ruas são asfaltadas, possuindo difícil acessibilidade. A cidade possui baixo índice de violência, e como toda cidade pequena, o número de policiais é bastante pequeno, necessariamente nos dias em que estivemos lá, andando pela cidade não foi possível observar a presença de nenhuma viatura nas ruas. Há uma preocupação por parte do município de Barreirinhas -MA onde localizase o Parque Nacional dos Lençóis Maranhenses, com a conservação do meio físico, já que é obrigação do poder público conservar/proteger esse patrimônio natural que a cidade possui. Observa-se que nessa região há uma preocupação em oferecer aos Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 Conversando com moradores, identificamos que o custo de vida é alto, já que a 158 turistas a beleza natural que o lugar possui, cabe destacar que essa atividade esta diretamente ligada a dinâmica econômica do município, é a base para a subsistência da população local. Em Araguaína -TO, notamos que é uma cidade desenvolvida com a presença de frigoríficos, a agroindústria também é forte, além do comércio. Considerações Finais Foi uma experiência única esse trabalho de campo, tanto em termos acadêmicos quanto pessoais, crescemos muito ao ver tantas diferenças em um só país. Considerando que a diversidade que encontramos nessas regiões muito contribuiu para um pensamento critico sobre as políticas públicas, as zonas de interesse por causa dos recursos naturais que geram muita riqueza para aqueles que os exploram e a cultura que é simplesmente encantadora e gratificante vivenciar essas experiências. Em relação a baixa escolaridade da população vê-se que essa população local dedica-se em trabalhar no setor operacional/primário e o trabalho especializado é importado de outras regiões, com isso as condições econômicas dessa população local é precário. CICOUREL, A. Teoria e Método em pesquisa de campo. In: ZALUAR, A. (Org.) Desvelando Máscaras Sociais. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1980. NETO, Otávio Cruz. O trabalho de campo como descoberta e criação. In: DESLANDES, S. F. [et alii]. Pesquisa social. Teoria, método e criatividade. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS 159 UM BREVE OLHAR SOBRE O CRIACIONISMO Leonardo Flausino Araujo Silva Graduando em Ciências Biológicas (UFU/FACIP) [email protected] Marília Christina Arantes Melo Geógrafa (UFU) e Téc. Meio Ambiente (EAF-UDI); Téc. Lab. de Geografia (UFU/FACIP) [email protected] Cosmologia: breve histórico No inicio do pensamento filosófico expressado pelos folósofos se destaca a preocupação do primórdio cosmológico. Os filósofos pré-socráticos da escola Jônica Tales de Mileto, Anaximes e Anaximandro desenvolvem uma teoria dos quatro elementos cosmológicos: terra, ar, água e fogo usando a lógica de que os mesmos são elementos essenciais para a manutenção da vida biológica e mineral. Depois, outros filósofos tentam explicar a criação por outros elementos como o átomo, números e devir que significa ―vir a ser‖. Tais teorias mesmo sistematizadas no pensamento grego não se chega a um final definitivo, ficando apenas na lógica do pensamento. Teilhard de Chadim, teólogo e filósofo francês da era moderna desenvolve uma procedência na água, confirmando que a água causou evoluções inclusive na criação da humanidade, dos animais, dos vegetais e dos minerais; pensamento este concreto: se olharmos as grandes grutas conservadas para visitações existem indícios precisos de que todas elas foram submersas, muitas conservam fósseis e animais que viveram na água. O filósofo e teólogo Agostinho de Hipona na África branca no período da filosofia moderna desenvolve tratados de que o mundo não se evolui, apenas se transforma com as ações naturais ou humanas. Este tratado é chamado de ―Razões Seminais‖. O sêmen ou ―semente‖ guarda no seu íntimo o progresso do ser. Desta forma, o que já foi criado continua estacionado , parado num cerne da sua criação sem nenhuma evolução sofrendo apenas transformações naturais. Os mitos cosmogônicos do antigo oriente médio sobretudo na Babilônia teoriza uma criação apartir da terra. Do barro saiu todo desenvolvimento cosmológico e cosmogônico, inclusive a criação da humanidade simbolizada por sua divindade Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 teoria do criacionismo apartir de que a vida juntamente com o cosmo tem a sua 160 chamada ―deusa Arurú‖ estátua de barro, juntamente com ―deus Arú‖ esposo da deusa que juntamente criaram o mundo, expressão esta que didaticamente com o passar do tempo os judeus escrevem o livro do Gênesis usando o barro para formar a humanidade, em hebraico a palavra ―Adamar‖ que gera a palavra ―Adão‖, simboliza a terra. Este pensamento os judeus aprenderam durante a escravidão no Egito pela tradição oral. Com isto, formularam o livro do Gênesis, expressão da criação do universo usando inicialmente a água como mãe da criação e o barro como o início da humanidade. Portanto, os mitos cosmogônicos do antigo oriente médio inspira o judaismo dentro de um pensamento religioso na criação. No século XV diante das controvérsias religiosas do cristianismo e de outras religiões sobretudo no ocidente surgindo o ateísmo e a exclusão de qualquer pensamento divino, Karl Marx e Nietz, percursores do ateísmo agiram conscientizando a sociedade para a política invés da religião. Achando que esta aliena a consciência , vários pensadores desenvolveram teorias do criacionismo apelando para a evolução. Surgem expedições espaciais e tratados de como o mundo foi criado sobretudo o homem, porém chega-se a uma conclusão: ―se os primatas, dos quais muitos acreditam que deles vieram a humanidade, não se evoluíram na atualidade, os mesmos continuam parados sem nenhuma evolução na sua estrutura biológica e estética derrubando a tese da evolução humana caracterizada pelos primatas‖. matemáticos sobre a proveniência da ciação pelos números, pela geometria e pelas figuras fica parado e descartado este princípio em detrimento que estes elementos fazem parte apenas da estética do universo. Muito apreciado pelos filósofos epicuristas, a escola de Epicuro valorizava o prazer de encontros, comidas, bebidas, diversões e contemplação de um mundo criado esteticamente perfeito. Sobre o atomismo de Demétrio também contemporâneo de Pitágoras, o átomo seria apenas um elemento natural encontrado nas massas sem nenhumas condições de criar outros elementos procedentes da criação. Ele é visto pela crítica filósófica como um mero ser. Quanto à teoria do Devir de Heráclito, os elementos sofrem apenas transformações e não evoluções. Uma criança em um certo período da história da humanidade onde há preocupações constantes sobre a criação, foi criada em uma ilha sem receber nenhuma idéia procedente de criação. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 Na história da filosofia antiga quando Pitágoras desenvolve tratados 161 Constata-se que esta mesma criança começou questionamentos precisos sobre movimentos da água, do ar, dos ventos, dos barulhos, das nuvens, do sol, das estrelas, e da lua. Apoiando-se nestes questionamentos temos um tratado de São Tomaz de Aquino da idade média, filósofo e teólogo, sobre um motor: ―se algo move é porque algum elemento produz uma força, como por exemplo veículos e eletrodomésticos funcionando com algo por trás. Este motor que São Tomaz de Aquino desenvolve em seu pensamento é o motor das causas primárias para se chegar às causas secundárias. Este mesmo motor que pelo pensamento judaico é o motor invisível, algo superior não visto pela ciência nem por formas visíveis desembarca na infinidade e no vazio. No início do nosso calendário, o conquistador Pompeu ao chegar com seu exército na cidade de Jerusalém para saquear a mesma, profana o templo construído pelo rei Salomão para marcar a vida religiosa, política e social de Israel se depara com o Sanctum Sanctorum, compartimento sagrado, morada de Deus. Muitos contemporâneos acreditavam que este compartimento visitado apenas uma vez por ano pelo sumo sacerdote responsável pelo santuário abrigava em seu interiorum homem amarrado para ser sacrificado na páscoa, outros acreditavam que haviam objetos de elevados valores comerciais tais como pedras preciosas. Quando o Sanctum Sanctorum fio arrombado e profanado tinha apenas o vazio e representação de formas, figuras e visibilidade. Nenhuma teoria humana se chega ao primórdio da criação. Criacionismo Várias são as teorias para justificar a existência de vida na Terra. Dentre elas destacam-se a Teoria do Evolucionismo proposta por Charles Darwin, que propõe um ancestral comum a todas as espécies, na qual afirma que há a seleção natural e a mutação aleatória das mesmas (ÁVILA, 2008); que contrapõe a Teoria Criacionista. O criacionismo, em termos gerais, refere-se a criação do universo a DEUS (Figura 1), para os monoteistas, na qual os cristãos utilizam o livro de Gênesis da Bíblia para explicar história do universo e da vida na Terra. Mas, há criacionistas que possuem a concepção mais ampla dos agentes sobrenaturais dos quais não utilizam o termo Deus para explicar a criação (ENGLER, S.; 2007). Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 o invisível demonstrando que o criador do universo no seu mistério não tem nehuma 162 Figura 1: Teoria da criação de Grosseteste pela ação da luz e com Deus movimentando a última esfera celeste para dar movimento ao cosmos. Fonte: OLIVEIRA (2006, p.165). Engler (2007) fala que não há apenas um tipo de criacionismo, mas sim védico‖, ―criacionismo islâmico‖, ―criacionistas turcos‖, ―criacionistas sulafricanos‖, e ―anti-evolucionistas judeus‖ colocados em oposição a outros como ―criacionismo cristão‖, ―criacionismo adventista‖ e ―criacionistas americanos‖. Há criacionistas que adotam uma interpretação literal da Bíblia, assumindo que a Terra foi criada em seis dias, há aproximadamente 6.000 anos (os chamados young Earth creationists); e há criacionistas que defendem uma interpretação menos literal, que busca acomodar a leitura bíblica às descobertas científicas. De acordo com a interpretação deste último grupo, Deus criou o mundo em seis grandes eras, cada qual descrita na Bíblia como um dia (os chamados day-age creationists). Há, também, outros grupos de criacionistas que, com vistas a evitar uma caracterização religiosa, não discutem a natureza do criador, defendendo, apenas, a tese mais formal de que a vida foi criada. É o caso do movimento do design inteligente (intelligent design), que tem desenvolvido a tese, à primeira vista menos comprometedora, de que, ante à complexidade supostamente irredutível dos seres vivos, foi necessária a intervenção de um projetista, de um designer (ABRANTES, P.; ALMEIDA, F. P. L.; 2006). Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 criacionismos, como ―criacionismo hindu‖, ―criacionismo de Krishna‖, ―criacionismo 163 É importante ressaltar que os principais pontos do Criacionismo são pautados em evidências científicas a favor da criação. Dentre as evidências cinentíficas estão os seguintes argumentos: 1) A criação súbita do Universo, da energia e da vida a partir do nada; 2) A insuficiência da mutação e da seleção natural para produzirem o desenvolvimento de todas as espécies vivas a partir de um único organismo; 3) Mudanças das espécies de plantas e de animais originalmente criados, somente dentro de limites fixos; 4) A ancestralidade separada do homem e dos macacos; 5) A explicação da geologia da Terra através do catastrofismo, incluindo a ocorrência de um dilúvio de dimensões planetárias e; 6) o surgimento relativamente recente da Terra e das espécies vivas (ABRANTES, P.; ALMEIDA, F. P. L.; 2006). Outro argumento do qual os evolucionistas não sabem discorrer e quando discorrem não possuem um argumento forte é com relação a entropia, conhecida também como a Segunda Lei da Termodinâmica. A entropia, em resumo, é a medida da desordem molecular. A lei do irreversível aumento na entropia é uma lei de desorganização progressiva, do desaparecimento completo das leis iniciais. Dificilmente se pode afirmar que a evolução pelo menos fica superficialmente contrariada pela entropia. A predição óbvia do modelo evolucionista do princípio universal que aumentará a ordem é contrariada pelo fato científico de um princípio universal que diminui a ordem. Não obstante, os evolucionistas mantém a fé de que, de alguma forma, a evolução e a entropia podem coexistir, embora não saibam como (MORRIS, Henry M.; 2005). A teoria criacionista foi sendo introduzida nas escolas em face a teoria da América (EUA). Já no Brasil, no estado do Rio de Janeiro, a Lei Estadual Nº 3.459, de 2000, determinou o ensino confessional religioso nas escolas públicas (ABRANTES, P.; ALMEIDA, F. P. L.; 2006). Considerações finais O sistema de ensino, desde o fundamental ao superior, deveria abordar mais a Teoria Criacionista e não apenas a Teoria Evolucionista. Deve-se ter claro que não há apenas uma visão de criação do universo, sobretudo da vida na Terra, na teoria criacionista. Vale ressaltar que é de fundamental importância que tal teoria seja debatida e ensinada como sendo uma teoria para o surgimento do universo, pois caso contrário a evolução de pensamentos e entendimento dos seres humanos fica estagnado a uma Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 evolução, a curtos passos, nas escolas na década de 1960 nos Estados Unidos da 164 teoria, como é o caso da teoria evolucionista, e esta passa a ser uma verdade inquestionada no meio acadêmico. Assim, é de fundamental importância que a teoria criacionista não seja apenas vinculada a religião, mas seja vista também como uma ciência, pois para entender os criacionismos e seus estudos são utilizados os métodos descritivo e/ou tipológico. Em outras palavras, seja qual tipo de criacionismo seja seguido, além da utilização do livro de gênesis, do qual grande parte dos criacionistas utilizam, são utilizadas evidências das quias são confirmadas cientificamente para contestar a teoria evolucionista. REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABRANTES, Paulo; ALMEIDA, Fábio Portela Lopes de. Criacionismo e Darwinismo confrontam-se nos Tribunais: Da Razão e do Direito.Episteme, Porto Alegre, v. 11, n. 24, p. 357-401, jul./dez. 2006. Disponível em: <http://www.diaadiaeducacao.pr.gov.br/diaadia/diadia/arquivos/File/criacionismoXdarwinismo. pdf>. Acesso em: 03/11/2010. AQUINO, Tomás de. Suma contra os Gentios. Tradução de Luiz João Baraúna. São Paulo: Editora Abril. 1983. (Coleção Os Pensadores). ENGLER, Steven. Tipos de Criacionismos Cristãos. Revista de Estudos da Religião, junho / 2007 / pp. 83-107. Disponível em: <http://www.pucsp.br/rever/rv2_2007/t_engler.pdf>. Acesso em: 05/11/2010. MARX, Karl. O Capital. 3a Edição, São Paulo, Nova Cultural, 1988 MONDIN, Batista. Curso de Filosofia, Vol. I, Paulinas. MORRIS, Henry M. Entropia e os Sistemas Abertos. 2005. Disponível <http://www.cyberbr.net/mitosfatos/evol/entropia.htm>. Acesso em: 08/11/2010. em: OLIVEIRA, Jorge Henrique Lopes de. Noções de cosmologia no ensino médio: o paradigma criacionista do Big Bang e a inibição de teorias rivais. Maringá, 2006, p. 142-188. Disponível em: <http://www.pcm.uem.br/media/dissertacoes/e670a38aad54633.pdf>. Acesso em: 04/11/2010. SILVA, A. M.; Pinheiro, M. S. F.; França, M. N. Guia Para Normalização de Trabalhos Técnico-Científicos: projetos de pesquisa, trabalhos acadêmicos, dissertações e teses. 5. ed. Uberlândia: UFU, 2006. p. 21-121. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 ÁVILA, Gabriel da Costa. Michael Behe. The edge of evolution: the search for the limits of darwinism (Resenha). Rev. Bras. Hist. vol.28 n°.56 São Paulo, 2008. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S010201882008000200019&script=sci_arttext&tlng=pt>. Acesso em: 03/11/2010. 165 VIAGEM PITORESCA POR GOYAZ: O OLHAR DOS VIAJANTES SOBRE GOYAZ Adriano Freitas Silva Graduando de História na Universidade Federal de Goiás/Campus de Jataí Goyaz: no relato dos viajantes oitocentistas. No início do século XIX, o Brasil era a última grande extensão territorial ainda inexplorada pelos europeus não portugueses. Essa falta de conhecimento se dava principalmente pelos entraves colocados pela Coroa Portuguesa, que não davam acesso aos pesquisadores não portugueses. A intenção da Corte Portuguesa era resguardar as informações sobre as potencialidades econômicas e os recursos exploráveis. A proibição de entrada imposta pela Coroa Portuguesa fazia da colônia um lugar misterioso aos olhos dos estrangeiros, graças aos rumores sobre as imensas riquezas minerais escondidas no subsolo e as infindáveis florestas tropicais repletas de plantas e animais exóticos e índios que ainda viviam na Idade da Pedra. Todo esse cenário mudou com a chegada da corte e a abertura dos portos para a nações amigas. O resultado foi uma invasão estrangeira sem precedentes. Essas pessoas que percorreram este vasto território no século XIX encontraram aqui um mundo totalmente desconhecido. conhecimento sobre o Brasil, sobretudo no campo das ciências. Os homens do século XIX, herdeiros do Iluminismo, colocam-se em movimento, pesquisando, coletando e relatando. Ainda para Vainfas (2002), sempre nítidos e muitas vezes preconceituosos sobre as sociedades e regiões visitadas. Os viajantes deste século eram também influenciados pelo espírito do romantismo, que a valorização na subjetividade, até mesmo no olhar sobre a natureza. Segundo Márcia Regina Capelari Naxara: O olhar cientifico – do cientista que observa de fora, tanto a natureza quanto os homens – aparecendo como que impregnado, de forma ambivalente, por uma sensibilidade romântica, mesmo que ela não se manifeste consciente e claramente. Junto ao olhar que se pretende neutro, que visa analisar algo que lhe é exterior (tanto a natureza inanimada, como o mundo vegetal, animal e humano) aparece a reverencia diante da criação, a instantânea perda da objetividade e da neutralidade. Sentimentos e sensações que escapam ao domínio da explicação racional (...) na tentativa de assimilar tal espetáculo, os homens lançaram mão da palavra, do desenho e da pintura, como formas de alcançar o conhecimento e garantir a memória (NAXARA, 2004: p. 148). Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 Para Vainfas (2002), os viajantes do século XIX viabilizaram a difusão do 166 Transformações econômicas e filosóficas marcaram toda a Europa durante a segunda metade do século XIX. Karylleila dos Santos Andrade salienta que ―a segunda metade do século XIX, é o momento em que a ciência se impõe como única explicação para todos os problemas da humanidade – material e científico‖ (ANDRADE, 2010: p. 46). Estes viajantes que aqui estiveram, vieram com seus olhares repletos progressos europeus, e cada um, com o seu modo de ver, relatou a flora, a fauna, rios, montanhas, cidades e suas populações. Para Karylleila dos Santos Andrade (2010) a visão de mundo européia por parte dos viajantes, dificultava vivenciar a diferença, se consideravam o centro de tudo e de todos e os ―outros‖ eram aprendidos e sentidos pelos valores e modelos da cultura européia. Para estarem no Brasil, estas viagens exigiam meses de preparo, visto que definições de itinerário, organização do material científico, ajudantes e cartas de recomendação do governo brasileiro, eram quesitos necessários para a realização destas. Geralmente quem pagava essas expedições eram os governos europeus, quem não conseguia por partes dos governos, procurava vender os materiais coletados aos museus. Esse incentivo dos governos europeus objetivava não apenas o desenvolvimento científico e cultural, mas também o conhecimento sobre as potencialidades exploráveis Esses viajantes estrangeiros que vieram para o Brasil se consideravam superiores até mesmo diante de um branco que residia no país, pois continham conceitos e pré-conceitos na procura do entendimento das diferenças. Em Goyaz não foi diferente do restante do país, com o mesmo olhar etnocêntrico, não compreendiam a realidade do local, e consequentemente, emitiam julgamentos e opiniões com bases em seus olhares. De acordo com Andrade (2010), os viajantes europeus olhavam para Goyaz, com base no olhar civilizador eurocêntrico, para eles, a pobreza, os mestiços, o abandono e o negro eram empecilhos no processo civilizatório da região, ignorando por completo o outro lado da história. Por Goyaz passaram viajantes como Pohl, D‘ Alincourt, Saint-Hilaire, Gardner, Castelnau, mas também Taunay e Oscar Leal - estes últimos não europeus -, que através de seus relatos contribuíram para a historiografia goiana. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 dos países visitados. 167 Os viajantes europeus que passaram pela província, todos tinham formação superior e vinham de uma Europa transformada pela Revolução Industrial, urbanizada, ansiosa por conhecer o que ainda restava a se conhecer do Novo Mundo: o Brasil. Ao chegarem a Goiás, notaram certa decadência, visto que diferentemente da Europa, encontraram ausência de estradas, casas miseráveis, população preguiçosa e carente. Todas essas características apontadas pelos viajantes eram opostas a Europa, que no período estava preste a gestar a Segunda Revolução Industrial. Raimundo José da Cunha Matos (1776-1839)88 em sua passagem pelo Arraial do Cocal observava que, este arraial, assentado na baixa de um monte, é um todo de ruínas em que apenas se conservam 48 miserabilíssimas casas dispostas em três ruas; a grande Igreja de São Joaquim, com cinco altares, uma rica custódia, e várias outras peças de prata e bons ornamento: está a cair (...) os habitantes deste distrito são pobríssimos, pretos e pardos, e vi um único homem branco. Eis o resultado da mineração (MATOS: 2004, p. 137). Auguste François César Provençal Saint-Hilaire (1779-1853)89 também acreditava na ―decadência dos arraias goianos ‖ e, ao descrever o Arraial de Rio Claro afirmou que, Os escassos arraiais de Goiás somavam-se aos reclames dos viajantes contra o ócio de sua população, refletido na preguiça da gente do sertão de Goiás, e a carência de capital e mão-de-obra. Para os viajantes era incompreensível terras com tamanho potencial ser envolvidas pelo marasmo e ócio de seu povo. Para Johann Emanuel Pohl (1782-1834)90, a preguiça não era uma característica só dos goianos, mas de todos os brasileiros. Ao descrever sobre Vila Boa afirma que, os brancos são na maioria de origem portuguesa, em parte fugitivos e aventureiros e, no entanto, formam a primeira classe, o que se deve apenas à cor. Na maior parte são intoleravelmente altivos e soberbos, crentes dessa sua superioridade em relação às outras raças. Poucos melhoraram o caráter, antes exibem a vulgaridade de sua existência anterior. O ócio é a máxima felicidade dessa gente... Com essa inatividade e preguiça, os brancos 88 Militar e político, Cunha Matos justificava os seus trabalhos como fruto de uma necessidade urgente de registrar os materiais coletados durante a incumbência das missões militares, que o levaram a percorrer um vasto sertão até o extremo norte da província de Goiás. 89 Naturalista francês, chegou ao Brasil em 1816 e percorreu boa parte do Brasil até 1822. 90 Johann Emmanuel Pohl (1782-1834), médico e naturalista austríaco. Viajou por Goiás entre dezembro de 1818 e junho de 1820. Autor de Reise im Innern von Brasilien. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 o referido Arraial encontrava-se em grande decadência e as tropas que ali passavam não encontravam víveres para se reabastecerem, o cultivo da terra não interessava a esses homens, tão imprevidentes quanto aos próprios índios (...) em meio a tanta riqueza permanecem sempre na miséria (SAINTHILAIRE, 1975, p. 81). 168 decaíram tanto que a maioria deles falta até o necessário para comparecerem a igreja aos domingos (POHL, 1976: p.141). Cunha Matos (2004, p. 15) declarou ―que a miséria sofrem os moradores da província de Goyaz, no meio de terras as mais ricas e fecundas de todo o universo! A preguiça, a infernal preguiça é quem os mata‖. Alfredo d‘ Escragnolle Taunay (1843-1899)91 acrescenta que: Goyaz não tem população para bem povoar uma zona sequer de seu imenso território; não tem hábitos de trabalho constante, pois não vê a retribuição imediata do labor, não sente em si a evolução do progresso;vive vida lânguida e desanimada e, prostrado sobre minas riquíssimas de ouro, não possui real de seu (TAUNAY, 2004: p.31). Conforme Andrade (2010) estes viajantes europeus viam em Goyaz apenas um deserto de homens, com carência de estrutura e sem perspectivas de vida, sem meios de comunicação e estradas, inertes, parados diante do ócio, muito diferente dos valores e atitudes da vida européia. Diante dessa realidade que os ofuscavam, não conseguiam perceber as razões econômicas que levaram a província àquela situação. É interessante notar, que conforme os relatos de Saint-Hilaire, Pohl, Cunha Matos e outros, Goyaz era uma província que era sustentada pela a ambição da mineração. Com o seu declínio, não havia outra atividade para impulsionar o desenvolvimento da região. Se caso essa incapacidade é verdade, como a província de Goyaz sobreviveu ao declínio aurífero? os filhos daqueles inquietos exploradores compreenderam que era impossível continuar a ingrata mineração que exaure o solo e só enriquece o forasteiro, e então puseram-se a cavar a terra, mas a cultivá-la, e de pronto de colheitas feracíssimas, uma após outras, cada qual mais copiosa, recompensaram o abençoado trabalho (TAUNAY, 2004, p. 35) E acrescenta que, tanta fartura, excedente de muito às necessidades do limitado consumo foi aos poucos, mas seguidamente, atraindo nova imigração de gente, e esta moralizada e afeita às lidas da agricultura. Foi assim que milhares de mineiros, paulistas e cearenses vieram e vêm sucessivamente vindo povoar e fertilizar os sertões de Goyaz, trazendo para essa nova terra de promissão todos os benefícios da confiança no futuro (TAUNAY, 2004, p. 35). Nesse sentido, à medida que Pohl, Saint-Hilaire, Cunha Matos defendiam o caráter de paralisação econômica e ócio da população goiana. A ausência de comunicações, de estradas e a falta de ação da população criaram, no imaginário dos 91 Engenheiro Militar lutou na Guerra do Paraguai. Durante este período da Guerra, fez relatos sobre as regiões que passou, sendo uma delas Goyaz. Seis anos mais tarde, em 1876, foi eleito para a Câmara dos Deputados pela Província de Goyaz. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 Conforme Taunay, após o período de mineração, 169 viajantes, um confronto com suas visões de mundo, de progredimento, de civilização. Nas palavras de Andrade, não é possível a imposição do tempo do capitalismo aos homens da província de Goiás, pois suas necessidades eram ligadas, praticamente, à caça, à pesca e à coleta de frutos silvestres e mel: a satisfação não dependia de um esforço continuado e intenso, marcado pelo ―tempo-relógio‖ capitalista. Era sazonal, depende do ciclo irregular da natureza. Como exemplificação do olhar etnocêntrico dos viajantes, na perspectiva da noção de tempo, o trabalho assistemático, correspondente ao artesanato e a subsistência, era visto como ócio, escassez e pobreza (ANDRADE, 2010, p.41) Taunay também contradizia os relatos dos viajantes europeus, uma vez que apresentava-se otimista e em cada relato seu, reiterava a confiança no crescimento futuro da região. No modo de ver de Taunay, penetre-se cada goiano da necessidade de trabalhar com vigor e constância, sem desânimos e nem ambições repentinamente exageradas, melhore os produtos que já tem; cultive os outros; procure para eles escoadouros; resista com valor ao desalento e, dentro dos limites do restrito dever, com um contingente relativamente mínimo, concorrerá para grande e auspicioso resultado (TAUNAY, 2004, p. 10). O viajante Oscar Leal92, em sua passagem por Goyaz, também notou o potencial da região, e em Jataí, última cidade que esteve pela província relatou que, Goyaz: o olhar dos artistas viajantes do século XIX No século XIX com a transferência da corte, outro grupo de viajantes vieram para o Brasil, os denominados paisagistas ou pintores, entre eles estavam o pintor austríaco Thomas Ender e também o francês Jean-Baptiste Debret (1768-1848), que com a vinda da família real, tornou-se um dos principais pintores do período. Estes viajantes paisagistas produziram pinturas de expedições realizadas pelo interior, grandes capitais e principalmente da cidade de residência. Ao chegar ao chamado ―Novo Mundo‖, estes artistas vindos com as popularmente chamadas missões artísticas vão residir na sede temporária do reino português, o Rio de Janeiro. 92 Oscar Leal foi um viajante de descendência portuguesa que fez sua primeira viagem às terras goianas em 1882, ano em que estava com vinte anos. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 O Jatahy conquanto seja uma povoação tão recente que ainda tem a ventura de abrigar vivos os seus fundadores, é hoje uma villa notável pelos seus edificios públicos e particulares, construídos por mãos hábeis, e pelo magnífico local em que se acha situada. É a ultima povoação que existe n‘esta banda de Goyaz (...) conquanto menor que o Rio Verde, é superior por vários motivos, pois os homens ricos do Jatahy são mais patriotas e compehendem melhor o alcance das cousas (LEAL, 1892, p. 193). 170 Segundo Fred Trivellato (2009) esses viajantes, ao registrar uma imagem, realizam um recorte na paisagem, ou seja, optam em mostrar aquilo que lhe chama atenção. As imagens dos viajantes contribuíram para o imaginário acerca do é o Brasil. Em 1816 chega ao Rio de Janeiro a primeira missão artística, a Francesa. Esse grupo de artistas contribuiu para a solidificação da produção nacional e transformação da imagem da cidade para algo condizente ao olhar do mundo civilizado. Com a vinda incentivada pelo casamento da Princesa Leopoldina da Áustria com o Imperador Dom Pedro I, a missão artística austríaca chegou ao Brasil em 1817. Um dos integrantes desta missão foi o artista Thomas Ender, que percorreu terras goianas durante este período. Na imagem acima de Ender, mostra em primeiro plano um grupo de pessoas ao lado de uma vegetação e em segundo plano, ao fundo a esquerda, a Cidade de Goyaz. O artista ao retratar a vegetação destaca algumas plantas do cerrado goiano, como também as espécies plantadas pelo homem como a bananeira. Através deste detalhamento da flora goiana, Ender explicita sua formação como naturalista. Todas essas icnografias produzidas andavam junto com os relatos e tinham o intuito de descrever o modo como os diversos elementos compunham cada lugar. Os pintores e desenhistas aproveitavam seu trabalho para difundir o nosso país para o exterior. Pablo Diener (1999) mostra qual seria a finalidade dessas obras na Europa, Assim seus lápis e pincéis deveriam transformar-se no veículo documentador que levaria à Europa, através dos resultados da expedição russa, imagens reveladoras de recônditos deste espaço tropical, então bem pouco conhecido pela ciência ilustrada. (DIENER, 1999, p. 83). Outra expedição que percorreu as terras goianas foi a Langsdorff, esta de origem russa. Comandada por Gregory Ivanovitch Langsdorff, esta percorreu durante os anos Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 Vista da Cidade de Goyaz por Thomas Ender em 1819 Fonte: http://ovilaboense.blogspot.com/2009/04/thomas-ender-em-goyaz-1819.html 171 1822 a 1829 o interior do Brasil, passando pelas regiões de Minas Gerais, Mato Grosso, Goiás, Rio de Janeiro e São Paulo. Esta expedição fazia parte dos esforços do Czar Alexandre I em reavivar as relações comerciais com o Brasil, que haviam sido prejudicadas no governo de Dom João VI. Como integrantes dessa expedição estavam Johann Moritz Rugendas, Aimé-Adrien Taunay e Hercules Florence. A seguir destacamos uma imagem de Johann Moritz Rugendas, Habitantes de Goyaz. Nesta imagem, o artista representa os habitantes de Goyaz com outras características, ou seja, evidencia traços semelhantes aos dos vaqueiros dos pampas gaúchos e animais diferenciados da região em foco. Conforme Nasr Chaul (2001) ao se referir desta obra, aborda que Rugendas era um exemplo típico de artistas que Habitantes de Goyaz de Johann Moritz Rugendas Fonte: CHAUL, Nasr e RIBEIRO, Paulo. Goiás: identidade, paisagem e tradição. p. 104. Panorama of Goyas on Three Sheets de William John Burchell Fonte: CHAUL, Nasr e RIBEIRO, Paulo. Goiás: identidade, paisagem e tradição. p. 97. Na imagem acima, William John Burchell, que se situava entre os naturalistas europeus ligados à especulação científica e dotados de recursos de desenho, representa com uma riqueza de detalhes, a Cidade de Goyaz nos anos vinte do século XIX. Miguel Luiz Ambrizzi afirma que, Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 retratavam lugares onde nunca havia estado. 172 Durante anos esses olhares estrangeiros permaneceram em acervos de museus e, nos fins do século XX, um grande número de estudiosos, historiadores, artistas, entre outros profissionais e instituições, foram impulsionados por uma necessidade de resgatar esses registros que fazem parte do patrimônio histórico, artístico e cultural do nosso país. Através de exposições e de projetos institucionais (museus, curadorias) o conhecimento dessas obras se deu não somente pela re-apresentação das mesmas, mas pela sua atualização, relacionando-as com o presente mediante projetos de revisitas a estes caminhos trilhados por cientistas e artistas-viajantes. (AMBRIZZI, http://www.dezenovevinte.net/artistas/viajantes_mla.htm acesso em 10 de novembro de 2010 às 9:00) REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS AMBRIZZI, Miguel Luiz. Entre olhares - O romântico, o naturalista. Artistas-viajantes na Expedição Langsdorff: 1822-1829. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/artistas/viajantes_mla.htm>. acesso em 08 de novembro de 2010 às 19:00. ANDRADE, K. S. Atlas toponímico de origem indígena do estado do Tocantins. Goiânia: Editora da PUC-Goiás, 2010. CHAUL, N. F. Caminhos de Goiás – da construção da decadência aos limites da modernidade. Goiânia: Edufg, 2002. CHAUL, N. F. e RIBEIRO (Orgs.). Goiás: identidade, paisagem e tradição. Goiânia: Editora da UCG, 2001. DIENER, P.; COSTA, M. de Fátima. A América de Rugendas - obras e documentos. São Paulo: Estação Liberdade; Kosmos, 1999. LEAL, O. Viagem às Terras Goyanas (Brazil Central). Goiânia, GO: Editora UFG, 1980. LEMES, C. G. F. De “minhoca a Beija Flor” A participação feminina na política do sudoeste goiano 1930 – 1947. 2009. 122 f. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de História de Goiânia, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2009. LUZ, A. C. O olhar dos viajantes, seus relatos e contribuições à historiografia regional: um enfoque à obra de Oscar Leal. In: I CONGRESSO NACIONAL DO CURSO DE HISTÓRIA DA UFG/JATAÍ, 2008, Jataí. Anais do I CONGRESSO NACIONAL DO CURSO DE HISTÓRIA: UFG/JATAÍ, 1998. MATOS, J. R. da C.. Itinerário do Rio de Janeiro ao Pará e Maranhão, pelas províncias de Minas Gerais e Goiás. Belo Horizonte: Instituto Cultural Amilcar Martins, 2004. NAXARA, Márcia Regina Capelari. Cientificismo e Sensibilidade Romântica: Em busca de um sentido explicativo para o Brasil no século XIX. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2004. POHL, J. E. Viagem no Interior do Brasil. Tradução: de Milton Amado e Eugênio Amado; apresentação e notas de Mário Guimarães Ferri. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1976. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 http://ovilaboense.blogspot.com/2009/04/thomas-ender-em-goyaz-1819.html acesso em 09 de novembro de 2010 às 13:00. 173 SAINT-HILAIRE, A. de. Viagem a província de Goiás. Tradução de Regina Regis Junqueira; apresentação de Mário Guimarães Ferri. Belo Horizonte: Editora Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1975. TAUNAY, A. Goyaz. Goiânia: Instituto Centro Brasileiro de Cultura, 2004. TRIVELLATO, F. T. O Brasil das pinturas e fotografia de viajantes: geografias, narrativas e imagens do Brasil. In: II ENCONTRO NACIONAL DE HISTÓRIA DO PENSAMENTO GEOGRÁFICO, 2009, São Paulo. Anais do II Encontro Nacional de História do Pensamento Geográfico: Universidade de São Paulo, 2009. VAINFAS, R. Dicionário do Brasil Imperial. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002. LISTA DAS IMAGENS: 01-Vista da Cidade de Goyaz por Thomas Ender em http://ovilaboense.blogspot.com/2009/04/thomas-ender-em-goyaz-1819.html 1819. Fonte: 02-Habitantes de Goyaz de Johann Moritz Rugendas. Fonte: CHAUL, Nasr e RIBEIRO, Paulo. Goiás: identidade, paisagem e tradição. p. 104. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 03-Panorama of Goyas on Three Sheets de William John Burchell. Fonte: CHAUL, Nasr e RIBEIRO, Paulo. Goiás: identidade, paisagem e tradição. p. 97. 174 SIMPÓSIO TEMÁTICO 3 – CULTURA POPULAR, ORALIDADES E LINGUAGENS AUDIOVISUAIS Coordenação: Professor Dr. Cairo Mohamad Ibrahim Katrib e Profa. Dra. Ângela Aparecida Teles A FORMAÇÃO DA INDÚSTRIA DE CALÇADOS EM FRANCA (SP) .............................. 176 Soraia Veloso Cintra A INCLUSÃO DE ALUNOS SURDOS EM ESCOLAS DA REDE PÚBLICA DE ITUIUTABA – MG................................................................................................................... 184 Rogério da Silva Marques AS MULHERES NO SERVIÇO SOCIAL ............................................................................... 191 Soraia Veloso Cintra CONGADA, EDUCAÇÃO E RELIGIOSIDADE: PERPETUAÇÃO DE NOSSAS RAÍZES AFRICANAS ............................................................................................................................ 202 Fábio Almeida Silva COSTUMES E TRADIÇÕES DA VIDA RURAL E SUAS REELABORAÇÕES, NO PONTAL DO TRIÂNGULO MINEIRO - 1950 A 2010 .......................................................... 209 Ana Flávia Ferreira Lígia Gomes Perini "SÃO MARCOS" EM FESTA: FESTAS COMO VEÍCULOS DE SOCIABILIDADE E FÉ NAS COMUNIDADES AFEDADAS PELA U.H.E. SERRA DO FACÃO ............................ 232 Anderson Aparecido Gonçalves de Oliveira e Cairo Mohamad Ibrahim Katrib VOZES EM FESTA: MEMÓRIA, HISTÓRIA E ANCESTRALIDADE NOS FESTEJOS DE SÃO BENEDITO. ..................................................................................................................... 239 Fernanda Domingos Naves Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 DAR NÃO DÓI, O QUE DÓI É RESISTIR DO GRUPO TEATRAL TÁ NA RUA: TRAJETÓRIAS E DISCURSOS NA CONSTRUÇÃO DE UM TEATRO POPULAR.......... 220 175 A FORMAÇÃO DA INDÚSTRIA DE CALÇADOS EM FRANCA (SP) Soraia Veloso Cintra Docente do curso de Serviço Social da FACIP/UFU; pós-graduanda, nível doutorado, no programa de pós-graduação em Serviço Social da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Estadual Paulista – Unesp – campus de Franca (SP), sob a orientação da professora doutora Claudia Maria Daher Cosac. A INDÚSTRIA DE CALÇADOS EM FRANCA Historicamente, a formação da indústria de calçados é masculina. O processo de desenvolvimento econômico da indústria calçadista brasileira iniciou no Rio Grande do Sul, com a chegada dos primeiros imigrantes alemães, em junho de 1824. Instalados no Vale do Rio dos Sinos, além de atuarem na agricultura e na criação de animais, eles também trouxeram consigo a cultura do artesanato, principalmente nos artigos de couro. [...] Em 1888 surgiu, no Vale dos Sinos, a primeira fábrica de calçados na região, formada por Pedro Adams, filho de imigrantes, que também possuía um curtume e uma fábrica de arreios. O estado gaúcho aumentava a demanda por calçados, fazendo com que a produção se expandisse a cada ano formando, ao longo do tempo, um dos maiores clusters calçadistas mundiais da atualidade. (ABICALÇADOS..., 2009). Em Franca não foi diferente. Carlos Pacheco, mineiro de Formiga (MG), instalado na cidade desde os primeiros anos do século XX, sócio de uma fábrica de município pelo uso das máquinas, a Jaguar. Fundada em 1920 foi transferida a seus dois genros posteriormente e, seis anos depois, entrou em falência, sendo que maquinários e demais equipamentos foram divididos entre os credores. Entre 1920 e 1926, foram registradas em Franca sete empresas com características similares à Jaguar com algo mais em comum – todas possuíam sócios em seus quadros e se intitulavam sapatarias e selarias, também, como a primeira, fecharam suas portas, e apenas uma sobreviveu até 1930. A mão-de-obra especializada formada pela Jaguar seria absorvida nos anos seguintes pelas novas empresas que se formavam – funcionário ou sócio. De acordo com Coutinho (2008, p. 173), um ex-funcionário da Jaguar abriu seu negócio. ―Mário Justino Ferreira, ex-funcionário da Jaguar, em novembro de 1925 inaugura sapataria e selaria, associado a Jerônimo Castro Oliveira. Em apenas 40 dias, porém, Justino deixa a empresa, iniciada com 30 contos de réis‖. Em 1927, três negociantes compraram as máquinas que sobraram da falida Jaguar e montaram a Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 fósforos, montou aquela que é considerada a primeira indústria de calçados do 176 Calçados Peixe – Clodomiro Honório da Silveira, Adalgiso de Lima e José Rodrigues da Silveira Júnior. (Coutinho, 2008, p. 174). Outros ex-funcionários da Jaguar também montaram seus negócios nos anos vindouros. O autor destaca que no início do século XX os artesãos e as fábricas enfrentam a concorrência dos calçados importados, realidade que mudará um pouco o cenário com a instalação das estrangeiras: Calçados Clark, Bordallo, Calçados Villaça e Fábrica Brasileira de Alpargatas e Calçados (mais tarde São Paulo Alpargatas). Calçados Clark tinha em 1910, 450 operários em cada uma das quatro unidades, e o mais curioso é que essa empresa que abriu suas portas no Rio de Janeiro em 1822 apenas como comércio, chegou ao século XXI com negócios pelo e-commerce. Foi a maior indústria de calçados do Brasil. Essa realidade mudará nos anos seguintes em São Paulo e Rio de Janeiro. Mas, até lá, a incipiente indústria francana ainda engatinha em busca de consolidação. Isto porque, de acordo com Barbosa (2006, p. 66), ―[...] a indústria calçadista local teve como característica fundamental a evolução gradativa da fase artesanal, passando a manufatureira para, depois de quase meio século, alcançar o estágio de grande indústria.‖ Na década de 1930, são registradas oito novas empresas que seguem o movimento das anteriores: abrem e fecham em poucos anos ou meses. Neste período surgem dois homens importantes para a constituição do pólo calçadista francano: os Coutinho (2008) relata que foram abertas 69 empresas na década seguinte, entre elas, Agabê e Medieval, que sobreviveram à primeira década do século XXI; e Calçados Terra, cujo complexo construído no Distrito Industrial prima pela inovação – escritórios, refeitório, chão de fábrica. Complexo este vendido posteriormente a São Paulo Alpargatas e que abriga, na atualidade, a indústria de calçados Democrata. ―Em 1945, as cinco maiores empresas locais eram, por ordem de volume de capital, Calçados Palermo, Calçados Peixe, Calçados Mello, Calçados Spessoto e Calçados Samello.‖ (BARBOSA, 2006, p. 77). No mesmo ano, Hugo Bettarello e seu sogro Miguel Bagueira Leal fundaram a Calçados Agabê; em 1963, três sócios de origem síriolibanesa (José Abbud Sobrinho, Fause Abbud e Jorge Abbud) fundam a Calçados Abbud. Chega-se a década de 1950 com 59 empresas abertas. Interessante destacar que neste cenário de homens e máquinas as mulheres são referenciadas apenas como mães ou esposas de figuras ilustres da indústria calçadista. Exceção a dois momentos no relato de Coutinho (2008), pois em 1944, uma empresa Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 irmãos Antônio Lopes de Mello (1899-1955) e Miguel Sábio de Mello. 177 tinha uma mulher como sócia: ―Cristóvão de Oliveira Paes Leme e Maria Gomes da Silva. Maria era comanditária93 e manteve investimento por um ano‖. A outra referência aparece somente em 1955 – os sócios são Elvira Gimenes Garcia e Elsio Scott que montaram a Gimenes & Scott. Nos anos de 1940 ainda não havia um pólo calçadista em Franca, desenhavase. A população urbana no início da década totalizava quase metade dos habitantes do município e a cidade acompanhava as mudanças que ocorriam na estrutura econômica nacional: o crescimento da indústria superava o da agricultura e o país não dependia essencialmente das lavouras de café para gerar riquezas e sobrevivências. O empreendedorismo lastreado no conhecimento das técnicas e na força do trabalho, carente de recursos financeiros – uma característica da fabricação de calçados em Franca desde 1900 – ampliou-se geometricamente. Consolidou-se o ciclo que perdura até hoje: o de trabalhadores transformarem cômodos da casa em oficina, inspirados no êxito de industriais da mesma origem. Espelhar-se no semelhante é um ponto fundamental para compreender não apenas a formação como a existência do pólo. Novos fabricantes surgem em profusão a partir de 1940; são ex-operários na maioria, com cerca de 26 anos de idade na média geral, além de filhos ou parentes de antigos artesãos. Posteriormente, várias dessas empresas também desovaram outros produtores e assim sucessivamente. (COUTINHO, 2008, p. 189) A partir da década de 1960, dezenas de indústrias de calçados foram abertas no período chamado ‗milagre brasileiro‘ durante a ditadura militar. Esta se sustentava em três pilares: arrocho salarial, empréstimos que aumentaram à dívida externa, e política estatal favorável a presença do capital estrangeiro. Neste período, expandem-se as multinacionais. Salários mais baixos, mão-de-obra abundante e reprimida foram os [...] quando o governo militar passou a acenar com incentivos ao setor, as possibilidades do mercado internacional começaram a aparecer no horizonte [...] apenas uma parte dessas centenas de pequenas empresas criadas entre 1940 e 1970 sobreviveu às intempéries de uma economia marcada pela instabilidade, pela inflação, pela dificuldade de crédito, assim como às insuficiências de sua própria administração. (BARBOSA, 2006, p. 80) Na presença de homens e máquinas, são as grandes indústrias de calçados masculinos que ajudaram a escrever a história industrial de Franca. Apesar de a Samello ter significado evolução outras, como as formadas pela família Martiniano, ajudaram a demonstrar o potencial local. 93 Sociedade comercial em que alguns sócios entram com capital, mas não gerenciam os negócios. (Houaiss, 2004, p.170) Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 atrativos para as empresas estrangeiras se fixarem no Brasil. 178 [...] a pequena empresa fundada nos anos 1950 por Genésio Martiniano, na qual o proprietário se ocupava das tarefas de produção junto com os filhos mais velhos, Nelson Martiniano e José Martiniano de Oliveira, deu origem a um grupo econômico que nos anos 1980 já se destacava bastante para assumir a fabricação de cabedais para a multinacional Nike no Brasil [...] a performance alcançada nos anos 1990 pelas empresas surgidas com base no grupo deixa patente que a ascensão dos Martiniano à categoria de grandes empresários não pode ser negado. Uma delas, a N.Martiniano, contava em 1985 com 1.500 funcionários e faturamento de US$ 14 milhões, estando entre as quatro maiores exportadoras locais. [...] A M2000 que tinha à frente Antonio Galvão de Oliveira, um dos três filhos mais jovens do fundador contava em 1992 com 2.200 funcionários e faturamento de US$ 80 milhões. (BARBOSA, 2006, p. 107) Barbosa ainda destaca três empresas que estão em funcionamento e foram fundadas na década de 1960: Jacometti, J.Jacometti e Donadelli. As duas primeiras têm origens nos irmãos Júlio e Onofre Jacometti que foram funcionários do Samello. A Irmãos Jacometti foi fundada em 1969 e, em 1981 a sociedade foi desfeita originando os Calçados Jacometti, dirigido por Elcio Jacometti (um dos filhos de Onofre), empresário que chegou à presidência da ABICALÇADOS; e a J.Jacometti e Filhos, a ―[...] fabricante escolhida para confeccionar o sapato do presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, eleito em 2002.‖ (BARBOSA, 2006, p. 109). Jorge Félix Donadelli, outro empresário, começou sua empresa em 1961 junto com o irmão Alberto Donadelli, a Irmãos Donadelli. Contava 21 anos quando montou a empresa sem conhecer o setor. Formou-se em Contabilidade e Direito, e sua empresa está em pleno funcionamento. abriram e fecharam suas portas. Justamente por causa deste movimento é difícil precisar o número exato de indústrias que formam o parque calçadista francano. Calcula-se que entre 700 e 3 mil fábricas podem funcionar na cidade, entre micros, pequenas, médias e grandes, sendo que a concentração está nas microempresas que empregam até 10 pessoas. O mundo do trabalho é alterado Este artigo teve o objetivo de apresentar alguns dados da formação histórica da indústria calçadista no município de Franca, mas é preciso ressaltar que juntamente com os capitalistas, os trabalhadores têm participação ativa e importante neste cenário. As mudanças ocorridas no mundo do trabalho trouxeram conseqüências profundas para os sapateiros, como aponta Antunes (2000): precarização e destruição da força humana que trabalha e conseqüente status de descartável, e destruição do meio ambiente em nome do mercado produtor de capitais com o aval da sociedade que não se Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 Entre a década de 1960 e a entrada do novo século, centenas de outras empresas 179 conscientiza. A crise estrutural do capital fez com que [...] ―entre tantas conseqüências, o capital implementasse um vastíssimo processo de reestruturação, com vistas à recuperação de seu ciclo de reprodução que afetou fortemente o mundo do trabalho.‖ (Antunes, 2000, p.21) Durante a década de 1990 a indústria calçadista passou por alterações no processo de trabalho que deixaram marcas difíceis de serem apagadas. A chamada reestruturação produtiva trouxe insegurança ao mercado de trabalho e na representação de classe (sindicatos), além de desigualdade e concorrência desleal entre os desempregados. Muitas empresas usavam artifícios para baratear os custos da mão-deobra contratando especialistas, mas, registrando-os com cargos inferiores aos reais. Franca possui capacidade instalada para 37 milhões de pares/ano e somente em 1986 chegou próxima desse número. Naquele ano, os sapateiros francanos produziram 35 milhões de pares. Na década de 1990, houve mudanças em três níveis: vendas, produção e geração de empregos. Se, em agosto de 1986, o número de empregados no setor calçadista chegava a 37 mil pessoas, em março de 1999 este número não ultrapassou 15.794, fechando o ano com 15.153 trabalhadores. Os números voltaram a crescer no ano seguinte e, em 2000, 18 mil pessoas estavam trabalhando na indústria de calçados, sendo que nos meses de outubro e novembro (período sazonal de fechamento dos pedidos) ela empregou quase A redução de postos de trabalho não parou e, entre janeiro e dezembro de 1992, o número de funcionários passou de 27.062 para 24.394 pessoas. Em 1993, antes do Plano Real, o setor brasileiro de calçados totalizou 525 milhões de pares, sendo que 62% estavam destinados ao mercado interno e, em Franca, foram produzidos 31,5 milhões de pares. Segundo Navarro (1998, p. 169), a ampliação das vendas do calçado francano deveu-se às crises econômicas vividas na Itália e na Espanha, países expressivos na produção de calçados, o que os levou à prática de políticas de valorização cambial, tornando o valor do calçado masculino de couro menos competitivo no mercado internacional e favorecendo a ampliação do volume de calçados exportados pelas empresas francanas. Este momento, propício para o aumento das exportações, foi pouco explorado pelas indústrias de Franca. Em 1994, apesar da produção de calçados ter-se mantido como a do ano anterior, os postos de trabalho continuaram oscilando entre 27.539 e 24.676 funcionários. A Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 20 mil trabalhadores. (Sindifranca, 2000). 180 mudança cambial, advinda do Plano Real, prejudicou fortemente o setor em 1995, ao mesmo tempo, Espanha e Itália davam sinais de recuperação. Os postos de trabalho continuaram a ser reduzidos e de 24.496 caíram para 18.557 em 1995. Falências e concordatas também atingiram as empresas de calçados e suas correlatas em Franca. Em 1996, apesar dos 24,8 milhões de pares de calçados produzidos, a indústria de calçados fechou o ano empregando 18 mil trabalhadores. A redução dos postos de trabalho continuou em 1997/98/99. Nestes três anos, as indústrias de calçados chegaram a empregar 16 mil trabalhadores com carteira assinada. Somente em 2000 voltou a crescer e saltou para 18 mil, ou seja, dois mil postos de trabalho foram reabertos. Neste período, houve a valorização do dólar, que aqueceu as vendas no mercado externo. Os trabalhadores que ficaram sem acesso ao trabalho formal tiveram que se adaptar a uma nova realidade produtiva. O trabalho terceirizado expandiu-se na década de 1990 e muitos ex-funcionários, apoiados pelas próprias empresas, montaram seus negócios. Este trabalho não demandava (nem demanda) tributos para as indústrias contratantes. Costura manual, pesponto e corte são três áreas da produção de calçados constantemente terceirizados, mas, todas as demais operações podem ser realizadas fora da planta industrial. Navarro (1998) explica o que houve com os 20 mil postos de trabalho fechados Em meio à aceleração do processo de reestruturação produtiva, a partir dos anos 90, assistimos a um crescente movimento de descentralização da produção que passa a ser denominado pelo neologismo ‗terceirização‘, cujo padrão adotado no Brasil tem sido referenciado como ‗fraudulento‘, ‗espúrio‘ e ‗predatório‘, por buscar a redução de custos através da exploração de relações precárias de trabalho que se objetivam em diferentes formas: na subcontratação de mão-de-obra; nos contratos temporários de trabalho; na contratação de mão-de-obra por empreiteiras; no trabalho em domicílio; no trabalho por tempo parcial e no trabalho sem registro em carteira, mecanismos esses que buscam neutralizar a regulação estatal e a sindical e que colocam em risco uma série de direitos sociais e trabalhistas, duramente conquistados. (NAVARRO, 1998, p.178). Em 2007, dados da Associação Brasileira da Indústria de Calçados (ABICALÇADOS) mostravam que, em todo o Brasil, existiam quase 8 mil indústrias de calçados que geravam mais de 300 mil empregos diretos. Números superiores ao ano 2000 quando dados do Banco de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) apontavam 4 mil empresas, 260 mil empregos diretos e capacidade instalada estimada em 560 milhões de pares/ano. A maior parte da produção é destinada ao consumo Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 no setor calçadista a partir de 1990, 181 interno e o Brasil é considerado o terceiro maior produtor mundial de calçados. Os maiores são China e Índia, nesta ordem. A indústria de calçados se adaptou aos novos tempos, deixou de trabalhar com estoques para investir em pedidos e, a partir daí, ter a matéria prima em ritmo de produção do bem manufaturado, no caso, o sapato. Flexibilizou a relação contratual, passando parte da produção aos prestadores de serviços, terceirizados. ―O que se apregoa no novo padrão é a flexibilidade dos processos e mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo, as respostas imediatas e diretas às demandas por segmentos do mercado.‖ (SERRA, 2001, p. 154). Constantemente novos mercados são buscados para garantir a ampliação econômica do capital, além da produção de calçados com maior valor agregado. Aos trabalhadores restam acompanhar esses momentos cíclicos, ora com mais oferta de emprego, ora com menos. De acordo com Canoas (2007, p. 123) as fábricas que nasceram em Franca não tiveram problemas com a mão-de-obra, pois a técnica de fabricação do sapato é relativamente simples. A própria empresa contratante pode ensinar o(a) aprendiz, o que dependerá da sazonalidade do setor, ou quem tiver interesse pode se matricular em um dos muitos cursos oferecidos pelo Senai. É assim que o setor funciona, até os dias atuais com conseqüências sempre nefastas aos trabalhadores. E os trabalhadores devem estar preparados, pois mudanças estão sendo desenhadas em curto substituirá quatro pessoas. A previsão é que ela chegue ao mercado em 2011 com custo quatro vezes menor do que o registrado no seu lançamento (cerca de R$ 80 mil), mas o salário do trabalhador não sofrerá alteração (cerca de R$ 1.200,00), gerando ainda mais lucros para a empresa. Passado, presente e futuro se entrelaçam e contam a história da formação da indústria de calçados. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABICALÇADOS. Resenha estatística. 2007. Disponível em http://www.abicalcados.com.br/estatisticas.html ANTUNES, R. Os sentidos do trabalho. Ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. São Paulo: Boitempo Editorial, 2000. BARBOSA, Agnaldo de Sousa. Empresariado fabril e desenvolvimento econômico: empreendedores, ideologia e capital na indústria do calçado (Franca, 1920-1990). São Paulo: Hucitec, Fapesp, 2006 Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 prazo – para o setor de corte foi desenvolvida uma máquina computadorizada que 182 CANOAS, J.W. O movimento operário-sindical em Franca (SP): o sindicato dos trabalhadores na indústria de calçados e a ação do Serviço Social – 1982-2984. CANOAS, J. W. Nas pegadas dos sapateiros: 65 anos do STIC – Sindicato dos trabalhadores na indústria de calçados. Franca: UNESP, 2007. COUTINHO, A.C Couro Cru. Franca, Ribeirão Gráfica Editora, 2008. NAVARRO, Vera Lúcia. A produção de calçados de couro em Franca (SP): a reestruturação produtiva e seus impactos sobre o trabalho. Faculdade de Ciências e Letras/Unesp. Araraquara. 1998. (Tese de Doutorado) SERRA, R. Alterações no mundo do trabalho e repercussões no mercado profissional do Serviço Social. SERRA, R. Trabalho e reprodução: enfoques e abordagens. São Paulo: Cortez, 2001. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 SINDIFRANCA. Resenha Estatística. Ano 2000. (documento informativo do Sindicato da Indústria de Calçados de Franca) 183 A INCLUSÃO DE ALUNOS SURDOS EM ESCOLAS DA REDE PÚBLICA DE ITUIUTABA – MG Rogério da Silva Marques Graduando Serviço Social FACIP-UFU Universidade Federal de Uberlândia Ensino especial: diversidade do possível. De acordo com CHAVEIRO e BARBOSA apud PIMENTA (2001), ―A surdez deve ser reconhecida como apenas mais um aspecto das infinitas possibilidades da diversidade humana, pois ser surdo não é melhor ou pior do que ser ouvinte é apenas diferente.‖. Dentro deste trecho supracitado percebe-se que quando se fala em diversidade na condição do ser, a surdez se caracteriza como mais uma possibilidade do amplo campo da diversidade. A partir do momento que passamos há não ver a surdez como ―defeito‖ ou ―aberração‖, se compreendera melhor as possibilidades e potencialidade em que a pessoa surda possui isso ocorrera por sabermos respeitar sua condição e sua percepção de mundo. Esta percepção de mundo e o que define a cultura surda e a cultura ouvinte, na medida em que as percepções e compreensões do mundo ocorrerão de forma diferente, as relações e formas de ser vão se diferenciar também, como exemplo, o ouvinte tem sua percepção de mundo pelos cinco sentidos (visão, olfato, paladar, tato, ouvintes na medida em que a comunicação se de por forma verbal, as formas de expressar sentimento relações emoções se dará por estímulos sonoros, musicas, instrumentos dentre outros, todos vinculados à audição. Já a pessoa surda na sua percepção de mundo não terá o estimulo auditivo, ou seja, todo o processo já citado na formação e constituição da identidade e cultura surda de diferenciará da ouvinte tal como suas relações. O aluno surdo se caracteriza pelo individuo que na falta da audição utiliza de outros meios no caso a linguagem gestual para que possa ter uma comunicação eficaz entre seus pares (surdos) seus impares (ouvintes), linguagem esta que vem no intuito de conhecer o mundo que o cerca em substituição a fala e a audição. Processo Histórico da inclusão escolar em Ituiutaba-MG. A Língua Brasileira de Sinais – Libras foi reconhecida como Língua Oficial da Pessoa Surda, com a publicação da Lei nº 10.436, de 24-4-2002 e a Lei nº 10.098, de Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 audição) dentre estes e sentidos a audição e parte fundamental a formação da cultura dos 184 19-12-2002. A conquista deste direito aconteceu a partir de lutas e de muita busca por parte dos surdos em ter reconhecido não só uma forma de se expressar mais toda uma cultura inserida dentro de um processo sócio-cultural em que a comunidade surda construiu e constrói suas relações e sua cultura que como já foi dito é diferente da cultura dos ouvintes tem sim suas semelhanças e diferenças. Semelhanças, pois segundo AZEREDO aupd PERLIN por muito tempo a cultura surda se submeteu à cultura dos ouvintes visto que estes são a maioria na sociedade, criando-se estereotipo do surdo não reconhecendo a identidade própria do surdo frente às relações sociais ai então suas diferenças. Em Ituiutaba - MG o reconhecimento da LIBRAS se deu pela Lei nº 3204 de 30 de julho de 1996, que reconhece a Língua Brasileira de Sinais – LIBRAS, afirmando que a prefeitura terá interpretes de Língua de Sinais nas repartições de atendimento externo. No contexto educacional desta cidade, por muito tempo o ensino para portadores de necessidades especiais se destinava a APAE Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais, os alunos surdos estudavam junto dos demais alunos ouvintes que tinham algum tipo de necessidade especial. Isto até o ano de 2005, a partir deste momento a Escola Estadual Álvaro Brandão de Andrade, se torna escola inclusiva, deuse inicio a este projeto de escola inclusiva atuando coma capacitação dos profissionais da escola. No ano de 2006 foram transferidos da Escola Estadual Educação Especial Bem-Me-Quer, alunos deficientes auditivos. Vieram alunos da APAE que tinham surdos a escola solicitou junto a Superintendência Regional de Ensino a designação de Intérpretes de LIBRAS, para acompanhas estes alunos em sala de aula. Neste momento escola buscou outros recursos para aperfeiçoar este projeto de inclusão como Curso Básico de LIBRAS, projeto ―A arte de interpretar e ler‖ buscando trabalhar a linguagem de sinais com todos os alunos estimulando a comunicação destes por esta linguagem. A escola recebeu neste mesmo período a capacitação em LIBRAS - Língua Brasileira de Sinais com a instrutora Luzia Alves Ribeiro (surda) que em entrevista disse que mesmo com a criação de escolas inclusivas não houve muito avanço no ensino para o aluno surdo, pois, percebe uma falta de interesse por parte das Universidades locais em pesquisarem e desenvolverem materiais específicos para melhor ensino ao aluno surdo. A questão: Ensino para surdo na realidade local. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 dificuldade de aprendizagem e deficiência mental leve. Diante das matriculas de alunos 185 O principal problema abordado neste trabalho é apreender se as escolas estavam/estão preparadas pedagogicamente para receber os alunos portadores de deficiência auditiva junto dos demais. Dentro da questão levantada sobre a preparação da escola e capacitação dos profissionais para receber este aluno com necessidades especiais, se torna importante pensar como este aluno será inserido vendo que sua forma de expressar e percepção de mundo se da de forma diferenciada dos demais alunos, ou seja, se a escola esta atenta à cultura e identidade surda. Segundo Antonio Campos Abreu preservar a cultura e a identidade surda é alem de necessário importante. Sendo assim em qualquer segmento da sociedade deve-se respeitar e reconhecer que a pessoa surda tem sua própria forma de pensar e de perceber o mundo, pois, enquanto ouvinte percebe o mundo que o cerca, pelos ditos ―cinco sentidos‖ o surdo o percebe por quatro visto que a audição não lhe é favorável. Este estudo se deu em duas escolas da rede estadual da cidade de Ituiutaba (Minas Gerais), a partir de visitas as instituições buscando analisar qual a interação entre os alunos surdos e ouvintes, na tentativa de compreender suas relações, pois a inclusão se da pela troca de experiências, em que o surdo ao se comunicar transmite sua linguagem gestual ao ouvinte e este estimula a leitura labial ocorrendo uma interação entre duas culturas. Em contato com os professores sobre o processo educacional e as formas de ensino, os professores relatam a dificuldade em trabalhar com o aluno surdo melhores formas objetivas de trabalho para o melhor aprendizado do aluno surdo, alguns professores dividem mesma percepção de que a trabalhar com instrumentos visando o ensino do aluno surdo facilita também a aprendizagem dos alunos ouvintes. Contexto escolar no processo de inclusão. A educação, como espaço disciplinar mais também inter, trans e multidisciplinar, em que as fronteiras entre os distintos campos de conhecimentos se entrecruzam, e muitas vezes, se tornam difusas, solicita cada vez mais dos profissionais que nelas atuam a capacidade de dialogar transitar por caminhos insólitos e desconhecidos. (ARANTES, 2006, p. 10) A escola é o espaço natural das diferenças e da diversidade, não apenas na questão de necessidade especial, mais sim por ser um ambiente que ocorre a interação de diversas culturas, formas de pensar e o local onde as diferentes crenças, costumes, expressões do Ser passam pelo árduo processo de perceber o diferente e de aceita-lo. Esta posta então à importância da escola e de seus profissionais ao conduzir as relações Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 por falta de material didático, e de tempo de estar próximo ao interprete pensando 186 entre estes alunos ―diferentes‖ entre si e iguais no sentido em que estão diante do novo, enfrentando os desafios que este traz. O papel da escola se tornará de extrema importância na medida em que deverá esta reordenar e dar um novo significado aos espaços, em uma perspectiva de incentivar neste aluno o sentimento de inclusão e respeito ao próximo. Visto que a inclusão e sim o ato de respeitar o outro na suas características, formando então cidadãos conscientes e comprometidos com a sociedade. O processo de inclusão não esta relacionado em colocar o aluno ―diferente‖ junto do dito aluno ―normal‖ é sim, em possibilitar meios para que o processo de aprendizado se dê de forma mais igualitária tendo materiais, instrumentos específicos para cada caso voltado para o real aprendizado doa aluno e sua interação, visando seu reconhecido pelo meio em que está inserido. Não como o que necessita de ―cuidados e condições diferenciadas‖, más sim como um agente de direitos e deveres que executa sua cidadania e alcança seus objetivos superando obstáculos e dificuldades impostas pela sua condição de ser no caso de ser Surdo. Perceber o surdo no contexto escolar Em entrevista aos profissionais de educação se torna claro a falta de materiais didáticos específicos para a atuação junto do aluno portador de necessidades especiais, pois os profissionais encontram grande dificuldade de trabalhar em uma sala não é só para com o aluno surdo que tem dificuldade em encontrar material especifico más para a totalidade da diversidade em que uma sala de aula nos tempos atuais esta inserida. Dizem que tememos o desconhecido, a partir do momento em que a comunidade em geral e em especifico a escolar reconhecer verdadeiramente o aluno surdo a partir da sua condição de ser humano, percebendo-o como um agente promotor de sua própria historia poderemos afirmar que esta se tendo ações efetivas de inclusão. Em relação ao professor e sua atuação, a Lei de Diretrizes e Bases (1996), dispõe que para a atuação educacional os profissionais da área de educação devem ser capacitados de acordo com as necessidades do aluno, ―professores com especialização adequada em nível médio ou superior, para atendimento especializado, bem como professores do ensino regular capacitados para a integração desses educandos das classes comuns‖ (LDB, 96: art.56, III). Dentro desta legislação deve-se então por parte Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 superlotada de alunos ambos com dificuldades cada uma na sua especificidade, ou seja, 187 do Estado, Escola fornecer capacitação dos profissionais segundo as necessidades de aprendizado dos alunos, ou seja, no caso do aluno surdo não cabe ter apenas um interprete os professores devem sim ter uma capacitação adequada para a atuação junto ao aluno com necessidade especial. Dentro da atuação do profissional junto ao aluno surdo na cidade de ItuiutabaMG, percebe-se que falta por parte do profissional regente de turma um conhecimento da linguagem, forma de se expressar do surdo. Falta capacitação adequada para a atuação, pois mesmo com a presença do interprete de língua de sinais, o professor sentese incapaz de atuar plenamente no processo de aprendizagem no qual o aluno esta inserido. Colocando como responsabilidade do intérprete a responsabilidade em ensinar o aluno surdo por estes se ―entenderem‖ melhor. O Intérprete educacional no processo de inclusão O interprete de Língua Brasileira de Sinais – LIBRAS, segundo Quadros (2003) é o profissional que domina a língua falada e a língua espaço/gestual de um país, estando qualificado a desempenhar a função de interprete, este tem de ter domínio dos processos dos modelos técnica e estratégias na interpretação tendo uma formação especifica na área de atuação, no caso ter formação na área de educação. Cabe então ao interprete fazer o intermédio entre duas formas de se expressar sendo um mediador A falta deste profissional junto ao aluno surdo inibe a participação do surdo juntos as atividades, sentem desmotivados não acompanhando o desenvolvimento da sala sendo excluído da interação social, não exercendo sua cidadania, impossibilitando a comunicação com os que não conhecem a língua de sinais. Deve-se deixar claro aqui que o interprete não é professor, ou seja, não cabe a este ensinar, avaliar o aluno surdo. Ao professor compete o papel de educador responsável pelo ensino utilizando da língua de sinais mais não implicando que este venha ser um interprete. O intérprete educacional para sua melhor atuação, deve ter acesso o ao conteúdo em que será trabalhado em sala de aula pelo professor visando sua melhor atuação e interpretação. O intérprete é deve ser considerado como um instrumento da acessibilidade. O profissional intérprete deve reconhecer que em sala de aula é o professor a autoridade, responsável por organizar e administrar este espaço segundo as Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 cultural a cima de tudo, estando aberto ao novo. 188 regras e normas da instituição. Saber se colocar ―neutro‖ dentro deste espaço de ensino que esta em constante processo de mudanças e adaptações, ter ética e em direcionar os questionamentos do aluno surdo ao professor sendo a voz deste nos debates fazendo o surdo ser ―ouvido‖ pelos demais, para isso o intérprete deve conhecer a realidade em que este aluno esta inserido, sua relação com a comunidade surda. Ao interprete cabe orientar os professores sobre as características e do aluno surdo, como sua escrita, traduzir as questões da avaliação. Seguindo o seu código de ética profissional. Metodologia A metodologia de pesquisa empregada deu-se por meio de questionários e relatos tanto da parte do profissional docente, quanto de alunos surdos que estudaram, desistiram e voltaram à escola recentemente, na expectativa de que com a presença do interprete/tradutor da Língua de Sinais, houvesse maior possibilidade na aprendizagem. Considerações Finais As considerações finais mais relevantes giraram em torno de que o corpo docente demonstrou dificuldade em trabalhar com o aluno surdo, quer por falta de conhecimento da cultura e da história da comunidade surda, em que o aluno está inserido, quer por falta de conhecimento da língua fonte, LIBRAS. E, mesmo com a trabalhar, por falta de capacitação e material didático-pedagógico. É evidente que só aceitamos o que conhecemos a partir deste ponto só se terá uma verdadeira inclusão do aluno surdo na escola de ensino regular, sociedade se estas estiverem aptas a conhecer não só as necessidades físicas e de material, más conhecer a realidade sócio-cultural, histórica em que o aluno surdo esta inserido. Nossas hipóteses iniciais comprovaram-se, definindo assim que a inclusão educacional não deve se resumir a uma simples inserção do portador de necessidades especiais junto aos demais alunos, e sim, proporcionar a estes condições igualitárias de ensino. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: AZEREDO, E., Língua Brasileira de Sinais: “uma conquista histórica”. In: Senado Federal Secretaria Especial de Editoração e publicações – Brasília, 2006. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 presença de um intérprete de língua de sinais o docente apresentou dificuldade em 189 BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Lei n. 9394, 20 de dezembro de 1996. Brasília, Ministério da Educação, 1996. Disponível em: http://www.mec.gov.br/legis/default.htm. acesso em: 14 de outubro 2010. CHAVEIRO, N.; BARBOSA, M. A. A surdez, o surdo e seu discurso. Revista Eletrônica de Enfermagem, v. 06, n. 02, 2004. Disponível em http://www.revistas.ufg.br/index.php/fen DAMAZIO, M. F. M. Atendimento Especial Especializado – Pessoa com Surdez. 01. ed. Curitiba – PR: Gráfica Editora Cromos, 2007. MANTOAN, M. T. E. Inclusão escolar: pontos e contrpontos / Maria Teresa Mantoan, Rosângela Gavioli Prieto; Valéria Amorim Arantes, organizadora.- São9 Paulo : Summus, 2006. PERLIN, G. A Cultura Surda e os interpretes de Língua de Sinais. In: Educação Telemática Digital, Campinas. v.7. n.2 pp. 135-146.jun.2006. QUADROS, R. M. O tradutor interprete de língua brasileira de sinais e língua portuguesa / Secretaria de Educação Especial; Programa Nacional de Apoio à Educação de Surdos – Brasília : MEC ; SEESP, 2003. SOARES, M. A. L. A escolarização da criança surda. Mediação, Rio de Janeiro n. 2, p.12-16, 2002. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 __________, M. A. L. O aluno surdo no ensino regular e a escolaridade obrigatória. Revista de Educação (Campinas), Campinas, n.16, p.4960, 2004. 190 AS MULHERES NO SERVIÇO SOCIAL Soraia Veloso Cintra Docente do curso de Serviço Social da FACIP/UFU; Doutoranda no programa de pós-graduação em Serviço Social da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Estadual Paulista – Unesp – campus de Franca (SP), sob a orientação da professora doutora Claudia Maria Daher Cosac. A educação das mulheres A história do Serviço Social no Brasil é uma história de mulheres. Iniciou-se com mulheres, como um movimento. Em seguida, motivou e incluiu homens. Mas ainda hoje prossegue como uma história predominantemente feminina, com conotações e características próprias que este feminino traz em si numa sociedade patriarcal como a brasileira. (LIMA, 1991, p. 9) O Conselho Federal de Serviço Social (CFESS) contabiliza, na atualidade, mais de 100 mil assistentes sociais em todo país sendo que 97% são mulheres – uma profissão onde a presença feminina é majoritária. É uma tendência registrada desde o primeiro curso iniciado em 1936, na cidade de São Paulo, e pode ser observada desde a formação universitária. Percebe-se que a presença em números é bastante e expressiva, mas são mulheres que, como suas antecessoras, continuam em luta pelos próprios direitos à equidade de gênero. América Latina, mais precisamente no Brasil, a presença de mulheres nos cursos de Serviço Social foi incentivada, ainda que a sociedade resistisse ao trabalho feminino. Um bom exemplo é o título do folheto que divulgava o curso em 1940: ―Uma profissão feminina... já pensou no Serviço Social?‖ Os depoimentos das assistentes sociais Helena Iracy Junqueira e Nadir Gouvêa Kfouri, formadas na primeira turma, demonstram essa realidade: ―Nessa época o trabalho da mulher era encarado pela sociedade com certos preconceitos: trabalhar só quando houvesse muita necessidade, mesmo porque se considerava que o trabalho da mulher tirava o emprego dos chefes de família‖, afirmou Junqueira. (MARQUES, 1994, p. 164) Acabei o Normal e fui trabalhar, porque precisava. Naquela época, a nossa postura era de que a mulher tinha direito a trabalhar e a ter seu salário. Mas essa postura se chocava com a de algumas pessoas católicas que achavam que a mulher não devia competir com o homem e que não deveria optar por um trabalho remunerado. A tal ponto que uma dessas pessoas foi tão coerente com esse ponto de vista, que quando convidada a exercer um cargo público, nunca utilizou o dinheiro que ganhou! E fazia doação. Vejam é um tipo de coerência que eu respeito, mas, certamente, discordando desse pensamento. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 Interessante salientar que desde sua origem nos Estados Unidos, Europa e 191 Por aí vocês começam a ver a luta da mulher que está abrindo seus caminhos; até hoje, sabemos que são caminhos que pressupõe longa caminhada. (KFOURI, 1983, apud MARQUES, 1994, p. 164/5) No século XVII, de acordo com Heleith Saffioti (1976), apenas duas mulheres que moravam na cidade de São Paulo sabiam assinar o próprio nome: uma era holandesa e a outra fora educada na Bahia. Um pouco antes da chegada da Família Real ao Brasil no século XIX, as meninas das famílias mais ricas eram educadas nos poucos conventos existentes. Aprendiam ler, escrever, as quatro operações básicas da matemática e os ensinamentos domésticos. Vindas de Portugal, aos poucos o Brasil conhece as professoras domiciliares, mas somente pela lei de 15 de outubro de 1827 é que a mulher passa a ter garantido o acesso ao ensino de primeiro grau, possibilitando o exercício do trabalho para algumas mulheres professoras. O problema que se verifica é que elas ganhavam menos do que os professores, pois, somente eles ensinavam geometria, o que garantia um salário maior. A lei de 1827 esbarrou no fato de que existiam poucas professoras e escolas femininas e as que eram mantidas abertas davam mais valor ao ensino dos trabalhos manuais. Depois de 1830 surgiu a proposta do ensino do magistério, uma profissão feminina aceita pela sociedade (Saffioti, 1976). A realidade mostra, porém, que somente em 1882, 20 mulheres conseguiram ser nomeadas Com efeito, enquanto a escola secundária masculina procurava, precipuamente, encaminhar os rapazes para os cursos superiores, distanciados da realidade brasileira e de suas exigências práticas, a educação feminina pautava-se pelo ideal de educação da mulher para o casamento. (SAFFIOTI, 1976, p.197) A Igreja Católica, naquele momento, não incentivava a educação feminina, mas, esta teve alguns avanços com as escolas de origem protestante. Em 1871, foi fundada a Escola Americana (futuro Mackenzie College) que criou o primeiro curso secundário (1886) e a Escola do Comércio (1902), ambos para as mulheres. ―Esta e outras iniciativas das seitas protestantes, principalmente das Metodista e Presbiteriana, trouxeram inestimável colaboração à educação dos brasileiros, sobretudo do sexo feminino‖. (SAFFIOTI, 1976, p.215). Antes da Proclamação da República, o Brasil passou por dois processos que não modificaram a situação da mulher: a proclamação da Independência e a abolição da escravatura. A Princesa Isabel assinou o documento oficial que libertava mulheres e homens do jugo da escravidão, mas a mulher negra ficou na mesma situação da mulher branca – à margem do sistema patriarcal que não lhe garantiu direitos. ―O ex-escravo Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 professoras para as escolas públicas. 192 seria considerado cidadão brasileiro para efeitos eleitorais, enquanto que a mulher, tanto branca quanto negra, seria marginalizada da escolha dos representantes do povo no governo‖. (Saffioti, 1976, p.176-177). Os ex-escravos saíram de seus antigos cativeiros para ingressarem como mão-de-obra assalariada em outras fazendas; muitos trocaram o campo pela cidade e, empobrecidos, não foram totalmente absorvidos pelos municípios que se desenvolviam. Subempregos com baixa remuneração, serviços domésticos e prostituição foram caminhos inevitáveis para a grande maioria com reflexos discriminatórios até os dias atuais. Aos poucos, o Brasil foi deixando de ser essencialmente agrícola para abrigar indústrias. As mulheres passam a trabalhar nesses locais e, ainda que não tenham consciência desse fato, começam a exercer papel importante no crescimento econômico do país. O trabalho nas fábricas, nas lojas, nos escritórios, rompeu o isolamento em que vivia grande parte das mulheres, alterando, pois, sua postura diante do mundo exterior. [...] Minado o sistema de segregação sexual e o de reclusão da mulher no lar, decrescem as diferenças de participação cultural dos elementos femininos e masculinos. Deste maior ajustamento da estrutura da família às novas condições de vida urbano-industrial adviriam profundas alterações na educação feminina. Se, por um lado, o ideal de educação doméstica se conservava, por outro, a necessidade da educação escolarizada para a mulher fazia-se sentir de maneira crescente. (SAFFIOTI, 1976, p.178180) Foi, portanto, o movimento econômico que impulsionou a mulher ao mercado de primárias e, aos poucos, conquistaram espaços nas secundárias, abrindo caminho rumo aos cursos superiores. Segundo Saffioti, antes de 1930 foram poucas as mulheres que conseguiram ingressar e diplomar-se no ensino de segundo grau e universitário. Neste último, em particular, as mulheres conseguiram entrar em carreiras que os homens não se sentiam compelidos a exercer, ou que foram desvalorizadas com o tempo, como magistério e farmacêutico. Ao se transformar em um vendedor de remédios, e não mais o responsável pela fabricação dos mesmos, registra-se redução acentuada da presença masculina e a mulher conquista espaço nesta área. (SAFFIOTI, 1976, p. 219) Em abril de 1931 foi promulgado o decreto 19.980 que remodelou o ensino secundário brasileiro. A partir desse ano, o período escolar aumentou para sete anos, sendo cinco de educação fundamental e dois de especialização profissionalizante. ―Tal reforma beneficiou muito a população feminina, pois promoveu a penetração do elemento feminino no ensino secundário, através do qual, anos mais tarde, ela poderia ter acesso ao ensino superior‖. (Lima, 1991, p. 43). Até 1930, as mulheres brasileiras Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 trabalho e à escolarização. Elas passaram a freqüentar em maior número as escolas 193 continuavam fora das carreiras universitárias. Houve algumas exceções nas Faculdades de Medicina e Direito, mas com grande protesto por parte de uma sociedade que acreditava que a mulher deveria exercer apenas o papel de esposa, mãe e dona de casa. Alguns anos antes, a Igreja Católica havia percebido a necessidade de participação mais ativa da sociedade e baseada nas encíclicas papais Rerum Novarum e Quadragésimo Anno passa a incentivar a participação dos fiéis em movimentos leigos, trabalhando pelos menos favorecidos94. Esse ―incentivo‖ facilita a participação das mulheres brasileiras no movimento católico leigo ao mesmo tempo em que conseguem o direito ao voto (1932) e aumentam presença no cenário político, social, educacional e cultural do país. Diante desse novo quadro social, educacional e econômico surge uma nova profissão no Brasil: o Serviço Social, cuja presença feminina é majoritária desde os primeiros anos. A primeira Escola de Serviço Social foi implantada nos Estados Unidos em 1898 chegando ao continente europeu em 1911, na França. Na Bélgica, país com o qual o Brasil mais se aproximou na formação social, a primeira escola data de 1920. Na América Latina, o curso de Serviço Social foi implantado no Chile, em 1925, e no Brasil em 1936, especificamente na cidade de São Paulo. Foram muitas as mulheres que E é neste cenário que, em 1932, as freiras do Des Oiseaux trazem da Bélgica Mlle. Adéle de Loneaux para ministrar em São Paulo o primeiro curso de formação social. Terminado o curso cria-se o CEAS e os primeiros Centros Operários, onde algumas moças passaram a desenvolver um trabalho social com as operárias e, finalmente, em 1936, surge a Escola de Serviço Social de São Paulo, que inicia a sua primeira turma com 14 moças católicas que se tornaram as primeiras assistentes sociais brasileiras. (Lima, 1991, p. 47) Mulheres a serviço do social Odila Cintra Ferreira nasceu no final do século XIX e deixou toda a sua história escrita no século XX a serviço do social. A responsável direta pela criação da Escola de Serviço Social de São Paulo nasceu em uma fazenda de café no município de Bragança Paulista em 1899 e foi lá que começou seus estudos, passando também por Itu (SP). Foi na Europa, primeiro Suíça depois Genebra, que a moça brasileira despontou para o social. Em 1926, matriculou-se na Escola Normal Social de Paris, que em suas palavras 94 A Rerum Novarum foi proclamada pelo Papa Leão XIII e traz à luz do período a questão social, ao mesmo tempo em que enfatiza a propriedade privada. Suas implicações, porém, não serão abordadas neste texto. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 construíram essa história. 194 ―preparava pessoas para trabalhar com operários‖ (Roy, 1983, p. 33) e, três anos depois, entrou para a Escola de Estudos Sociais do Instituto Católico de Paris. Conheci um padre jesuíta em Paris, e, conversando com ele, contei o meu interesse em ir para Sorbonne. Ele me disse: ‗a senhora se interessa pela parte social?‘ Respondi que me interessava. Então ele me disse: [...] ‗Entre para a Escola Normal Social‘. Eu disse que não gostava de escolas de mulheres, porque sempre fui aluna de mulheres. Ele me disse: ‗Mas essas são extremamente inteligentes e cultas!‘. Foi aí que entrei no social. (Odila Ferreira apud ROY, 1983, p. 34) Na França, intensificou seus estudos, mas não chegou a formar-se assistente social, tendo voltado ao Brasil devido à morte da irmã. Odila contou em entrevista a professora Maria Tereza Roy, em 1977, e publicada pela Revista Serviço Social e Sociedade nº 12, de 1983, que as freiras de Santo Agostinho (Des Oiseaux) queriam oferecer algo mais às suas ex-alunas para que desenvolvessem trabalhos sociais. Assim, tiveram a idéia de convidar uma pessoa para um curso voltado a ação social. Odila, como integrante do movimento católico da época, participou ativamente desse curso que culminou na fundação do Centro de Estudos e Ação Social (CEAS) em 1932. ―As freiras a contrataram para um período de três meses para ministrar um curso intensivo de formação social‖ (Roy, 1983, p. 37). A pessoa que veio para desenvolver o curso foi Mlle. Adèle de Loneaux, professora na Escola Social e na Escola Normal Social, ambas em Bruxelas (Bélgica). Cerca de 50 mulheres, entre ex-alunas do Santo Agostinho, do colégio Sion e demais interessadas fizeram o curso. Ramos (1905-1992) e Maria Kiehl96, ambas descendentes de alemães receberam bolsas de estudo para fazer o curso de Serviço Social na Bélgica e ajudar, posteriormente, sua implantação no Brasil. Maria Kiehl e Baby Ramos foram estudar na Escola de Bruxelas. Baby porque gostava muito de trabalho social e queria realizar um trabalho na fazenda dela, e Maria com a bolsa de estudos para a formação de assistência 95 Assistente social formada na École Catholique de Service Social de Bruxelas (1932). Participou da fundação do CEAS (Centro de Estudos e Ação Social). Baby como era conhecida trabalhou com serviço social voltado à infância e educação popular. Trabalhou no Instituto de Biologia Infantil no Rio de Janeiro e, em São Paulo, no Instituto de Menores e no Serviço Social do Estado. Era neta do ―Rei do Café‖, de Ribeirão Preto. O pai era engenheiro e a mãe dona de casa. Morreu em 13 de outubro de 1992. Sua vida foi marcada pela simplicidade e pela dedicação ao Serviço Social. ―Em 1910, seu avô (que veio da Alemanha) tinha 33 fazendas em Ribeirão Preto e Sertãozinho. Tais fazendas tinham 8 mil colonos‖ (IMA, 1991, p. 51) 96 Assistente social formada na École Catholique de Service Social de Bruxelas (1932). Dedicou-se a Escola de Serviço Social de São Paulo ajudando a implantar o Serviço Social no Estado e foi a primeira diretora técnica da Divisão de Assistência Social, vinculada a Secretaria de Justiça do Estado. Era de uma família onde todos trabalhavam inclusive as mulheres. Maria Kiehl foi homenageada em 1959 pelo Diretório Acadêmico da Escola de Serviço Social de Niterói por ter ajudado no planejamento e organização da escola. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 A partir desse primeiro contato, Albertina Ramos, conhecida como Baby 95 195 social. Além disso, antes das duas terem partido para lá, o grupo de alunas do curso resolveu fundar uma entidade que continuasse despertando interesse pelo trabalho social. Então fundamos o Centro de Estudos e Ação Social, que era uma entidade de pouca repercussão, mas que teve uma ação muito grande, aqui no Brasil. (Odila apud ROY, 1983, p. 39) A partir da experiência vivenciada por Odila na Europa e dos trabalhos realizados pelo CEAS em vários bairros de São Paulo principalmente com mulheres operárias, o Serviço Social começou a ganhar forma no Brasil. Odila foi a primeira presidente do CEAS com uma diretoria composta por mulheres que ajudaram a constituir o que viria a ser a primeira Escola de Serviço Social do Brasil: Eugênia da Gama Cerqueira (secretária), Albertina Ambrust (tesoureira), Alice Meireles Reis (auxiliar da presidente), Mary Quirino dos Santos (auxiliar da secretária) e Nair de Oliveira Pirajá (auxiliar da tesoureira). As integrantes do CEAS trabalharam nos quatro anos que se seguiram até a fundação da Escola de Serviço Social em São Paulo em Enquanto o CEAS iniciava seus cursos e atividades práticas, considerando insuficiente a formação obtida nas seis semanas de aulas dadas por Melle Adèle de Loneaux e tendo como perspectiva a criação de uma Escola de Serviço Social no Brasil, duas de suas sócias Albertina Ferreira Ramos e Maria Kiehl seguem para a Europa a fim de realizar o curso de Serviço Social na Escola Católica de Serviço Social de Bruxelas. Maria Kiehl assim justifica a necessidade de uma formação mais aprimorada no exterior: ―Pareceu-nos, entretanto insuficiente o nosso preparo para garantir a boa organização de uma Escola de Serviço Social, pois se as escolas dessa natureza têm por principal finalidade somar os inconvenientes da improvisação de dirigentes de obras sociais, é claro que a primeira condição de eficiência das escolas de Serviço Social é não serem elas próprias uma improvisação‖. (YASBEK, 1977, p. 36-37) Elas voltam ao Brasil três anos depois, formadas em Serviço Social e conscientes do papel que desenvolveriam dali em diante. Yasbek (1977, p. 38) cita o exemplo de Maria Khiel que afirmou em 1942: ―Conscientes da responsabilidade que iríamos assumir – formar assistentes sociais [...] logo vimos que tínhamos que fazer nosso trabalho com todo vagar [...]‖. Este relato mostra que elas estavam verdadeiramente preocupadas em formar assistentes sociais tecnicamente preparadas. Posteriormente, no encaminhar da formação da Escola de Serviço Social, Odila queria que uma das duas assistentes sociais formadas na Europa fosse a diretora. Inicialmente, a escolhida foi Baby Ramos, mas esta acabou indo para o Rio de Janeiro assessorar a Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 1936. 196 deputada federal Carlota Pereira de Queiroz97, pois suas famílias eram muito próximas. Maria Kiehl foi então apontada como diretora, permanecendo no cargo apenas um mês, deixando-o porquê trabalhava no Departamento de Trabalho no período da tarde. Odila Ferreira acabou assumindo e em sua gestão formaram-se as primeiras assistentes sociais brasileiras: Heloísa Tapajóz de Morais, Anna Rosa Camargo Moura, Dina Bartolomeu, Yolanda Maciel, Lucy Pestana Silva, Guiomar Urbina Telles, Haütil Prado, Maria José da Silveira, Nair de Oliveira Coelho, Nadir Gouvêa Kfouri, Helena Iracy Junqueira, Fátima Vasta de Souza, Maria Ignez de Barros Penteado e Maria Amélia de Andrade Reis. Em 1940, o CEAS elegeu uma nova presidente, Helena Iracy Junqueira, que também assumiu a direção da Escola de Serviço Social. Ela teve a seu lado a monitorachefe Nadir Gouvêa Kfouri que também foi diretora da Escola quando Helena viajou aos Estados Unidos para estudar. Marques (1994) destaca ainda que no primeiro Conselho Diretor do CEAS Odila Ferreira contava com as duas assistentes sociais formadas na Bélgica Maria Kiehl e Baby Ramos, e mais a professora Juventina Santana, a psicóloga educacional Heloísa Prestes Monzoni e a secretária Maria Esther Leite Odila Cintra Ferreira foi uma das fundadoras, um dos pilares da implantação do Serviço Social no Brasil, porque, posteriormente, em 1948, fundou a ‗Associação Brasileira de Escolas de Serviço Social, que perdura até hoje como organização muito importante para o intercâmbio, defesa e aperfeiçoamento do Serviço Social no Brasil. Vinha de uma família abastada, mas era inteiramente preocupada com a problemática social. Pôde ir para a Europa e, em 1926, diplomou-se na Escola Normal Social de Paris – França [...] Era uma escola de Ação Social que preparava pessoas para trabalhar com o operário principalmente. Era uma católica convencida de sua responsabilidade de fazer algo em relação aos problemas sociais. Trabalhou inicialmente na Liga das Senhoras Católicas, e lá sempre foi um elemento ‗subversivo‘, criticando, propondo mudanças; propôs uma pesquisa sobre a condição dos menores. Era um elemento questionador, que lutava pela implantação de uma situação melhor. (Junqueira apud MARQUES, 1994, p. 160-1). 97 Carlota Pereira de Queirós, médica paulistana, foi a primeira mulher eleita deputada federal no Brasil. A política entrou em sua vida durante a Revolução Constitucionalista de 1932, quando o Estado de São Paulo rebelou-se contra o governo provisório de Getúlio Vargas. Junto com a Cruz Vermelha paulista, ela organizou um grupo de 700 mulheres para dar assistência aos feridos. Além de prestígio, esse trabalho garantiu a ela uma vaga na Assembléia Nacional Constituinte, sendo empossada em novembro de 1933. A parlamentar elaborou o primeiro projeto sobre a criação de serviços sociais no país. Após a promulgação da nova Carta, em 1934, elegeu-se novamente, mandato que exerceu até a decretação do Estado Novo e o fechamento do Congresso Nacional por Getúlio Vargas, em novembro de 1937. Fundadora da Associação Brasileira de Mulheres Médicas, e membro da Academia Paulista de Medicina e da Academia Nacional de Medicina de Buenos Aires, Carlota também trabalhou em hospitais alemães, franceses e suíços. (disponível em http://www2.camara.gov.br/internet/fiquePorDentro/Temasatuais/mulheresnoparlamento/premio-carlotade-queiros, acesso em 15 de outubro de 2008). Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 Mamede – esta última permaneceu no Conselho até 1993. 197 Na década de 1970, Odila esteve mais uma vez a frente do CEAS, acompanhada por mais oito mulheres: Heloísa Prestes Monzoni (monitora); Maria Esther Leite Mamede (secretária), Eugênia da Gama Cerqueira (secretária); Odila Rôhe (tesoureira) e um conselho técnico com as presenças de Maria Kiehl, Albertina Ferreira Ramos e Juventina Santana. Uma das primeiras alunas do curso iniciado em 1936 foi Helena Junqueira, responsável pelo desenvolvimento e consolidação da Escola de Serviço Social de São Paulo. Sua história começa no interior de Minas Gerais na cidade de Santa Izabel. Filha de Antonio Ribeiro Junqueira Sobrinho e Maria Tereza Jardim Junqueira teve quatro irmãos. ―Como eu vivia no meio dos meninos, eu gostava muito dos brinquedos deles e do ambiente descontraído que vivíamos; achava mais interessante jogar bola, correr, subir em árvores [...]‖ (Junqueira apud Marques, 1994, p. 73). Seu pai tornou-se juiz e, por isso, a família deixou a fazenda em Minas para viver em algumas cidades do interior paulista até chegar a capital, onde Helena completou seus estudos. Em 1931, diplomou-se professora normalista, antes de completar 18 anos e, nesta época, sentia a necessidade de continuar estudando. Marques (1994, p. 74) destaca que Helena e sua família a consideraram muito jovem para iniciar a carreira no magistério em alguma escola rural do interior como faziam as professoras da época. Passou então a dedicar-se aos esportes e estudos de línguas estrangeiras e fez parte da 1935 no curso de Filosofia na Faculdade de Filosofia e Letras de São Bento (SP) e, em 1936, no Serviço Social. Dois anos depois, formou-se pelos dois cursos e, em 1939 recebeu o título de Bacharel em Pedagogia. Depois de formada, ingressou no Departamento de Serviço Social da Secretaria de Justiça do Estado de São Paulo ficando durante um ano, pois, a partir de 1940 substituiu Odila Cintra Ferreira na direção do CEAS e da Escola de Serviço Social. Dedicava-se ao Serviço Social duplamente, na direção da Escola e na docência. Foi professora das disciplinas Serviço Social de Comunidade (1945-1957), Organização Social de Comunidade (até 1963), Ética Profissional (1948-1961) e, na pós-graduação, na PUC/SP, ministrou Planejamento em Serviço Social. Em 1941, Helena e outras 13 colegas da América Latina viajaram aos Estados Unidos (a convite deste) para conhecer as Escolas de Serviço Social e Organizações de Bem Estar Social (Marques, 1994, p. 32). Quando voltou começou a disseminar a maneira como as americanas ―faziam‖ Serviço Social. ―Em 1944/45 Helena matriculou- Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 Juventude Feminina Católica. Com sua vontade de continuar estudando, ingressou em 198 se no curso de pós-graduação em Serviço Social na School of Apllied Social Sciences da Universidade de Pittsburg, nos Estados Unidos, através de bolsa de estudo. Ela optou pela área de Organização e Desenvolvimento de Comunidade‖ (Marques, 1994, p.33). De volta a São Paulo, reassumiu a direção da Escola de Serviço Social e passou a desenvolver diversas atividades. Entre 1953/54 foi secretária municipal de Educação de São Paulo e, posteriormente, filiou-se ao PDC (Partido Democrata Cristão) sendo candidata a deputada estadual (não eleita). Logo após foi eleita vereadora, integrando a história política de São Paulo como a segunda mulher vereadora da cidade (1956-1959). Foi professora titular no programa de pós-graduação em Serviço Social da PUC de São Paulo, vice-presidente da União Católica Internacional de Serviço Social (UCISS), organismo fundado em 1925 com sede em Bruxelas, e assessora técnica da ONU (Organização das Nações Unidas). Ao lado da companheira Nadir G. Kfouri trabalhou intensamente pela consolidação do Serviço Social no Brasil orientando a instalação de Escolas por todo o país e, principalmente, trabalhando pela regulamentação e reconhecimento dos cursos. Em entrevista a Lima em 1991 fez questão de ressaltar a importância das primeiras assistentes sociais: ―A primeira turma de Serviço Social precisa ser lembrada. Nós fomos a primeira turma no Brasil‖ (p. 90). Nadir Gouvêa Kfouri (1913), também formada na primeira turma, constitui uma das mais importantes personalidades do Serviço Social brasileiro. A assistente social Assistentes Sociais (hoje CRESS – Conselho Regional de Serviço Social), foi registrada com o número 026. Freqüentou o Instituto de Educação da USP em 1933 para aperfeiçoamento pedagógico e, em 1935, outro para professores primários, voltando em 1937 para um curso de administradores. Ingressou na Escola de Serviço Social em 1936, tendo se formado em 1938. Fez diversos cursos de pós, especialização, aperfeiçoamento e extensão no Brasil e Estados Unidos. Desenvolveu diversos trabalhos ao longo de sua carreira, dividindo-se entre a Escola de Serviço Social e a assessoria a diversas instituições. Foi monitora (1940-47) na Escola de Serviço Social de São Paulo e sua vice-diretora (1947-51). Assumiu a direção de 1951 a 1957 e voltou ao mesmo cargo de agosto de 1963 a 1972. Desse ano até 1975 foi diretora geral do Centro de Ciências Humanas da PUC e reitora dessa universidade por oito anos em dois mandatos – entre 1976 e 1980 – e desse ano até 1984. No segundo mandato, foi eleita pela comunidade acadêmica, sistema que implantou durante sua primeira gestão. Enquanto estudava trabalhava no Departamento Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 nasceu em Avaré (SP), em 19 de dezembro de 1913. No antigo Conselho Regional de 199 de Serviço Social da Secretaria Estadual da Justiça e Negócios Interiores (criado em 1935) que mais tarde passou a chamar-se Secretaria da Promoção Social. Na década de 1970, atuou na Secretaria Municipal do Bem Estar Social (São Paulo) e assessorou diversas instituições. Na Legião Brasileira de Assistência (LBA) de São Paulo foi chefe de seção, planejamento e organização durante 12 anos (1951-63) e sua assessora durante o ano seguinte. Também assessorou outras LBAs (Bahia e Minas Gerais) e escolas de Serviço Social (Espanha e Uruguai); integrou bancas examinadoras de concursos públicos para assistentes sociais; assessorou o Sesi Nacional (1972), a Secretaria Municipal do Bem-Estar Social de São Paulo (1975) e participou de inúmeros congressos, encontros e visitas de estudos. Como outras assistentes sociais latino-americanas, recebeu bolsa para estudar nos Estados Unidos e esteve na Catholic University em Washington, DC (1942), onde cursou disciplinas como Serviço Social de Caso, de Grupo e Organização de Comunidade. De volta ao Brasil, na Escola de Serviço Social de São Paulo, foi professora de outras disciplinas, mas a mais importante foi o Serviço Social de Casos (1943-1972). Entre suas várias atividades foi redatora-chefe da Revista Serviço Social e redatora do Boletim da LBA (Neves, 1991, p.114). Em 2008, ano em que se comemorou os 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, Nadir Kfouri foi homenageada pelo Conselho Regional de Psicologia de São Paulo por sua trajetória Um episódio emblemático da coragem de Nadir Gouvêa Kfouri aconteceu no dia 22 de setembro de 1977, quando a PUC SP foi invadida por tropas militares comandadas pelo então secretário da Segurança Pública de São Paulo, coronel Erasmo Dias. Diante da Universidade ocorria uma manifestação em favor da retomada da União Nacional dos Estudantes. A polícia começou uma perseguição que se estendeu ao interior da Universidade e que terminou com 900 presos, agressões, tumultos e depredações. Diante da invasão policial, Nadir Kfouri se dirigiu ao coronel Erasmo e cobrou explicações. ―Vocês depredaram a Faculdade‖, acusou. Quando Dias respondeu que os danos seriam reparados, ouviu da reitora a resposta contundente: ―Há danos que não podem ser reparados‖. Conta-se também que no difícil diálogo travado com o coronel Erasmo, Nadir, teria contestado o direito de a polícia entrar na Universidade com uma declaração mordaz: ―A porta de entrada numa Universidade é uma única‖, disse ao coronel , ―o vestibular‖. (CONSELHO..., 2008, on-line) REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CONSELHO Regional de Psicologia (SP). 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Homenagens. Disponível em http://www.crpsp.org.br/crp/midia/jornal_crp/158/frames/fr_capa.aspx Acesso em novembro de 2010. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 em defesa da cidadania e da democracia. 200 LIMA, V.L.A.F.M. O início do Serviço Social no Brasil: um feminismo cristão. Dissertação de mestrado apresentada a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, 1991. MARQUES, A. Helena Iracy Junqueira: a construção de uma mentalidade em Serviço Social. Tese de Doutorado apresentada a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, 1994. NEVES, N.P. Nadir Gouvêa Kfouri: o saber e a prática do Serviço Social no Brasil (1940-1960). Tese de Doutorado apresentada a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, 1991. ROY, M.T. Entrevista com Odila Cintra Ferreira. Revista Serviço Social e Sociedade nº 12 (Número especial em comemoração aos 50 anos do Serviço Social no Brasil). Editora Cortez: São Paulo, 1983. SAFFIOTI, H.I.B. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. Petrópolis: Vozes, 1976. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 YASBEK, M. C. Estudo da evolução histórica da Escola de Serviço Social de São Paulo o período de 1936 a 1945. Dissertação de Mestrado apresentada a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, 1977. 201 CONGADA, EDUCAÇÃO E RELIGIOSIDADE: PERPETUAÇÃO DE NOSSAS RAÍZES AFRICANAS98. Fábio Almeida Silva FACIP/UFU - História Êêêêêê Mãe África! Somos teus filhos... Viemos eu e meu povo pra te louvar... Nossos ancestrais acabaram de chegar! Saravá nosso Rei e nossa Rainha tão formosa não há... Saravá as forças dos orixás que veio pra nos abençoar! (Fabio A. Silva) E tudo começou em Africa O continente africano é o berço da vida em nosso planeta, isto estudos mais pormenorizados podem comprovar. Musicalidade e ritmo, religiosidades e oralidades estas e dentre muitas outras são concernentes a matriz africana. Em detrimento a um pré-conceito muito forte ainda arraigado em nossa sociedade hodierna dificulta o processo de mudanças em relação ao respeito e valorização da cultura afro-brasileira. É importante lembrar que a filosofia hegeliana contribuiu muito para que este tipo de pré-conceito fosse desenvolvido e tomasse pé quando afirma: ―A África não é um continente histórico, não demonstra nem mudança nem desenvolvimento‖.1 Utilizar os padrões europeus para definir evolução social de retirando toda e qualquer possibilidade de inclusão social, é exatamente o que Hegel afirma na sua fala em epígrafe. Todos nós pertencemos a África esta certeza deve criar raízes mais profundas para que tenhamos resultados profícuos para nossa sociedade, por exemplo a paz social, melhores condições de vida onde ninguém se sente excluído tendo direitos iguais em se manifestar sócio-culturalmente, a consciência de pertença à África deve ser uma emergência dos planos de desenvolvimento social em nosso país. 98 Este pequeno trabalho é dedicado ao Congo da Libertação e dedico-o antes de tudo ao meu querido Avô João Preto, Pai Benedito meu mestre e a minha querida Avó Maria Conga, a minha querida e amada esposa Cláudia Luiza Almeida que também é minha mãe de terreiro que muito me apóia nos trabalhos e estudos acadêmicos e a todo o meu povo representado por: Maria Leamar, Lucas Ismael, Douglas José, Tarcisio Cândido que coordenou brilhantemente este projeto lá na nossa sede o Terreiro de Umbanda Casa de Caridade São Lázaro, e a todos enfim que me ajudam e me ajudaram até o presente momento a chegar até aqui, muito ainda tenho que caminhar, pois ―a estrada é longa, muito longa...‖ mas a minha fé na Umbanda e nos guias chefe de meu terreiro e com minhas Sete Linhas da Umbanda sei que chegarei lá. Que as Sete Linhas da Umbanda Abençoem a todos! QUE ELE SEJA ETERNO... E ELE SERÁ! SARAVÁ O NOSSO REINADO! SARAVÁ O CONGO DA LIBERTAÇÃO! SARVÁ AS SETE LINHAS DA UMBANDA! Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 outros povos seria por assim dizer um ―genocídio social‖, pois está excluindo e 202 Sabemos que não mais podemos retornar no tempo e corrigir erros referentes a forma como a sociedade africana com todos os seus nuances, mas podemos fazer com que os filhos desta mesma África tenham dignidade e respeito sendo reconhecidos como cidadãos que são e tendo assim o pleno direito de se manifestar política e culturalmente. Cultura religiosa: africanidades em terras brasileiras Quando falamos de cultura nos vêm na cabeça várias idéias de ―cultura‖, mas como entendemos e/ou o que é cultura? Cultura popular e cultura erudita, qual a diferença? Estas e outras questões fervilham em nossas cabeças e muitas das vezes estas idéias nos bombardeiam nos Mass Média e nem ao menos o esclarecimento sobre estas temáticas tão polêmicas não são oferecidas para melhor vivermos a ―Cultura‖. Assim antes de falar sobre a cultura africana ou africanidades gostaria de pincelar rapidamente sobre este assunto para que tenhamos uma base mais sólida para entendermos um pouquinho sobre a cultura de matriz africana, e aqui já deixo uma dica, para entendermos o porquê da obrigatoriedade do ensino da história da África nas escolas brasileiras, esta perpassa também pelo entendimento do valor da cultura africana como componente miscigenado e miscigenador em nossa sociedade brasileira. Segundo Stuart Hall os seres humanos são seres instituidores de sentido, explica logo toda ação do ser humano é cultura e por tabela subentende-se que tudo no ser humano é história, a cultura e a história são concernentes a todo ser humano, algo que não pode ser retirado deste. A cultura africana está foi degradada pela ação do capitalismo que a devorou como um leão devora um garrotinho indefeso e é resultado também do etnocentrismo europeu promovido pelo cientificismo europeu no século XIX. Derrubar este conceito seria o primeiro passo para o reconhecimento de uma riqueza imemorial que existe na cultura africana tão menosprezada pelos que se dizem pertencer a civilizações modernas. A centralidade da cultura que pairam sobre os paradigmas que provocara ―virada cultural‖ afirma Stuart Hall, no interior das disciplinas tradicionais. Se todo ato dos seres humanos são ―cultura‖, então podemos assim concluir que cada instituição, cada povo tem as suas simbologias, os seus signos culturais que são suas marcas indeléveis que caracterizam a sua ação no mundo. Stuart Hall questiona: ―[...] se a cultura está em tudo e em toda parte, onde ela começa e onde Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 ele que isto acontece por que estes contribuem para que toda ação social seja cultural, 203 ela termina?‖ A cultura não tem um ponto de partida, porque como já foi afirmado acima a ação humana é geratriz da cultura, logo não há esta limitação de ―início‖ e ―fim‖ como o mesmo Stuart Hall afirma: ―[...] o que aqui se argumenta, de fato, não é que ‗tudo é cultura‘, mas que toda prática social depende e tem uma relação com o significado: que toda prática social tem uma dimensão cultural[...]‖. Chegados ao Brasil os negros africanos encontram uma realidade cultural totalmente alienada daquela que viveram em África, a cultura européia que já massacrara os indígenas com suas catequeses e dominação de suas terras. Cativos em terras estranhas única solução era fazer desta terra desconhecida de um ―pedacinho da África‖ a cultura africana a muitos desconhecida, com práticas politeístas onde o panteão não se baseara no sistema religioso judaico-cristão e acreditava na força da ancestralidade, oralidade e tradições tribais era preciosidades imprescindíveis na compreensão da africanidade em terras brasileiras. As fontes que mais conhecemos são de viajantes que ao adentrar em terras brasileiras iam registrando em cartas e diários sobra tudo que encontravam. Na década de 1840 a corte portuguesa promoveu um concurso pelo IHGB (Instituto Histórico Geográfico Brasileiro) do qual Kal Von Martius, naturalista, botânico, viajante que deixou vários registros sobre a natureza e as gentes do Brasil. O problema é que Martius pensava o ―hibridismo racial‖ como o cruzamento de plantas e animais (Vainfas,1999). Este conceito de ―raça‖ como quanto a sua essência. A questão racial é uma problemática que vem se arrastando ―per ómnia saécula seculórum‖, a qual é fonte de discriminações identitárias que com auxílio do capitalismo colabora para a segregação influenciando assim nas condições sociais em que vivemos, corrupção, violência, fome e muitas outras desigualdades que assombra nossa sociedade. Como muito bem trata sobre este assunto Octavio Ianni: Ao lado de outros dilemas, também fundamentais, como as guerras religiosas, as desigualdades masculino-feminino, o contraponto natureza e sociedade e as contradições de classes sociais, a questão racial revela-se um desafio permanente, tanto para indivíduos e coletividades como para cientistas sociais, filósofos e artistas. Uns e outros, com freqüência, são desafiados a viver situações e/ou interpretá-las, sem alcançar sua explicação ou mesmo resolvê-las. São muitas e recorrentes as tensões e contradições polarizadas em termos de preconceitos, xenofobias, etnicismos, segregacionismos ou racismos; multiplicadas ou reiteradas no curso dos anos, décadas e séculos, nos diferentes países. Esse é o dilema envolvido na polêmica entre Bartolomeu de Las Casas e Juan Ginés de Sepúlveda, na época da conquista do Novo Mundo, repetindo-se e desenvolvendo-se nas vivências e ideologias, teorias e utopias de muitos, no curso dos tempos modernos. Essa é uma história na qual entram Herbert Spencer, Conde de Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 conotação de que há espécies diferentes de seres humanos vulgariza o ser humano 204 Gobineau e Georges Lapouge, tanto quanto o evolucionismo e o darwinimo social, o nazismo e o americanismo. Também Gilberto Freyre sob a influência do cientificismo citado a cima afirma em sua obra ―Casa grande e senzala‖ que o Brasil teve uma ―escravidão branda‖, onde estes não eram apenas explorados, pois também era beneficiados com assistência religiosa e moral, diferenciando assim o escravo doméstico do escravo que trabalhava em serviços mais vis e logicamente que os domésticos tinham estes benefícios já citados. Assim concluímos que a obra de Gilberto Freyre precisa de uma releitura, já há idéias obscuras e eurocentristas como nos fala Flávio Rabelo Versiani: Em várias passagens, Freyre faz distinções explícitas entre as formas de tratamento de escravos domésticos e de outros escravos. Mencionando, por exemplo, o fato de que diversas cartas-régias, no século XVII e início do XVIII, "indicavam que muitos senhores não davam então aos escravos o necessário descanso nem tempo de trabalharem para si", Freyre comenta: "mas é evidente que se referiam antes à escravaria grossa que aos escravos do serviço doméstico". Estes últimos eram também "beneficiados por uma assistência moral e religiosa que muitas vezes faltava aos do eito". Haveria de fato uma hierarquia ou gradação entre escravos, ocupando os domésticos a posição superior: "nessa hierarquia, a parte aristocrática eram os escravos do serviço doméstico", que eram muitas vezes tratados "quase como pessoa de família". Ficavam esses escravos, admitidos na intimidade das casas dos senhores, como uma "espécie de parentes pobres nas famílias européias" (Freyre 1981[1933]: 475-76, 450, 476, 352). Como acabamos de averiguar na citação a cima os escravos não tinha a liberdade de exprimir os seus costumes, a princípio porque não tinham tempo nem para descansar e em segundo lugar os domésticos catequizados (doutrinados) pelos padres senzala que praticaram suas culturas e os mais corajosos afrontara a ―inibição cultural‖ que lhes eram impostas pelos seus senhores. Até o século XVIII as formas de cultuar seus ancestrais eram denominados de calundus que traduzindo significaria batuque ou batucada, isto porque os negros ao fazerem seus rituais sagrados sempre o faziam ao som de atabaques, e assim depois de tanta perseguição já no século XVII e XVIII conseguem o direito pelos seus senhores de uma vez na semana fazer suas festas e comemorações religiosas. A priori os primeiros calundus restringia-se única e exclusivamente nas fazendas. Quando chegaram às cidades não se sabe datas precisas, mas de uma coisa temos plena certeza de que nunca foram bem vistos por ser uma religião de incorporação e até hoje em pleno século XXI temos estes tabus a serem quebrados. No Brasil como em muitas colônias espanholas e inglesa reis negros foram trazidos como escravos, estes tinham sua corte como os reis europeus, com seus ritos Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 católicos eram reprimidos quanto a suas crenças e/ou suas culturas. É na surdina da 205 reais e suas ―festividades palacianas‖ só que estas respeitando os costumes tribais de suas épocas, quando refiro-me a ―costumes tribais‖ não diminuo e nem coloco os povos africanos em escala menor em relação ao europeus, assim denomino porque assim eram os seus estilos de vida nos séculos XVI ao XIX, se bem que no século XXI ainda temos tribos africanas como por exemplo, os Pigmeus conservando os seus costumes e rituais. Marina de Melo e Souza (Departamento de História FFLCH/USP) produziu um artigo que faz uma análise dos Reis Congo no Brasil no século XVI ao XIX e assim ela nos fala: No Brasil existiram reis negros entre algumas comunidades afrodescendentes, fossem elas quilombolas ou grupos de trabalho, mas principalmente nas que se agrupavam em torno de irmandades leigas de devoção a determinados santos, com destaque para Nossa Senhora do Rosário e São Benedito. A principal atividade dessas irmandades, além daquelas relacionadas ao enterro dos irmãos, era a realização da festa anual em homenagem ao seu orago,ou seja, santo de devoção, e nela o rei desfilava em cortejo pela cidade, seguido de sua corte, de seus músicos, de seus dançadores, que podiam apresentar encenações, algumas vezes descritas por observadores atentos a essas manifestações da cultura afro-brasileira, o que permitiu que informações sobre elas chegassem até nós. Enquanto a maioria dessas descrições são do século XIX, para o século XVIII podemos recorrer a um ou outro registro feito por observadores dos reinados negros e a documentos de irmandades de ‗homens pretos‘ (este é o termo mais comum pelo qual elas são identificadas nos documentos), onde estão descritas as normas de escolha, as condições impostas aos candidatos aos cargos e suas obrigações. Estas são as primeiras festas oficiais realizadas ao reinado africano (Rei Congo) documental das suas festas. Assumir um papel dentro da Igreja Católica era um dos meios de resistência da cultura Africana, o sincretismo religioso não é uma aceitação da fé católica, mas sim um instrumento para perpetuar a Cultura Negra já que as formas de religiosidade eram perseguidas pela Igreja e do poder civil sob alegação de charlatanismo isto explica o sincretismo. Ainda no século XX as religiões de matriz africana foram perseguidas e começa a ganhar novos valores no século XXI a partir das pesquisas que junto com o conhecimento da cultura africana buscar a valorização e fazer com que o índice de racismos e pré-conceitos sejam extirpado dos meios sociais. África no Curriculum escolar: Lei 10.639/2003 Em 1988 a Constituição Brasileira propusera inclusão social, os quais eram meta para esta inclusão social os povos indígenas e os negros. Nesta perspectiva os grupos de resistência negra e indígena (FUNAI) tomam novo vigor e ganham mais força para Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 onde as irmandades de Nossa Senhora do Rosário e de São Benedito faziam o registro 206 resistir a toda e qualquer forma de preconceitos e na luta por melhores condições de vida. Assim afirma Alberto da Costa e Silva em seu livro em seu livro: ―O Brasil, a África e o Atlântico no século XIX‖: O Brasil é um país extraordinariamente africanizado. E só a quem não conhece a África pode escapar quanto há de africano nos gestos, nas maneiras de ser e de viver e no sentimento estético do brasileiro. Por sua vez, em toda a outra costa atlântica podem-se facilmente reconhecer os brasileirismos. Há comidas brasileiras na África, como há comidas africanas no Brasil. Danças, tradições, técnicas de trabalho, instrumentos de música, palavras e comportamentos sociais brasileiros insinuaram-se no dia-a-dia africano. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), ratificando posição da Constituição Federal de 1988, determina que "o ensino da História do Brasil levará em conta as contribuições das diferentes etnias para a formação do povo brasileiro, especialmente das matrizes indígena, africana e européia" (art. 26, § 4º)2. Como é de práxis no Brasil a lei só serve para ocupar papel, pois como nos fala a própria constituição ―[...]o ensino da História do Brasil levará em conta as contribuições das diferentes etnias para a formação do povo brasileiro [...]‖ só que isto não era o que ocorria nas nossas escolas, tínhamos livros que pouco mostrava a realidade dos negros e índios que muito contribuíram para o crescimento de nosso Brasil. É neste contexto de novas perspectivas que a lei 10.639/2003 que obriga o ensino obrigatório de História da África nas escolas. Mediante as características comunidades negras de nosso imenso Brasil. Logicamente que ainda há muitas barreiras a serem vencidas. Não basta simplesmente colocar uma lei que exige que seja ensinada para as nossas crianças a história de África e de nossos ancestrais, os escravos, temos que ter livros didáticos de qualidade e professores bem preparados para lecionar. Professores que saibam lidar com as diferenças, que é um fato real em nossas salas de aula. Conclusão Esperamos novos tempos, essa é nossa certeza e os sinais estão aí basta que cada um abra o coração e a mente para enxergar que mudanças estão acontecendo o caminho que temos que percorrer ainda é longo, mas é certa a vitória para aqueles que não desistem de lutar. E este simples e humilde trabalho que não tem pretensões alguma quer simplesmente apontar esses novos ventos que sopram e pairam sobre nós agora Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 semelhantes existentes em África e no Brasil esta lei é uma grande vitória para as 207 neste momento, que com a conquista da Lei 10.639 seja porta para outras leis que dão vez e voz para as outras classes segregadas, descriminadas e/ou colocada a margem da sociedade. Espero que você caro leitor também seja esse grande trombeta que anuncia, mas que também possa denunciar as incoerências e injustiças até que consigamos um mundo melhor e mais justo. Utopia, é o que você pode estar achando, mas quem não sonha não merece viver, pois a vida é sinônimo de luta e como diz Sócrates: ―Uma vida sem lutas não merece ser vivida‖ REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: pluralidade cultural, orientação sexual. Brasília, DF: MEC/SEF, 1997. FREYRE, Gilberto. Casa grande e senzala. Introdução à História da sociedade patriarcal no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Record, 2000. HALL,Stuart. Representation: cultural representation and signifying practices. Londres, Sage/The Open University (livro 2 da série) HEGEL, Wilhelm Friedrich. Introdução à História da filosofia in Hegel – Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1985, p. 316 – 392. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 SOUZA, Marina de Mello e. Reis do Congo no Brasil Séculos XVIII e XIX. Departamento de Historia. FFLHC/USP 208 COSTUMES E TRADIÇÕES DA VIDA RURAL E SUAS REELABORAÇÕES, NO PONTAL DO TRIÂNGULO MINEIRO - 1950 A 2010 Ana Flávia Ferreira Graduanda em História Universidade Federal de Uberlândia – Faculdade Ciências Integradas do Pontal Entre outros aspectos, umas das motivações para a realização deste trabalho advêm de inquietações pessoais a respeito de pessoas que saem da zona rural e vão para cidade em relação às maneiras como estas preservam seus hábitos e costumes. Muitos de meus familiares pertencem a esta situação de terem vivido a maior parte de suas vidas na zona rural - do Pontal do Triângulo Mineiro, região do Alto Paranaíba -, e por motivos variados, transferindo-se para o meio urbano quando passam a lidar com novos hábitos e costumes, sem, no entanto, querer se desprender de experiências anteriores que carregam consigo. Hoje, mesmo vivendo em meio às condições de acesso a certos recursos tecnológicos ao alcance de quem reside no meio urbano, preservam na memória costumes, mantêm tradições da vida rural e relembram com saudade histórias de viveres no campo. É notório que nas últimas décadas a zona rural está se esvaziando. As pequenas propriedades estão a cada dia se extinguindo, dando lugar à expansão canavieira que ostenta o verde das plantações de cana. A paisagem rural da região do Pontal do Triângulo Mineiro vem sendo redesenhada com o desaparecimento das pequenas propriedades, fazendo com que outras instâncias comecem a sofrer esvaziamento, como as escolas rurais, sendo poucas as que ainda resistem, pois quase não há mais estudantes e, os poucos que permanecem buscam escolas das cidades próximas. [...] mesmo diante desse quadro de transformações profundas é impossível não perceber que o povo mineiro do interior aprendeu a cultivar a sua memória em pequenos sinais da vida cotidiana, que podem estar traduzidos nos objetos materiais e santos de devoção guardados e cultuados, nos ditos, provérbios e "causos" populares, com os quais procura expressar a sabedoria e as experiências de vida, nas suas relações de compadrio ainda assumidas, nas comemorações de alguns festejos religiosos e populares rurais nos quais se renovam a fé e o reencontro, nos sabores, quitutes e comidas típicas da região, na preferência pelas antigas modas sertanejas ainda entoadas, nas crenças, nas benzeções, nos curadores, nos chás e remédios caseiros aos quais, freqüentemente, recorrem. (MACHADO, 2006, pag. 4) Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 iniciada na região a partir da década de 1990. As mudanças são visíveis na paisagem 209 Os relatos das pessoas de origem rural sempre me despertaram interesse, e foi justamente por essa curiosidade de saber mais do viver na zona rural e a transição para a cidade, como essas pessoas fazem preservar essas culturas regionais. A vida no campo tem características locais próprias, que diferem da vida na cidade. Para tentar compreendê-las procurarei descobrir quais são essas diferenças, perceber seus costumes, hábitos alimentares, relações de trabalho, dificuldades, enfim, o modo de viver na zona rural e suas percepções destes moradores quando se transferem para a cidade. Procuramos perceber como essas pessoas preservam suas tradições. Netas comparações entre campo e cidade estão implícitas percepções que tendem a explicitar contraste, tal como afirma Raymond Willians: O campo passou a ser associado a uma forma natural de vida de paz, inocência e virtudes simples. À cidade associou-se a idéia de centro de realizações - de saber, comunicação, luz. Também constelaram associações negativas: a cidade como lugar de barulho, mundanidade e ambição; o campo lugar de atraso; ignorância e limitações. (WILLIANS, 2000, pag.11) Pelo fato de serem poucos os estudos que abordem a história da população da rural do Pontal do Triângulo Mineiro, penso que esse tema adquire sua importância ao dedicar interesse e pretender compreender aspectos da história que antecede o atual processo de desenvolvimento agrícola da região. Com bastante freqüência encontramos entre as pessoas de nosso convívio, familiares, ou mesmo conhecidos que experimentaram estas situações de viveram na ou permaneceram por muito tempo no campo, outros que mudaram para a cidade já na velhice, por motivo de doença ou por não conseguir mais trabalhar na roça buscam a cidade pela proximidade aos recursos que esta oferece. São muitos os casos que evidenciam a dinâmica do viver entre o campo e cidade. Com efeito, há pessoas resistem à decisão de sair do campo. Nestas destaca-se, pois importância atribuída às origens, tradições e costumes. Relatam que se forem para a cidade encontrarão dificuldades de se adaptar, por que os modos de vida são diferentes, e na cidade vão ter de comprar todos os itens alimentícios, sendo que na roça eles precisam adquirir apenas alguns produtos na cidade. Os alimentos industrializados são percebidos como algo que traz malefícios à saúde. Com o intuito de conhecer de maneira mais densa estes modos de vida venho realizando trabalho com entrevistas como moradores do Pontal do Triangulo Mineiro (Campina Verde, Gurinhatã e Ituiutaba), tanto com os que permanecem na zona rural, quanto com aqueles que atualmente residem nas cidades, procurando fazer um contra Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 zona rural ou que apesar de serem moradores da cidade passaram sua infância na roça 210 ponto acerca de como suas tradições são mantidas ou adaptadas na dinâmica dos distintos ambientes socioculturais. Recorremos às entrevistas em razão destas constituírem a possibilidade de um diálogo direto com atores que tiveram poucas oportunidades de argumentarem sobre suas experiências. A este respeito, Alessandro Portelli, considera, que ―entrevista, implicitamente realça a autoridade e a autoconfiança do narrador e pode levantar questões sobre aspectos da experiência do relator a respeito das quais ele nunca falou ou pensou seriamente‖. (PORTELLI, 2001, p.12). Desse modo estabelecemos um caminho metodológico, orientado pelas questões apresentadas ou suscitadas pelo diálogo com os entrevistados. O material resultante deste trabalho de entrevistas constitui parte significativa das fontes desta pesquisa. A partir do material constituído enquanto fontes de informação sobre o passado caberá ao pesquisador formular perguntas a estas fontes, tentando responde-las mediante hipóteses, critica, interpretação e recomposição de uma narrativa que confira sentido ao passado. Tal processo configura aquilo que Jorn Rusen, considera fundamental em termos de procedimentos de investigação histórica. O processo de pesquisa vai além do mero procedimento de aprender as informações das fontes sob a égide de teorias. Ele continua até a conformação historiográfica dos resultados das pesquisas, porque é nele que, em ultima análise, se decide que interpretação lhe cabe em relação á outros resultados e como pode ser integrada no saber histórico disponível até então. (RUSEN, 2007, p.10) se proceda ainda reflexões acerca da repercussão de determinadas construções da memória quando confrontas com informações obtidas por outras fontes. Neste sentido, busco, além das entrevistas, analisar reportagens publicadas em revistas que reproduzem voltadas a segmento específicos como os produtores rurais, a exemplo da Revistas ―Calu‖, editada por empresa agropecuária da região, que traz reportagens a respeito da vida rural, focando seus costumes e hábitos. Tentar compreender os motivos que levaram pessoas da zona rural para a cidade, destacam-se, por exemplo em busca de escola para seus filhos, melhores condições de trabalho, é necessário evidenciar problemas decorrentes das transformações provocadas pelos investimentos no setor agropecuarista. Estas mudanças nas formas de produzir marginalizaram os pequenos produtores, obrigando-os a saírem de seu meio tradicional de existência e forjar novas modalidades de sobrevivência. O ir para cidade traz implicações diversas que ultrapassam o ideal que almeja a conquistas de melhores condições de vida. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 A atenção dispensada à sistematização e interpretação de fontes, não exime que 211 Ao transferirem-se do campo para o espaços urbanos as pessoas desenvolvem meios estratégias para manterem suas tradições. Essas pessoas, no começo, enfrentam muitas dificuldades no ambiente urbano, pois é bastante diferente da zona rural. O ritmo de vida é mais agitado e não tem aquela tranqüilidade da roça, e por isso esses sujeitos tem que criar formas de se adaptar a nova realidade, mas sem perder suas origens. Ou seja, quais os meios utilizados pra manter os laços com suas experiências vividas no campo, como o trato com a natureza, a utilização de plantas medicinais, criação de animais e a forma de cozinhar. E, sobretudo os mecanismos de transmissão de suas culturas regionais para as gerações mais jovens. Por que através das experiências e vivencias que se constroem no cotidiano os sujeitos sociais vão redimensionar seus hábitos e costumes no ambiente vivido. As representações construídas sobre o mundo não só se colocam no lugar deste mundo, como fazem com que os homens percebem a realidade e pautem a sua existência. São matrizes geradoras de condutas e práticas sócias, dotadas de força integradora e coesiva, bem como explicativa do real. Indivíduos e grupos contraem sobre a realidade. Representar é, pois, fundamentalmente, estar no lugar de, é presentificação de um ausente; é um apresentar de novo, que dá a ver uma ausência e torna sensível uma presença (PESAVENTO, 2004, P.39-40). A partir daí vem uma questão que pretendemos problematizar, particularmente, a maneira como as práticas culturais de pessoas remanescentes de realidades rurais são apreendidas como pertinentes ao âmbito do folclore, sendo suas experiências, costumes de formas dinâmicas de apropriação, transformação e representações que se efetivam e ganham sentidos variados de acordo com as vivencias e histórias que são partilhadas e compartilhadas por diferentes atores sociais, que a cada dia remodelam suas culturas no cotidiano, não as perdendo, mas apenas mudando. Nesse sentido, os indivíduos e grupos dão sentido ao mundo em que vivem construindo representações próprias, construídas a partir de suas realidades, diferentemente de abordagens de folcloristas, que as insere em passado estanque, tradição e hábitos estão em constante movimento e não paradas sem nenhuma alteração. Como aponta Nestor Canclini, Ao decidir que a especificidade da cultura popular reside em sua fidelidade a passado rural, tornam-se cegos ás mudanças que redefiniam nas sociedades industriais e urbanas. Ao atribuir-lhe uma autonomia imaginada suprime a possibilidade de explicar o popular pelas interações que tem com a nova cultura heterogênea. O povo é ―resgatado‖, mas não conhecido. (CANCLINI Nestor p, 2000. p.210) Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 e hábitos vistos como algo que não muda. Entendemos que tais práticas constituem-se 212 Cancline afirma que a apreensão de culturas populares realizada por folcloristas que estes deixam de percebem as mudanças que ocorrem com a tradição e os costumes. Ao pretenderem ―resgatam‖ o povo não se dispõe a conhecer a fundo e esquivam-se de perceber as reelaborações advindas da dinâmica das relações que mantém, uma vez que em seus modos de viver não estão isolados do mundo. A cultura se inscreve no que Michel de Certeau admite como ―margens tênues, ou seja, Cultura de um lado é aquilo que permanece, do outro aquilo que se inventa. Há, por outro lado, as lentidões, as latências que se acumulam na espessura das mentalidades, certezas e ritualizações sociais, via opaca, inflexível, dissimulada nos gestos cotidianos, ao mesmo tempo os desvios, todos essas margens de uma inventividade, de onde desvios , todos essas margens de uma inventividade, de onde as gerações futuras extrairão sucessivamente sua ―cultura erudita‖. A cultura é uma noite escura em que dorme as revoluções de há pouco, invisíveis, encerradas nas práticas - mas pirilampos, e por vezes grandes pássaros noturnos atravessam-na; aparecimentos e criações que delimitam a chance de um outro dia.( CERTEAU, 1995, p.210). Certeau consideram ainda que os memorialistas e folcloristas ao pesquisarem os costumes e hábitos têm a tendência de ―venerar a morte e não a vida‖, e assim colocam essas práticas como mortas. Sendo que a cultura regional se encontra viva e pulsante onde se recria e se renova como pratica histórica. Em perspectiva distinta, a história social trabalha com cultura e folclore diferentemente da maneira como os folcloristas trabalham. A história social trabalha de forma evidenciar o movimento, percebendo os sentidos que as tradições e costumes tem O significado de um ritual só pode ser interpretado quando as fontes (algumas dela coletadas por folcloristas) deixam de ser olhadas com o fragmento folclórico, uma “sobrevivência” e são reinventadas no seu contexto total. (THOPSON, 2001, p.238) Frete a esta reflexão destacamos, quanto à história e cultura de moradores da região do Pontal do Triangulo Mineiro a carência de historiografia nesse sentido que favoreça a outra compreensão do passado daquelas pessoas (RUSEN, 2007, 21). É importante também considerar quanto ao material historiográfico existente, voltado a abordagens acerca de costume e hábitos como sendo folclore e não como práticas, modos de viver, ou seja, as características próprias de culturas locais, mostrar não apenas as mudanças que ocorrem, mas ao mesmo tempo indicar os sentidos daquilo que permaneceu na essência dessas pessoas. Para termos uma dimensão mais contundente destas questões, notamos a partir de falas de Dona Joana D‘Arc de Oliveira Borges, 59 anos, reside em Ituiutaba-MG, que ao tratar de seus costumes e praticas vividas na zona rural e transplantadas para cidade, ela disse: Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 para a vida das pessoas: 213 Das coisas que fazia na fazenda, por exemplo, pão de queijo, e outras quitandas eram feitos no fogão de lenha, agora aqui e só no gás, mas ficam parecidos, como os da fazenda. Lá na fazenda eu sempre tinha cheiro verde e remédios caseiros no quintal, aqui na cidade também tenho mesmo não tendo terra no quintal, plantei em um vaso. (Joana D‘arc de Oliveira Borges, Entrevista Realizada em 09/11/2009). Mesmo morando na cidade, as pessoas vão se adaptando ao local e remodelando seus hábitos. Seja na forma de cozinhar, com seu vasinho de planta que faz lembrar o campo. Nessas práticas persistem lembranças significativas que as possibilita reviver laços com o passado, histórias, com amor pelo campo que não se apaga. Conforme Carlos Rodrigues Brandão há muitos aspectos da cultura de pessoas originárias de espaços rurais, cujos sentimentos traduzem características da vida rural e suas relações com terra: como diz Brandão.―Há um prazer fecundante que torna parceiros de uma relação amorosa o lavrador e a terra‖. O homem do campo, ou mesmo os que não residem mais nele, nutrem um sentimento de amor pela terra e por suas tradições, tem orgulho de suas origens, e fazem tudo para não deixar que ela se perca. Mesmo pessoas que tenham vivido experiências diversas, marcadas por rotinas conturbadas como dia a dia em cidades, não se esquece de sua cultura regional. Estas lembranças são desencadeadas por meio de aspectos singelos, escutar uma canção sertaneja que faz lembrar seu tempo de infância, ou em lembranças de momentos de diversão, trabalho, entre outros impregnadas em seu ser. ―espécie de zumbido‖ que se ouvia por onde passava. Lembram-se do animais: os bois, que puxavam os carros, eram maços e obedientes, por eles, seus donos tinham um carinho todo especial, era como animais de estimação. Como relata o senhor Sebastião Ferreira Borges, 66 anos, morador de Ituiutaba- MG, a respeito de suas lembranças de quando vivia na zona rural. Ah tenho muita saudade daquele tempo, do carro de boi de sua cantiga, dizia que era o gemido do cocão, de longe a gente escutava‖.( Sebastião Ferreira Borges, 66 anos, entrevista realizada em 09/11/2009) Essas pessoas, quando estão reunidas entre familiares e amigos, tendem a relembrar os tempos passados com saudade, tornado engraçadas até as dificuldades enfrentadas naquela época. Já os jovens não têm interesse de ficar no campo, a maioria sai para estudar, e dificilmente pensam em voltar. Geralmente buscam novas perspectivas de vida. No entanto, mesmo indo para meio urbano, neles persistem práticas que expressam vínculos com suas origens, como a musica que faz lembrar sua infância na roça, as rodas de amigos em que contam causos que remetem a sua vida no Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 As pessoas relatam a saudade do campo relacionado com o carro de boi, seu canto 214 campo. Muitas dessas pessoas se recordam do carro de boi e também da fartura de alimentos, como relata à senhora Margarete Rodrigues Freitas: ―Ah a vida era muito boa, fazia pamonha, a gente matava capado qui dava seis lata de banha, nois matava vaca, mais só venu era um farturão, fazia doce, nosi fazia de tudo passava bem graças a Deus.‖.( Margarete Rodrigues Freitas, 45 anos, reside na cidade de Gurinhatã). As lembranças de suas vivencias no campo nunca são esquecidas, como o costume de fazer quitandas em grande quantidade, grandes formadas, de biscoito época de milho, fazia pamonha, reunia muita gente para fazer, era como uma festa. Como relata a dona Luzia Oliveira Rodrigues: Me lembro uma de vês que reuniu um povão, pra fazer pamonha, de uma careta de milho verde, foi um farturão. E tinha também brincadeira, era assim pega um espeiga de milho e amarava como se fosse pamonha, ou colocava farelo do milho e punho junta com as outras pamonhas pra cozinhar, e quando ia comer a pamonha quem pega aquela que não era pamonha era uma fará, era muito divertido. (Luzia Oliveira Rodrigues, 45 anos, entrevista realizada em 26 /06/ 2010 ) Com essas praticas oferecem elementos para a compreender a história dessas pessoas, da sua religião, e seus modos de vida e podemos perceber a partir desse relato como as pessoas lembram com saudade da época que moravam no campo. O mundo rural, construído com trabalho e incertezas, e sobressaía a solidariedade e a hospitalidade do povo caipira. A fé e a religiosidade sustentavam a mutirões, as promessas, os terços cantados, as festas de Reis, os pagodes, os bordados, quitandas nos fornos de barro, as figuras do carreiro de boi e do boiadeiro e tantas outras imagens presentes no cotidiano rural estão presentes na memória daqueles que as vivenciaram, e que relembram com carinho suas experiências. As crenças religiosas estão presentes no campo as pessoas têm o costume de benzer o pasto e o gado, ou recorrer aos santos, por exemplo, quando algo esta dando errado com o gado, ou com a propriedade, esse conhecimento e transmitido de geração em geração, passando a ser superior ao da técnica, da ciência digamos assim. Para as pessoas entrevistadas falar das suas lembranças e experiência na zona rural, remete a trabalho, terra e família são coisas que estão ligadas entre si. A ligação do Homem coma natureza e muito forte principalmente no campo, pois o individuo tira seu sustento da terra. A respeito disso Keith Thomas aborda alguns Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 confiança em um mundo melhor, que valoriza a moral e os costumes. As traições os 215 pressupostos que articularam a percepção dos homens frete aos animais, pássaros, vegetação, cuja relação era tão próxima que mal podemos imaginar. Como diz: [...]é impossível desemaranhar o que as pessoas pensavam no passado sobre e as plantas animais daquilo que elas pensavam sobe si mesmas [...](THOMAS, Keith,2001,p. pag.19) No início do período moderno na Europa as pessoas criavam animais dentro de casa. Era uma relação muito próxima, esses animais eram enfeitados com sinos fitas, os donos falavam com eles. Mesmo o aldeão mais pobre possuía uma vaca. Os animais de estimação eram tratados com carinho todo especial, principalmente o cão, assim como as plantas (arvores flores). Keith Thomas coloca: Hoje a criação, de animais de estimação na Europa Ocidental alcançou escala sem precedentes na historia humana. Ela reflete a tendência dos homens contemporâneos de se refugiarem em família para maior satisfação emocional. Cresceu rapidamente com a urbanização, erroneamente estimulam a manutenção de animais desse tipo... ‗o mascote é uma criatura com o mesmo modo de vida que seu dono; e o fato de tantas pessoas consideram necessário, para sua integridade emocional, criar um animal diz nos muita coisa sobre a sociedade automatizada em que vivemos. (THOMAS, Keith, 2001,p.142-14) E algo que ocorre muito nos dias de hoje as pessoas mudam para a cidade e na saudade daquele tempo com lida com os animas, procura arrumar bichos de estimação, mesma as pessoas que não tiveram relação com o mundo rural, mas mesmo assim são cachorra, gato, pássaros e galinhas. É uma forma de estar mais próximo dos animais. Sendo que no campo desde cedo ocorre o processo de ensino e aprendizagem. As crianças a já aprendem a cuidar e lidar com os animais adquirem obrigações como cuidar de galinhas, recolher os ovos, buscar animais no pasto, varrer o terreiro, catar lenha, buscar palha para acender o fogão de lenha. Tudo isso contribuiu para a ligação do homem com lida com a natureza, com a terra. O processo de trabalho faz-se, de uma idealização da natureza. Em outros termos, não existe uma natureza em si, mas natureza cognitiva e simbolicamente apreendida. (WORTMANM, 1997, p.10) O processo de trabalho se concretiza pela articulação das forças de trabalho, que significa os meios de produção tal como os recursos disponíveis, como o homem e seus instrumentos de trabalho, pelo qual o individuo vai cultivar a terra. Da roça se retira o legume que será levado para casa como feijão, milho, arroz, e transformado em comida. E a outra parte serve de alimento para os animais. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 influenciados por esse habito. Tem pessoas que criam diversos bichos na cidade como: 216 As pessoas entrevistadas relatam entre outras coisas principalmente a fartura do campo. Um exemplo e era a casa de farinha, de onde a mandioca e processada, e irá constituir um dos componentes básicos da alimentação assim como o feijão e milho. Tudo e aproveitado da casa de farinha de lá saem beiju e o polvilho, assim como os restos da massa da mandioca e aproveitado para alimentação dos animais, e também serve como adubo para as plantas, ou seja, na roça tudo e aproveitado. A respeito disso dona Ana Maria de Moraes, diz: Tinha o dia de torrar a farinha, é ai, peneirava a raspa no forno pra - lá e pracá, e ai quem estava torrano a farinha, quando tava pronta gritava, olha o beiju, e as criança ficava aguardano à hora de pegar seu pedaço. (Entrevista: Ana Maria de Moraes, 55 anos, reside em Campina Verde, 29/10/2010). Na casa se fabrica o queijo do leito das vacas, a maioria dos proprietários da região repassam o leite de seu gado para cooperativas, mas mesmo assim sempre retiram alguns litros para si, para fazer queijo, e se produz o soro que e destinado à alimentação de animais domésticos. Por esse fato, muitos relatos de pessoas que morram na cidade atualmente e já moraram o campo, se referem àquele com saudosismo. Fazendo referência à fartura de alimentos, à criação de animais e reclamam da cidade onde têm que comprar tudo o que necessitam. Na vida rural as pessoas desenvolveram hábitos vinculados ao uso do solo. A na cidade: A horta e o jardim representam duas maneiras fundamentais opostas de usar o solo. Na primeira os homens usavam a natureza como meio de subsistência; seus produtos eram para ser comidos. Depois, eles procuravam criar ordem e gerar satisfação estética, e mostravam respeito pelo bem estar das espécies que cultivavam. O contraste não deve ser superestimado, pois a agricultura e o cultivo de verduras não deixaram de ter um alcance estético. Mas a nova atitude frente ás flores e as arvores veio de par com a visão mais sentimental dos animais, que emergiu no correr do mesmo período. (THOMAS, Keith, 2001, p.286-287). A horta e símbolo de fartura, assim como a criação de animais. Ou seja, naquele período como hoje a relação entre o homem a e natureza muito próxima. As pessoas têm a necessidade de ter um vaso de planta em casa para enfeitar e perfumar a casa como também uma forma de ficar perto da natureza e de preservar algumas memórias, pois as plantas estão ligadas á costumes. Existem plantas medicinais, destinadas a chás e preventivos, que muitas pessoas têm o habito de possuir em suas residências desde o mundo rural até na cidade. Como por exemplo, boldo, alecrim, carqueja entre várias Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 este respeito, Keith Thomas lembra a questão do cultivo de jardins e hortas no campo e 217 outras. Há também aqueles que dizem que espanta mal olhado e que dão proteção, como comigo ninguém pode, arruda, Espada de São Jorge, que e bom ter em seu jardim, ou seja, as plantas exercem uma relação muito forte com o homem, remetem, a seus costumes e sentimentos esta ligada a cultura de cada um. (...) a cultura de uma gente, de um povo, de uma família, realizada na vida e na experiência única de uma pessoa. (BRANDÃO,1999, pág29). As crenças religiosas também são freqüentemente lembradas pelos moradores do campo. As pessoas tem o costume de benzer o pasto e o gado, ou recorrer aos santos por exemplo, quando algo esta dando errado então, o conhecimento que e transmitido de geração em geração passa maior validade do que o proporcionado ciência e técnica. As pessoas entrevistadas falam de varias assuntos como do parentesco de homens e mulheres, da comida, de Deus, enfim de suas lembranças de infância e de adolescência, da sua saudade do campo, e da vontade que as coisas fossem como eram antes. Muitos relatam que a roça virou um sertão. Eu mudei pra cidade, lá na roça ta um sertão, num tem transporte, ta muito custos, na cidade tem mais recurso.(Entrevista: Maria Oliveira Soares,60 anos, reside em Guirinhatã, entrevista realizada em 7/10/2010). Mas mesmo assim tem os que têm vontade de voltar a morar na zona rural. Atualmente muitas pessoas principalmente do interior que tem casa na cidade possui uma também no campo, e os que não as tem possuiu o desejo de ter. O campo traz certa freqüente. O mundo rural remete as raízes ao passado não muito distante de pessoas que de uma forma ou de outra tiveram ligação com ele. O autor coloca que o campo teve o seu momento que era visto com, mas as pessoas depois começaram dar valor novamente e ter vontade de voltar mesmo que fosse a passeio, quando as cidades começaram e crescer demasiadamente. E é em partes o que acontecem em nosso tempo. Muitas pessoas deixam seus lugares de origem para estudar e buscar uma vida melhor, porém, guardam consigo significativas marcas daquele lugar que lhes foi tão agradável e que remete a tão saudosas lembranças. Portanto, reconstruir a história destas pessoas vem a ser uma maneira de reaproximá-las do mundo rural, mas não apenas pelas boas lembranças que desperta. Mas, sobretudo pela possibilidade de recuperarmos relações fundadas em concepções de solidariedade, Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 tranqüilidade que na cidade muitas vezes não a temos a poluição sonora, visual e 218 valores, relações com a natureza distintas das vias que estão sendo construídas em nosso tempo. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O afeto da terra. Campinas: Ed. Unicamp, 1999. CANCLINE, Nestor Garcia. A encenação do Popular. In: Culturas Hibridas. São Paulo: Edusp, 2000. p.206-254. CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. In:Artes de nutrir.Petrópolis (RJ), Editora Vozes, 2003. CERTEAU, Michel de. A cultura no plural. Campinas, SP: Papirus, 1995. OLIVEURA, Fernanda Queiroz. A vida rural na memória e na moda de viola- Triângulo mineiro e Sudoeste goiano- Década de 1940 e 1950. Monografia (graduação em História) Universidade do Estado de Minas Gerais/ Campus Ituiutaba, 2003. PESAVENTO, Sandra J. História & História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica 2003. PORTELLI, Alessandro. Historia Oral como Gênero. In: Projeto História. História e Oralidade. São Paulo; EDUCI, nº 22 Junho/ 2001.p.9-36. RUSEN, Jorn. Reconstrução do passado: teórica da história II: os princípios da pesquisa em Histórica. Brasileira: Ed. UNB, 2007. THOMAS, Keith. O homem e o mundo Natural., São Paulo, Editora SCHWARCZ LTDA, 2001.pp.61-104. WILLIAMS, Raymond. O Campo e a Cidade: Na História e na Literatura. São Paulo, Editora Companhia da Letras, 2000. WOORTMANN, K. e WOORTMANN, E. F. O trabalho da Terra: A lógica simbólica da lavoura camponesa. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997, p.8-192. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 THOMPSON, E.P. As peculiaridades dos Ingleses e outros artigos. In: Folclore, antropologia e História Social. Campinas: Unicamp, 2001. 219 DAR NÃO DÓI, O QUE DÓI É RESISTIR DO GRUPO TEATRAL TÁ NA RUA: TRAJETÓRIAS E DISCURSOS NA CONSTRUÇÃO DE UM TEATRO POPULAR Lígia Gomes Perini Mestranda em História pela Universidade Federal de Uberlândia Em janeiro de 2004, no antigo Cais do Porto da cidade do Rio de Janeiro, o grupo Tá na Rua99 estreiou o espetáculo teatral Dar não dói, o que dói é resistir100. Com 1 hora e 30 minutos de apresentação, o público foi convidado a revisitar um dos períodos mais truculentos da história do Brasil, os anos de ditadura militar, através de cenas como ―O Brasil pré-64‖, ―O golpe militar‖, ―O movimento estudantil‖ e ―A resistência cultural‖. Antes de começar o espetáculo, o grupo procurou explorar o espaço, instalar as araras com o figurino e alguns elementos que compõem a cena. Ao mesmo tempo, foi delimitando o lugar de encenação através da roda, para permitir ao público uma melhor visualização da apresentação e viabilizar o contato dos mesmos com os atores. Estabelecida a roda, o grupo passou para a apresentação, o seu jogo, que o diretor Amir Haddad compara com um jogo de futebol, para fugir da linguagem desenvolvida pelo teatro tradicional. Uma vez iniciado o jogo, surgiu o narrador para constituir uma ligação direta informal, descontraída e cômica, ele contou os fatos em terceira pessoa, excluindo praticamente o uso de diálogos, enquanto os atores encenavam o que estava sendo narrado. Mais do que isso, o narrador também determinou a seqüência das cenas, recuperou algum momento que ficou para trás. Ele conduziu o espetáculo, construiu um raciocínio e um entendimento da apresentação para o grupo e para o público. Na medida em que o narrador desenvolvia um raciocínio claro, para que todos da roda realizassem uma leitura dos acontecimentos, os atores avançavam numa concentração interna, improvisavam, procuravam evitar a dispersão da platéia, mesmo diante de tantas interrupções externas como sons, ruídos, movimentos aleatórios. Ao 99 Rio de Janeiro, 1980. Os fundadores do grupo Tá na Rua são Amir Haddad, Ana Carneiro, Artur Faria, Betina Waissman, Ricardo Pavão, José Carlos Gondim, Lucy Mafra, Marilena Bibas, Rosa Douat e Sérgio Luz. Desde o surgimento, o grupo é dirigido por Amir Haddad. 100 Ficha técnica: direção de Amir Haddad; cenário, figurino, iluminação, pesquisa de texto, ambientação cênica e produção do grupo Tá na Rua; sonoplastia de Roberto Black; musicalização de Bida Nascimento e realização do Instituto Tá na Rua para Artes, Educação e Cidadania. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 entre o público e o espetáculo. Com uma linguagem de fácil compreensão, mais 220 mesmo tempo, eles jogavam diretamente com o público que estabeleceu uma relação com o espetáculo teatral diferente daqueles que pagam entrada e têm lugar fixo para se sentarem, tiveram a liberdade de entrar ou sair do âmbito da apresentação, podendo interferir diretamente na cena. Prática que está em sintonia com a proposta do grupo em que não há uma separação entre atores e espectadores: Em Dar não dói, o que dói é resistir (2004), o Tá na Rua optou por ‗contar‘ ou ‗narrar‘ parte da história recente do país, aproximando-se do gênero épico porque, nele, o narrador está sempre presente no ato mesmo de narrar, com onisciência sobre tudo o que aconteceu na história e com os personagens, seus pensamentos e emoções. A voz utilizada é a do pretérito, procedimento que cria uma distância entre o narrador e o mundo narrado, permitindo um posicionamento objetivo, sem identificação ou fusão com os personagens. O ator jamais se ‗transforma‘ nos personagens que apresenta; evita sofrer qualquer metamorfose nesse sentido. Na narração, ocorre um desdobramento: sujeito (narrador) e objeto (mundo narrado), em que os atores-narradores apenas mostram como esses personagens se comportaram. Esta opção pela narrativa permite, aos atores e também ao público, uma liberdade de reflexão e possibilidade de analisar a estrutura social brasileira, devido ao efeito de ‗distanciamento‘ que a mesma provoca. (TURLE, 2008, p. 68). De fato, a opção por narrar histórias tem uma relação direta com as experiências de vida e profissional de Amir Haddad. Nascido em 1937, na cidade de Guaxupé, interior de Minas Gerais, Amir Haddad é filho de pais sírios que vieram para o Brasil como imigrantes. O sangue que corre pelas veias, a tradição e a cultura árabes estão O teatro não faz parte da religião e nem da tradição árabe. O Corão proíbe a representação da figura humana, e proíbe que você represente outra pessoa [...] Então, você vê que os árabes não têm um teatro desenvolvido, mas tem técnicas narrativas maravilhosas, eles contam histórias. Porque uma história você conta na 3ª pessoa, não encarna um personagem; você vai narrando a história dele. E o meu teatro é muito narrativo, eu não trabalho por identificação, eu conto histórias [...] E essa coisa árabe, eu sempre penso nisso; por que eu tenho essa tendência tão forte para o narrativo, que faz com que eu adore uma história de cordel que me permite compreender tão bem o Brecht, que me faz ler Shakespeare de uma maneira tão desprentesiosa e objetiva? Acho que é o meu sangue árabe, esta tradição narrativa, a vontade de contar histórias.(HADDAD, 1998). Além disso, ao ser convidado, na década de 1960, para ministrar cursos na Escola de Teatro da Universidade Federal de Belém do Pará, o diretor pôde entrar em contato com outros costumes, arquitetura e realidade, diferentes daquelas de São Paulo e Rio de Janeiro. O que lhe possibilitou ter contato com manifestações religiosas e de fé como o Círio de Nazaré. Neste intervalo de 40 anos é possível perceber que o grupo Tá na Rua se apropriou, como parte do processo de criação e de desenvolvimento de sua linguagem, Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 presentes em seus trabalhos como ator e diretor teatral: 221 das mais diferentes expressões culturais, trazendo para o seu teatro, inclusive, contribuições das ―heranças‖ culturais manifestas na população brasileira. Quando perguntado pelo professor do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UNIRIO, Zeca Ligiéro, em 2003, o que entra na elaboração do trabalho do grupo, quais são as práticas auxiliares, Haddad responde: A gente trabalha, por exemplo, o universo africano, religioso, a gente trabalha com a cultura religiosa católica romana, a gente trabalha com os nossos sentimentos mediterrâneos, tudo isso são coisas que entram na elaboração do nosso trabalho. A questão de não trabalhar com formas, mas de procurar os conteúdos, os conceitos, a gente faz isso profundamente, então, a questão da cultura negra, da cultura popular brasileira, da escola de samba, por exemplo, é uma coisa muito determinante no desenvolvimento dessa história... (HADDAD, 2003). Através da fala do diretor é possível inferir que o Tá na Rua procura inserir, em sua prática teatral, formas dramáticas populares da cultura brasileira, como os autos sacramentais, as procissões, as escolas de samba, os terreiros de Candomblé. É através deste conjunto expressivo que surgem as manifestações espetaculares consideradas pelo teatrólogo como os produtos mais avançados de seu trabalho. Puxando certos fios da História e utilizando elementos do teatro épico, Dar não dói, o que dói é resistir foi apresentado durante três anos, em diversos espaços e com diferentes roteiros que procuravam explorar as possibilidades dos espaços cênicos e de Alguns anos antes, o Tá na Rua começou o processo de criação do espetáculo. A iniciativa partiu de Amir Haddad. Entretanto, a vontade de apresentar esse momento histórico foi disseminada pelo grupo, que passou a colaborar na pesquisa de materiais para a constituição do roteiro. Dessa forma, a elaboração dramatúrgica do espetáculo, incluindo texto e encenação, foi sendo criada coletivamente, composta por seqüências de movimentos e fragmentos de cena. Nascia, nesses bastidores, um processo no qual teoria e prática se associam: os atores pesquisaram o material, buscaram referências e improvisaram nos ensaios. Foi dessa maneira que a peça ganhou vida. Para construir o roteiro teatral de Dar não dói, o que dói é resistir, o grupo utilizou, além de um cordel sobre a ditadura militar, diversos tipos de materiais acerca dos fatos ocorridos entre 1964 e 1985, que foram transformados em narrativas dramáticas. 101 Nestes três anos o grupo encenou nas cidades do Rio de Janeiro (RJ), Campos dos Goyatazes (RJ), Angra dos Reis (RJ), Resende (RJ), Nova Iguaçu (RJ), São Paulo (SP), Jacareí (SP), São José dos Campos (SP), Campina Grande (PB), Fortaleza (CE) e Paris (França). Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 comunicação com o público.101 222 O roteiro é composto por fragmentos de textos, notícias de jornal, documentos oficiais, depoimentos, canções. De Elio Gaspari a Nelson Rodrigues, de Costa e Silva a Augusto Boal, de Millôr Fernandes a Delfim Netto, são muitos os fatos históricos e versões que compõem este texto. (SANTINI, 2008, p. 59). Abandonando a noção de originalidade, o grupo trabalhou com recortes, citações e referências, na construção de uma narrativa épica. A partir do material coletado e analisado, o grupo desenvolveu sua própria leitura do tema. A estrutura dramatúrgica do espetáculo foi baseada num desfile de escola de samba, que possui características do teatro épico, popular, narrativo, no qual o povo é o protagonista. Assim, Dar não dói, o que dói é resistir foi narrado a partir de imagens divididas em partes definidas, todas subdivididas em alas. A idéia do grupo foi de recriar a apresentação dos fatos tal como faz uma escola de samba. É... É difícil falar trabalha com cultura popular porque já imagina que vai o bumba-meu-boi né, que vai vestido como um boi, ou que vai dentro de um palhaço, ou vai fazer algumas atividades circenses. Nós não fazemos nada disso. [...] Então nós não trabalhamos com aspectos da cultura popular, não trabalhamos... Vamos imitar aqui, vamos fazer uma ala de escola de samba, aqui vamos fazer o bumba-meu-boi, aqui vamos fazer uma folia de reis, é a mesma coisa de mensagem política, eu odeio isso, eu odeio! Tem grupos aqui que fazem maracatu, mas é pífio, porque é uma encenação do maracatu, não está na alma daquelas pessoas e elas nem sabem profundamente o que é aquele fenômeno maracatu. Então eles imitam, põe as roupas, põe os tambores, põe a música, bonequinha na mão dos dançantes e tá feito o maracatu. [...] Cultura popular... Então... Isso é cultura popular: não vou imitar uma escola de samba, mas escola de samba é narrativo, tem dramaturgia, mas a dramaturgia não é tradicional. [...] Todas essas coisas é que caracterizam o fenômeno popular. Se você for olhar isso, você vai olhar que na folia de reis tem isso, no bumba-meu-boi tem isso, na escola de samba tem isso, os cortejos todos dramáticos brasileiros têm essa questão. Então nós trabalhamos como se nós fossemos um grande cortejo em perpétuo movimento se desenrolando diante do espectador. (HADDAD, 2007). Numa mesma perspectiva, Alexandre Santini, formado em Artes Cênicas pela UNIRIO e ator do Tá na Rua desde 2001, também estabelece uma reflexão sobre a cultura popular: Eu acho que [o Tá na Rua] tem popular no sentido de que é... Primeiro da opção do espaço mesmo, do espaço público e tal, isso que determina, e depois que quando é, o Tá na Rua abandona a dramaturgia convencional de diálogos e tal, ele passa a se aproximar por analogia de fontes populares, né, então a narrativa tem muito a ver por exemplo com o cordel, tem muito a ver com outras formas de manifestação né. Quando o Tá na Rua, por exemplo, começa a trabalhar com a escola de samba, entendendo o desfile da escola de samba como espetáculo né, popular, uma encenação. Então é analogia com essa forma espetacular que é uma forma espetacular criada pelo povo. [...] Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 Apropriando-se de uma cultura popular, Amir Haddad esclarece: 223 Agora, se você falar de cultura popular stricto sensu né, então não dá pra definir completamente como arte popular se você tem uma elaboração do conceito disso aí, se é uma elaboração sei lá, acadêmica, erudita, vamos chamar assim como for, intelectual né. (SANTINI, 2007). Através destas falas é possível perceber que tanto Amir Haddad como Alexandre Santini aproximam a cultura popular do folclore, de algo puro, legítimo, isto é, o maracatu, o bumba-meu-boi e a folia de reis tais como eles os concebem. É tudo aquilo que o povo faz e/ou pertence a ele, entretanto, sem diálogo, elaborações, transformações etc. Aqui cabe um diálogo com Stuart Hall que, ao discutir alguns conceitos atribuídos ao termo ―popular‖, faz menção àquele que define cultura popular como todas as coisas que ―o povo‖ faz ou fez, aproximando-se ―de uma definição ―antropológica‖ do termo: a cultura, os valores, os costumes e mentalidades [folkways] do povo.‖ (HALL, 2003, p. 240). O autor aponta, então, duas dificuldades em relação à essa definição: 1. Definição muito descritiva, com uma lista infinita de tudo o que o povo já fez; 2. É preciso dar conta da questão pertence/não pertence ao povo não de forma descritiva já que, no decorrer dos anos, os conteúdos de cada categoria mudam, O valor cultural das formas populares é promovido, sobe na escala cultural – e elas passam para o lado oposto. Outras coisas deixam de ter um alto valor cultural e são apropriadas pelo popular, sendo transformadas nesse processo. O princípio estruturador não consiste dos conteúdos de cada categoria – os quais, insisto, se alterarão de uma época a outra. Mas consiste das forças e relações que sustentam a distinção e a diferença; em linhas gerais, entre aquilo que, em qualquer época, conta como uma atividade ou forma cultural da elite e o que não conta. (HALL, 2003, p. 240). Caminhando pela perspectiva de Hall, não se concebe a cultura popular como tradicional, no sentido de algo intocável, puro, isento das transformações e movimentos de adaptações sócio-culturais como por vezes dá-se a entender, tal qual nos trechos de Haddad e Santini transcritos acima. Afinal, como afirma o crítico literário e historiador inglês Raymond Williams, ―quando começamos a estudar a tradição, tornamo-nos imediatamente conscientes da mudança‖. (WILLIAMS, 2002, p. 33). Mesmo que não se apropriem do bumba-meu-boi, ou que façam uso de elementos do carnaval transformando-os significativamente, é possível falar de um teatro popular no Tá na Rua. Até porque, o que faz o Tá na Rua popular, não são tão somente as convergências com outros elementos populares, como se esses, por eles mesmos, fossem capazes de conferir isso ao grupo. É, antes, o conjunto de sua complexa linguagem (que poderia ser popular até mesmo não dialogando com tudo que foi dito acima). Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 mas atento às tensões e oposições entre a cultura dominante e a periférica. 224 Um importante autor que auxilia na investigação do popular na prática teatral do Tá na Rua é o historiador russo Mikhail Bakhtin (1999) com suas reflexões acerca da cultura popular medieval e do início do Renascimento. Segundo ele, a cultura cômica medieval foi marcada pela forte presença do riso vinculando-se também à linguagem grosseira da praça pública e da feira e se expressando em momentos específicos: nas festas carnavalescas que, no contexto medieval, criavam outra vida para o povo que poderia usufruir da liberdade propiciada por essas festas que viravam o mundo de cabeça para baixo. Assim, o historiador mostra que o carnaval caracterizava-se pela ―lógica às avessas‖, colocando uma reflexão de que o popular pode ser associado com aquilo que se rebela contra o estabelecido. Acerca disso, o historiador inglês Peter Burke afirma: O destaque dado por ele à importância da transgressão dos limites é aqui obviamente relevante. Sua definição de Carnaval e do carnavalesco pela oposição não às elites, mas à cultura oficial, assinala uma mudança de ênfase que chega quase a redefinir o popular como o rebelde que existe em nós, e não como a propriedade de algum grupo social. (BURKE, 1995, p. 17). De fato, o teatro do Tá na Rua nasceu e se desenvolveu a partir de vontades comuns de jovens interessados em lançar novos olhares sobre o espaço cênico, a dramaturgia, o jogo do ator, a relação com o público e o processo de criação de peças aliando teatro, alegria, animação e discussão. Assim, Amir Haddad afirma que o grupo contramão dos padrões estabelecidos. Isso porque, para ele, o teatro não é, historicamente, uma arte de elite; em sua origem, é uma arte popular que, em determinado momento, foi apropriada pela burguesia. É certo que, desde a sua origem mais remota, a arte teatral era popular, de maneira que, por muito tempo, era uma forma de entretenimento e reflexão à disposição de qualquer pessoa, sem distinção de classe. É possível compreender que para o teatrólogo é preciso enriquecer a arte teatral com os valores de uma parte da população, de forma a dar voz às pessoas ávidas não somente de consumir cultura, mas para produzir cultura e se reconhecer nela. Para tanto, Amir Haddad acredita que para atingir a população é necessário mexer na linguagem: comunicação, estética, estrutura dramatúrgica. Ademais, quando Amir Haddad afirma que foi preciso resgatar o popular que havia dentro de cada um, ele estabelece uma relação com a questão de classe, de popular associado à esfera econômica: Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 ―virou o teatro de cabeça para baixo‖, quando foi em busca da origem do teatro e na 225 Porque nenhum de nós era popular! Alguns de nós vivíamos nos endereços mais sofisticados da cidade do Rio de Janeiro, freqüentávamos faculdade... Éramos de classe média, brancos, universitários! Todo o processo que deslancháramos porém, tinha muito a ver com um sentimento de rebelião contra o estabelecido. (HADDAD, s/d). Mais uma vez, uma visão de certo modo mitificadora e cristalizada do popular. Sujeitos envolvidos com a cultura popular não freqüentam universidades? Têm eles endereços absolutamente inacessíveis? Corrobora com essa visão também, o ator Alexandre Santini, para quem a trajetória teatral de Amir Haddad, a partir do Tá na Rua, caminhou para o desenvolvimento de um teatro realizado em espaços abertos, com uma dramaturgia flexível e de comunicação direta entre atores e espectadores. O que fez com que sua prática passasse a ser classificada como teatro popular, que, para Santini, trata-se de uma simplificação, haja vista que não contempla o conjunto da produção teatral de Amir Haddad: No entanto, o estudo da trajetória de Amir Haddad nos faz crer que, pelo menos do ponto de vista do lugar social e da origem de classe, não existiria uma vinculação direta entre o seu trabalho como artista de teatro, intelectual e professor e as culturas populares. (SANTINI, 2004). Em todo caso, cabe perguntar: quem era o povo na década de 1970? Quem é povo hoje? A cor da pele, a situação econômica, o ensino superior são definidores dessa popular? Stuart Hall, em diálogo com o historiador inglês E. P. Thompson e com Raymond Williams, afirma que o conceito de cultura para uma linha significativa dos Estudos Culturais a define ao mesmo tempo como os sentidos e valores que nascem entre as classes e grupos sociais diferentes, com base em suas relações e condições históricas, pelas quais eles lidam com suas condições de existência e respondem a estas; e também como as tradições e práticas vividas através das quais esses ―entendimentos‖ são expressos e nos quais estão incorporados. (HALL, 2003, p. 133). Adiante, em um capítulo dedicado à ―desconstrução do popular‖, o autor realiza uma discussão conceitual e histórica do que seja o popular e coloca como ponto de partida para esse estudo, a investigação da cultura das classes trabalhadoras do século XVIII: ―as mudanças no equilíbrio e nas relações das forças sociais ao longo dessa história se revelam, freqüentemente, nas lutas em torno da cultura, tradições e formas de Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 categoria? E mais: existe uma relação tão dicotômica entre o que é erudito e o que é 226 vida das classes populares.‖ (HALL, 2003, p. 231). Para ele, tradição e transformação são palavras-chave no estudo da cultura popular que é o terreno sobre o qual as transformações são operadas. De acordo com Hall, o conceito de popular mais aceitável não é nem aquele que se relaciona com ―o que as massas consomem‖, nem com ―tudo o que o povo faz ou fez‖; mas sim, o que considera, em qualquer época, as relações que colocam a cultura popular em uma tensão contínua com a cultura dominante: O essencial em uma definição de cultura popular são as relações que colocam a ―cultura popular‖ em uma tensão contínua (de relacionamento, influência e antagonismo) com a cultura dominante. Trata-se de uma concepção de cultura que se polariza em torno dessa dialética cultural. Considera o domínio das formas e atividades culturais como um campo sempre variável. Em seguida, atenta para as relações que continuamente estruturam esse campo em formações dominantes e subordinadas. Observa o processo pelo qual algumas coisas são ativamente preferidas para que outras possam ser destronadas. (...) Seu principal foco de atenção é a relação entre a cultura e as questões de hegemonia. (HALL, 2003, p. 241). O que importa não é a autenticidade da cultura popular, mas o campo social ao qual está incorporada e pelas práticas às quais se articula. O popular em tensão com o dominante: é nesse embate que a cultura popular se exerce e é compreendida. Se, para Stuart Hall, o popular não está em objetos, mas sim em práticas sociais, é possível pensar essas interações na prática do Tá na Rua. Em primeiro lugar, se os trabalhos teatrais de Amir Haddad, que se iniciam no com essas estruturas em busca de alternativas para o desenvolvimento de uma nova linguagem teatral, é certo também que até hoje esse teatrólogo transita entre o teatro popular e o teatro profissional: já encenou diversos espetáculos profissionais sem se desligar dos trabalhos de grupos, tendo reconhecida e consistente atuação no teatro brasileiro. Paralelamente às atividades desenvolvidas junto com o Tá na Rua, Amir Haddad desenvolve atividades como diretor e ator de espetáculos teatrais profissionais. É possível perceber, então, uma circulação desse teatrólogo pelos diferentes setores da sociedade. Em segundo lugar, se é verdade que o neoliberalismo encontra diversos focos de resistência no mundo e que a arte teatral do Tá na Rua é um desses focos, também é certo que o grupo se relaciona com esse sistema social hegemônico. Embora o grupo não tenha submetido Dar não dói, o que dói é resistir à lógica do mercado e à uniformização das linguagens cênicas, ao gênero realista e psicológico, esse espetáculo Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 meio teatral oficial, de salas fechadas e público pagante e, em certo momento, rompem 227 (assim como outros) foi apresentado em diversos eventos e festivais nacionais e internacionais. Vale lembrar, inclusive, que Dar não dói, o que dói é resistir participou do Ano do Brasil na França, em 2005. Em 1993, o Estado do Rio de Janeiro, quando da decisão de dinamizar as atividades de grupos culturais, cedeu uma casa na Lapa ao Tá na Rua, lugar em que passou a funcionar o Centro Cultural Casa do Tá na Rua, onde se realizam oficinas, ensaios e eventos artístico-culturais. Desde 1999, o grupo Tá na Rua se constituiu como ONG e passou a se chamar Instituto Tá na Rua para as Artes, Educação e Cidadania. Em 2003, em parceria com o poder público, foi aprovado o projeto Escola Carioca do Espetáculo Brasileiro, um espaço itinerante de reflexão e produção teatral, onde se realizam oficinas, leituras e ensaios. Em 2004, o Tá na Rua tornou-se um Ponto de Cultura da cidade do Rio de Janeiro. Por outro lado, em 2009, artistas de rua, dentre eles os atores do Tá na Rua, protestaram no Rio de Janeiro contra ―repressão‖ dos guardas municipais: ―Segundo a Rede Estadual de Teatro de Rua (entidade com mais de 50 companhias de teatro de rua do estado), há pelo menos dois meses os guardas municipais teriam passado a exigir dos artistas autorização para atuarem nas ruas.‖ (Jornal O Globo, 07 nov. 2009). Embora exista, em vários meios, uma tentativa de colocar o grupo na contramão ao hegemônico – política, social e culturalmente – ele está nesse processo, o que não público, a mídia, se estabelecem porque, como afirma Raymond Williams, Uma hegemonia vivida é sempre um processo. Não é, exceto analiticamente, um sistema ou uma estrutura. É um complexo realizado de experiências, relações e atividades, com pressões e limites específicos e mutáveis. Isto é, na prática a hegemonia não pode nunca ser singular. Suas estruturas internas são altamente complexas, e podem ser vistas em qualquer análise concreta. Além do mais (e isso é crucial, lembrando-nos o vigor necessário do conceito), não existe apenas passivamente como forma de dominação. Tem de ser renovada continuamente, recriada, defendida e modificada. Também sofre uma resistência continuada, limitada, alterada, desafiada por pressões que não são as suas próprias pressões. Temos então de acrescentar ao conceito de hegemonia o concito de contra-hegemonia e hegemonia alternativa, que são elementos reais e persistentes da prática. (WILLIAMS, 1979, p. 115-116). A hegemonia não se trata de uma dicotomia entre dominantes e dominados. Ela se faz num campo de disputas, é um processo social vivido nos quais determinados valores são aceitos ou não e, por isso mesmo, não se trata de uma simplificação de ação e reação. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 invalida ou desfaz as tensões que promovem. Essas relações entre o grupo, o poder 228 Mas há limites que se impõem aos movimentos, como é possível notar no relacionamento com a indústria cultural, na qual o popular também mantém intenso diálogo. Entre os anos de 2004 e 2007, período em que foram apresentados Dar não dói, o que dói é resistir, foram poucas as vezes que a mídia impressa da cidade do Rio de Janeiro noticiou algo sobre o espetáculo. No levantamento que realizei até a presente data, não foi possível localizar nenhuma crítica especializada sobre as apresentações. Quando aparece algo, encontra-se nos cadernos ―Cidade‖, com chamadas para ―teatro de graça‖, às vezes com uma sinopse do espetáculo. Já a mídia televisiva, vez ou outra, contrata os atores do Tá na Rua para desempenharem papéis de figurantes em suas novelas. Esses convites são bem vistos e aceitos pelos atores, pois permitem a eles o ganho de algum dinheiro ―a mais‖. Vista sob a perspectiva artística, é possível inferir que a indústria cultural não é um atrativo para o grupo. Em todo caso, vista sob a perspectiva financeira, é difícil falar que os atores se opõem à política de mercado. Enquanto atores estabelecem relações com a indústria cultural através de atuações em novelas e minisséries, pequenos trabalhos que constituem suas formas de sobreviver. Um emaranhado de posições e contradições que dão vida à cultura, ao popular. Ao entrecruzar a prática teatral do Tá na Rua através do espetáculo Dar não dói, o que dói é resistir, com as entrevistas, depoimentos, anotações e com os Tá na Rua como um prática popular urbana no século XXI. Porque falar em popular não é se remeter somente ao folclore, ao congado, à folia de reis, ao maracatu, às revoltas ou rebeliões. No Tá na Rua essas manifestações populares são tomadas como fontes de inspiração para a criação de seus espetáculos. O popular, no grupo, relaciona-se com as temáticas, o público, a linguagem: ao elaborarem Dar não dói, o que dói é resistir, o grupo se baseou na vida e na cultura da população brasileira, através de uma estrutura dramatúrgica – no caso, do carnaval – que intenciona interação com público durante e após o espetáculo, ao mesmo tempo em que o público o consome, a partir de uma comunicação que envolve gírias, linguagem corriqueira, narração, (poucos) diálogos. Falar em popular é, destarte, falar em relações sociais. Como bem coloca o comunicólogo espanhol Jesús Martin-Barbero É preciso prestar atenção à trama: que nem toda assimilação do hegemônico pelo subalterno é signo de submissão, assim como a mera recusa não o é de resistência, e que nem tudo que vem de cima são valores da classe dominante, pois há coisas que, vindo de lá, respondem a outras lógicas que não são as da dominação. (MARTIN-BARBERO, 2008, p. 114). Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 autores elencados, acredito ter sido possível indicar caminhos para se pensar o teatro do 229 A roda foi estruturada. O ator se transformou em jogador. A interpretação foi substituída pela atuação. O público interagiu. A improvisação se aflorou. E assim se foi delineando uma linguagem teatral que o grupo acredita ter chegado em sua síntese com Dar não dói, o que dói é resistir: ―teatro sem arquitetura, dramaturgia sem literatura e ator sem papel.‖ REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. 4 ed. São Paulo: Hucitec, 1999. BURKE, Peter. Cultura popular na Idade Moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. ____________. Cultura popular na Idade Moderna. São Paulo: Edusp, 1995. GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2003. MARTIN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. 5 ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2008. WILLIAMS, Raymond. Marxismo e literatura. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979. Fontes: Roteiro teatral GRUPO Tá na Rua. Dar não dói, o que dói é resistir. Para apresentação no Cais do Porto, Rio de Janeiro, janeiro de 2004, 13 p. Fotografias Fotografias do espetáculo Dar não dói, o que dói é resistir, janeiro de 2004, no Cais do Porto, Rio de Janeiro. 124 fotos. Depoimento e entrevistas Depoimento de Licko Turle à Lígia Perini em junho de 2007. Entrevista de Amir Haddad concedida à Luciana Farah para a Revista Sexta Básica em março de 1998. Entrevista de Amir Haddad concedida ao curso ―Teatro e comunidade‖ coordenado pelo prof. Dr. Zeca Ligiéro na UNIRIO em setembro de 2003. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 __________________. Tragédia moderna. São Paulo: Cosac & Naify, 2002. 230 Entrevista de Amir Haddad concedida à Lígia Perini em 23 de agosto de 2007. Acervo pessoal. Entrevista de Alexandre Santini concedida à Lígia Perini em 29 de agosto de 2007. Acervo pessoal. Entrevista de Ana Cândida concedida à Lígia Perini em 28 de agosto de 2007. Acervo pessoal. Entrevista de Ingrid Medeiros concedida à Lígia Perini em 27 de agosto de 2007. Acervo pessoal. Entrevista de Paulinho de Andrade concedida à Lígia Perini em 28 de agosto de 2007. Acervo pessoal. Entrevista de Yasmini Andrade concedida à Lígia Perini em 28 de agosto de 2007. Acervo pessoal. Artigos e anotações de trabalhos escritos por Amir Haddad HADDAD, A. Lonas Culturais. Digit., s/d. Acervo Tá na Rua HADDAD, A. O teatro e a cidade. O ator e o cidadão. Digit., 1998. Acervo Tá na Rua HADDAD, A. Teatro: magia sem mistério. Digit., s/d. Acervo Tá na Rua Jornal e revista Jornal O Globo. 07 de novembro de 2009. Artistas de teatro de grupo acusam guardas municipais de repressão. Revista Tá na Rua, ano 1, n. 1, Rio de Janeiro, julho de 2008. Monografia RODRIGUES, A. Só o teatro salva! Edição crítica, seleção e organização de documentos sobre a trajetória de Amir Haddad. 2004. 90 f. Monografia (Graduação em Artes Cênicas) – Centro de Letras e Artes/UNIRIO, Rio de Janeiro, 2004. Livro TURLE, L. e TRINDADE, J. Tá na Rua: teatro sem arquitetura, dramaturgia sem literatura, ator sem papel. Rio de Janeiro: Instituto Tá na Rua, 2008. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 Disponível em: <http://oglobo.globo.com/cultura/mat/2009/11/06/artistas-de-teatro-derua-acusam-guardas-municipais-de-repressao-914637443.asp>. Acessado em: 23 de julho de 2010. 231 "SÃO MARCOS" EM FESTA: FESTAS COMO VEÍCULOS DE SOCIABILIDADE E FÉ NAS COMUNIDADES AFEDADAS PELA U.H.E. SERRA DO FACÃO Anderson Aparecido Gonçalves de Oliveira Acadêmico do Curso de Graduação em História UFU/FACIP - Bolsista de Iniciação Cientifica FAPEMIG. [email protected] Dr. Cairo Mohamad Ibrahim Katrib – UFU/FACIP Orientador - Universidade Federal de Uberlândia/Faculdade de Ciências Integradas do Pontal [email protected] “A festa é a fusão da vida Humana” (BATAILLE,1973: 74) As festas podem ser consideradas algo a mais que um simples ato de comemoração coletiva, enfim, deve ser vista como produto cultural dinâmico, rico em representações e sentidos. Dessa maneira o presente trabalho baseia-se na discussão do das comunidades rurais da área de influência da Usina Serra do Facão, no sudeste de Goiás. Durante nossas pesquisas junto às atividades do Programa de Preservação do Patrimônio Histórico-Cultural, intitulado: ―CAMINHOS DA MEMÓRIA: CAMINHOS DE MUITAS HISTÓRIAS‖ – Serra do Facão Energia S.A. (Sefac) e Universidade Federal de Uberlândia (UFU) – realizada por uma equipe interdisciplinar de docentes, pesquisadores convidados e alunos. O olhar projetado foi além do de mapear, perceber como essas práticas culturais diversas foram reelaboradas no contexto de cada comunidade, se constituindo em ―marca‖ cultural das comunidades, levando em consideração a relação desses sujeitos com o lugar vivido e com o universo rural que é bastante dinâmico. E, para a realização deste estudo, optamos pela análise das falas de sujeitos pertencentes a aquela região pesquisada, não que a gente esteja querendo dar voz a eles, até porque seria muito autoritarismo da nossa parte ―ceder voz ativa a eles‖, portanto, o Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 significado que as festas rurais têm para seus praticantes, sobretudo para os moradores 232 que faremos será analisar e compartilhar nossas idéias e percepções a partir do presente texto. Utilizaremos de imagens e arquivos doados pelos moradores ou análises feitas durante as pesquisas de campo, as quais pudessem nos auxiliar e dar voz aos sujeitos. O importante é que o historiador ―olhe‖ para o lugar, condição social, para o trabalho e para aquela realidade encontrada em determinado campo de sua pesquisa. O historiador ao enfrentar a pesquisa, o processo investigativo, ele se insere e trás consigo seus valores, sua cultura, sua política, seu olhar, entre outros. Frente a isso, que chamamos de subjetividade, nos cabe então explicitar quais são as escolhas teóricas metodológicas e qual o percurso de caráter investigativo desse processo, que confere ao conhecimento produzido um caráter de saber científico. Mediante isto ela é construída a partir de determinados interesses, os quais serão posteriormente analisados e criticados por outros historiadores que não compartilham daquela linha de pesquisa. Portanto, por a história estar vinculada a certos interesses, na maioria institucional, o historiador deve atentar aos diferentes pontos acima para que não se torne um trabalho ―falso‖, ―mentiroso‖. Não que uma pesquisa retrate a realidade acabada e pronta, pelo contrário, mas, devemos sempre trabalhar a buscando ao máximo, e, é claro, embasado em algo. Analisaremos, portanto, as festas como prática significativa de sociabilidade, onde tais manifestações culturais são constantemente (re) significadas dando sentido ao cotidiano e a vida dos moradores das comunidades afetadas. É também marca identitária religiosidades, sociabilidades e as comunidades, as quais acabam se tornando o tripé que sustenta a vida e a convivências das pessoas no meio rural. Para os grupos rurais o sentido da palavra comunidade expressa reunião de indivíduos em uma organização social, cuja coletividade evidencia as práticas de ajuda mútua, parceria não só nas questões do cotidiano rural como no caso das doenças, dificuldades financeiras, na devoção e religiosidades. Dessa forma, no campo, os encontros coletivos irrompem com o dia a dia, constroem sentidos e pertenças que unem os moradores em torno das festividades. Durante as festas eles participam ativamente das rezas, bailes, leilões e ao freqüentar esses espaços, reforçam com a comunidade os laços de amizade, de solidariedade e de compromisso com o sagrado, uma vez que estar ali representa o exercício da união, do revigorar das pertenças identitárias. Na maioria das comunidades existem pequenas capelas, onde se rezam os terços e missas durante as novenas e um barracão ou quadra esportiva, utilizados para os festejos, danças, prosas, leilões, dentre outros. São nesses locais que sagrado e profano Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 que persiste e resiste à modernidade. Levando sempre em consideração os fatores: 233 se materializam e se mesclam. Em meio à fé e a alegria das danças e das comilanças, sem esquecer-se de também agradecer pela boa colheita ou pedindo por uma melhor no próximo ano ou simplesmente se divertindo, prontos para conversar, dançar e porque não paquerar. E foi em meio a essas paqueras e aos chamados ―pagodes‖ (momento de dança e arrasta-pé) que o Senhor José da Luz Pires conheceu sua esposa e constituiu família. ―[...] Ela tava lá na festa [Festa de São Sebastião – Fazenda Pires – CatalãoGO], e eu nessa época eu tava trabalhano em Catalão né, trabalhano na COPERBRÁS né, aí eu tava dano bobera lá tamém e encontrei ela lá né, aí lá que nois começo a namorar e tamo junto até hoje... [...]‖ (José da Luz Pires Fazenda Pires / Catalão-GO) Falando em casamento, as festas de casamento são comuns no campo e simbolizam a união das pessoas, sendo grande oportunidade para as pessoas da zona rural de divertir e sair de suas rotinas. Em meio à alegria do casal que ali se prometem um ao outro, compadres vizinhos e parentes se reencontram, pois para eles o casamento se torna um acontecimento naquela região, e, diga-se de passagem, um momento que não tem hora pra acabar, a não ser quando os indícios da chegada de mais um dia de labuta se anuncia tendo como protagonistas os galos que anunciam que é quase hora de amanhecer. Mas não importa se é novena, festa de casamento, pamonhada, ou até mesmo aquele futebolzinho de domingo, o interessante é que todos participam se divertem e celebram a possibilidade do congraçamento coletivo. Muitos ao relembrarem os tempos idos, reportam as festas como disseminador da atualização da memória do lugar. ―[...] Naquela época você montava o cavalo, juntava os cavaleiros assim e ia lá pra Campo Alegre, tinha época que tinha 100 cavaleiros. Cheio de gente brincando, tinha dia que dava aquela chuva. Molhava tudo. Chegava molhadinho, quando chegava enxugava, enxugava a noite inteira, era bom demais. [...]‖ (Sebastião Pereira da Silva – Rancharia / Campo Alegre – GO) As novenas vêm acompanhadas da diversão. Fé e festa se mesclam e todos aqueles pertencentes à determinada comunidade ajudam na realização das festividades. Alguns personagens são essenciais para a concretização dessas comemorações, dentre eles o festeiro, que é quem organiza a parte social e devocional das celebrações. No dia da festa, ou até mesmo antes, com doações de prendas por exemplo. Cabe ao festeiro todo o trabalho organizacional da festa, como também providenciar patrocínios para a Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 ―[...] Muita, muita festa de casamento e esse também era uma festona e não fazia sem festa. Todo casamento tinha festa. [...]‖ (Helena Rosa de Mesquita – Comunidade do Varão / Davinópolis – GO) [...] Tinha aqueles festão que era a noite inteira, até amanhecer o dia! [...] (Sebastião Pereira da Silva – Rancharia / Campo Alegre – GO) 234 mesma, tendo como auxílio o apoio dos ―juízes‖. Esse dá apoio logístico à organização da agenda festiva, assessora o festeiro na comunicação com a comunidade. [...] Juiz, começa assim oh. É pra ajudá a faze a festa né, pra fazer fogueira... o juiz de prenda de bandeja leva um frango assado, uma banda de leitoa, qualquer coisa já é prenda né. Esse é o bandejeiro né. Tem o juiz de fogos tamém né... leva fogos pra festa, pra ajuda o festero né? [...] (José da Luz Pires – Fazenda Pires / Catalão - GO) Salientamos que a escolha dos festeiros também é algo muito interessante, os antigos festeiros escolhem os próximos e fazem essa revelação entregando uma flor ou a bandeira no ultimo dia da novena, demonstrando que no próximo ano são aquelas pessoas que irá organizá-la. Alguns dizem que isso é combinado nos ―bastidores‖, entretanto, na maioria das vezes não é assim que acontece, as pessoas são escolhidas e pegas de surpresa. [...] Isso ai é assim, por exemplo, se eu mais a Nilda for festeira hoje nos vai entregar a festa, ai nos conversa com que nos chama, convida e tal. Caladinha e passa pra aquela outra pessoa de surpresa. E muita das vezes é de surpresa. Outros já combina, conversa direitinho, se aceita ou não. [...] (Nilda Jacinta Rosa / Davinópolis – GO) É a missa, ou um terço, que dá início ao evento festivo-devocional. Após a demonstração de fé, agradecimentos e pedidos, as pessoas se dirigem para a lona improvisada, ou para o barracão da comunidade, onde se realiza os leilões em meio à profana acontece. Dessa maneira o sagrado e o profano se mesclam ganhando novos sentidos e significados, podemos até perceber o momento em que o sagrado e o profano começam, mais é impossível se dizer quando eles terminam e quando se separam. A novena em louvor a São Sebastião é uma das mais encontradas na região pesquisada, principalmente pela grande devoção ao santo, mas nada que impeça o arrasta-pé, a comilança, os flertes e os pileques. Algumas esperam o ano todo por esse momento, e outros, já saem dos festejos e se dirigem direto pra labuta e afazeres. Muitos devotos, ou parentes de moradores locais se deslocam de outras cidades ou estados nos dias festivos, para que possam participar das festividades, representando assim a grandiosidade dessas festas de roça no imaginário e na fé popular. [...] A Dona Vina fez um voto [...] [...] ela fez um voto com São Sebastião de fazer num primeiro domingo do mês, de fazer um terço. Ela faleceu, minha mãe fez uma igreja na fazenda dela no morro alto, nós continuamos lá muitos anos. Depois, eu fiz uma lista lá de uma luminária pra criá uma escola, lá Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 apresentação de trios, as pessoas dançam e se socializam, em fim, local em que a parte 235 naquele centro comunitário. Ali tava mais no meio, levou esse povo, fiz um rancho lá depois da escola. Aí, nós desceu a reza pra aquele lugar também, o povo tudo reuniu. [...] (Manoel Ferreira Paulista – Região da Anta gorda / Catalão-GO) [...] numa festa aqui do São João da Cruz, aqui, de São Sebastião. Nóis ia de a cavalo, passava dento do São Bento. Aí pegava os cavalos e ia pros pagode de noite que tinha. [...] (Ana Gonçalves Diniz – São João da Cruz de Baixo / Davinópolis–GO) Mais uma comunidade em especial, em que se realizavam todos os anos a festa em louvor a São Sebastião, e uma das mais conhecidas, era a comunidade da Lagoinha. Além de um espaço de fé, sociabilidades e fé, este local representava a união de moradores da região da fazenda pires. Representava, pois quando o novo proprietário das terras em que as benfeitorias da comunidade se encontravam, tudo foi ―a baixo‖, literalmente. O proprietário entendeu que, ali em suas terras, não deveria realizar festas alegando problemas com aberturas de porteiras, e por causa de uma porteira ele destruiu o sonho e a luta de anos dos demais membros da comunidade. Mas como a própria dona Sebastiana nos disse, ―há males que vem pra bem‖. Apesar da destruição do espaço físico em que se realizavam as festas, missas, diversões e em meio a uma tristeza que tomou conta de toda uma comunidade, os moradores resolveram se unir e continuar suas novenas, mas dessa vez de casa em casa. É claro que sem aquelas grandes festas e bebedeiras, mas sempre havendo aquela janta após a reza. Ainda segundo ela a comunidade se aproximou ainda mais, principalmente pela fé e pela devoção a São Sebastião. [...] a males que vem pra bem né... Apesar que eu chorei de mais, eu me emociono até hoje, quando eu vou falar da Lagoinha. Mais foi bom... [...] [...] Porque acabou unindo mais, fazer a força né... [...] As pessoa fica mais unida. Assim... participa mais![...] (Sebastiana Felix Simão e Jadir Ferreira Simões – Comunidade Lagoinha – Catalão-GO) Um fato não menos importante a ser analisado é o papel da mulher na organização e na prática festiva, pois sem elas nada aconteceria, seja por sua participação direta ou indireta em tais práticas. Elas carregam consigo as memórias familiares, além de ajudarem na lida do campo e realizar todo o trabalho doméstico, Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 [...] O santo ficou com o último festeiro, as coisa assim, porque tinha panela, prato, fogão... Ele é lá da cidade. [...] O ―Fulano‖ também ficou com um pouco, porque é o dono lá![...] [...] E a gente luto assim, eu e o Jadir... nós ficamos três meses, toda semana as vezes a gente ia em Catalão duas, três vezes por semana, porque um advogado da prefeitura tomou as dor também: – Não a gente vai lutar e vai resgatar, mais ele não conseguiu...[...] Porque lá não é dele, lá foi doado pra prefeitura mais não tem documento... Não tem papel... Foi doado pela antiga moradora de lá e ela já faleceu. Então a doação é só de boca, não tinha como provar! A gente pelejou mais... [...] (Sebastiana Felix Simão e Jadir Ferreira Simões – Comunidade Lagoinha – Catalão-GO) 236 tornando-se assim uma ―peça‖ fundamental na estrutura familiar e festiva da região pesquisada. Podemos concluir, portanto, dizendo que as festas, festividades, as variadas formas de sociabilidades e a fé caminham juntas e se entrelaçam em algumas vezes, e principalmente que todas elas se adaptam e se (re) criam a aquele determinado momento em que estão inseridos além de uma manutenção daquela cultura local. Ao quebrar uma rotina os moradores fazem com que as festas e as sociabilidades se tornem parte de uma cultura que passa (co) existirem mediante a uma multipluralidade cultural e significados que as mesmas representam para os sujeitos e para a região pesquisada. São nesses espaços que indivíduos se identificam, seja qual for sua realidade sócio-econômica ou endereço. São tradições e maneiras de festar e usar as festas, seja elas religiosas ou não, se utilizando de todas as formas para se manterem ―vivas‖. Principalmente por essa identificação ser muito presente no âmbito rural, onde esse festar e rezar desvela múltiplas formas de sociabilidades e olhares que mesclam a religiosidade popular à introspecção devocional guiadas pelos caminhos dos bailes, dos leilões, da tradição, da fartura, da adoração coletiva e do festar com alegria pela vida e pelo viver. É claro que cada festa possui suas peculiaridades e revelam os saberes, fazeres e odores da gente que celebra com festa cada dia vivenciado! AMARAL, Rita. Festa à brasileira: sentidos do festejar no país que “não é sério‖. 1998. Tese (Doutorado) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 1998. MACHADO, Maria Clara Tomaz. Cultura popular: um contínuo refazer de práticas e representações. In: ______. História e cultura: espaços plurais. Uberlândia: Aspectus, 2002. p. 335-346; MACHADO, Maria Clara Tomaz. Religiosidade no cotidiano popular mineiro: crenças e festas como linguagens subversivas. História & Perspectiva, Uberlândia, n. 22, jan./jun. 2000; MACHADO, Maria Clara Tomaz. Pela fé: a representação de tantas histórias. Estudos de História, Franca, v. 7, n. 1, p. 51-63, 2000. PASSOS, Mauro. Catolicismo popular: o sagrado, a tradição e a festa. In: ______. Festa na vida: Imagens e significados. Petrópolis: Vozes, 2002; RÜSEN, Jörn. Reconstrução do passado. Tradução de asta-Rose Alcaide – Brasília: editora Universidade de Brasília. 2007. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: 237 SOUSA, Marcos Timóteo Rodrigues de. População e ambiente: elementos demográficos na análise do território. São Paulo: Plêiade, 2006. p 53 à p 57. FONTES Ana Gonçalves Diniz – São João da Cruz de Baixo / Davinópolis – GO José da Luz Pires – Fazenda Pires / Catalão – GO Manoel Ferreira Paulista – Região da Anta gorda / Catalão-GO Nilda Jacinta Rosa / Davinópolis – GO Sebastião Pereira da Silva – Rancharia / Campo Alegre – GO Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 Sebastiana Felix Simão e Jadir Ferreira Simões – Comunidade Lagoinha / Catalão – GO 238 VOZES EM FESTA: MEMÓRIA, HISTÓRIA E ANCESTRALIDADE NOS FESTEJOS DE SÃO BENEDITO102. Fernanda Domingos Naves. Acadêmica do Curso de Graduação em História pela Universidade Federal de Uberlândia/Faculdade de Ciências Integradas do Pontal (UFU-FACIP) O Congado103 é uma prática cultural muito importante no sudeste brasileiro. A festividade mescla em sua realização a devoção e a festa constituindo-se numa das mais importantes expressões de religiosidade negra difundidas no Brasil através das comemorações em louvor aos santos de devoção negra (Nossa Senhora do Rosário, Santa Efigênia, São Sebastião, São Benedito, dentre outros). No contexto em que as celebrações festivo-devocionais acontecem, sagrado e profano se interpenetram propiciando aos agentes sociais a reelaboração de suas práticas culturais estabelecendo padrões e significados ao vivido. A festa em si é o produto de uma linguagem social utilizada para expressar ações e sentimentos. Essa linguagem se propaga carregada de forte caráter simbólico que se decodifica em sentidos de pertença identitária, em reconstrução de memórias em narrativas que interligam vida e festa numa mesma dimensão (NAVES & KATRIB, 2009). Assim, a festa se recria guiada pelas experiências humanas dos grupos sociais. Congado, na perspectiva de compreender o significado atribuído às cantorias entoadas pelos grupos que compõem o Congado da cidade de Ituiutaba. Nossa proposta se balizou na premissa inicial de que as canções entoadas durante os festejos em louvor a São Benedito, nos revelam as formas múltiplas de externar a religiosidade ancestral dos devotos e dançadores e as tramas sociais vividas por eles, uma vez que, através dos cantos, uma linguagem própria é estabelecida entre os congadeiros104 que, muitas vezes, se concretiza de forma cifrada e não pode ser decodificada pelas pessoas comuns que assistem ao espetáculo. Esses cantos, muitas vezes improvisados, feitos naquele mesmo momento, falam do dia-a-dia do negro na sociedade; nelas eles criticam, reverenciam, reforçam sentidos e a significação religiosa, 102 Trabalho orientado pelo Pro. Dr. Cairo Mohamad Ibrahim Katrib, NEAB/FACIP-UFU. Uma manifestação cultural e religiosa de origem afro-brasileira onde se homenageiam santos de devoção negra através de canções e danças encenando a coroação de reis africanos. 104 Grupo de pessoas dançadoras de Congado. 103 Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 Nessa lógica, dialogamos com a riqueza simbólica e identitária que circunda a festa do 239 cultural e ideológica do movimento negro numa releitura da sua inserção social. Dessa forma, não podemos deixar de enfatizar que, segundo VOVELLE (1987, p.246), a festa se efetiva como momento das ―ressurgências‖ onde gestos, atitudes e comportamentos coletivos trazem à tona, de forma inconsciente, sensibilidades que circundam e se concretizam no imaginário coletivo, o que possibilita aos indivíduos, analisar a festa e o exercício de sua religiosidade sob diferentes nuanças. Nesse meio, a festa é um espaço de resistência, persistência e de espiritualidade. A música ecoada das vozes dos congadeiros e dos instrumentos constitui-se em sons que revelam a dimensão temporal e espacial dos rituais do Congado. Em cada verso construído, de acordo com a representação simbólica vivida naquele instante, os timbres das vozes em festa, cantam e revelam os sentimentos do momento, expressando fé e devoção, religando passado/presente e revigorando os laços ancestrais, as linguagens tecidas que garantem a atualização do passado no tempo presente e da própria vida. São representações dinâmicas que se efetivam a partir das experiências compartilhadas de diferentes formas na medida em que se vive e se contrastam as intenções e intensidades da festa na vida, onde outros encontros, outras sensações As representações construídas sobre o mundo não só se colocam no lugar deste mundo, como fazem com que os homens percebam a realidade e pautem a sua existência. São matrizes geradoras de condutas e práticas sociais, dotadas de força integradora e coesiva, bem como explicativa do real. Indivíduos e grupos dão sentido ao mundo por meio das representações que constroem sobre a realidade. Representar é, pois, fundamentalmente, estar no lugar de é presentificação de um ausente; é um apresentar de novo, que dá a ver uma ausência e torna sensível uma presença (p. 39- 40). Nesse viés compreender a musicalidade, ou melhor, o contexto em que as cantorias são (re) criadas implica em entender, na linguagem dos próprios congadeiros, a importância da oralidade e principalmente seus processos de preservação e como proporcionam a continuidade da tradição vivida. Sendo que, ao contrário do texto escrito, que guarda a palavra, oferecida circunstancial e solitariamente a seu leitor, que com ela estabelece ou não vínculos de prazer, de saber e de reescritura, ―a palavra oral existe no momento de sua expressão, quando articula a sintaxe contígua, através da qual se realiza, fertilizando o parentesco entre os presentes, os antepassados e as divindades105‖. 105 MARTINS, Leda Maria. Afografias da Memória: O Reinado do Rosário no Jatobá. – São Paulo: Perspectiva; Belo Horizonte: Mazza Edições, 1997. p. 146. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 estarão sempre em ebulição. Para PESAVENTO (2004): 240 As canções entoadas nas festas em louvor a São Benedito e a Nossa Senhora do Rosário, são também uma forma de transmissão de saberes ancestrais, possuindo uma dinâmica própria. Por esses motivos, apresentamos uma investigação dos elementos que constituem a memória dos grupos, seus ritos de recordação, seus referenciais de sentido, seus símbolos de tradução da experiência vivida. Em poucas palavras, as partes componentes da identidade e da oralidade dos congadeiros de Ituiutaba. Oferecemos uma contribuição para a ampliação do conhecimento acerca da oralidade como mantenedora do sentido atribuído ao Congado, que faz dele uma prática que resiste e persiste à modernidade e ao progresso. Uma vez que, sons e pulsos são percebidos juntamente com gestos, formas, movimentos e palavras. Tempos e espaços, e seus significados, são observados na simultaneidade de sua manifestação (LUCAS, 2002). A cantoria pensada enquanto tradição oral envolve processos de transmissão de conhecimentos que são particulares a cada grupo social. Dessa forma, atentamos à observação dos ensaios dos ternos106, a forma como o ritmo é executado e ensinado e qual o desempenho dos cânticos sagrados. Dessa forma, encaramos a música como uma forma particular de linguagem e documento, daí ela ser analisada dentro de seu contexto de produção e reprodução. Todavia, vale ressaltar que não temos como objetivo o estudo melódico desta produção musical, mas a compreensão do seu significado. Trabalhamos com o material coletado durante a realização da festa de São Benedito nos grupos visitantes de cidades circunvizinhas. Nosso material não se limita somente ao coletado durante a festa, graças à colaboração dos congadeiros locais que nos forneceram as composições que foram e são por eles entoadas durante a realização da festa em datas anteriores. Durante a elaboração desse trabalho tentamos observar como as situações do cotidiano dos congadeiros são transmitidas para a sociedade através da musicalidade. É através da música que, o congadeiro fala sobre preconceito racial, fala sobre a ―peleja‖ dos homens por uma sociedade justa e igualitária. É através da música também que ele demonstra sua fé e religiosidade; através das canções percebemos seus anseios, saudades e angústia; através dela que igualmente conhecemos a história e trajetória de um povo que, vindo de terras distantes, luta para manter vivas as tradições de seus antepassados. 106 Denominação para um grupo de congadeiros que dançam juntos. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 anos de 2008 e 2009, onde estavam presentes os ternos de Congado da cidade e alguns 241 Os resultados desta análise são frutos não só do diálogo teórico, mas também da inter-relação metodológica das fontes documentais, das discussões teóricas tecidas no âmbito não só da historiografia, mas de outras áreas do conhecimento científico, procurando dar ao trabalho uma perspectiva interdisciplinar e, sobretudo, ancorada ao uso das fontes orais como caminho interpretativo. Dessa forma, seguindo o caminho trilhado chegamos a alguns resultados que serão expostos abaixo juntamente à análise das canções entoadas durante o festejo. Iniciamos nossa análise com o canto de Alvorada entoado por um terno de Congo antes da sua saída pelas ruas da cidade em direção à Igreja, horas antes da missa realizada no dia do festejo em louvor a São Benedito, tendo em vista que os cânticos se desenvolvem na forma solo/coro. Algumas canções são simplesmente repetidas pelo coro. Há também as músicas em que o solista improvisa a letra e a melodia e o coro canta um refrão, e há ainda as do tipo pergunta/resposta: Eu peço licença ao Sol, Eu peço licença a Lua, Eu peço licença a Deus pro meu Congo sair na rua oh... Eu peço licença ao Sol, Eu peço licença a Lua, Eu peço licença a Ogum, pro meu Congo sair na rua oh... 107 Estes versos são repletos de significados, o sentido das palavras é perceptível para os integrantes do terno. Para eles, o sol representa o poder, a autoridade máxima. É comparado ao poder atribuído pelos reis congos que viviam em África isso, durante a que vem poupar, que vem serenar‖; depois vem Deus, aquele ao qual devemos nossas vidas e nossos dias, e por último Ogum (Orixá guerreiro, senhor dos metais), que vem para representar os santos de matriz africana congraçando a presença da ancestralidade e da religiosidade africana no tempo presente. Após pedir a benção às divindades ancestrais, o grupo pode seguir sua caminhada até a Igreja onde realizarão suas manifestações de fé. A partir desse momento os homens, ungidos de proteção, deixam de ser apenas cidadãos comuns e passam a ser congadeiros, devotos e irmãos unidos em uma mesma sintonia e banhados pela proteção das divindades. A pé, os congadeiros percorrem grande distância entre os quartéis generais108 e a Igreja; depois seguem até a casa de cada um dos coroados. Antes, porém, cada terno é apresentado à comunidade que assiste do lado de fora às comemorações. Todo esse 107 108 Canto de saída. Domínio público. Terno de Congo Real. Local onde se guardam os instrumentos dos grupos e onde se realizam as reuniões dos mesmos. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 festividade. A lua é o principio da serenidade e equilíbrio que harmoniza e suaviza, ―a 242 percurso é seguido de muito batuque e música. Isso ocorre dentro de uma lógica própria e hierarquicamente organizada. Uma questão que é muito discutida entre os grupos de Congado da cidade é a religiosidade ancestral. O Congado da cidade de Ituiutaba é composto por sete ternos. Destes sete, apenas um é umbandista. Todos os demais se autodenominam fundados dentro da tradição católica. Porém, no decorrer das comemorações em louvor a São Benedito e a Nossa Senhora do Rosário notamos menções a entidades espirituais de matrizes africanas nas letras das músicas cantadas pelos congadeiros, como vimos no trecho anterior. Vejamos, por exemplo, uma canção entoada durante a apresentação de um terno de Moçambique: Balança a gunga, ôi deixa balança... Balança a gunga, ôi deixa balança... O Preto velho não gosta não deixa essa festa acaba O Preto velho não gosta não deixa essa festa acaba Demandas e brigas não devem existir Demandas e brigas não devem existir A união dos povos faz mamãe do Rosário sorrir A união dos povos faz mamãe do Rosário sorrir 109. Para que a festa do Congado fosse realizada com o apoio da Igreja Católica os grupos de Congado tiveram que seguir à risca os preceitos católicos impostos pela Paróquia local110. Tiveram de receber os Sacramentos da Igreja e se tornarem devotos ativos da fé cristã, ―abandonando a religiosidade pagã africana‖. Todavia, a por alguns grupos de Congado, prova disso é esse trecho onde notamos a presença da ancestralidade africana quando ouvimos ―O Preto velho não gosta não deixa essa festa acaba‖. Os congadeiros se reconhecem como católicos, mas ainda hoje estão presentes as tensões e negociações entre as cerimônias do Congado e a Igreja Católica, como também entre o microcosmo social do Congado e a sociedade envolvente, o que torna atual a afirmação de GOMES e PEREIRA, 1988: No passado os tambores dos negros estavam proibidos de participar das celebrações no interior das igrejas. No presente, o negro canta o lamento africano à porta da igreja, convencendo-a de recebê-lo em nome do Pai Maior. Os conflitos não se resolvem com a realização da Missa Conga, onde os negros deixam de entoar diversos cantos por serem incompatíveis com a liturgia católica (p. 101). 109 Terno de Moçambique. Domínio público. Canção entoada durante a apresentação do grupo. Ver NAVES, Fernanda Domingos; KATRIB, Cairo Mohamad I. Cultura Identidade e Religiosidade em Ituiutaba - MG. In: 4ª Semana do Servidor e 5ª Semana Acadêmica. 2008. Universidade Federal de Uberlândia. Anais. Uberlândia. 1 CD-ROM. 110 Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 religiosidade ancestral é mantida, ainda que secretamente, perante os olhos da Igreja, 243 Ainda que a Igreja Católica lute para catequizar os negros integrantes do Congado, e apagar deles sua identidade ancestral, de nada adianta, sua história está presente dentro de cada um, está em sua cultura, enraizado dentro de si. Esta religiosidade perpassou várias gerações e permanece viva até a atualidade, e, como percebemos, mesmo diante da imposição católica contra essa religiosidade e seus cultos, o negro continua praticando seus rituais e perpetuando sua herança ancestral. A música nos mostra a resistência da comunidade congadeira contra a imposição cristã. Todavia, podemos perceber que também se menciona Nossa Senhora do Rosário, apelidada carinhosamente pelos integrantes do grupo como ―mamãe do Rosário‖. Notamos que, ainda que praticantes ocultos da religiosidade ancestral, mistura-se a religiosidade ancestral com catolicismo no ritual do Congado. Balançando a gunga e entoando a canção evocam-se os santos protetores para que, com suas bênçãos, o povo congadeiro possa seguir com a sua festividade. Percebemos a mescla da religiosidade afro com a cristã/católica. Os descendentes de africanos que hoje são congadeiros reelaboraram valores alheios à sua concepção de mundo, reinterpretando, assim, o catolicismo, por meio de sua própria visão onde as entidades presentes nos cultos afros se mantêm em harmonia com os santos católicos reverenciados durante o festejo. Nessa canção notamos que nos rituais de Congado, portanto, estão presentes valores e saberes africanos que sobreviveram às continuamente111. Durante a festividade observamos que cada um dos cantos possui uma linguagem diferente, enriquecendo o cenário do Congado local da cidade. No decorrer da festa são vários os temas e assuntos apresentados à comunidade através da música, são assuntos como as desigualdades sociais, a luta do negro no dia-a-dia, a história de criação dos ternos, a história do evento na cidade, milagres realizados pelos santos homenageados, etc. Todavia, o que mais é citado, talvez pela data de realização da festa em Ituiutaba, dia 13 de Maio, é a Abolição da Escravidão, ou mesmo a escravidão em si. Vejamos um exemplo: Nego velho era cativo, sua rainha libertou, No dia 13 de Maio foi que os nego festejou 111 Adaptado de LUCAS, Glaura. Os Sons do Rosário: O Congado Mineiro de Arturos e Jatobá. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. 360P. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 imposições da cultura tida como erudita e, com ela se mesclaram e se transformaram 244 Nego velho era cativo, sua rainha liberto, Nego velho era escravo, nego velho virou sinhô! Quando o sinhô ia a missa, era nego que levava Sinhô entrava pra dentro e o nego lá fora ficava Se nego tava cansado de chicote apanhava Chegando na senzala é que nego velho rezava!!! O navio negreiro levou, levou neguinho de mamãe, O navio negreiro levou, levou neguinho de mamãe, Oh meu Deus! Levou negrinho de mamãe Nóis tava na beira da praia quando o homem branco chegou Pegou negrinho de mamãe e seu pé acorrentou, Partiu da Costa do Marfim e nunca mais retornou Ancorou em terra distante, oh meu Rei, e o negro velho chorou... Negro velho chorou... Negro velho chorou De saudades do negrinho que o navio negreiro levou... Negro velho chorou... Negro velho chorou De saudades do negrinho que o navio negreiro levou... 112 As letras falam das diferenças entre os brancos e negros, senhores e escravos. Mostra a nós um mundo onde a desigualdade racial priva o negro de cultuar seus deuses dentro de seus santuários. Esse mundo é relembrado pelos congadeiros por que infelizmente trata-se de algo presente no seu dia-a-dia. São relatados nesses trechos momentos de extrema importância da história negra, desde a chegada do homem branco em terras da África; a captura do então escravo, que deixa para traz seus entes queridos; o modo como ele é tratado e como, tanto os que partiram contra a sua vontade, quanto os que ficaram, sofreram com esse processo. Durante a canção, faz-se uma volta ao grande responsabilidade para que seu uso esteja ao espaço e ao tempo. Notamos ainda a importância da negritude para a compreensão cultural do negro no Brasil. Trata-se de um povo que tem história e que se identifica por meio dessas mesmas histórias que são repassadas por gerações inteiras. Observamos ainda a relação do congadeiro com a África e sua origem afro. Percebemos que sempre se menciona o passado, são lembrados a cada instante os irmãos que sofreram com a escravidão e aqueles que já partiram. Os antepassados fazem-se presentes durante toda a festa: ―eles vêm todos‖, ―ficam aí‖, são frases ouvidas em muitas músicas de diversos grupos. Os antepassados presentificam-se e são evocados, pela memória, no ato a que a eles se dirige, no continuum de uma celebração que remonta os tempos imemoriais. O conhecimento e o saber vem desses antepassados, cuja energia revitaliza o presente. Os mais antigos relembram e fazem suas preces em silêncio por essas presenças. Eles, os antepassados 112 Apresentação de terno de Moçambique. Domínio publico. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 tempo, a palavra emitida pelo congadeiro está investida de força, o que exige dele 245 são lembrados e homenageados muitas vezes pelos integrantes dos grupos ao qual pertenciam. Há também o momento do repentismo onde as músicas são elaboradas naquele mesmo instante. Além de abrigar a música secreta e mágica e de ser o momento de vivência da memória, o improviso do capitão se apresenta também como potencialidade, podendo ser preenchido de maneiras diferenciadas conforme a circunstancia ou a necessidade. Assim, através dos improvisos, os capitães transmitem ordens e mensagens, brincam com outros capitães do mesmo terno, desafiam-se, etc. São nesses momentos que percebemos quão grande é a influencia da música na vida desses indivíduos. É através dela que esses homens transmitem a nós suas dores, seu sofrimento, angustia, um caminho trilhado por lutas, derrotas e vitórias que fizeram do povo negro um povo de raiz. Todavia, não temos aqui a intenção de discutir a música como linguagem, mas, sim, como um veículo de comunicação. Interessa-nos a idéia de não devemos entender a música como uma linguagem universal, e sim como um caminho universalmente utilizado num contexto social. Ela é utilizada pelos congadeiros como uma forma de venerar seus deuses e, como uma maneira de transmitir a seus pares os sentimentos ocultos dentro de seu ser. Durante a pesquisa notei que há um momento onde se experimentam as canções, como um ensaio onde se decidem se todos concordam se uma música será daquele jeito forma mais efetiva antes das saídas dos ternos, seja para um ensaio, apresentação ou leilão113. Tudo é ouvido e estudado cautelosamente pelos integrantes do grupo, e de pouco a pouco faz-se as letras das canções. Quanto à continuação e transmissão desse legado que nos é repassado através dessas músicas observamos que, os veteranos do Congado possuem a preocupação de transmitir aos seus as letras canções e ainda possuem a preocupação de instruir os novos integrantes dos grupos para que um dia eles possam ser presentiados com o ―dom da criação‖ 114 , podendo dar sua colaboração dentro do grupo trazendo novas canções, por exemplo. O que se percebe é que as cantorias enquanto registro, documento histórico trazem, em suas letras, e em sua performance como um todo, ritmos e danças, expressões que retratam a história, as crenças, as alegrias e todo o conjunto de 113 Pequena reunião onde prendas são leiloadas com o intuito de arrecadar dinheiro para a manutenção do terno. 114 Termo utilizado por Maria Lúcia em entrevista realizada no dia 23 de Março de 2008. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 ou se a batida terá aquele ritmo. Esses momentos de experimentação acontecem de 246 sentimentos e pensamentos rememorados pelos congadeiros. Nesse sentido a performance musical faz do ritual um momento de comunicações múltiplas, uma linguagem presente onde os participantes desse festejo apresentam à sociedade em geral suas particularidades, que despertam interesse e curiosidade, resultando em atribuições de importância aos congadeiros. Importância essa que não faz parte, socialmente, das suas vidas no cotidiano. Com a conclusão dessa pesquisa podemos perceber que a cantoria dos congadeiros ou mesmo as letras das canções que são escritas por esses agentes sociais são fontes históricas importantes para se pensar o presente, a sociedade como um todo, a cultura popular, a religiosidade, etc.. Os dados obtidos no trabalho de campo permitem refletir sobre o papel das canções nos rituais do Congado. De fato o Congado é uma prática de cunho religioso, entretanto, todo cortejo é perpassado pelo som dos tambores, gungas e o canto. Estudar o Congado, sem colocar as canções como elemento importante do ritual é desconsiderar um elemento ao qual o próprio grupo atribui um lugar de destaque. A música permeia e apóia toda a festa, promovendo uma certa hierarquia interna do grupo e atuando como elemento de identidade do terno. Podemos concluir assim que o Congado é uma prática toda centrada na oralidade. São muitos os momentos que compõem a festa e os meses de preparação dessa festa. Porém todos esses momentos são perpassados e apoiados pela música que é transmitida, criada e recriada através de gerações. Recolocar a essas apreender nos termos dos próprios atores sociais, processos de aprendizagem do sistema musical e suas devidas implicações referentes à contextualização, significação e execução das práticas ancestrais. Sabemos, porém, que não esgotamos a questão das criações musicais na festa do Congado, no entanto procuramos dar nossa contribuição no vasto estudo que se tem sobre o tema. O significado da composição musical no Congado se revela no contexto da unidade entre o material sonoro/musical e seus sentidos. Em se tratando de uma música vinculada organicamente à condução dos rituais, muitos desses significados são, de fato, acessíveis apenas aos participantes, pertencendo à dimensão mágica e hermética da festividade. Mas há toda uma gama de características cuja decodificação nos aproxima da percepção de seus valores essenciais (LUCAS, 2006). Ao analisar as composições dos congadeiros como enfoque mais específico nos processos de comunicação constituídos no ritual do Congado podemos concluir que o desempenho musical tem atuado como veículo de comunicação que traz em si um Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 composições improvisadas ou não, como elemento importante do ritual implica em 247 aglomerado de significados. Nesse sentido, a performance do congadeiro expressa todo um caráter religioso, as lutas, as imposições culturais, as tristezas e alegrias que um povo viveu no passado, mas que são reatualizados periodicamente, por pessoas que encontram, na expressão musical, uma forma de serem ouvidas, assistidas e valorizadas pela sociedade em geral. De modo geral, podemos afirmar que a religiosidade, a fé, a brincadeira, a aprendizagem, a expressão e a afirmação social, como todos os demais fatores e seus significados estabelecidos no contexto congadeiro, são rememorados, expressados e transmitidos através da performance musical. Essa performance vista apenas em uma época do ano significa, na verdade, para os congadeiros, algo inexplicável, que é vivido, experimentado e aprendido pelos sons e expressões do Congado. A palavra oral, assim, realiza-se como linguagem, conhecimento e fruição porque alia, em sua dicção e veridcção, a música, o gesto, o canto, e porque exige propriedade e adequação em sua execução, pois para ―que a palavra adquira sua função dinâmica, deve ser dita de maneira e em contextos determinados‖ (MARTINS, 1997). Todas as etapas dos rituais do Congado são permeadas pela música. A música faz-se indispensável para a experiência religiosa. Cremos que é através dessa música que se faz presente no ritual que os congadeiros melhor se expressam. Todos os momentos são preenchidos pelas vozes e pelos tambores, gungas e pantagomes. E utilizando-se das congadeiros, revelam a nós expectadores da festa, o universo rico que circunda a festividade do Congado da cidade de Ituiutaba-MG. Realizadas em maior parte coletivamente, as composições que ilustram a música são de todos e para todos, para louvar os santos homenageados e, como vimos, para cumprir muitas outras funções. Esse processo de comunicações distintas encontra no ritual do Congado vida e forma, que projeta em toda sociedade de Ituiutaba os costumes, as crenças, os mitos e as ações de homens que, com dignidade, celebram o que acreditam e gostam, demonstrando assim, que ocupam um espaço significativo no seu meio social, e que, durante o processo ritual do Congado, seus cantos e instrumentos lhes dão voz ativa frente à sociedade como um todo. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABREU, Martha. Cultura Popular: um conceito e várias histórias. In: ABREU, M.; Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 composições dos atores sociais esses instrumentos, unidos às vozes dos irmãos 248 ARROYO, M. Representações Sociais sobre práticas de Ensino e aprendizagem musical. Um Estudo Etnográfico entre Congadeiros, professores e estudantes de música. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1999. BRANDÃO, Carlos R. A cultura na rua. 2ª ed., São Paulo: Papirus, 2001. ____. O divino, o santo e a senhora. Rio de Janeiro. Campanha da Defesa do Folclore Brasileiro/FUNARTE, 1978. BOSCHI, Caio C. Os leigos e o poder: irmandade leigas e política colonizadora em Minas Gerais. São Paulo. Ática, 1986. BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: Lembranças de Velhos. São Paulo: Cia das Letras, 2000. CANCLINI, Nestor Garcia. As Culturas Populares no Capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1983; CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano – Artes do Fazer 1.Tradução de Ephraim Ferreira Alves. 6. ed., Petrópolis: Vozes 2001; KATRIB, Cairo Mohamad I. Nos mistérios do Rosário: as múltiplas vivências da festa em louvor a Nossa Senhora do Rosário – Catalão (GO). Uberlândia. Dissertação (Mestrado em História) –. Universidade Federal de Uberlândia, 2004. 244 p. LUCAS, Glaura. Os Sons do Rosário: Um estudo etnomusicológico do Congado Mineiro – Arturos e Jatobá. São Paulo. Dissertação (Mestrado em Artes) –. Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, 1999. 272 p. ____. Os Sons do Rosário: O Congado Mineiro de Arturos e Jatobá. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. 360P. MARTINS, Leda Maria. Afografias da Memória: O Reinado do Rosário no Jatobá. – São Paulo: Perspectiva; Belo Horizonte: Mazza Edições, 1997. NAVES, Fernanda Domingos; KATRIB, Cairo Mohamad I. Cultura Identidade e Religiosidade em Ituiutaba - MG. In: 4ª Semana do Servidor e 5ª Semana Acadêmica. 2008. Universidade Federal de Uberlândia. Anais... Uberlândia. 1 CD-ROM. PESAVENTO, Sandra J. História & História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2004. VOVELLE, Michel. Ideologia e Mentalidades. São Paulo: Brasiliense, 1987. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 MACHADO, Maria Clara Tomaz. Raízes fundantes da cultura popular no sertão das Gerais. In: REVISTA ARTCULTURA. Vol. 4, n° 4, Uberlândia; UFU, junho, 2002. p. 117-122. 249 SIMPÓSIO TEMÁTICO 4 – HISTÓRIA E LITERATURA Coordenação: Prof. Dr. José Josberto Montenegro Sousa e Profa. Ms. Suilei Giavara ESCRITORES TIJUCANOS: AS DIFICULDADES DE EDITAR E DIVULGAR SUA OBRA. ................................................................................................................................................... 251 Lúcio Antônio de Moraes Arantes HISTORIANDO COM LITERATURA: AÇÚCAR AMARGO DE LUIZ PUNTEL NA SALA DE AULA DO NONO ANO .................................................................................................... 256 Matheus Oliveira Knychala Biasi LA CASA DE BERNARDA ALBA: O GRITO DA LIBERDADE TOLHIDA PELO AUTORITARISMO .................................................................................................................. 263 Leandro de Jesus Malaquias O SERTÃO NO ROMANCE D‘A PEDRA DO REINO: CONSIDERAÇÕES DE UMA CARTOGRAFIA HISTORIOGRÁFICA NA LITERATURA ................................................ 270 Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 Jossefrania Vieira Martins 250 ESCRITORES TIJUCANOS: AS DIFICULDADES DE EDITAR E DIVULGAR SUA OBRA. Lúcio Antônio de Moraes Arantes Acadêmico do 6º Período de História da FACIP/UFU Noturno Recentemente escrevi um livro, e com ele vivi dilemas ao editar, pois Ituiutaba carece de editoras especializadas para este fim, apenas uma editora conta com profissionais capacitados para tal. Na divulgação e comercialização as dificuldades não foram menores. Neste projeto de pesquisa, abordei esse tema, achando perfeito para que pudesse entender o porquê destas dificuldades. Sei que não é algo regional, pois o País como um todo não é um País de leitores costumas, tanto que esta falta de cultura da leitura aflige intimamente a mim, aos nossos colegas de faculdade, amigos enfim, é um hábito não recorrente para as pessoas dedicarem seu tempo a leitura. Identificado com estes problemas, os objetivos traçados para o desenvolvimento deste trabalho foi, portanto, pesquisar este mercado editorial, saber que tipo de produção pede o mercado e qual produção tem saído das gráficas tijucanas e a importância de se criar uma Academia Municipal onde abriga além de literatos, outros artistas como da música e das artes a ALAMI (Academia de Letras, Artes e Música de Ituiutaba). Muitos escritores ou aspirantes a escritores sofrem para verem suas idéias, seus diferente, pois apesar de contar com muitas gráficas apenas uma é especialista na edição de livros, a gráfica EGIL (Editora Gráfica Ituiutaba Ltda.). Quando se tem um livro editado surgem os problemas de divulgação, além do pouco espaço na mídia, poucos pontos de vendas e na maioria das vezes faltam apoio até mesmo para um lançamento adequado. Porém após estas duas etapas vencidas, os poucos que sobram vêem surgir à dificuldade de alçar vôos mais altos, como emplacar um livro didático ou conseguir vendagem e reconhecimento em nível nacional. Pode-se destacar em meio a estas dificuldades, o escritor Luiz Vilela, que além de reconhecimento nacional, conseguiu incluir alguns de seus livros na literatura obrigatória de alguns vestibulares. Com o uso de uma bibliografia direcionada percebi melhor a importância do livro para formação das sociedades e compreendi que o embasamento teórico nos fornece mais argumentos para defender ou até mesmo criar uma idéia própria. Através das entrevistas realizadas vi a fundo as carências do mercado regional e as dificuldades reais de colocar um livro no mercado. Na pesquisa de campo comprovei o espaço Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 escritos editados ou transformados em livros. Em Ituiutaba, esta realidade não é 251 destinado aos autores tijucanos dado na Biblioteca Municipal, serve para facilitar a pesquisa de certo modo valorizando os escritores de Ituiutaba. Pesquisei também a defasagem quantitativa de publicações em relação ao mercado como um todo. Ao aprofundar na vida e obra de Luiz Vilela, maior nome da literatura Ituiutabana, compreendi que com talento, dedicação ao que se propõe e muito estudo, leitura, não importam as adversidades estudadas, você consegue seu espaço em âmbito nacional e no caso dele internacional. O ano de 2010 foi todo dedicado ao desenvolvimento das atividades acadêmicas, mesmo assim gerou um acúmulo de tarefas, textos e trabalhos para serem lidos, entregues ou mesmo discutidos. Em abril no afã de aprofundar na bibliografia me deparei com dois livros sugeridos pelo professor orientador Eduardo Giavara como bibliografia para meu tema e consegui ler e resenhá-los. O livro de Roger Chartier, ―A aventura do livro, do leitor ao navegador‖ o autor nos leva a uma viagem desde o livro manuscrito, porém por se tratar de um livro contemporâneo nos trás até a Internet, o que seria o livro eletrônico. Fazendo uma comparação desta revolução virtual que vivemos, com outras revoluções por quais os livros já passaram, também retrata com muito cuidado um tema recorrente não só para livros como também musicas filmes etc., que é a questão da pirataria, e as formas de proteger estes autores de serem usurpados pela Internet que se apresenta a maioria das vezes sem lei e sem autores. Para veiculação leitor e prenda sua atenção em meio tão diversificado de temas e questões. E o leitor por sua vez pode em tempo real, criticar, sugerir e até mudar a obra aumentando assim a interatividade entre leitor e escritor. Muitos destes leitores virtuais que o autor chama de leitores eletrônicos não passaram pelo velho hábito de ler em papel, gerações novas não adquirem este hábito, e agora com o ―e-book‖ que certamente pegou este autor de surpresa, acredito que seja ainda mais difícil instaurar o hábito da leitura tradicional nestes novos leitores, que o autor chamava de leitores do futuro. Que, aliás, hoje são do presente. Com a digitalização de livros pensa-se em uma biblioteca digital e universal, uma biblioteca sem fronteiras, se por um lado perde-se em direitos autorais, em proteção de obras, se ganha e muito na difusão do conhecimento. Chartier não acredita que se trata do fim do livro impresso, pois acredita nos velhos hábitos e na possibilidade de existirem mídias que se entrelaçam, porém, como disse acima, o surgimento deste ebook, acredito que seja mais uma arma que aponte para o fim do papel, que além de ser Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 eletrônica, precisa-se de uma linguagem específica, um ritmo diferente que atraía o 252 ecologicamente mais viável, você poderá acessar bibliotecas, feiras, estantes virtuais, comprar e ler onde e quando quiser, e ainda: com a luz apagada. No outro livro ―O aparecimento do livro‖, os autores Lucien Fevbre e HenriJean Martin enfocam nesta obra exatamente o que seu título diz ―O Aparecimento do Livro‖, destacando a passagem do manuscrito para o livro já impresso e mostra como deve ser usado o livro para a história. Eles apresentam o livro como forma de catalogar idéias, expor pensamentos, que realmente antes do advento da internet, o livro tinha a exclusividade do poder de registrar fatos e pensamentos. De forma única o livro nos mostra os mais diversos resultados que uma obra publicada pode exercer em uma sociedade, até modificando-a, doutrinando-a de acordo com os interesses de quem as publica. Como exímios historiadores, os autores nos apresentam estudos desde o aparecimento do papel na Europa, as formas de ilustrações, as técnicas usadas na impressão e no desenvolvimento desde os caracteres até as ilustrações, assim como seu uso histórico de arquivos como a posteriori seu uso comercial principalmente depois do surgimento da imprensa no período do Renascimento, e assim com matéria e material, disseminarem a idéia do livro. O primeiro livro nos trás até o mundo digital e nos mostra os problemas e também vantagens deste novo modelo de leitura e propagação de idéias. No segundo que mostra os primórdios do livro, suas funções sociais e educacionais, e como disse acima doutrinadoras, desde o manuscrito até ao impresso. O que de certa forma uma leitura completa a outra cronologicamente falando. Dando continuidade a pesquisa fiz uma entrevista com Edson Ângelo Muniz, editor responsável pela gráfica Egil (Editora Gráfica Ituiutaba Ltda.), na entrevista percebo que a maioria dos livros por ele produzidos conta com apoio governamental. Para a gráfica a produção de um livro com mil exemplares cobrando em média R$ 4.000, 00 (quatro mil reais), e o tempo gasto na produção deste livro entre equipamento e deslocamento de pessoal a gráfica produzindo peças publicitárias faturaria três vezes mais, ou seja, pelo mesmo tempo que gastaria na edição de um livro, faturaria R$ 12.000,00 (doze mil reais). Edson também se mostrou preocupado com a inclusão destas novas mídias entre elas o ―E-book‖ e ―I-Pad‖, podendo ocupar os lugares dos livros como conhecemos até hoje. Ele se mostrou um apaixonado pela literatura e só isto explica o porquê de ainda editar livros com esta defasagem de preço em relação aos Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 para curiosos e estudantes, assim como aspirantes a escritores, é uma forte ferramenta 253 ganhos publicitários. Além da entrevista, coletei uma lista completa de obras editadas pela gráfica, de 98 até então, foram 96 livros até o dia dois de julho de 2010. Em pesquisa de campo na Biblioteca Municipal num total de 39.361 livros, verifiquei o espaço destinado aos autores tijucanos, e cataloguei todo acervo de obras locais, sendo 27 editados pela gráfica Egil, 28 livros de outras gráficas para os autores tijucanos. 10 obras do autor Luiz Vilela uma coleção da autora Alciene Ribeiro Leite, também de Ituiutaba com 25 livros, além de aproximadamente 10 livros feitos com aramado. A segunda entrevista seria com o escritor de reconhecimento nacional e internacional Luiz Vilela, retirei alguns adjetivos antes de apresentá-lo, pois ao conhecê-lo, entendi que antes o que eu julgava ser recluso é na verdade simplicidade de quem valoriza este ―modus vivendi‖ mais reservado, preservando sua intimidade não abrindo precedentes para não gerar futuras aporrinhações. Ele não me concedeu entrevista, mas não sem deixar claro os devidos meios em que eu poderia obter tais informações, no seu livro mais recente, Bóris e Dóris encontrei sua biografia e vi que no começo também pagou do próprio bolso para editar seu primeiro livro ―Tremor de Terra‖, enviando-o para um concurso em que foi premiado no mesmo ano de 1967, em 2006 lançou seu mais recente trabalho, esta novela ―Bóris e Dóris‖, somando assim 13 livros, sendo traduzido para diversas línguas e tendo contos consagrados em antologias romances. Ao conhecer mais de sua obra e conhecer melhor o autor tive oportunidade por algumas vezes de conversar com ele informalmente, notando uma pessoa observadora, extremamente solícita e até mesmos pelos seus personagens e seu trato com as pessoas da sociedade ele de forma alguma poderia ser uma pessoa reclusa como a priori o julguei. Este trabalho parecia muito autoral de início, aliás, como todos são, fui me surpreendendo no seu desenvolvimento justamente pelo oposto. O aparecimento de novas fontes, de novos enfoques para problemas antigos, de novas posições ―interpretativas‖ acerca de fenômenos conhecidos, tem tanta ou maior importância para o progresso historiográfico do que a rotulação de novos campos de pesquisa. (ARÓSTEGUI, 2006, p. 471) Embora tenha feito um recorte regional, a universalidade do tema é inevitável, através das obras estudadas percebemos o uso e a importância do livro para a história ao longo dos anos. E a partir do recorte conheci melhor a vida e a obra do escritor Luiz Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 nacionais e internacionais, além de adaptações para o teatro e televisão de seus contos e 254 Vilela. Fascinado tanto pela obra quando pelo autor, observei a magnitude que um simples conto pode alcançar, podendo ser filmado, traduzido para diversas línguas, absorvido por várias culturas diferentes, enfim quando um escritor consegue percorrer este árduo caminho problematizado neste estudo, as possibilidades de êxitos são muitas e imensuráveis as idéias que podem influenciar. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARÓSTEGUI, Julio. A pesquisa histórica: teoria e método. Bauru, SP: EDUSC, 2006. CHARTIER, Roger. A aventura do livro, do leitor ao navegador. São Paulo, SP: UNESP/IMESP, 1999. FEBVRE, Lucien. O aparecimento do livro. São Paulo, SP: Unesp, 1992 FONTES: Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 VILELA, Luiz. Bóris e Doris. Rio de Janeiro: Record, 2006. VILELA, Luiz. A cabeça. Rio de Janeiro: Cosac Naify, 2002. VILELA, Luiz. Tremor de terra. 1ª Edição. Belo Horizonte: Litador, 1967. 255 HISTORIANDO COM LITERATURA: AÇÚCAR AMARGO DE LUIZ PUNTEL NA SALA DE AULA DO NONO ANO Matheus Oliveira Knychala Biasi Acadêmico do curso de História da Universidade Federal de Uberlândia e integrante do Núcleo de Estudos em História Social da Arte e da Cultura – NEHAC Este trabalho é fruto de intensas reflexões e pesquisas em torno da temática literatura em sala de aula. Além disso, é desdobramento das atividades relacionadas à disciplina ―Seminário de Práticas Educativas‖, desenvolvidas nos cursos de História da Universidade Federal de Uberlândia, sob orientação das Professoras Maria Elizabeth Ribeiro Carneiro e Carla Miucci. Nesta perspectiva, procuramos alguma obra literária que se enquadrasse nos componentes curriculares do nono ano, que foi a série escolhida para a organização da mencionada aula, cuja necessidade se fazia em respeito aos critérios da referida disciplina, e que tivesse uma ligação com os elementos da vida dos alunos de tal série de ensino. Nesse sentido, escolhemos o título Açúcar Amargo, de Luiz Puntel. Esta obra, que compõe a ―coleção vaga-lume‖ possui o vocabulário extremamente acessível, bem como uma história instigante e, segundo nossa observação, trabalhar com ele Além de próxima, instigante, interessante e bem elaborada, a história de Marta, personagem central da obra, contribuiria para o lançamento de luz a inúmeros temas transversais, para lembrar-nos dos Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN‘s – que estão presentes na atualidade e que pontuam interessantes discussões que necessariamente devam ser travadas com alunos desta idade/série. Ora, neste livro encontramos a discussão de temas como o êxodo rural, questões atinentes ao gênero, bem como conflitos relacionados à adolescência. Acreditamos, enfim, que a leitura coletiva deste livro numa sala de nono ano possa enriquecer uma discussão que trate da leitura na sala de aula, bem como sua importância, etc. Em meados do século XX, consolidou-se no país um perigoso sistema educacional, pautado no então efervescente tecnicismo. Com sua consolidação, os conhecimentos que outrora eram concebidos no seu geral, ou seja, se tinha o conhecimento de matemática, filosofia, línguas, história e cartografia agora passam a ser Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 didaticamente seria algo muito salutar. 256 estudados e abordados separadamente, como se a separação contribuísse com a aquisição de conhecimento. O que se nota, porém, com a especialização do conhecimento, é que distâncias enormes foram surgindo entre as áreas, causando, muitas vezes abismos entre elas. Conseqüência, na escola, desta separação pode ser observada no que diz respeito à leitura. O que parece tão óbvio, que é a necessidade dela em todas as áreas do conhecimento, ficou praticamente ignorado. O que se procura defender, destarte, é que a leitura tem sido ligada apenas ao ensino de língua portuguesa. Não há estímulo da leitura nas áreas de matemática, geografia e, muitas vezes, nem mesmo na história, a qual deveria ser a mais estimuladora, dentre estas disciplinas. Esta problemática pode ser observada até mesmo nos cursos universitários nas áreas de exatas e biológicas. A leitura não é comentada, estimulada, tratada como deveria. Ficou subentendida como banal. Quem a faz o faz porque precisa, e somente isso. Neste sentido, pensamos nossa aula como um momento de conscientização, bem como de estímulo à leitura, procurando fazer saber o quanto está ligada às áreas do conhecimento e como o seu domínio pode corroborar com o melhor domínio de tais áreas. Houve, durante a apresentação deste trabalho, a constatação do que foi supracitado, para isso basta lembrar-nos dos diversos alunos que relataram a carência de estímulos à leitura durante o ensino fundamental e médio, bem como o quão ensino superior. Ou seja, enfrentamos, neste trabalho, uma problemática árida e será, por estar espalhada nas diversas instâncias do ensino. Com efeito, este trabalho nos fez perceber a importância da leitura no ambiente escolar e o quanto os alunos estão abertos para tal atividade. Na maioria dos casos percebemos que o que falta é estímulo. Muitas vezes o que eles precisam é de uma indicação, de uma menção a esta ou àquela obra literária para a tomarem na leitura. Sob este aspecto, e acreditando que, como afirma Sandra Jatahy Pesavento, ―a literatura é, pois, uma fonte para o historiador, mas privilegiada, porque lhe dará acesso especial ao imaginário, permitindo-lhe enxergar traços e pistas que outras fontes não lhe dariam‖ (PESAVENTO, 2006, p. 22), propomos uma abordagem didática relacionando história e literatura. Mais do que isso, pretendemos mostrar que é possível haver história na literatura. Ora, toda obra literária foi escrita em um contexto, com um autor imerso em uma condição econômica determinada, bem como a uma situação social específica, o que atribui ao livro características históricas inquestionáveis. Além disso, toda história Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 circunscrito ela fica ao ensino de língua portuguesa e as dificuldades que acarretaram no 257 narrada na literatura têm influência direta do momento vivenciado pelo autor, atribuindo à esta história, características do passado que se pretendeu abarcar, bem como do presente em que ela foi composta. Antes de expor as motivações que nos levaram a adentrar no universo da historiografia que encontra na literatura uma fonte, tão respeitada quanto às outras, é preciso lembrar que esta temática é extremamente nova e vêm se demonstrando extremamente profícua todas as tentativas de abarcá-la. O movimento da chamada ―nova história cultural‖, como apontam muitos pesquisadores, abriu espaço para estas pesquisas e permitiram que ela assumisse um lugar de destaque nas pesquisas historiográficas. Ora, foi, pois, neste contexto que se ampliou a visão do que poderia daí por diante, ser tratado por documento. A este aspecto, é necessário lembrar que A busca por novas fontes de pesquisa tem levado a historiografia a questionar o que pode ser considerado documento, e com isso seu conceito tem ganhado amplitude e modificado a hierarquização de seu valor. Conseqüentemente é transformado em documento tudo que traga algum tipo de informação, ou seja, qualquer meio pelo qual o homem se expressa torna-se fonte relevante para a pesquisa. (SILVA, 2006, p. 124) Assim, vale lembrar que mesmo com o surgimento desse leque de possibilidades de se trabalhar com as novas fontes, o rigor no trato com elas deve ser mantido e, em muitos casos, até mais intensificado, haja vista ao fato de que certas fontes requerem um profundo estudo teórico e muita experiência prática para que seja deva fazer um resgate dos métodos tradicionais de pesquisa, análise documental e escrita. O que se chama a atenção, porém, é que, como afirma Circe Bittencourt, Outro aspecto a ser levado em conta no processo de renovação é o entendimento de que muito do ―tradicional‖ deve ser mantido, porque a prática escolar já comprovou que muitos conteúdos e métodos escolares tradicionais são importantes para a formação dos alunos e não convém serem abolidos ou descartados em nome do ―novo‖. (BITTENCOURT, 2008, p. 229) Ou seja, apesar de tradicionais, algumas técnicas ainda são muito aceitas, difundidas e disseminadas comumente no ambiente escolar e, como evidenciou a autora, continuam a manter sua relevância e coerência no que diz respeito ao ensino. O que ficou claro, destarte, foi que o ensino de história com vistas à literatura e a difusão da leitura e o movimento historiográfico que privilegia o uso da literatura como fonte são os temas transversais que norteiam esta pesquisa, e o que tentaremos fazer adiante é tratá-los separadamente, embora, como defendemos ambos sejam, muitas vezes, indissociáveis. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 trabalhada de forma minimamente edificante. Isso, por outro lado, não quer dizer que se 258 Açúcar Amargo, de Luiz Puntel e sua abordagem didática A crise educacional brasileira reflete-se em diversos aspectos do ambiente escolar, das práticas educativas e das relações com o conhecimento. O que se percebe é que as mudanças nas relações e, mesmo nas condições de relação com os alunos e o preparo para isso, não foram acompanhadas pelo sistema educacional. Titula-se a isso como sucateamento da educação. Aqui preferimos tratá-lo por crise. A este respeito, é preciso lembrar de José Carlos Libâneo, quando ele, numa entrevista, assinala: Falar do papel da escola hoje implica reconhecer as transformações gerais da sociedade ligadas aos avanços tecnológicos e científicos, à reestruturação produtiva, às mudanças no processo de trabalho, à intensificação dos meios de comunicação, à requalificação profissional. [...] A escola tem concorrentes poderosos, inclusive que pretendem substituir suas funções, como as mídias, os computadores e até propostas que querem fazer dela meramente um lugar de convivência social. (LIBÂNEO, 2003, pp. 24 – 25) O autor, assim, chama a atenção para as intensas transformações que ocorreram na sociedade, sobretudo a partir da década de 1990, com o advento da internet, e como estas mudanças influenciam a vida dos jovens, bem como a relação deles com o mundo externo à mídia, ao computador, etc. Além disso, é possível nos questionar a respeito da relação entre o ambiente escolar e os alunos: até que ponto a escola acompanhou essas transformações sociais? Qual o papel da escola nessa nova situação em que encontra-se? Qual seu esforço em concorrer com as mídias? atender a estes alunos que acompanharam a evolução da ―panafernalha‖ tecnológica e a cada dia estão mais ligados a ela. Para Albuquerque Júnior, O desencantamento da escola, o desinvestimento social na vida escolar trazem para seu interior alunos e professores desmotivados, perdidos, sem objetivos claros, preocupados apenas com a chancela que esta oferece para investimentos futuros na vida, seus títulos e prebendas que passam ser o fim em si mesmo da vida escolar. (ALBUQUERQUE JÚNIOR, acesso em 16.09.2010) Concordando tanto com Libâneo quanto com Albuquerque Júnior, acreditamos que o ambiente escolar, a relação aluno-professor, professor-aluno e as práticas educacionais – estas embora palpáveis, estão muito distantes da realidade dos alunos – estão em crise de entendimento e, nesta perspectiva, insere-se nossa proposta de atividade didática, com o objetivo de apresentar uma forma de mudar esta realidade, mesmo que guardadas as proporções de tal problema, e mesmo de concorrer com as mídias e as leituras reducionistas propostas pelos resumos literários que possuem fácil acesso na internet. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 O que sabemos é que pouco ou nada se percebe de movimento educacional para 259 A obra literária que tomamos como guia desta atividade conta a história de uma adolescente, Marta, que por sinal cursava a oitava série do ensino fundamental, hoje nono ano, que morava na zona rural e estudava na cidade. Porém, em virtude da efervescência da monocultura de cana-de-açúcar na região em que morava, sua família foi expropriada da propriedade em que viviam e foram obrigados, pelas circunstâncias e pelas duras condições financeiras, a irem para a cidade, mais especificamente, para a periferia dela. Ocorre, nesse caso, o êxodo rural. Somado a esta situação de precariedade, Marta sofre preconceitos, por parte de seu pai, por ser mulher e não poder ajudá-lo no trabalho. Isso é um exemplo de questões relacionadas ao gênero. E, para piorar a situação, Marta passa por uma fase complicada, ora, a adolescência, na qual entra em conflitos com suas próprias idéias bem como com as do pai, etc. Neste arrazoado, que procura levantar algumas questões presentes no livro, se pretendeu mostrar que a literatura é um forte instrumento didático por elucidar ―a densidade de experiências sociais que acompanham objetos aparentemente banais, resumindo trajetórias de vidas e oferecendo nuances inesperadas na avaliação de seus diferentes momentos‖ (SILVA, 1995, p. 42). Assim, é possível afirmar, sobre esta atividade didática, que procura mostrar que é possível retirar história da literatura, ou seja, mostrar para os alunos do nono ano que a história não se circunscreve a documentos e monumentos antigos ou textos literatura, que muitas vezes dá continuidade a histórias que não se encontram em documento e nem no imaginário popular. Com isso, é possível demonstrar alguns elementos que também fazem parte desta pesquisa e que contribuíram para que ela ganhasse forma. Neste sentido, adiante mostraremos algumas nuances historiográficas relacionadas à linguagem literária como fonte para a história, bem como as linguagens artísticas de maneira geral. A relação História – Literatura como prática didática Este tema surgiu de nossa preocupação com o descaso, e mesmo crise, da leitura e a ausência de seu incentivo na escola. Além disso, também nos inquieta o fato de que ela, a leitura, geralmente fica unicamente sob a responsabilidade do professor de língua portuguesa, o que, segundo nossa observação, faz parecer que ela não se relaciona à história, à geografia e demais conteúdos. O que se propõe, portanto, é um Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 totalmente descolados da realidade em que estão inseridos, mas também na imortal 260 diálogo da história com a literatura, como um caminho que se percorre nas trilhas do imaginário, campo de pesquisa que passou a desenvolver-se significativamente no Brasil a partir de 1990 e que tem hoje se revelado uma das temáticas mais promissoras em termos de pesquisas e trabalhos publicados (PESAVENTO, 2006, p. 14) É imprescindível, numa proposta de aula, porém, que se delimite com mais precisão o tema a ser pesquisado. Assim, apresentamos o nosso, que pretende tratar da obra Açúcar Amargo, de Luiz Puntel, como um complemento de trabalho em uma turma de nono ano do ensino fundamental. A proposta se mostra relevante por se comprometer a instigar a leitura nos alunos e, sobretudo, mostrar a relação íntima que ela tem com a história. Entretanto, é impossível tratar de literatura na história, sem antes realizar uma reflexão sobre este gênero como fonte para os trabalhos ditos historiográficos. Para tal empreendimento, contamos com o auxílio de Pesavento que, por sua vez, pondera: A rigor, o historiador tem o mundo à sua disposição. Tudo para ele pode converter-se em fonte, basta que ele tenha um tema e uma pergunta formulada a partir de conceitos, que problematizam este tema e os constroem como objeto. (PESAVENTO, 2006, p. 19) Nesse trabalho, a literatura é aceita, sem resquícios de dúvidas ou frágeis receios, como fonte de inestimável valia. Assim, o que se pretende é o uso de tal obra literária para a realização de uma atividade didática que envolva literatura, temas sociais brasileiros, história e educação em perspectiva. O tema se mostra não somente viável, coerente e relevante, mas também necessário, tanto pela sua atualidade como pela diferentes resultados. Com efeito, história e literatura, a importância da difusão da leitura e a obra Açúcar Amargo são as referências deste trabalho. Pretendeu-se defender que a abordagem historiográfica que se utiliza da relação citada, história e literatura, deve procurar espaço nas atividades didáticas das primeiras séries de ensino, bem como nas seguintes, perpassando, com isso, pela importância da leitura em todas as áreas do conhecimento. Neste trabalho se defendeu uma atividade destas, utilizando a obra Açúcar Amargo. Porém, não desconsideramos a possibilidade de inúmeras outras literaturas, sejam elas mais profundas ou menos densas, servirem como base de sustentação para outras propostas didáticas. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 urgência com a qual o ensino se encontra em assumir novas posturas para alcançar 261 ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Por um docente que deforme: o docente na pós-modernidade. In: WWW.cchla.ufrn.br/.../durval/index2.htm. (acesso em 16.09.2010). BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de História: fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez, 2008. LIBÂNEO, José Carlos. A escola com que sonhamos é aquela que assegura a todos a formação cultural e científica para a vida pessoal, profissional e cidadã. In.: COSTA, Marisa Vorraber. A escola tem futuro? Rio de Janeiro: DP&A, 2003. PESAVENTO, Sandra Jatahy. História e literatura: uma velha-nova história. In.: COSTA, Cléria Botelho da & MACHADO, Maria Clara Tomaz (org.). História e Literatura: identidades e fronteiras. Uberlândia: EDUFU, 2006. SILVA, Floriana Rosa da. CDHIS: um espaço de reflexão sobre a história local: Cadernos de Pesquisa do CDHIS. Uberlândia: EDUFU, n° 34, 2006. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 SILVA, Marcos Antônio da. História: o prazer em ensino e pesquisa. São Paulo: Brasiliense, 1995. 262 LA CASA DE BERNARDA ALBA: O GRITO DA LIBERDADE TOLHIDA PELO AUTORITARISMO Leandro de Jesus Malaquias Programa de Pós-Graduação em Artes - UFU Mestrando – Teatro – Orientadora: Prof.ª Dr.ª Irley Machado Mergulhar na obra de García Lorca requer um minucioso trabalho para desvendar as finas camadas que brotam de seus textos dramáticos e poemas. À medida que adentramos em suas obras, novas perspectivas se apresentam numa infindável viagem por palavras que enlaçam o mistério de seu sentir e existir. Simone Passos declara: ―Tratar da dramaturgia poética de Federico García Lorca significa olhar ao redor, sentir e reconhecer na natureza forças sempre presentes na vida do homem. Sua obra está embebida de afetos e paisagens da Espanha‖ (PASSOS, 2009, p. 18). Lorca, estimado por muitos como o melhor poeta e dramaturgo espanhol, se anuncia como produtor de uma magia que envolve a criação de seres com características intrinsecamente reais e surreais. Suas obras repletas de poesia criam uma atmosfera excitante, um ambiente que estimula a receptividade do leitor e o eleva ao êxtase, onde despertam aversões e desejos, capazes de provocar um intenso clima emocional. O [...] ―el teatro es la poesia que se levanta del libro y se hace humana. Y al hacerse, habla, grita, llora y desespera. El teatro necesita quelos personajes que aparezcan en la escena lleven un traje de poesia y al mismo tiempo se lês vean los huesos y la sangre (GARCÍA LORCA, 1972, p. 54). García Lorca é um poeta, de um período que compreende do final da Primeira ao início da Segunda Grande Guerra e, embora seu teatro não se caracterize por uma militância política explícita, é possível percebermos em sua dramaturgia claros indícios da incerteza emocional que perpassa a Europa em uma época abalada pela situação de guerra. A Guerra Civil espanhola foi o episódio mais trágico que ocorreu antes da 2ª Guerra Mundial. Nela estiveram presentes todos os elementos militares e ideológicos que marcaram o século XX. A Espanha foi dividida em duas partes, onde de um lado se posicionaram as forças do nacionalismo e do fascismo, aliadas as classes e instituições tradicionais da Espanha que se resumiam em: o Exército, a Igreja e o Latifúndio, e, do outro a Frente Popular que formava o Governo Republicano, representando os sindicatos, os partidos de esquerda e os partidários da democracia. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 poeta afirma: 263 Em agosto de 1936, o poeta foi atacado e fuzilado por um grupo de falangistas, nas proximidades de Granada por simplesmente ―ser mais perigoso com as palavras do que com uma arma na mão‖ (GIBSON, 1989, p. 230). Escondida sob uma cortina de sangue, Andaluzia soluçava o fuzilamento de seu mais fiel amante: Federico García Lorca A poesia para Lorca era um belo estado de espírito, uma maneira que ele encontrava para observar a vida e através dela desvendar todos os mistérios. Graças a sua singela limpidez de estilo na escrita, sua atividade literária o transformou querido por todos, e, se ainda estivesse vivo, estaria mais perto da alma popular, traduzindo nos seus versos, as ânsias, a eloqüência, a atormentada sensualidade e os encantos de sua gente. O entusiasmo criador de García Lorca não foi somente expressa no campo da literatura, e sim também através da ação cênica, pois diferentemente de muitos dos autores espanhóis que o antecedem, o poeta teve intensa experiência no palco. Ou como foi definido por Ian Gibson: [...] Para Federico o teatro não foi alguma coisa nova ou diferente de seu trabalho habitual, mas uma síntese de todas as suas vocações. Muitas das poesias que não escreveu assumiram forma e humanidade no teatro, como se García Lorca as amasse com maior ternura (GIBSON, 1989, p. 456). Embora García Lorca fosse partidário da república Espanhola, são raríssimos na ação deliberadamente contra-revolucionaria do que de brutalidade estúpida. Em nenhuma de suas obras, García Lorca deixa tão claro a questão do sacrifício e da violência como em ―La Casa de Bernarda Alba‖. A personagem central da obra, Bernarda, desempenha um marcado poder sobre as filhas, e sua ação castra toda a possibilidade de realização erótica das jovens. Foucault diz: ―É numa boa proporção, como força de produção que o corpo é investido por relações de poder e de dominação‖ (FOUCAULT, 1984, p. 28). O ambiente onde se instaura o silêncio sombrio é visto como uma grande prisão, onde cada quarto é uma cela vigiada por vários olhares. Esse espaço ameaçador carregado de angústia, tristezas e amargura tornam o próprio respirar das figuras femininas da casa mais difíceis e dolorosas. Simone Passos diz: ―Vigiadas por mil olhos invisíveis, até os pensamentos dessas mulheres são sufocados‖ (PASSOS, 2009, p. 71). Segundo Irley Machado, no confinamento da casa, as janelas que se entreabre para o espaço externo se fecham para toda realização individual, e tudo que essas Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 sua obra os versos de significação política. A sua morte parece ter sido menos um ato de 264 mulheres podem fazer é espiar pelas frestas. Isso, só faz aquecer mais e mais a chama existente nos corpos cobertos pelo luto que devem durar oito anos: [...] Através das janelas, que deveriam servir como um espaço de comunicação se dá a repressão e a vigilância associada a um controle obsedante. O espaço urbano só pode ser vislumbrado através das janelas, mas não pode ser penetrado. Assim a casa com sua polaridade vertical e horizontal torna-se espaço de aprisionamento em que as grades do pátio são apenas uma metáfora do confinamento imposto pela matriarca a si própria, as filhas e as criadas (MACHADO, 2008, p. 01). Bernarda Alba representa o poder opressor que controla aquelas mulheres e delimita seu espaço no mundo. O confinamento em que essas personagens são submetidas é sem dúvida o fio condutor da peça. De acordo com Peter Szondi (2001), em meio à crise do drama, o confinamento é a possibilidade do diálogo, e o que existe dentro da casa de Bernarda Alba são palavras pungentes, que fazem sofrer, por que o diálogo não é de acolhimento, mas de incitação à violência. O poder que Bernarda tem sobre o corpo das filhas se transforma num castigo que atua profundamente, sobre o coração, o intelecto e à vontade das cinco jovens. Irley afirma: ―São mulheres prematuramente murchas e atrofiadas, envenenadas pelo autoritarismo e austeridade da mãe‖ (MACHADO, 2008, p. 03). Almas proibidas de se entregarem ao desejo. Essas corpos silenciados devido à disciplina rígida da matriarca geram o prisões como algo para moldar os corpos dos indivíduos, e o que Bernarda anseia dentro de sua ―prisão‖ é domar os corpos das filhas conforme as convenções sociais, pois o que importa mais do que tudo é a reputação e a honra de sua família. Dentro da crise sacrificial desses corpos emudecidos que gritam por liberdade constata-se a presença da violência, símbolo que parece fazer parte do momento histórico de uma Espanha em guerra em que vivia o poeta García Lorca. Segundo René Girard a violência só pode ser aplacada através de um sacrifício, para o autor ―a função do sacrifício seria, assim apaziguar a violência e impedir a explosão dos conflitos decorrentes de rivalidades cada vez mais crescentes‖ (GIRARD, 1990, p. 09). Na obra, a personagem que fatalmente será oferecida em sacrifício é Adela, a mais jovem, portanto a mais pura. Ela, não deixa se corromper pelos valores morais da sociedade e é a única que não se deixa contaminar pelo padrão de comportamento patriarcal, masculino, representado pela mãe. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 sacrifício corporal. Em seu estudo, Michel Foucault identifica a disciplina mantida nas 265 A personagem Adela se mostra corajosa e deseja além de enfrentar as convenções sociais e a ruptura de um silêncio abrasador, assumir o controle absoluto de sua própria sexualidade: "Tenho a honra de dar o meu corpo para quem eu penso! [...] O meu corpo vai ser de quem eu quero! (GARCÍA LORCA, 1972, p.143). O desejo que toma conta do corpo de Adela faz o silêncio ser devorado por um incêndio interno, são chamas que a consomem e a alimentam. Esse fogo contagiante não somente a queima, queima todos que se aproximam desse circulo, ou seja, usando as próprias palavras de Foucault, são cinco corpos em brasa ―condenados a virarem cinzas e suas cinzas lançadas ao vento‖. (FOUCAULT, 1984, p 11). A morte de Adela assume um caráter irrevogável que a reveste de mistérios e sedução, embora seja um tema presente, já que nenhuma das obras poéticas de García Lorca se encontra livre dessa ameaçante presença. Em seus primeiros livros, a morte é como um pressentimento, um triste vazio no ânimo de seus personagens, um mistério que sonda ameaçador. Essa morte cuja presença se manifesta com fria naturalidade, que se avizinha, de forma imediata vem, sem dúvida, carregada de uma simbologia espanhola amarga. As últimas frases em ―La Casa de Bernarda Alba‖ parecem o prenúncio sinistro da tragédia que estava por vir : "Nenhum lamento. É preciso olhar a morte de frente.‖ (GARCÍA LORCA, 1996, p. 149). morte da filha, exige que as outras permaneçam em silêncio, a tragédia deve ficar entre as paredes da casa, como elas: [...] Silêncio! [...] Cala-te, já te disse! [...] Lágrimas, só quando estiveres só. Havemos de nos afundar todas num mar de luto. Ela, a filha mais nova de Bernarda Alba, morreu virgem. Ouviram? Silêncio, silêncio, já disse: Silêncio!‖(GARCÍA LORCA, 1972, p. 149). O silêncio deve servir para aplacar o fogo que as consome por dentro. A marca desse elemento é o signo de pertencimento a toda potência das energias pânicas. São energias que se manifestam por meio de imagens que evocam o sagrado. Adela é o próprio elemento trágico do drama, vítima sacrificial dentro de uma comunidade familiar fechada, assim também como Lorca foi vítima sacrificial dentro de um sistema político social em crise, o que justifica os dizeres do próprio Raymond: ―a violência e a desordem estão presente na ação como um todo, da qual comumente chamamos revolução é a crise‖ (WILLIAMS, 2002, P. 93). Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 A dura reação de Bernarda é coerente com suas idéias e convicções: diante da 266 Por outro lado, Maria Josefa, mãe de Bernarda, vive fechada em seu quarto, pois é considerada louca. De todas as mulheres é a que sofre um isolamento dentro da própria casa de Bernarda e o mais prolongado, já que no início da obra, ela já aparece gritando por liberdade: ―Deixa-me sair, Bernarda!‖ (GARCÍA LORCA, 1972, p. 119). Para ela, existem dois obstáculos a serem vencidos: a porta do quarto e os muros da casa, ambos fechados pela decisão de Bernarda em manter o controle sobre tudo que acontece em sua volta. Bernarda Alba sabe do perigo das palavras de sua mãe, por isso a mantém trancafiada em seu quarto. Nesse aspecto, o corpo aprisionado sofre a relação de poder e de dominação. A loucura, porém, não está somente ligada às assombrações e aos mistérios do mundo, mas ao próprio homem, às suas fraquezas, às suas ilusões e a seus sonhos, representando um sutil relacionamento que o homem mantém consigo mesmo. Para Maria Josefa, a loucura não diz respeito à verdade do mundo, mas a verdade que ela distingue de si mesma e da razão. Foucault diz: Em diversos momentos da obra, Maria Josefa consegue fugir do quarto em fala se misturam loucura e verdade. Foucault afirma: ―Neste espaço, o louco não é visto mais como uma figura boba, e sim como o detentor da verdade‖ (FOUCAULT, 1972, p. 14). Por meio de sua própria verdade a personagem assume, a função de porta-voz do desejo das filhas de Bernarda: Maria Josefa: Escapei-me porque quero me casar, porque quero me casar com um belo homem a beira mar, já que aqui os homens fogem das mulheres. Bernarda: Cale-se mãe! Maria Josefa: Não, não me calo. Não quero ver estas mulheres solteiras ansiando pelo casamento, desfazendo em pó o coração. Quero ir para minha terra, Bernarda, quero um homem para me casar e para ter alegria. (GARCÍA LORCA, 1972, p. 119). Novamente, por meio desta personagem, tem-se a confirmação de que o casamento é visto por muitas das mulheres da casa como salvação, como recuperação da liberdade e da alegria de viver. Para Maria Josefa, já velha o anseio de felicidade e da alegria de uma união se configura como um desvario. É essa a forma encontrada pela Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 [...] Primeiramente, a loucura passa a ser considerada e entendida somente em relação à razão, pois, num movimento de referência recíproca, se por um lado elas se recusam, de outro uma fundamenta a outra. Em segundo lugar, a loucura só passa a ter sentido no próprio campo da razão, tornando-se uma de suas formas. A razão, dessa maneira, designa a loucura como um momento essencial de sua própria natureza, já que agora ―a verdade da loucura é ser interior à razão, ser uma de suas figuras, uma força e como que uma necessidade momentânea a fim de melhor certificar-se de si mesma‖ (FOUCAULT, 1997, p. 36). 267 personagem para fugir a todas as regras e superar por meio da demência, a realidade adversa que lhe permite criar um mundo apenas dela. Um mundo onde a paixão é possível. A paixão, além de fazer parte das causas distantes da loucura, também está bem próxima do corpo e da alma por ser a "superfície de contato entre ambas" (FOUCAULT, 1972, p. 226). Enfim, anseios, loucuras, tristezas, invejas e ciúmes fazem parte deste grande conflito que cobre a casa de Bernarda Alba, o fogo e o desejo da liberdade que consome o corpo dessas mulheres evocam as pulsões do sangue, fazendo-as despertar de um sono eterno. A loucura de Maria Josefa pode ser considerada na mesma proporção da paixão que toma conta do corpo de Adela, fazendo-a querer viver sua sensualidade. As ações de Maria Josefa e Adela também podem ser vistas dentro de uma mesma ótica de evasão do mundo real e racional para o mundo dos sentidos, o mundo emocional e o da desrazão. São personagens de extrema complexidade que carregam em si as marcas externas de um regime patriarcal que se outorga o direito de controlar seus pensamentos, seus corpos e suas emoções mais íntimas como se pudesse penetrar na Referências Bibliográficas BACHELARD, Gastón. A Psicanálise do fogo. São Paulo: Martins Fontes, 1999. FOUCAULT, Michel. A História da Loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 1997. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: história da violência nas prisões. Rio de Janeiro: Vozes, 1984. GARCÍA LORCA, Federico. Obras completas. Madrid: Aguilar, 1972. GARCÍA LORCA, Federico. L a Casa de Bernarda Alba. Madrid: Cátedra, 1996. GIBSON, Ian. Federico García Lorca: uma biografia. São Paulo: Globo, 1989. GIBSON, Ian. La represión nacionalista de Granada en 1936 y la muerte de Federico García Lorca. Espanha: Ed. Ruedo ibérico, 1971. GIRARD, René Girard. A violência e o sagrado. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 1991. LEIBENSON, Claude. Federico Garcia Lorca: imagens de fogo, imagens de sangue. Harmattan, France, 2006. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 própria psique feminina e moldá-la a seu gosto. 268 MACHADO, Irley. A Casa de Bernarda Alba: As janelas do confinamento. Universidade Federal de Uberlândia. Uberlândia, 2008. PASSOS, Simone Aparecida dos. Mulher, desejo e morte: dramaturgia e sociedade no inseparável triângulo de García Lorca, 2009. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Uberlândia, Programa de Pós-Graduação em Letras, Uberlândia, 2009. SZONDI, Peter. Teoria do Drama Moderno. São Paulo: Cosac & Naif, 2001. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 WILLIAMS, Raymond. Tragédia Moderna. Tradução Betina Bishof. São Paulo: Cosac & Naify, 2002. 269 O SERTÃO NO ROMANCE D’A PEDRA DO REINO: CONSIDERAÇÕES DE UMA CARTOGRAFIA HISTORIOGRÁFICA NA LITERATURA Jossefrania Vieira Martins Mestranda em História pela UFRN A partir de agora adentramos no terreno fértil e complexo da história e sua relação com diferentes formas de discursos, no meio do caminho está a complexidade da própria escrita da história. Segundo destaca Michel de Certeau (2001) a ―operação historiográfica‖ é perpassada pela problematização da prática e do discurso histórico. Uma prática que lida constantemente com fontes, rastros, métodos e um discurso que se produz sempre e psicanaliticamente na sua relação com a morte. 115 Atravessado pelo caráter fugidio do tempo e pelas lacunas da memória, o historiador constrói um saber agenciado por lugares, contextos e intencionalidades, ou seja, o discurso histórico tem uma complexidade que o envolve e norteia. A relação com o passado que busca recuperar ou reescrever é demarcada por tramas sociais e institucionais da própria história enquanto ciência. O gesto inicial, o gesto que demarcada esse cordão umbilical do historiador e de toda produção histórica com seu tempo e seu rigor científico é a ―ação que une as idéias aos lugares‖, uma ―ação de corte‖ que define objetos e as estratégias para dizê-los, para torná-los ditos historiograficamente. o discurso histórico debruçando-se sobre as teias de sua fabricação. Para tanto, tal reflexão é sedenta de alargar o campo de ação do historiador, apresentando-o novos problemas, objetos e temas e é nesse sentido que um olhar sobre o tratamento dado a categoria ―espaço‖ no discurso historiográfico situa-se. Inspirados ainda no pensamento de Michel de Certeau (1994) nos voltamos à relação entre a historiografia e a produção de espacialidades destacando as ―práticas do espaço‖ através do discurso histórico, ou seja, verificando como o espaço é praticado discursivamente na história, como ele ganha significação e é produzido pela escrita da história. Afinal, as ―ações narrativas‖ também gerenciam e identificam os espaços, lhes dão rosto, roteiro. Na trama dessa ―narratividade espacializante‖ estão os relatos que caracterizam historicamente a experiência dos homens com os espaços; uma experiência que perpassa as fronteiras das práticas cotidianas e se que assim se complexificam também metaforicamente no discurso historiográfico. A linguagem permeia as ações 115 Apontamento feito por Paul Ricouer (2007). Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 A atitude historiográfica é, portanto aquela que questiona, pensa e complexifica 270 sensoriais e uso do espaço bem como as suas significações discursivas, os seus conceitos, a eterna ―vontade de dizer‖ e ―tornar dita‖ a experiência e a concepção espacial. Como se pode perceber, a historiografia está permeada de metáforas espaciais, ela própria acaba por caracterizar-se como uma ―cartografia do histórico‖. Nesse sentido, os caminhos de nossa reflexão sobre o espaço se debruça na dimensão simbólica do espaço. Nas tramas de uma história cultural e simbólica das espacialidades, navegamos na experiência discursiva sobre o espaço presente entre as veredas da história e a literatura. Nossa reflexão caminha, portanto no sentido de problematizar historiograficamente o sertão apresentado por Ariano Suassuna em sua obra o Romance d‘A Pedra do Reino e príncipe do sangue do vai-e-volta publicado em 1971. Antes, porém de enveredar-nos pelo sertão suassuniano, situemos nosso temaproblema no âmbito da relação sempre conflituosa e instigante entre a história e a literatura. A relação história/literatura resulta do engajamento interdisciplinar e da variedade de objetos disponíveis para serem pensados historicamente na produção historiográfica atual e assim campos de discussão, possibilidades de diálogos e objetos vastos passam a fazer parte do trabalho e do interesse do historiador. Uma obra literária revela sempre uma forma de ver o mundo, o tempo e as relações humanas, em diferentes contextos agencia identidades e conceitos que não trama e a produção da mesma. E assim, contando-nos ―histórias fictícias‖, a literatura nos informa de realidades variadas e reescreve esses contextos em perspectivas próprias, tal processo por si só já se revela histórico. Não somente é perceptível a presença da história, de momentos históricos, de fatos históricos que inspiram obras literárias, nelas também se descortina a historicidade no próprio processo de reescritura da experiência humana sob olhar artístico. Vista desse modo, a literatura ultrapassa mera condição de fonte nas pesquisas históricas e passa a ocupar o lugar de ―problema histórico‖, pela complexidade do seu discurso, pelas representações que agencia em diálogo permanente com a realidade social e por estar situada como uma prática cultural histórica. Um caráter historiográfico rege a literatura emaranhando-se no seio de suas versões, de suas estratégias de dizer e tornar dito, no traço peculiar de sua narratividade. Partindo de tais reflexões aportamos na produção literária de Ariano Suassuna, mas especificamente no sertão significado e apresentado no Romance d‘A Pedra do Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 necessariamente estão deslocados da realidade social e histórica em que se situa a sua 271 Reino. Cabe destacar que o espaço que perseguimos em nossa pesquisa situa-se em um texto literário, ou seja, é uma construção discursiva, uma imagem idealizada e significada no decoro e na liberdade que as palavras têm no fazer literário. Sendo assim, os espaços também são construídos historicamente pela produção escrita, eles também são objetos das mais distintas formas discursivas e a própria dimensão narrativa dos espaços tem uma historicidade. Aportamos então, nos espaços construídos na discursividade da literatura observando a tonalidade histórica dessa produção. O Romance d‘A Pedra do Reino é uma obra rica em temas, histórias, influências e enredos. Com notória habilidade discursiva, Suassuna transporta para a sua cena literária diversas tramas históricas subsidiando-lhes novos olhares. Em termos historiográficos, isso nos coloca diante da pluralidade de versões acerca de dados fatos e a constante possibilidade de repensá-los e reinterpretá-los. Recriação é uma das palavras de ordem de todo esforço de autoria de Suassuna, tanto é que o seu olhar sobre a história está envolto dessa condição. A tarefa de recriar já delimita, portanto a historicidade de tal processo. O sertão apresentado por Suassuna é emaranhado de algumas referências a fatos históricos que na narrativa do autor assumem uma interpretação e uma significação particulares. O autor parte da memória histórica de eventos de cunho messiânicopolítico ocorridos nos sertões utilizando-a como metáfora pontual de seu enredo. Assim, do sertão e ao mesmo tempo servindo de matéria simbólica para a recriação cultural desse espaço. Sob a direção de seu personagem-narrador, o bibliotecário Quardena, Ariano imbrica na trama do romance uma gama de temporalidades e contextos diversos. Ambientado na década de 1930, o Romance d‘A Pedra do Reino, traz à tona a tentativa de decifração do enigma da demanda novelosa que se dá no meio rural do sertão, mais precisamente nos limites da Vila de Taperoá e que envolve a priori a morte misteriosa do tio-padrinho de Quaderna, D. Sebastião Garcia-Barreto e o subseqüente desaparecimento ―profético‖ de seu filho Sinésio ambos ocorridos em 1930 e o reaparecimento de Sinésio em 1935, relacionando-os ainda aos acontecimentos messiânicos nos sertões pernambucanos em 1836-1938. Entre os fatos históricos retratados estão: a Coluna Prestes (1926), a Guerra de Princesa (1930) e a Intentona Comunista (1935). Tais fatos ligam-se na trama ao mistério que ronda o enigma da demanda novelosa narrada por Quaderna e confluem no Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 metaforicamente esses eventos adentram na trama significando a experiência histórica 272 período da Revolução de 1930, a qual é também um desdobramento da Guerra de Princesa ocorrida nos sertões paraibanos. Como lembra Sônia Lúcia Ramalho de Farias (2006) uma mescla de eventos políticos e eventos messiânicos situam o sertão no cerne de uma tensão entre as marcas da história e do mito demarcada pela temática do sebastianismo presente na obra. Há também uma fusão de espaços distintos, como, por exemplo, a Península Ibérica envolta de suas raízes medievais, a fronteira entre os sertões da Paraíba e Pernambuco, os espaços sacralizados nas narrativas bíblicas como o deserto da Judéia, a conexão entre os lajedos da Pedra Bonita em Pernambuco e aridez de Taperóa. Enfim, coabitam na idéia de sertão toda uma gama de realidades temporais e espaciais na tentativa de harmonizá-las num só discurso. O sertão passa a ser então, o cenário que abriga as lutas e dramas das mais distintas realidades geográficas. É preciso lembrar ainda, que nesse emaranhado de fatos históricos encontra-se o fato trágico que demarca a vida de Ariano Suassuna: a morte de seu pai, assassinado em meio aos conflitos políticos concentrados e disseminados nesses fatos. Interliga-se a história da Paraíba à história do Brasil no plano político, a ação comunista, os eventos messiânicos de um século antes bem como a alusão aos eventos messiânicos ocorridos nos sertões por todo o decorrer do século XIX e ainda nas primeiras décadas do século XX. uma das metáforas temáticas de sua trama. De natureza messiânico-sebastianista, seus acontecimentos situam-se entre os sertões da Paraíba e Pernambuco no período de 1836 a 1838. Por volta de 1836, um homem inspirado em folhetos de cordel e nos mais variados mitos milenaristas denomina-se o profeta de Dom Sebastião espalhando a idéia de que ali em pleno sertão pernambucano edificar-se-ia um reino liderado pelo referido rei, rompendo com as injustiças da terra e mergulhando de riquezas a vida de seus seguidores. Tal fato foi objeto de interpretação de cronistas do final do século XIX116 e perdurou também na memória popular tematizado heróico e assombrosamente versos de 116 Duas obras pioneiras se destacam dentre as narrativas publicadas acerca desse evento: em 1878, Tristão de Alencar de Araripe Júnior publica O reino encantado e, em 1875, Antônio Áttico de Souza Leite publica pela primeira vez no Rio de Janeiro a sua Memória sobre a Pedra Bonita ou Reino Encantado na Comarca de Villa Bella – Província de Pernambuco. Há ainda referências sobre o evento em Os Sertões de Euclides da Cunha e mais tarde, na década de 1930, no ano do centenário (1938), o romancista paraibano José Lins do Rego – um dos principais protagonistas do Movimento Regionalista – traz ao público Pedra Bonita. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 Em meio às trilhas sebastianistas, o autor toma o evento Reino Encantado como 273 cordéis. Na historiografia brasileira, uma forte névoa incide sobre o olhar acerca desses acontecimentos, que situados no corpus dos eventos messiânicos tem em Canudos o seu maior alvo de fortuna crítica. É importante destacar que eventos como a Serra do Rodeador, o Reino Encantado, Guerra de Canudos, a ação do Padre Cícero no Juazeiro do Norte entre outros são fortes ingredientes na construção de uma identidade mística e fanática atribuída ao espaço sertão e aos seus habitantes. Todavia o Reino Encantado e o seu adorno sebastianista são recuperados por Suassuna no Romance d‘A Pedra do Reino para além de uma avaliação histórica. Esse evento bem como os eventos políticos está a serviço de uma orientação estética que identificará e tomará o sertão como centro gravitacional.117 O fanatismo embebido do sebastianismo luso é um dos recursos do ―enobrecimento‖ do sertão e seu povo na ótica armorial do autor que na trama do Romance d‘A Pedra do Reino determina uma ligação hereditária nobiliárquica de Quaderna com seus ―ancestrais‖ do Reino Encantado. Na demanda de restituir metaforicamente o reino preconizado pelo sangue e luta de seus ―antepassados‖, o personagem se coloca no papel de novo rei do grande reino que é o sertão. O sertão passa a ter, portanto um status de uma Corte, gestada na ação dos homens que ergueram historicamente o Reino Encantado e que Quarderna através de uma ação poética busca recuperar sua nobreza e poder. Desse modo, o sebastianismo relacionado aos eventos de metaforicamente na trama para a composição de sua estética armorializante. Assim, revela Quaderna as faces bandeirosas de seu reino: Cada vez se enraizava mais, em mim, a decisão de tornar embandeiradas e cheias de chuviscos prateados as pardas, miseráveis e sangrentas aventuras da Pedra do Reino, tornando-me rei sem degolar os outros e sem arriscar a minha garganta, o que somente a feitura de meu romance, do meu Castelo perigoso e literário, possibilitaria. (SUASSUNA, 2007, p. 198). Como já foi assinalada, a retomada desse evento está ligada ao projeto estético armorial que também se inspira nos aspectos naturais desse espaço para compor um repertório de elementos que culturalmente o definem. Na verdade, ocorre uma 117 A estética armorial é marcada pela busca dos elementos ibéricos e medievais presentes na cultura brasileira, numa proposta que mescla os traços eruditos e populares, tendo como lócus central dessa demanda o sertão. (VASSALO, 1993). Nesse sentido, tal espaço é concebido na visão de Suassuna como reduto dessas ―permanências‖ culturais ibéricas, um ―reduto‖ cultural específico, fonte na qual deve beber a identidade cultural brasileira. Portanto, a proposta de um sertão armorial obedece à lógica de fusão de referências culturais diversas numa visão heráldica, nobiliárquica, hierarquizada do espaço. O principal elemento de inspiração dessa estética é o universo dos folhetos de cordel, a literatura popular da qual Suassuna pretende descortinar os aspectos e traços eruditos. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 1836-1838 constrói historicamente uma memória nobiliárquica do sertão, servindo 274 reinterpretação da natureza física do sertão tomando-a enquanto uma peculiaridade que se interliga as práticas culturais desse espaço. Constrói-se uma relação entre natureza e cultura na formulação da identidade espacial do sertão e, a visão de Ariano Suassuna não foge a esse problema, ao contrário, o articula às suas perspectivas. O discurso da natureza envolto de uma estratégia discursiva desenha um rosto cultural e peculiar desse espaço. Por conseguinte, antes de envereda-nos nas apropriações que Suassuna faz da natureza para confeccionar sua visão estética acerca do sertão, é preciso entender o tratamento dado a tal espacialidade no pensamento brasileiro. Sendo o sertão um dos elementos protagonistas de nossa história em diferentes aspectos e tramas, torna-se necessário verificar o seu lugar no campo de debates que o utiliza como matéria na concepção de nossa identidade natural, cultural e histórica. De um modo geral, muitas culturas interligam suas experiências e manifestações aos espaços que lhe sediam. Nesse sentido, os aspectos naturais, a caracterização natural dos espaços são utensílios demasiado fortes na construção de discursos de identidade. O clima, a vegetação, a relação de sobrevivência do homem com o espaço que habita são componentes que enredam a constituição da diferença, ou seja, a configuração de uma dada cultura em um dado espaço. Como bem destaca Maria Lígia Coelho Prado (1999), a natureza é um dos elementos mais freqüentes e fecundos na construção de identidades mais variadas dimensões é um objeto de identificação de culturas e histórias. Historicizando o sertão, Janaína Amado (1995) ressalta as vastas abordagens das quais esse espaço foi objeto; desde a própria ordem espacial à categoria cultural nos trabalhos no campo das artes e literatura até a sua apropriação no campo do pensamento social e a sua concepção desde a época colonial. Objeto das discussões científicas e artísticas, o sertão não deve ser entendido somente como cenário de histórias e manifestações artísticas, ao contrário, é preciso apreendê-lo também como objeto principal, como protagonista, como artefato construído e ao mesmo tempo construtor de representações, de inteligibilidades e identidades. Lúcia Lippi Oliveira (2000, p. 70) destaca a dubiedade dos discursos acerca da relação natureza/identidade nacional na história brasileira e salienta que o sertão, ou seja, as concepções de sertão também seguem esse mesmo condicionamento: O lugar geográfico ou social identificado como sertão acompanha este caminho, que recebe ora uma avaliação positiva, ora negativa. As definições do sertão fazem referência a traços geográficos, demográficos e culturais: Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 nacionais, regionais e mesmo continentais. Percebemos, portanto que o espaço em suas 275 região agreste, semi-árido, longe do litoral, distante das povoações ou de terras cultivadas, pouco povoadas e onde predominam tradições e costumes antigos. A força de seu habitante aparece relacionada à capacidade de interagir com a natureza múltipla. O cabra – o cangaceiro – aparece com a encarnação do herói sertanejo. Para além desses atributos, aparece no imaginário social a idéia de que não há um sertão, mas muitos sertões, e que o sertão pode e deve ser tomado como metáfora do Brasil. Por conseguinte, qual desses sertões é o sertão abordado por Ariano Suassuna? E em quais perspectivas? O seu sertão é logicamente aquele naturalmente erguido pelos cactos, aquele regido de uma fronteira a outra pela marca da caatinga, pelo solo pedregoso, pelo vento seco e abrasador, pelas queimaduras do sol, a escassez de água, a terra batida, os galhos desprovidos de verde numa natureza de um tom só: cinza. Um sertão percorrido por beatos esfarrapados, movidos por uma memória mítica além-mar, espaço regido pela ordem dos rifles de cangaceiros e fazendeiros, lugar atemporal, aglutinador de tempos e culturas diversas. Um lugar rico em histórias, um ―lugar praticado‖ pelas histórias, pelos relatos, pelos trajetos, pela memória. (CERTEAU, 1994). Espaço que vai do fanatismo à seca. Do sangue à Pedra. Da natureza à cultura. O sertão de Suassuna é essa ―ilha Brasil‖, lócus privilegiado da cultura nacional, metáfora da cultura brasileira, paraíso das autênticas manifestações populares, espaço edênico, sagrado, mitificado, carnavalizado, fonte e reduto da arte mais brasileira, mais ibérica, mais ocidental, mais ―armorial‖. esse espaço além de advir também de toda uma tradição de pensamento social que norteou historicamente a construção do recorte regional nordestino. Segundo Albuquerque Júnior (2001), Suassuna é bem um exemplo de onde desembocou o regionalismo tradicionalista da década de 1930. Pautado também na defesa da tradição como alicerce para a transformação do real, ele orienta toda a sua concepção de sertão compreendendo-o como último reduto espaço-cultural da tradição; lugar onde ainda reinam os valores ameaçados pelo processo de modernização e é a recriação dessas referências que norteia não somente a sua perspectiva acerca da cultura regional, mas a sua própria noção estética acerca da produção artística. É preciso notar ainda, que apesar de ser herdeiro de uma visão gestada no regionalismo tradicionalista, Suassuna destaca sempre a sua postura ―independente‖ distinguindo-se no sentido de não ter por tarefa mapear e construir um regional ―pitoresco‖, mas elencar nesse regional ―o espírito tradicional e universal‖ protagonizado no sertão. (SUASSUNA, 2008, p. 47). Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 Todo o seu olhar sobre o sertão é agenciado pela sua experiência pessoal com 276 Segundo Oliveira (2000), a identificação do sertão como lócus do autêntico permeia a história do Brasil, aliás, agencia uma memória histórica do país. Em meio à diversidade de nossas configurações naturais estão as fronteiras que propiciaram o tráfego e não somente a alteridade que envolve nossa cultura. O espaço tem, portanto uma função fundamental na fabricação de identidades seja em sua dimensão natural ou cultural, física ou simbólica. Na perspectiva de uma história dos espaços, a relação entre natureza e cultura configura diferentes identidades. Nesse sentido, Maria Lígia Coelho Prado (1999, p. 180) nos indica alguns caminhos teórico-metodológicos para o tratamento da natureza pelo historiador: Na perspectiva do historiador, a natureza pode ser entendida como um objeto sobre o qual se elaboram representações que carregam visões de mundo e contribuem para a gestação de imagens e idéias que vão compor repertórios diversos, entre eles, os constitutivos do território e da nação. A natureza torna-se, desse modo objeto de reinterpretação para os mais variados fins, inclusive políticos e ideológicos. (PRADO, 1999). No caso, do Romance d‘A Pedra do Reino, há uma finalidade estética que não deixa de estar pontualmente ligada a uma postura política, ou seja, a retomada do problema da natureza, não é inocente, decorre de um campo de intencionalidades onde vagueia o discurso de quem a utiliza A natureza não é, portanto, um objeto neutro, perscrutada pelo olhar supostamente imparcial do cientista ou pelo artista em busca da ―beleza pura‖. Suas representações são carregadas de idéias que produzem imagens e símbolos, contribuindo para compor o imaginário de uma sociedade. (PRADO, 1999, p. 197). Aplicando isso a análise do sertão no discurso de Suassuna, percebemos como um entrecruzamento da natureza com a cultura configura uma concepção estética e artística que toma esse espaço como protagonista, como palco central, identificando-o a partir de uma ligação entre certos elementos culturais e características naturais. As imagens da natureza são inspirações para a sua produção artística. Há uma defesa do aspecto natural, pois o seco e pedregoso serão transposições da beleza de sua cultura e assim, Suassuna inverte a interpretação da natureza do sertão direcionando-a para um processo de identificação que propõe tomar como ―belo‖ o que até então fora legitimado como ―feio‖. Notamos que a cultura interage com a natureza tornando-a objeto das mais variadas significações, operação visualizada no discurso de Suassuna. Em seus delírios Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 enquanto objeto de construção de uma visão de mundo: 277 poéticos, Quaderna apresenta um feixe de imagens do sertão, entrelaçando real e imaginação quando lhe ocorrem as ―virações‖: Muitas vezes já me aconteceu isso, quando nas tardes de muito sol, estou, por acaso, em cima do meu lajedo. Estou ali, em cima, olhando o Mundo sertanejo, fosco e empoeirado, porém já se animando de uma Coroa gloriosa que o Ouro do sol-poente vai lhe emprestando. Se, nesse momento, sucede passar por ali um Cigano, montado num cavalo cujos arreios estão enfeitados de moedas e medalhas, e o Sol começa a tirar faíscas nesses metais ou nas malacachetas incrustadas nas pedras, na mesma hora dá-se, em mim, uma ―viração‖; meu sangue e minha cabeça se incendeiam, e a realidade parda e afoscada se funde ao fogo do Sol e dos diamantes do sonho. O Sertão selvagem, duro e pedregoso vira o ―Reino da Pedra do Reino‖, e enche-se de Condes calamitosos e Princesas encantadas, eles vestidos de Pares de França das Cavalhadas, e elas de rainhas do Auto dos Guerreiros. O pobre ―tabuleiro sertanejo‖ vira uma enorme Mesa de Baralho, dourada pelo Sol glorioso e ardente. (SUASSUNA, 2007, p. 564-565). No caso de Suassuna, a natureza será um elemento de construção simbólica do espaço, criando imagens e sínteses acerca de um entendimento geral do que é o sertão. Para tanto, a natureza torna-se um dos conteúdos simbólicos que norteiam a sua concepção de sertão e, nesse sentido o próprio florescimento da visão armorial no campo do debate histórico e cultural da identidade brasileira vislumbra uma intensa trama no contexto de produção e concepção do que somos enquanto povo, espaço e história. (MORAES, 2000). Na estética armorial, o centro gravitacional de nosso entendimento enquanto povo e cultura é o sertão. Portanto, a cena armorial pertence à cena de representações de nossa cultura, as teias de nosso imaginário social, as Inspirando-nos nos apontamentos de Prado (1999) acerca da compreensão da natureza na pesquisa histórica, notamos que uma história que tome como objeto o espaço, não é feita apenas pelas questões materiais, mas também por um repertório de idéias, imagens e símbolos de uma sociedade constrói de si e para si mesma. O discurso, as estratégias simbólicas, os modos de representação também traduzem a tensão da realidade social, refletem a complexidade das experiências humanas. Sendo assim, caminhamos na busca de um sertão escrito percebendo como no espaço da escrita, dadas representações histórico-culturais delineiam a paisagem sertaneja e sob os sóis as lutas e mitos se destacam nas tramas históricas e literárias. Um jogo de representações rompe as fronteiras do espaço considerado empírico e instaura a possibilidade da construção de espaços subjetivos, confeccionados no emaranhado de referências que compõe o olhar do sujeito. Cabe então adentrarmos nas imagens, metáforas e identidades agenciadas para o sertão no Romance d‘A Pedra do Reino tendo Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 demandas de identidade que trafegam pela nossa história. 278 em vista a ótica armorial de Suassuna e o seu correspondente uso da natureza como matéria simbólica. O Romance d‘A Pedra do Reino está interligado ao projeto armorial criado e liderado por seu autor, um olhar ―armorial‖ rege a sua trama, o que consta na apresentação da obra identificada como ―Romance Armorial Brasileiro‖. Esse olhar ou estética ―armorial‖ redefine o lugar do sertão no âmbito da cultura. Dar corpo a idéia de um sertão armorialmente concebido, eis o desafio de Ariano Suassuna. Remetendo ao sentido e a linguagem heráldica, dos brasões, da nobiliarquia, o ―sertão armorial‖ faz uso da memória e aporta nas referências histórico-culturais desse espaço. Na metáfora do espaço pedregoso envolto de mitos, ele edificará criativamente as bases de um ―reino‖, ―o cenário de seu Nordeste é sempre o sertão das caatingas‖. (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2001, p. 169). Um sertão multifacetado por toscas paisagens encontra nos delírios poéticos do narrador Quaderna a inversão dessa perspectiva. Com olhos fisgados, ladrilhados pelas memórias da história e da cultura sertaneja, magnetizado pela peculiaridade de uma gama de elementos que compõem uma inteligibilidade do sertão e de seus sujeitos, Quaderna passa a representar na aparente feiúra da realidade sertaneja toda a grandeza de sua beleza particular. Tal espaço não é somente atravessado pela secura de suas plantas inóspitas e rachaduras do solo, para além dessas ―representações consagradas‖ acerca da paisagem sertaneja e dos reflexão. Uma reflexão que repousa em atribuir a todos esses aspectos um caráter positivo mediante a noção de particularidade que envolve esse espaço e suas manifestações culturais. Sendo assim, é preciso – num movimento de encontro da arte com a realidade – rever uma visão negativa construída em torno do sertão, pois nele também habita beleza e altivez. E assim Quaderna/Ariano apresenta o seu ―reino‖ emaranhado de histórias e imagens: Assim, aos poucos, ia se formando no meu sangue o projeto de eu mesmo erguer, de novo, poeticamente, meu Castelo pedregoso e amuralhado. Tirando daqui e dali, juntando o que acontecera com o que ia sonhando, terminaria com um Castelo afortalezado, de pedra, com as duas torres centradas no coração de meu Império. Este, espinhosos e meio adesertado, era integrado astrologicamente por sete Ramos: o dos Cariris Velhos, o da Espinhara, o do Seridó, o do Pajeú, o de Canudos, o dos Cariris Novos e o do Sertão de Ipanema. Era o Quinto Império, profetizado por tantos Profetas brasileiros e sertanejos, e cortado por sete Rios sagrados: o São FranciscoMoxotó, o Vaza-Barris, o Ipanema, o Pajeú, o Taperóa-Paraíba, o PiancóPiranhas e o Jaguaribe. Ali eu reergueria, sem perigo de vida, as Torres de lajedo do meu Castelo, para que ele me servisse de trono, de pedra-de-ara, de ninho de gaviões, onde eu pudesse respirar os ares das grandes alturas. Seria um Reino literário, poderoso e sertanejo, um Marco, uma Obra cheia de Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 seus desdobramentos nas noções de cultura e história, Suassuna propõe uma nova 279 estradas empoeiradas, caatingas e tabuleiros espinhosos, serras e serrotes pedreguentos, cruzada por Vaqueiros e Cangaceiros, que disputavam belas mulheres, montados a cavalo e vestidos de armaduras de couro. Um Reino varrido a cada instante pelo sopro sangrento do infortúnio, dos amores desventuras, poéticos e sensuais, e, ao mesmo tempo, pelo riso violento e desembandeirado, pelo pipocar dos rifles estralando guerras, vinditas e emboscadas, ao tropel dos cascos de cavalo, tudo isso batido pelas duas ventanias guerreiras do Sertão: o cariri, vento frio e áspero das noites de serra, e o espinhara, vento queimoso e abrasador das tardes incendiadas. Nas serras, nas caatingas e nas estradas, apareciam as partes cangaceiras e bandeirosas da história, guardando-se as partes da galhofa e estradeirice para os pátios, cozinhas e veredas, e as partes do amor e safadeza para os quartos e camarinhas do Castelo que era o Marco central do Reino inteiro. (SUASSUNA, 2007, p. 115-116). E é nesse espaço governado pela caatinga, que Ariano Suassuna apresenta seu ―reino amorial‖. Nesse sentido, o sertão passa então às dimensões de um ―reino‖ que originalmente mantém as raízes da cultura ibérica bem como agrega uma série de manifestações populares genuínas. Portanto, a representação do sertão como um reino na elaboração discursiva de Ariano/Quaderna remete a sua capacidade de fundir harmonicamente diferentes contextos. Se o evento do Reino Encantado ocorrido nos sertões na década de 1830 é o aporte inicial que justifica a compreensão do sertão como esse reino ―harmônico em suas diferenças‖, a ele se agrupa o contexto de circunstâncias históricas que corroboram na morte do pai de Ariano, bem como as influências espaço-temporais da tradição medieval ibérica que orientam as metáforas outras da construção do sertão como um REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: ALBUQUERQUE JÚNIOR., Durval Muniz de. A Invenção do Nordeste e outras artes. 2. ed. Recife: FJM, Ed. Massagana; São Paulo: Cortez, 2001. AMADO, Janaína. Região, Sertão, Nação. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol.8, n.15, 1995, p. 145-151. CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001. ______. A Invenção do Cotidiano. vol. I. Petrópolis: Vozes, 1994. FARIAS, Sônia Lúcia R. O Sertão de José Lins do Rego e Ariano Suassuna, Recife: Editora Universitária da UFPE, 2006. OLIVEIRA, Lúcia Lippi. ―A conquista do espaço: sertão e fronteira no pensamento brasileiro.‖ In:______. Americanos: representações da identidade nacional no Brasil e nos Estados Unidos. Belo Horizonte, Editora da UFMG, 2000. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 reino. 280 PRADO, Maria Lígia Coelho. ―Natureza e identidade nacional na América.‖ In:______. América Latina no século XIX: tramas, telas e textos. São Paulo, EDUSP, 1999. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 SUASSUNA, Ariano. Romance d’A Pedra do Reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta. Rio de Janeiro: José Olympio, 2007. 281 SIMPÓSIO TEMÁTICO 5 – ESCRAVIDÃO: FONTES, HISTORIOGRAFIA E PERSPECTIVAS DE PESQUISA Coordenação: Prof. Dr. Aurelino José Ferreira Filho ESCRAVIDÃO: FAMÍLIA E MATRIMÔNIO DE ESCRAVOS NO ARRAIAL DE CAMPO BELO (1850-1880). .................................................................................................................. 283 Túlio Andrade dos Santos REGISTROS DE ÓBITOS DE ESCRAVOS E IGREJA: TRIÂNGULO MINEIRO 1873 A 1889. PERSPECTIVAS DE PESQUISAS E DESAFIOS METODÓLOGICOS ..................... 291 Gláucia Silva Souza IGREJA CATOLICA E A ESCRAVIDÃO AFRICANA NO TRIANGULO MINEIRO OITOCENTISTA: PROPRIEDADE DE CATIVOS NAS FREGUESIAS DE CAMPO BELO, SÃO JOSÉ DO RIO TIJUCO E VILA DO PRATA................................................................. 299 Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 Pedro Affonso Oliveira Filho, Paula Marcele Ferreira Oliveira e Aurelino José Ferreira Filho 282 ESCRAVIDÃO: FAMÍLIA E MATRIMÔNIO DE ESCRAVOS NO ARRAIAL DE CAMPO BELO (1850-1880). Túlio Andrade dos Santos Aluno de graduação em História Universidade Federal de Uberlândia Faculdade de Ciências Integradas do Pontal A proposta deste artigo faz parte dos trabalhos do Núcleo de Estudos sobre a escravidão em Minas Gerais - NEEMG - com livros paroquiais de registros de batismo, registros de Matrimônio e registros de óbito, inclui sensivelmente levantar algumas considerações acerca do trabalho com documentação eclesiástica, como fontes para as pesquisas sobre escravidão na região do Triângulo Mineiro – Minas Gerais -, uma vez que a entrada de escravos na região teve início já com a chegada dos seus primeiros colonizadores, oriundos de regiões mineradoras, em função do declínio da mineração que se caracterizava desde meados do século XVIII, e no início do XIX, com migrantes que se deslocaram do sul da província, para outras regiões, a procura de novas riquezas para as suas criações. Ainda este artigo faz parte do trabalho de Término de Conclusão de Curso (TCC), ainda em prosseguimento em conjunto com o Núcleo de Pesquisa sobre a nos arquivos da cúria da cidade de Ituiutaba e, cartórios da região do Triângulo Mineiro. Especificamente dialogando com livros paroquiais de registros de batismo e matrimônio de escravos, compreendendo o período de 1850-1880, atualmente localizados na cúria da cidade de Ituiutaba, propõe problematizar sobre a importância, possibilidades e limites de tal documentação para as pesquisas sobre famílias escravas nas pequenas e médias propriedades do Triângulo Mineiro no século XIX. Os arquivos da cúria possuem um corpo documental eclesiástico sobre a escravidão da região. Compreendendo, não somente a paróquia de São José, fundada em 1866 no atual município de Ituiutaba, como também, registros da paróquia Nossa Senhora Mãe dos Homens, fundada em 1835, no antigo arraial de Campo Belo, atualmente cidade de Campina Verde e a paróquia de São Francisco de Sales, fundada em 1850, no município como o mesmo nome, relativo à segunda metade do século XIX. Além dessas documentações, existem nos arquivos os livros Tombos, que são registros Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 Escravidão em Minas Gerais – NEEMG, registrado no CNPq, que se dedica à pesquisa 283 de festas, missas, reuniões etc., que não obedecem a uma ordem cronológica de espaço e tempo. Em meados do século XIX, as paróquias e capelas no Triângulo Mineiro faziam parte da província de Goiás, ou melhor, dizendo, pertencia eclesiasticamente a província de Goiás, pois até o início do século XIX, a região do triângulo Mineiro tomava-se continuação da província de Goiás. Por isso, alguns documentos encontram-se dispersos em algumas igrejas no atual estado de Goiás. Posteriormente no final do séc. XIX, aproximadamente em 1890, foi criada a diocese de Uberaba, passando, portanto, a responsabilidade e administração religiosa e por todo Triângulo Mineiro, sendo que só mais tarde se criou a diocese de Uberlândia. Encontrando-se também nesta diocese importante documentação sobre o tema para o Triângulo Mineiro. Em 1848, foi criado o município da Prata, desmembrando assim do município de Uberaba. Dessa forma, criou-se a comarca própria do município de Prata, o qual São José do Rio Tijuco (atual Ituiutaba) esteve ligado ao município até início do século XX, quando também se desmembrou. Sendo assim, nos cartórios do município Prata estão alguns dos principais testamentos de registros de terras, listas de escravos e inventários post mortem das famílias mais tradicionais, e, conseqüentemente, proprietárias de escravos da região do Triângulo Mineiro. Em 1984, foi criada a diocese de Ituiutaba, reunindo um importante acervo de livros de registros de batismo, livros de registro de região, sendo as mais antigas as paróquias de Campina Verde e a de Ituiutaba. O interesse pelo estudo da escravidão na localidade se deu a partir de um achado nos arquivos da paróquia (da atual cidade Campina Verde) de documentos do século XIX, referentes a escravos. Uma leitura cuidadosa destes registros nos revelou a possibilidade de estudar a constituição familiar dos cativos, e assim, conhecer mais de perto a trama que eles estavam envolvidos. Desse modo, compreender na medida do possível, a vida cotidiana destes indivíduos, os conflitos e tensões que permeavam suas existências. Enveredamos assim numa busca investigativa, de análise da documentação e leitura sobre pesquisas que abordam o período da escravidão. O trabalho com documentações paroquiais requer um minucioso trabalho de investigação, pois permitem ricas pesquisas no campo social e demográfico, além do mais, possibilita análises sobre formação familiar e aspectos culturais de determinado local e época. Os assentos de batismo, matrimônio e óbito, livros tombos, assim como, Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 matrimônio, livros de registro post-mortem e livros tombo de algumas paróquias da 284 as listas nominativas e mapas de população, referentes ao século XVIII e XIX, transformam-se em fontes de pesquisas. A pesquisa histórica é um processo de conhecimento, no qual os dados são apropriados e (re)elaborados para concretizar ou modificar as perspectivas referentes ao passado humano. A pesquisa se ocupa da realidade das experiências humanas que se manifesta na forma de fontes, as quais recorrem o historiador para obter informações sobre o que foi o caso no passado. Segundo Júlio Arostégui (2006), ―as pesquisas em história envolvem processos econômicos, políticos e sociais, cuja compreensão e análise exige um método específico‖ (AROSTÉGUI, 2006, pp. 92-93). Para ele, a pesquisa histórica pode ser entendida como uma pesquisa do passado e também temporal – articulação passado e presente e a observação direta da realidade -, de acordo com suas peculiaridades, onde se assemelha e distingue com outras ciências. As peculiaridades dos métodos que o historiador utiliza em seu objeto de pesquisa, vão além da simples análise das fontes, sejam elas vestígios ou relatos de documentos orais e escritos. Isso não que dizer que o historiador deve simplesmente transcrever o que está escrito nos documentos, mas construir ou pelo menos reconstruir o que estão nos documentos, mesmo quando há limitações ao retrocesso no tempo, para que se torne nítida as informações que as fontes oferecem. posições conforme as orientações teóricas que possuem. A teoria orienta a pesquisa e a produção do saber pela pesquisa, com as quais o pesquisador vai às fontes. Nesse sentido, os embasamentos propõem perguntas feitas pelo historiador que pré-formulam as repostas das fontes. As suas perguntas já contêm possíveis respostas, embora apenas ―possíveis não reais‖ (RÜSEN, 2007, p. 105). Com isso a elaboração de questionamentos e hipóteses de trabalho pertence à pesquisa imposta aos profissionais, colocando o historiador a partir do contexto social, a delimitar e objetivar o tema e escolher o método a ser utilizado na pesquisa. Dessa forma, a leitura minuciosa dos registros de batismo, matrimônio de escravos daquela paróquia poderá nos revelar a desvendar possibilidade de arranjos familiares, estudar a constituição familiar dos cativos na região do Triângulo Mineiro, pretendendo, assim, verificar como esses arranjos possibilitavam a resistência ao cotidiano escravista. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 Para isso, o historiador remete a escolhas no âmbito da pesquisa e assume 285 Nesse sentido, buscamos compreender a documentação, na medida do possível, estabelecer um entendimento destes de cativos - ou as possibilidades, dificuldades ou vantagens de constituírem famílias na escravidão - os conflitos e tensões que permeavam suas existências. Enveredamos assim numa busca investigativa, de análise da documentação e leitura sobre pesquisas que abordam o período da escravidão. As pesquisas com documentos eclesiásticos – embora não seja deferente para qualquer documentação – diz respeito à amostragem documental. Portanto, os resultados são sempre indefinitivos – como para qualquer pesquisa - e poderão ser alterados constantemente, a partir de outras pesquisas e aprofundamento na documentação em relação as suas conclusões. Não é uma tarefa fácil para o historiador. As fontes nos fornecem informações sem sentidos, como um quebra-cabeça, que aumenta cada vez mais o grau de dificuldade em juntar as peças, analisar os vestígios que estão ocultos nas entrelinhas. Portanto, é necessário que os historiadores voltem os olhos para esses acervos documentais, que precisam ser explorados, pois há muita história a ser contada. As investigações em registros paroquiais passaram a se constituir em fonte privilegiada para os historiadores que, segundo a pesquisadora Miriam Lott (2008), começou a surgir a partir da escola dos Annales na França em 1929, na medida em que propõe o alargamento do campo da história. Isso significa uma mudança nas pesquisas, acompanhar a trajetória histórica de uma vila, comunidade, cidade e até mesmo sujeitos desconhecidos. A análise dos documentos propõe colocar em evidência os indivíduos que foram marginalizados e esquecidos pela historiografia tradicional, embora os estudos sobre a escravidão foram um dos temas questionados durante décadas pela historiografia brasileira. A vida familiar de populações escravas só se consolidou como objeto de estudo legítimo muito recentemente, a partir da década de 1980, havendo algumas pesquisas isoladas no decênio anterior. No Brasil, os estudos sobre a escravidão começaram a se difundir a partir da década de 1950 e 1960. Enfocando, sobretudo as conseqüências da escravidão no Brasil. Florestan Fernandes e Roger Bastide, Emilia Viotti da Costa entre outros, questionam e criticam o quadro apresentado por Freyre, que segundo Suely Robles de Queiróz (1998), analisa a obra de Gilberto Freyre, descreve à visão do sociólogo pernambucano sobre a escravidão no Brasil como uma forma ―amenizada em relação com outros países Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 deixando de privilegiar a história dos grandes heróis ou grandes líderes políticos, para 286 escravocratas‖ (QUEIRÓZ, 1998, p.103). Esses historiadores ligados a Escola Paulista de Sociologia, visavam à possibilidade de se estudar a escravidão a partir da ótica do próprio escravo, adentrar as comunidades escravas e vislumbrar realidades antes inexploradas na história da escravidão no país. A partir da obra de Gilberto Freyre, publicado em 1923, começaram a surgir vários estudos a respeito da escravidão no Brasil e principalmente sobre a família escrava. O início da década 1980, foi marcado pelo processo de redemocratização política do país, viu o surgimento de uma série de estudos que buscavam trazer para a cena histórica a ação de homens marginalizados na sociedade. A maioria desses trabalhos foi influenciada pelas obras de Edward P. Thompson, ―sobre a classe operária inglesa do século XVIII, tal como o conceito utilizado pelos historiadores da escravidão‖ (ROCHA, 2004, p.37), juntamente com uma concepção própria daquilo que ele considerava como justo ou aceitável dentro do cativeiro. Apesar de tudo, a escravidão ainda tem sido tema mais debatido e discutido na historiografia brasileira, principalmente quando se refere à questão familiar entre cativos, relacionado a uniões estáveis, evitando assim problemas na venda do escravo, construção de laços de parentescos que evitaria as ―dessemelhanças‖ (GRAÇA FILHO; PINTO; MALAQUIAS, 2007, p. 188) entre os cativos, a morte do senhor que poderia representar uma ameaça e destruição familiar, o uso de registros de batismo para escravos etc.. As pesquisas sobre famílias cativas para diferentes regiões brasileiras apontam diferentes hipóteses sobre o escravismo no Brasil. Os documentos cartoriais, processos criminais, registros paroquiais e listas nominativas somaram-se aos já conhecidos relatos de viajantes e documentação oficial, e contribuíram para que, aos poucos, fosse sendo desenhado um novo panorama das relações familiares cativas no Brasil dos séculos XVIII e XIX. Os estudos sobre a constituição familiar cativa vêm juntar-se a produção recente e instigante, para o debate sobre escravidão no Brasil. Nesse caso, a pesquisa de Término de Conclusão de Curso ainda está em andamento. As documentações que se encontram nos arquivos da cúria estão incompletas e compõe grandes lacunas ou espaços vazios entre um período e outro. Portanto, os resultados não são definitivos e poderão ser alterados futuramente em relação aos valores conclusivos. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 ―identificar lugares de legitimidade‖ (ROCHA, 2004, p.43) e também posse dos 287 A documentação que se encontra na cúria, não está em condições adequadas para arquivamento dos registros escritos, isto é, a igreja que administra a guarda e proteção dos documentos, não observa as normas de planejamento de conservação. Os registros de batismo, matrimônio, óbito e livros tombos, estão sob a tutela do bispo, que é o responsável pela a conservação dos documentos. Da mesma forma, o local de guarda dos mesmos não possui ventilação, iluminação natural e muito menos equipamentos necessários para a conservação, ou seja, a cúria não possui uma política de conservação, o qual dificulta a leitura e transcrição dos documentos, além do mais, o acesso aos registros. Nesse sentido, os assentos de batismo da paróquia de Nossa Senhora da Mãe dos Homens, atual capela de Nossa Senhora da Medalha Milagrosa, estão registrados os inocentes (designação de batismo de crianças) e escravos adultos e casamentos dos mesmos, em um livro único, que datam 1850 – 1880, que tem um total de 345 registros de batismo e matrimônio, escritos em dois livros (batismo e matrimônio), separados somente por data e ano. Os registros eclesiásticos muitas vezes seguem normas ou regras básicas instituídas pela ―legislação sinodal‖ (LOTT, 2008, p.2), ou seja, normas eclesiásticas de registros que identificam a distinção entre um registro de batismo, casamento e óbito, entre pessoas de condição social e escravos. Além do mais, a análise dos documentos de pessoas livres, isto é, em um único livro registravam-se tanto os escravos quanto a população livre em geral. A partir desse estudo, podemos perceber a diferença, por exemplo, no o registro de batismo, que se dava por conta do nome do batizando, de seu pai (caso tivesse), mãe e dos padrinhos (escravos, pardos ou livres), constando apenas a cor da criança, idade, condição social e o fato de ser legítima (sacramentada pelo matrimônio) ou natural (fruto de uma relação consensual, não sacramentada). Nesse caso há possibilidade de fazer um estudo sobre a família escrava na região do Triângulo Mineiro? Os livros de batismo e matrimônio de Campina Verde foram reescritos em 1927, porém, contêm algumas falhas relacionadas às datas. A datação do documento encontra-se fora de ordem cronológica, principalmente o livro de matrimônio em que as datas possuem grandes lacunas entre um período e outro. Mas será que esse fato pode influenciar a originalidade do documento? A partir de algumas falhas documentais é possível trabalhar sobre o tema famílias escravas? São perguntas que propõe refletir acerca do próprio documento em conjunto com o andamento da Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 Campina Verde e também de Ituiutaba, não existe uma separação entre escravos e 288 pesquisa, de modo contribuir para a discussão acerca da escravidão na região, como também lance luz para futuras pesquisas. O presente trabalho em desenvolvimento busca descortinar as organizações familiares dos cativos, em meio ao emaranhado de informações, de nomes e datas presentes na documentação. Por outro lado, consideramos que este trabalho pode fornecer contribuições para as discussões históricas no Triângulo Mineiro, como também lança luz sobre a questão da constituição familiar entre os cativos em localidades não ligadas ao mercado exportador, onde predominavam pequenas e médias propriedades. O presente trabalho oferece algumas contribuições nesta direção, apresentando reflexões sobre a constituição familiar de cativos que estavam inseridos nestas paragens. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: CORRÊA, Carolina Perpétuo. Aspectos da demografia e vida familiar dos escravos de Santa Luzia, Minas Gerais, 1818-1833. Comunicação apresentada no XIV Encontro da ABEP, Caxambu, setembro de 2004. pp. 1-24. CORRÊA, Carolina Perpétuo. Comércio de escravos em Minas Gerais no século XIX: o que podem ensinar os assentos de batismo de escravos adultos. In: Anais do XII Seminário sobre a Economia Mineira, 2006. pp. 1-21. CUNHA, Maísa Faleiros. Reconstituindo Famílias Escravas. XV Encontro Nacional de Estudos Populacionais, ABEP, realizado em Caxambú, MG – Brasil, de 18 a 22 de setembro de 2006. pp. 1-16. FARIA, Sheila de Castro; SLENES, Robert W. Família escrava e Trabalho. IN: Revista Tempo, vol. 3 – n° 6, dezembro de 1998. pp. 37-48. GRAÇA FILHO, Afonso de Alencastro; PINTO, Fábio Carlos Vieira; MALAQUIAS, Carlos de Oliveira. Famílias escravas em Minas Gerais nos inventários e registros de casamento o caso de São José do Rio das Mortes, 1743-1850. Varia hist. [online]. 2007, vol.23, n.37, pp. 184-207. LOTT, Mirian Moura. Registros paroquiais: mudanças e permanências - século XIX. In: II Simpósio Internacional sobre Religiões, Religiosidades e Culturas, 2006, Dourados - MS. II Simpósio Internacional sobre religiões, religiosidades e culturas. Dourados: Editora UFMS, 2006. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 AROSTÉGUI, Júlio. A pesquisa histórica: teoria e método. Tradução: Andréa Dore; revisão técnica: José Jobson de Andrade Arruda. Bauru, SP: EDUSC, 2006. Pp. 85-96. 289 LOURENÇO, Luís Augusto Bustamante. A Oeste das Minas: Escravos, índios e homens livres numa fronteira oitocentista – Triângulo Mineiro(1750 – 1861). Uberlândia, Edufu, 2005. pp. 225-279. LUNA, Francisco Vidal. Estrutura da Posse de Escravos em Minas Gerais (1804). In: COSTA, Iraci del Nero da. Brasil: História Econômica e Demográfica. São Paulo, IPE/USP, 1986 (Relatórios de Pesquisa, 27). pp. 157-172. LIBBY, Douglas Cole. Transformação e Trabalho em uma economia escravista. Minas Gerais no Século XIX. São Paulo, Ed. Brasiliense, 1988. pp. 13-26. NASCIMENTO, Washington Santos. Famílias escravas, libertos e a dinâmica da escravidão no sertão baiano (1876 1888). In: Afro-Asia (UFBA), v. 35, 2007. pp. 143-162. QUEIROZ, Suely Robles Reis de. Escravidão negra em debate. In: FREITAS, Marcos Cézar (Org.). Historiografia Brasileira em perspectiva. 1° ed. Bragança: Universidade São Francisco/Contexto, 1998, v. 01. pp. 103-118. ROCHA, Cristiany Miranda. História de famílias escravas: Campinas, Século XIX. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2004. pp. 19-64. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 RÜSEN, Jörn. Reconstrução do passado: teoria da história II: os princípios da pesquisa histórica. Brasília: Ed. UNB, 2007. 290 REGISTROS DE ÓBITOS DE ESCRAVOS E IGREJA: TRIÂNGULO MINEIRO 1873 A 1889. PERSPECTIVAS DE PESQUISAS E DESAFIOS METODÓLOGICOS Gláucia Silva Souza Discente do curso de História da Universidade Federal de Uberlândia – UFU – Campus do Pontal Introdução Este artigo é fruto de uma pesquisa inicial junto ao NEEMG (Núcleo de Estudos sobre Escravidão em Minas Gerais / Diretório de grupos CNPQ) na qual venho buscando compreender as relações e as causas de morte entre escravos: como eram registradas essas mortes pela Igreja e como os senhores de escravos notificavam esses fatos, para, a partir destes dados, buscar conhecer as possíveis causas mortes entre escravos em sua fase mais produtiva na região do Triângulo Mineiro. Para realizar essa pesquisa utilizei os livros de registros de óbitos da Igreja Matriz de Ituiutaba, Pontal do triângulo Mineiro-MG, antiga Igreja Matriz de São José do Tijuco. Documentos que se encontram localizados na Cúria Diocesana dessa cidade. Vale ressaltar que esta não foi uma tarefa fácil, apesar do material se encontrar bem conservado pelo tempo, o acesso a esses livros não é uma tarefa fácil uma vez que tais documentos não se encontram totalmente disponíveis para pesquisa e se encontram sobre posse da Igreja. sobre escravidão na região, uma vez que a preocupação com a morte e o bem morrer tem suas origens em períodos bem anteriores à escravidão, podendo ser notada essa preocupação em Grécia e Roma, possuindo um significado diferente para cada grupo social. É importante notar que na região do Triângulo ainda se encontram vestígios desses escravos nas fazendas locais, instrumentos utilizados no cativeiro, como argolas em troncos, correntes com braceletes, gargalheiras, entre outros, fazendo com que o assunto, por mais que se queira esquecê-lo, ainda esteja bastante presente na memória da cidade. Escravidão: Igreja e assentos de óbitos. Durante a escravidão a questão da morte, assim como outras dimensões da vida, passava pelo forte domínio que a Igreja exercia sobre a sociedade escravista, embora a morte fosse vivenciada tanto por escravos quanto por homens livres, contrastando Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 O trabalho com óbitos de escravos torna-se bem interessante para as pesquisas 291 apenas no significado imprimido a esta por cada grupo social, sendo esta uma passagem tranqüila para alguns e passagem incerta para outros. Foi notória a forte influência que a Igreja exercia apoiando a escravidão e ―fechando os olhos‖ às formas de violência praticada pelos senhores de escravos: ... padres e ordens religiosas eram coniventes e cúmplices da escravidão. A Bíblia, argumentava-se, não proibia a escravidão e, afinal, o que importava era a liberdade civil. Além disso, padres eram empregados do Estado, cujos interesses tinham dificuldade em contrariar.‖ 118 Sendo assim, Igreja e escravidão caminhavam juntas, sendo que a Igreja era responsável por tentar acalmar os ânimos dos escravos, fazer com que estes aceitassem sua situação de submissão, convertendo-os para a fé católica para que estes, após sua morte, pudessem alcançar o paraíso. Os escravos se viam bastante acometidos por mortes prematuras e repentinas causadas por inúmeras doenças que se alastravam com muita facilidade. Alguns focos dessas doenças se davam dentro dos próprios navios que partiam da África rumo ao Brasil, e estas doenças eram agravadas pelas péssimas condições de higiene, de alimentação e pela ausência de instalações adequadas, o que gerava óbitos de muitos escravos durante a viagem. Sendo que vários sobreviventes, vendidos no Brasil, já se encontravam contaminados nos tumbeiros, e, uma vez nas senzalas, alastravam ainda mais os focos de epidemias. Para evitar o alastramento das doenças quando os escravos por volta de 10 dias, na qual ficavam de ―molho‖ em água salgada a fim de se descontaminarem. Falar sobre causa-morte nos assentamentos de óbitos de escravos não é uma tarefa fácil, pois em geral, a causa-morte do cativo era sempre negada nestes assentamentos, e quando constavam, foram assentadas com muito ―cuidado‖, uma vez que tais registros eram feitos pela Igreja, negando-se assim, na maioria das vezes, a relatar as verdadeiras causas das mortes dos escravos, e uma vez que tais registros de óbitos eram feitos por padres locais que não desejavam que violências praticadas pelos senhores da suas paróquias viessem à tona. Os livros de registros de óbitos da paróquia de São José do Tijuco, Ituiutaba, trazem singularidades nos assentamentos de óbitos dos escravos que nos permitem 118 CARVALHO, José Murilo de. ESPECIAL - ABOLIÇÃO EM OITO TEMPOS. (Revista de História da Biblioteca Nacional, Especial Abolição 120 anos, P 16, 2008). Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 aqui desembarcavam, estes eram colocados em uma espécie de quarentena que durava 292 levantar alguns questionamentos em torno das verdadeiras causas mortes dos escravos da região: No dia 15 de Fevereiro de 1886 no cemitério público desta igreja matriz, foi sepultado o cadáver de Beatriz, escrava de Antônio Teófilo, solteira com idade de 17 anos morrendo de moléstia desconhecida. (Livro de óbitos da Igreja Mariz de São José do Tijuco, p. 11). Ou seja, a escrava Beatriz tinha somente 17 anos e morreu de moléstia desconhecida, outros casos como estes são citados ao longo dos livros, ocorrendo uma grande oscilação entre as idades dos mortos, entre 16 e 35 anos de idade. A diversidade de causa-morte sugere que não havia um padrão de idade para a morte de escravos e ao mesmo tempo impossibilitava a predominância de uma determinada causa para as mortes, não havendo idade nem padrões pré-estabelecidos para que estas ocorressem. Os castigos corporais eram permitidos por lei e apoiados pela Igreja, sendo assim esta é uma das supostas causas do grande número de óbitos prematuros entre escravos. Sendo o catolicismo a religião oficial a Igreja responsável por realizar todos os assentos de nascimentos, casamentos e óbitos esta deveria manter-se numa posição dúbia em relação à escravidão, deveriam se limitar ao silêncio, pois assim garantiriam os óbitos resultados da violência senhorial passassem sem maiores alardes e conseqüências para o Clero e principalmente para os senhores de escravos. É possível notar uma grande diferença nos assentos de óbito de homens livres e de escravos, quando estes eram de homens livres traziam, em sua maioria, dados enterro, causa-morte, situação social. Enquanto nos óbitos de escravos constava apenas nome do escravo, do dono, origem, idade, sacramentos ministrados, caso tenham sido realizados, e detalhava a condição deste (se escravo, forro ou livre). Já em relação à causa morte dos escravos este era um dado praticamente ausente nos registros, só havia referências a esta quando se morria por acidente e, em alguns casos, indicando ―morte repentina‖, que era a mais comum. Já em outros encontramos como causa da morte ―tiro de espingarda‖, ―afogamento‖ entre outras causas que isentavam o senhor de qualquer culpa. O ser escravo era tão forte e presente na existência de um cativo, que mesmo quando o negro conseguia se libertar na morte, sua ex-condição social constava em seu assento de óbito, ―a liberdade não livraria o ex-cativo do estigma social, visto que geralmente no momento do registro de óbito de um liberto colocava-se a informação de Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 completos como o nome do defunto, do cônjuge e dos pais, idade, origem, lugar do 293 que ele fora escravo, evidenciando assim uma marca social que nem a morte conseguiria apagar.‖ 119 No dia 25 de outubro foi sepultado no cemitério publico desta igreja matriz o cadáver de Afio escravo de Francisco Andrade Souza com idade 40 anos mais ou menos. (Livro de óbitos da Igreja Mariz de São José do Tijuco). A expectativa de vida dos escravos não era muito alta, ocorrendo significativo número de morte entre os homens na faixa-etária dos 21 aos 40 anos, fase mais produtiva entre escravos. Já entre as mulheres, na região do Triângulo, ocorriam muitas mortes na faixa dos 16 aos 25 anos, existindo, entretanto alguns casos raros de escravos que conseguiam ultrapassar os 60 anos de idade. Esse grande número de mortes em idade produtiva nos leva a supor que estas se davam devido à violência aplicada nos castigos físicos. Violência esta difícil de ser percebida pelos pesquisadores sobre o tema, uma vez que, apesar dos castigos físicos serem comuns, os padres se limitavam - ao realizarem os assentos de morte - a não relatarem o que verdadeiramente tinha ocorrido, o que pode ser explicado pela sua dependência em relação aos senhores na manutenção de suas paróquias, relatando assim algo que não comprometesse ninguém. A presença da Igreja era vista por toda a parte da sociedade escravista, principalmente na morte dos escravos, pois estes eram enterrados por seus senhores de acordo com os rituais católicos. Mas nem todos os escravos que morriam possuíam o confirmação da verdadeira causa-morte destes, como é o caso da escrava Narcisa: No dia 21 de julho de 1884 foi sepultado no cemitério público desta igreja matriz o cadáver de Narcisa, escrava de José Esteves de Andrade Junior com 21 anos de idade, morrendo repentinamente, não recebendo encomendação e a benção por não estar o vigário na freguesia. (Livro de óbitos da Igreja Mariz de São José do Tijuco) Apesar da presença da Igreja nesses registros, torna-se necessário desconfiar dos dados contidos nestes, pois a morte não precisava ser presenciada pela Igreja como os demais sacramentos, daí surgindo à hipótese de que vários escravos podem ter sido enterrados sem o conhecimento e assento da Igreja, imprecisando ainda mais para o pesquisador o número de óbitos e suas possíveis causas. Escravidão: Igreja e Irmandades 119 NASCIMENTO, Washington Santos. Anais do III Encontro Estadual de História da Bahia, p 54, 2003. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 privilégio de terem suas almas encomendadas, o que impossibilitava ainda mais a 294 Os escravos, assim como todos, queriam ter uma boa morte, por isso passaram a se organizar em tornos das irmandades a fim de se prepararem para ter uma boa passagem. Essas irmandades realizavam um importante papel nas funções primárias como o enterro, sendo a principal delas, a Irmandade do Rosário ou Irmandade dos Irmãos Pretos de Nossa Senhora do Rosário. Entretanto, nem todos os negros conseguiam participar da irmandade devido às taxas cobradas, mas desperta a atenção o fato de que, assim como entre os homens livres, havia uma preocupação com a preparação para uma boa morte entre os escravos e mesmo que estes não vivessem um catolicismo pleno, entendiam a importância de ligar-se a uma irmandade para fazer seu ritual de passagem. A participação nestas irmandades pode ser percebida a partir do conteúdo de alguns assentos de óbitos como este: No dia 2 de outubro foi sepultado no cemitério publico desta igreja matriz o cadáver de João, escravo de Antonio Domingues Franco, com idade de 25 anos mais ou menos, morrendo de endropsia, recebendo encomendação do estilo. (Livro de óbitos da Igreja Mariz de São José do Tijuco) As informações contidas neste registro de óbito demonstram que havia toda uma preocupação com o ritual de passagem que permitiria a garantia da eternidade cristã, sendo vista pelos escravos como uma tentativa de amenizar os sofrimentos, as humilhações vivenciadas durante a vida, sendo a morte a derradeira esperança de se O número de óbitos se tornava mais impreciso ainda pelo fato da Igreja considerar ―inocente‖ crianças até 7 anos de idade, aproximadamente. Idade em que se encontravam dispensadas de receber os sacramentos, o que nos permite deduzir que vários dados se perderam nessa faixa etária de óbitos, pois existia um considerável número de mortalidade infantil entre as faixas de 0 a 2 anos de idade. Entretanto, um dado importante é que nesta faixa etária o número de óbitos de crianças escravas aproximava-se bastante do número de crianças livres. Por outro lado, era difícil o reconhecimento das doenças que geravam óbitos entre escravos devido à inexistência de médicos, sendo as mais citadas as ―moléstias internas‖, ―febres‖, ―tuberculose‖, ―moléstia desconhecida‖, entre epidemias que se generalizavam devido às condições precárias de vida, o que trazia a cena doenças que já haviam desaparecido como o escorbuto e outras que se ligavam a ausência de vitaminas no corpo e que era agravada pela péssima alimentação que estes recebiam. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 alcançar a tão sonhada liberdade que tanto lhe foi negada durante sua vida. 295 Pode-se supor que grande número de óbitos de escravos se dava principalmente pelos maus-tratos físicos, as más condições de moradia e de alimentação, a falta de atendimento médico adequado. Não se esquecendo de somar-se a isso o número de suicídios que esses escravos realizavam como forma de resistência à escravidão e o número de assassinatos entre os próprios cativos. No ano de 1874 conforme nos relata a Revista Acaiaca os escravos eram mortos por quaisquer motivos: Tríplice crime de grande repercussão na época foi de certo fazendeiro abastado, daqui, o qual desvairado pelo ciúme, certa noite enluarada atraiu a esposa ao quintal, apunhalando-a e enterrando-a em seguida. No dia seguinte, notada sua falta pela mãe da vítima, esta deu o alarma. Instaurado processo, 2 escravos foram arrolados como testemunhas capazes de elucidar o mistério. Atendendo à intimação judicial, mandou o senhor que os 2 escravos fossem ao arraial com gargalheira de ferro ao pescoço, ajoujados e tangidos pelo feitor. Este, cumprindo ordens do amo, ao passarem pela ponte do Tijuco, à vista do arraial, (a 1° ali existente), jogou os dois infelizes n‘água, os quais morreram afogados. Pouco tempo depois convolou ele as segundas núpcias. Contam os antigos que mais tarde andando o mesmo senhor pela caçada pelas margens do Tijuco, ao entra n‘ água rasa para colher uma capivara, faltou-lhe apoio, morrendo também afogado fulminado pela justiça divina que tarda mais não falta...(REVISTA ACAIACA, p.232) A partir desse relato podemos perceber que ser escravo era uma situação de domínio do mundo senhorial e eclesiástico também no tocante à morte, e, em vários casos, só restando ao cativo que esperasse a vontade de Deus para que esse fizesse justiça às formas de violência praticadas pelos seus senhores. Existe também outro esposa, mostrando que o período era marcado por inúmeros crimes, alguns se davam entre os próprios escravos, outros contra os seus senhores, e, em alguns casos, os senhores cometiam os crimes e colocavam a culpa em seus escravos que deveriam ir pra cadeia e pagarem a pena por eles. Crime rumoroso pela importância social da vítima foi à morte de D. Alexandrina, primeira esposa do Capitão Camilo Roiz Chaves, de Campina Verde, ocorrido na sua fazenda, e na ocasião ausente. Foi ela assassinada no leito, a golpes de machado por 3 escravas rebeladas Ângela, Romana e Maria. Julgadas e condenadas sofreram pena capital na Vila de Uberaba, conforme processo arquivado em Prata. A última mulatinha nova, apavorada comoveu até as lágrimas da multidão que assistia a cena. (REVISTA ACAIACA, p.232). Conclusão É importante notar que havia muitas causas-mortes entre os escravos, algumas são bem conhecidas outras são bastante questionáveis, mas o que podemos perceber é Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 relato de algumas escravas que aproveitaram a viagem do senhor para assassinarem sua 296 que os escravos morriam em maior número, seja pelo número das doenças que os acometiam, seja através do processo de resistência que estes desenvolviam, ou até mesmo pela tristeza de viverem sob a situação da escravidão que os negavam como pessoas, mercadorias que poderiam ser dispostas a hora que o senhor bem entendesse desfiliando-se assim de suas famílias, suas origens, seus costumes. A partir de tudo que foi exposto podemos supor que a violência com certeza não foi à única causa das mortes entre cativos, mas sem dúvida uma das principais, pois esta não se limitava apenas à esfera física, atingia a esfera psicológica e familiar destes. Sendo que em vários casos esperava-se apenas que a morte os levasse no desejo de que a partir daí pudessem realmente viver livremente, mesmo que em outro plano, ao invés de apenas existirem em uma sociedade que lhe era reservada apenas para o trabalho forçado com muito pouco espaço para que pudesse se realizar. REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS ARTIGO, Escravidão no Triângulo Mineiro: fontes e documentação. Anais do II Congresso Nacional, III Regional do Curso de História da UFG / Jataí. CARRARA, Ângelo Alves. Minas e Currais. Produção rural e mercado interno de Minas Gerais 1674-1807, Juiz de Fora, Editora UFJF, 2006. L. CONTI. A Igreja Católica e o Tráfico Negreiro: O Tráfico dos Escravos Negros nos séculos XV-XI. Lisboa 1979, p. 337. LOURENÇO, Luís Augusto Bustamante. A Oeste de Minas: escravos, índios e homens livres numa fronteira oitocentista. Triângulo Mineiro1750-1861. Uberlândia: Edufu, 2005. REIS, João José. Rebelião Escrava no Brasil: A história do levante dos malês em 1835. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. SLENES, Robert W. e FARIA, Sheila de Castro. Família escrava e trabalho. Revista Tempo. VIANA, Iamara da Silva. Morte de escravos, forros e livres na Vassouras oitocentista: uma análise comparativa 1840-1870. XIII Encontro de História Anpuh-Rio. FONTES 1° Livro de atas (Livro Tombo) da Igreja Matriz de São José do Tijuco, 1882. 1° Livro de registros de óbitos do cemitério público da Igreja Matriz de são José do Tijuco, 1884. Arquivo, Boletim Informativo do Arquivo Público de Uberaba, março 1995, nº 6, p.78. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 CHALHOUB, Sidney. Visões de liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. 297 Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 CHAVES, Camilo. Revista Acaiaca, Ituiutaba, 1950. 298 IGREJA CATOLICA E A ESCRAVIDÃO AFRICANA NO TRIANGULO MINEIRO OITOCENTISTA: PROPRIEDADE DE CATIVOS NAS FREGUESIAS DE CAMPO BELO, SÃO JOSÉ DO RIO TIJUCO E VILA DO PRATA. Pedro Affonso Oliveira Filho Graduando do curso de História da Universidade Federal de Uberlândia – UFU/Campus Pontal Paula Marcele Ferreira Oliveira Graduando do curso de História da Universidade Federal de Uberlândia – UFU/Campus Pontal Dr. Aurelino José Ferreira Filho Orientador Curso de história – UFU/Campus Pontal Introdução Nosso objetivo neste trabalho é discutir a exploração do trabalho cativo por parte de membros da igreja católica no Triangulo Mineiro do século XIX, especificamente nas Freguesias de Campo Belo, São José do Rio Tijuco, e vila do Prata, problematizando algumas questões que marcaram o cotidiano das relações escravistas nas paróquias e fazendas das ordens religiosas e de clérigos das paróquias destas respectivas freguesias. Prata até findos do XIX, fora marcada pela presença do clero secular, ou seja, o que conhecemos hoje como padres diocesanos. O município de Campina Verde, antigo arraial do Campo Belo, fora marcado pela presença de uma ordem religiosa conhecida com ordem dos padres Lazaristas. É importante salientarmos que na América Portuguesa amalgamaram-se os interesses da Igreja Católica e da Coroa, numa união indissolúvel que marcou todo o período colonial e até imperial. Contudo, as tensões também estiveram presentes nas relações entre estas instituições, principalmente em relação ao Padroado, já que o clero aqui estabelecido tivera que se adaptar ao jogo de poder entre Coroa e Igreja. Durante os séculos XVIII e XIX, em todo o território nacional, e mais especificamente em Minas Gerais, estando a Igreja ligada ao estado, a produção de documentos por eles ganha características especificas devido a ligação do clero com a máquina burocrática do Estado colonial e imperial. O clero era pago pelo estado, em Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 Ituiutaba, antigo arraial de São José do rio Tijuco, pertencente ao município do 299 troca deveria cuidar de aspectos da vida religiosa e social da comunidade por ele dirigida. Todas as ações da Igreja sejam elas religiosas, sociais, burocráticas ou administrativas, eram registradas, uma vez que os clérigos deveriam prestar contas caso fossem solicitados - à seus superiores, tanto ao Estado quando à Igreja. Vivendo neste contexto, a grande maioria dos religiosos eram obrigada a concordar com o que propunha o governo imperial e a elite agrária a ele ligada, principalmente no tocante as questões em tono da escravidão. Neste sentido, vários autores destacaram o papel da Igreja e de seus membros no processo de legitimação da escravidão africana na América portuguesa, levando outros tantos estudiosos, muitos destes diretamente ligados a ordens religiosas, a produzirem outras interpretações sobre esta questão. O que destacamos, no entanto, é o papel de estaque que religiosos e algumas ordens da Igreja Católica da região do Triângulo Mineiro - MG, exerceram como proprietários de cativos, se valendo da mão de obra escrava para galgar posição de estaque social e na própria Igreja, apesar da oposição papal à escravidão africana. O alto clero e sua posição quanto à escravidão africana. São varias as bulas papais e as cartas pastorais que foram emitidas a partir do destacar a ação do Papa Pio II, que em 1462, condenou o comércio de escravos como magnum scelus (grande crime) em carta pastoral e homilia. O Papa Pio VII que governou a igreja durante o período que compreendeu os anos de 1800 a 1823, enviou uma Carta ao Imperador Napoleão Bonaparte da França em protesto contra os maus tratos cometidos contra escravos que eram vendidos e tratados como animais. Afirmava o papa em tal carta: “Proibimos a todo eclesiástico ou leigo apoiar como legítimo, sob qualquer pretexto, este comércio de negros ou pregar ou ensinar em público ou em particular, de qualquer forma, algo contrário a esta Carta Apostólica” (L. CONTI, 1979, p. 337). O mesmo papa se dirigiu a D. João VI de Portugal nos seguintes termos: “Dirigimos este ofício paterno à Vossa Majestade, e de coração a exortamos e solicitamos no Senhor, para que… o vergonhoso comércio de negros seja extirpado para o bem da religião e do gênero humano”. (L. CONTI, 1979, p. 338). Pio VII Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 século XV condenando a escravidão, seja ela indígena ou africana, dentre elas podemos 300 também muito se empenhou para que no Congresso Internacional de Viena de 1814 a 1815 a instituição da escravatura fosse condenada e abolida. Padre Antônio Vieira (1608-1697), considerado por alguns pesquisadores como aliado dos senhores de terras contra os escravos, na verdade assumiu posição de censura aberta aos patrões, seguindo fielmente o conselho dos bispos da época que eram contrários a escravidão, afirmando: Saibam os pretos, e não duvidem, que a mesma Mãe de Deus é Mãe sua… porque num mesmo Espírito fomos batizados todos nós para sermos um mesmo corpo, ou sejamos judeus ou gentios, ou servos ou livres‖ (Sermão XIV).Nas outras terras, do que aram os homens e do que fiam e tecem mulheres se fazem os comércios: naquela (na África) o que geram os pais e o que criam a seus peitos as mães, é o que se vende e compra. Oh! trato desumano, em que a mercancia são homens! Oh! mercancia diabólica, em que os interesses se tiram das almas alheias e as riscos são das próprias! (Sermão XXVII).Os senhores poucos, e os escravos muitos, os senhores rompendo galas, os escravos despidos e nus; os senhores banqueteando, os escravos perecendo à fome, os senhores nadando em ouro e prata, os escravos carregados de ferros, os senhores tratando-os como brutos, os escravos adorando-os e temendo-os como deuses. /…/ Estes homens não são filhos do mesmo Adão e da mesma Eva? Estas almas não foram resgatadas com o sangue do mesmo Cristo? Estes corpos não nascem e morrem como os nossos? Não respiram com a mesmo ar? Não os cobre o mesmo. céu? Não os aquenta o mesmo sol? Que estrela é logo aquela que as domina, tão cruel?‖. (VIEIRA, 1951, p.333-371) Assim podemos perceber uma forte oposição por parte de uma parcela da Igreja sobre a condição escrava, outras censuras ao escravismo e ao tráfico serão reforçadas por papas como Urbano VIII em1639 e Bento XIV em 1741, sendo que o último XVI, em 1839 dirá em uma epístola que: ―Admoestamos os fiéis para que se abstenham do desumano tráfico dos negros ou de quaisquer outros homens que sejam.‖ (L. CONTI, 1979, p. 345). Também o papa Leão XIII, no século XIX, apoiará as tendências abolicionistas no Brasil, Leão XIII presenteia a princesa Izabel com a rosa de ouro parabenizando o império pelo fim da escravidão. Clero local e escravidão nas freguesias de São José do rio Tijuco e vila do Prata no Triangulo Mineiro - MG. A região do Triângulo, Estado de Minas Gerais, possui um expressivo acervo documental eclesiástico e cartorial referente à posse de escravos por parte da Igreja Católica e de seus membros, párocos presente na região desde os primórdios da ocupação deste território. Esses acervos podem ser encontrados, em grande parte, nas Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 prescreveu excomunhão para os senhores que maltratassem seus escravos. Gregório 301 cúrias diocesanas nas cidades de Uberaba, Uberlândia, Patos de Minas e Ituiutaba, bem como nos cartórios destas cidades. Sendo que muitos documentos ainda se encontram dispersos em paróquias pertencentes às mesmas dioceses. Trata-se de acervos importantíssimos para a recuperação da memória desta região e que, geralmente, não acessíveis para os pesquisadores, seja devido à sua dispersão ou por resistência por parte de alguns dirigentes da Igreja que proíbem o acesso aos mesmos em algumas localidades. Documentação esta que revela ações do clero local durante todo o período que compreendeu o século XIX, revelando aspectos da vida cotidiana destes e dos ligados a estes. Durante esta pesquisa, no que se refere a documentação eclesiástica, privilegiamos os assentos de batismo, casamento, óbito e livros tombo da paróquia catedral São José, atual município de Ituiutaba e os assentos de batismo e matrimonio da paróquia de Nossa Senhora Mãe dos Homens de Campina Verde (atual Nossa Senhora da Medalha Milagrosa), por serem os registros paroquiais mais antigos do arquivo diocesano e por se encontrarem em estado de parcial degradação, devido ao manuseio e à ação do tempo. No que se refere à documentação cartorial, privilegiamos a pesquisa nos livros do cartório de Notas de segundo oficio da cidade do Prata e os acentos do cartório de registro Civil da mesma cidade. algumas considerações a cerca da propriedade de cativos por parte do clero na região do Triangulo Mineiro em sua relação com a escravidão na ultima década do século XVIII e primeira metade do século XIX. O trabalho que apresentamos é o resultado parcial desta pesquisa. Um personagem fundamental, cujo nome aparece em quase todos os registros que pesquisamos, tanto eclesiásticos como cartoriais, nas Freguesias de Campo Belo, São José do Rio Tijuco, e vila do Prata é o Padre Antonio Dias de Gouvêa. De acordo com os registros do Livro Tombo da Igreja matriz de São José em Ituiutaba, o padre Antônio Dias de Gouvêa, que migrou para a região do pontal em 1832, foi o primeiro vigário das cidades de Prata e Ituiutaba, adquirindo na região pelo menos três sesmarias, e outras porções de terras, sendo uma no espraiado (região entre os municípios de Canápolis, Prata e Ituiutaba), onde fixara sua residência. Camilo Chaves, memorialista da região que colheu memórias na revista Acaica (1952) de sua autoria, narra um trecho da vida do padre Antônio Dias de Gouvêa: Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 Com base neste material, que optamos por digitalizar, foi possível tecermos 302 (Antônio Dias de Gouvêa) Mantinha no Espraiado uma criação de negros de raça, excelentes para as fainas agrícolas, que lhe rendiam um bom lucro, aplicando métodos de seleção pouco ortodoxos. Faleceu em 1863, aos 73 anos de idade, com inventário no cartório do Prata. (CHAVES, 1950, P.199). Não sabemos ao certo a quantidade exata de escravos que o padre Gouvêa possuía, uma vez que ainda não foi possível examinar seu testamento devido ao mal estado de conservação do livro onde este se encontra e à caligrafia indecifrável do escrivão, mas sabe-se que o mesmo possuía um numero considerável de escravos, sendo que encontramos pelo menos 10 registros de compra e venda de escravos em dois livros do cartório de Notas de primeiro oficio da cidade do Prata. Livros que compreendem o período de 1856 a 1860. Tudo nos leva a crer que eram realizados leilões pelo padre e outros fazendeiros devido à quantidade de registros de compra e venda de cativos encontrados em torno dos negócios do padre Gouveia. Quando se deslocou para a região, padre Antônio e seus sobrinhos já trouxeram consigo ao menos 15 escravos, sendo de família abastada, como é sabido, provavelmente adquiriram muitos outros, até com certo grau de instrução como também narra Camilo Chaves: Dois macróbios, escravos do Pe. Gouvêa –André e Policarpo ajudavam missa em latim e faziam tanta coisa interessante, inclusive narravam memórias excelentes sobre os fatos da época‖. (CHAVES, 1950, P.212) Assim, podemos constatar que a igreja local se manteve conivente com a Tijuco quem sucedeu o padre Gouvêa por ocasião de sua permanência na paróquia da vila do Prata foi o Padre Francisco de Sales Sousa Fleury, este na região permaneceu somente por três anos, de 1833 a 36. Aos se desentender com coronéis locais, padre Fleury deslocou-se para Santana do Paranaíba. Seguindo seus rastros descobrimos que o padre Francisco lutou por causas abolicionistas, conseguindo a liberdade de inúmeros escravos, iniciando com o exemplo próprio, alforriando os seus. Acrescente-se que padre Fleury teve de sua escrava, quatro filhos. Quem sucedeu o padre Fleury na paróquia de São José do Tijuco foi o padre Serafim José da Silva, em 1838, ficando apenas um ano e partindo. Após este período, em 1840, é criada a paróquia na freguesia e o padre Gouvêa passa a paroquiar em São José e Prata até 1845, quando chega em São José o Padre José Fortunato Alves Pedrosa de Resende. Este logo comprou uma vasta extensão de terras, e, assim como o padre Gouvêa, adquiriu alguns escravos para o trabalho no campo, como nos revela dois acentos de batismos de escravos seus encontrados por nossa pesquisa: Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 escravidão, inclusive possuindo um significativo número de escravos. Em são José do 303 Aos dois de novembro de mil oitocentos e cinqüenta e um baptizei solenemente a inocente Tereza com 32 dias de idade filha legitima de Manoel e Lesenina, todos escravos do Padre Fortunato Alves Pedrosa de Resende, sendo padrinhos Manoel Alves e sua esposa. Vigário Lima. (LIMA, 1852, p.1) O Padre José Fortunato permanece na freguesia de 1845 a 1869, portanto vinte e quatro anos, durante este período são varias as histórias narradas a seu respeito, muitas envolvendo conflitos com outros fazendeiros. Foi durante sua estadia que surgiram algumas irmandades, dentre elas a Irmandade dos Irmãos Pretos de Nossa Senhora do Rosário a qual falaremos mais adiante. Após a saída do Padre Fortunato e por ocasião do falecimento do padre Antônio Dias de Gouvêa, vem para a região da vila do Prata o Padre José Gomes de Lima em, aproximadamente, 1860. Encontramos dentre os registros de nascimentos e óbitos do cartório de registro civil, assentos de dois escravos pertencentes ao Vigário Lima. Em 1872 chegou à freguesia o padre Manuel Esteves Balonçoela Lira, que embora tenha deixado a povoação no mesmo ano, organizou toda a documentação da matriz, inclusive as cartas deixadas por seus antecessores. Encontramos uma correspondência endereçada a ele pelo senhor bispo diocesano Dom Joaquim Gonçalves de Azevedo, uma carta emitida em 1872. Encontrada no segundo livro tombo de Ituiutaba e destinada a ele em especial, tal carta orientava como ele deveria lidar com casos referentes a escravos e senhores em Assim garantiriam que tais fatos passassem sem maiores alardes e conseqüências para a Igreja, padre Manuel vai embora no mesmo ano. Ainda em 1872 chegou o padre Tristão Carneiro de Mendonça que organizou o cemitério publico, localizado atrás da igreja matriz. Consta, em alguns registros avulsos encontrados dentro do livro tombo, que antes de sua chegada os mortos eram sepultados dentro da igreja ou em suas proximidades conforme a condição social. Padre Tristão permaneceu no Arraial pouco mais de um ano e, novamente, a freguesia passou a ser atendida pelo vigário da vila do Prata, desta vez até o ano de 1882. Escravidão e religiosidade: a Irmandade do Rosário A Irmandade do Rosário, com data de fundação ainda não encontrada por nossa pesquisa, existia já na época do padre Fortunato, com a criação da Freguesia de São José do Tijuco, primeiro em 1839 e posteriormente em 1866, quando encontramos mais Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 todos os aspectos. E a orientação episcopal era clara: deveriam se limitar ao silêncio. 304 de uma referência e relatos da Festa do Rosário no Livro Tombo da igreja matriz de São José do Tijuco. Esta irmandade era conhecida popularmente como Irmandade dos Irmãos Pretos de Nossa Senhora do Rosário, e, ao que tudo indica, conviveu ―pacificamente‖ com o clero e o restante dos fiéis até o ano de 1882. Camilo Chaves narra que: Os escravos, sempre descalsos - símbolo da escravidão- tinham o dia de sábado para trabalhar em proveito próprio, quando pertenciam a senhores esclarecidos. Escravos e negros libertos ergueram com sacrifício uma capela, também no largo, do lado oposto da matriz. (CHAVES, 1950, P.227) No ano de 1882, por pedido e insistência de fazendeiros, a freguesia recebeu a visita do Cônego Ângelo Tardio Bruno, e durante a sua estada os habitantes do povoado pedem para que ele fique responsável pela paróquia e pelos assuntos políticos da região. Consta que alguns fazendeiros chegaram a propor-lhe uma considerável soma em dinheiro em troca de sua permanência na freguesia, sendo que esta passagem foi relatada pelo próprio Cônego nas primeiras folhas do livro tombo da paróquia de São José do Tijuco. Padre Ângelo aceitou a proposta e se estabeleceu como pároco da freguesia, recebendo provisão interina em 1884, sendo que neste mesmo ano se tornou também vereador responsável pela freguesia que até então era ligada à comarca da cidade de Prata. Até 1884 escravos e libertos membros da irmandade realizavam seus festejos mesmo ano a antiga capela dos negros foi destruída, como anota o próprio cônego Ângelo: (...) Resolvi para satisfazer os fiéis mandar fazer um altar a Maria do Rosário dentro da Igreja Matriz para solenizar os festejos e os atos em louvor da virgem, e quando vier o senhor bispo em visita pastoral como avia prometido mostrar-lhe a situação para obter licença para destruir e aproveitar as madeiras e tijolos em beneficio da Matriz (...). O que tudo fez o Ex. Sr bispo não só deu-me faculdade de tudo fazer como ordenou que qualquer quantia que a capela possuísse podia empregá-la em beneficio da Matriz, como qualquer quantia que fosse doada a Nossa Senhora do Rosário, e ordenou que a festa fosse feita na mesma Matriz, celebrada a missa no altar feito em ocasião de festas a Nossa Senhora do Rosário cuja festa deve ser celebrada em dia próprio como é de lei eclesiástica (...). (I Livro de atas (Livro Tombo) da igreja matriz de São José do Tijuco, 1884 e 1912, pág. 3.) Sabemos por meio de relatos dos cronistas, que na ocasião houve uma confusão seguida de tiroteio na cidade, danificando a capela que já estava em mal estado de conservação. Com a permissão do bispo a capela onde se reunia a irmandade do Rosário foi demolida no mesmo ano. A carta pastoral emitida por ocasião desta visita e que se encontra anexada ao primeiro livro tombo, narra que no ano em que a capela foi Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 dentro de sua capela, mas por ocasião da visita do bispo diocesano à freguesia no 305 demolida os membros da irmandade, a maioria escravos, manifestando sua revolta, não compareceram á procissão e ao terço rezados por Cônego Ângelo por ocasião da festa do Rosário. Ocasião em que se fazia também a coroação do Rei do Congo. Ao que o padre respondeu ameaçando acabar com os festejos caso não comparecessem na festa do próximo ano. O Clero e a escravidão na freguesia de Campo Belo. O histórico do atual município de Campina Verde, antigo arraial de Campo Belo, remonta ao ano de 1827, quando João Batista Siqueira e sua esposa, bastante ricos e já velhos, não possuindo descendentes, resolveram destinar todos os seus haveres à Congregação da Missão na pessoa do Padre Leandro Rebelo Peixoto e Castro, que por ali realizava obras missionárias naquele ano. Obtida pela congregação a licença do Governo Imperial Brasileiro para aquisição de bens imóveis no país, lavrou-se em Uberaba, a 29 de outubro de 1830, a escritura pública, pela qual João Batista Siqueira e Dona Bárbara doavam à Congregação, representada pelos Padres Jerônimo Gonçalves de Macedo e Leandro Rebelo Peixoto e Castro, as fazendas Campo Belo, Perobas e Fortaleza, com uma área de aproximadamente 28 mil alqueires no valor de quinhentos e sessenta mil reis (560$000). Siqueira pouco sobreviveu após este ato, falecendo em 1831. Pouco depois A Congregação da Missão, instalando em Campo Belo uma de suas casas, provocou enorme afluência da vizinhança em busca de recursos espirituais, o que permitiu o consentimento dos padres no estabelecimento de moradores nas vizinhanças da Igreja. O Capitão Camilo Rodrigues Chaves, o tenente Joaquim Martiniano de Magalhães e o Tenente José Almeida Medeiros foram os primeiros a agregar-se aos padres, assim surgiu o arraial. Entretanto, com a Independência e a consolidação do Império, as relações entre a Igreja e o Estado se modificaram, e as ordens religiosas sofreram fortes intervenções do Estado Imperial que visava solapar suas forças e tomar posse de seus bens. Mesmo assim, a utilização da mão-de-obra escrava negra nas diferentes atividades de interesses das ordens religiosas continuou persistente até as últimas décadas da escravidão. Até mesmo autores que buscaram defender a exploração da mão de obra cativa africana por estes clérigos nos fornecem importantes elementos para percebermos como Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 falecia D. Bárbara. 306 a escravidão estava enraizada no cotidiano dos conventos, e com a Congregação da Missão não foi diferente. Conseguimos fazer o levantamento de 18 escravos pertencentes a esta ordem somente contando os nomes registrados nos acentos de batismo e casamento, eis um exemplo: Aos nove de abril de mil oitocentos e cinqüenta o padre Antonio Valeriano Gonçalves de Andrade da Congregação da Missão Brasileira, sob licença do visitante ordinário deste bispado de Goiás, o padre Jerônimo Gonçalves de Macedo, da mesma congregação, depois de proclamados canonicamente e tomados os depoimentos verbais e sem impedimento algum, nesta capela do Campo Belo, o recebe em face da Igreja em matrimonio, os contratantes Joaquim Ourives de Nação e Benedita Criola, filha legitima de Manoel de Nação e Maria de Nação, todos escravos da Congregação da Missão, sendo testemunhas Joaquim Pereira e Maria Cunha, para constar fiz este acento no qual assigno Pe Antonio Valeriano Gonçalves de Andrade, padre da missão. (I Livro de Registros de Casamento da paróquia de Nossa Senhora Mãe dos Homens do Campo Belo, 1850, pag. 13). Os registros de assentamentos de casamento nos livros eclesiásticos geralmente apresentam mais dados do que os de batismo, pois os mesmos informam se ambos são livres ou escravos, o nome dos pais, dos noivos, local de batismo e residência, nome das testemunhas, data e hora da cerimônia, nome do padre, sua qualificação e assinatura. Como podemos observar neste assentamento de casamento da paróquia de Nossa Senhora Mãe dos Homens do Campo Belo, o escravo possuía um oficio nobre, era ourives da ordem, certamente o responsável pelo trabalho de confeccionar as alfaias, crucifixos e demais ornamentos para paramentar a igreja e os padres, vale observar que se dava de acordo com o estado social dos noivos, bem como das informações adicionais que estes dispunham. Considerações finais A documentação pesquisada permite cotejar, mesmo que indiretamente, alguns problemas da historiografia tradicional no tocante á província de Minas gerais. Questionamentos já feitos por LIBBY, (1988), entre outros, no tocante ás representações de opulência e pobreza em torno da Capitania de Minas Gerais entre os séculos XVIII e XIX. A documentação eclesiástica e cartorial existente no Triângulo Mineiro, produzida no cotidiano escravista da renião, corrobora também, além destas, com outra conclusão do autor, ou seja, ―o crescimento demográfico da província de Minas Gerais no século XIX, embora nada espetacular, foi constante. Incluía, pelo menos desde a década de 1810, o firme aumento do contingente mancípio, tendência Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 o maior ou menor detalhamento de informações observado nos registros de casamentos 307 esta que parece ter continuado por duas décadas após o término do tráfico negreiro internacional‖ ( LIBBY, 1988). Realidade que vislumbramos também para o Pontal do Triângulo Mineiro, estando, muito provavelmente, clérigos e a própria Igreja entre os maiores proprietários de cativos naquele período. Entretanto, maiores conclusões a respeito ainda carece adentrarmos no cotidiano das práticas do clero regular, seja ele secular ou de ordem religiosa, na tentativa de melhor compreendermos as relações entre a exploração da mão-de-obra escrava negra e a Igreja, principalmente no Império, período de grandes transformações tanto em relação à Igreja quanto à escravidão. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: CARRARA, Ângelo Alves. Minas e Currais. Produção rural e mercado interno de Minas Gerais 1674-1807, Juiz de Fora, Editora UFJF, 2006. CARVALHO, José Geraldo Vidigal, A Igreja e a Escravidão. As Irmandades de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos. Instituto Histórico e Geográfico do Brasil, Rio de Janeiro, 1988. CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. Tradução Maria de Lourdes Menezes. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000. DENZINGER-SCH‘ÁNMETZER. Enquirídio dos Símbolos e Definições nº 668 citado em: BETTENCOURT, Dom Estevão Tavares, OSB. O Tráfico Negro no Brasil e a Igreja. Artigo digitalizado, disponível em URL: http://www.presbiteros.com.br/Hist%F3ria%20da%20Igreja/Trafico.htm Acesso em 09/05/2008, às 24 h e 34 min. FREYRE, Gilberto. Casa-Grande e Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 51 ed. São Paulo: Global, 2006. L. CONTI. A Igreja Católica e o Tráfico Negreiro: O Tráfico dos Escravos Negros nos séculos XV-XI. Lisboa 1979, p. 337. LOURENÇO, Luis Augusto Bustamante. A Oeste de Minas. Escravos, índios e homens livres numa fronteira oitocentista. Triângulo Mineiro 1750-1861. Uberlândia, Edufu, 2005. TERRA, João Evangelista Martins. A Igreja e o Negro no Brasil. Ed. Loyola 1983. VIEIRA, Antônio, SJ. Sermão XXVII, em Sermões, vol. IX Ed. das Américas 1958, p. 64. Fontes: Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. 308 - Arquivo, Boletim Informativo do Arquivo Público de Uberaba, março 1995, nº 6, p.78. - Livro 1 de atas (Livro Tombo) da igreja matriz de São José do Tijuco, 1884 e 1912. - Livro 1 de registros de batismos da igreja matriz de Nossa Senhora das Graças do Campo Belo,1835. - Livro 1 de registros de batismos da igreja matriz de São José do Tijuco 1848. - Livro 1 de Registros de Casamento da paróquia de Nossa Senhora Mãe dos Homens do Campo Belo, 1850. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 - Revista Acaiaca, Camilo Chaves, 1950. 309 SIMPÓSIO TEMÁTICO 6 – HISTÓRIA, MEMÓRIA, TEORIA DA HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA Coordenação: Prof. Dr. Amon Pinho, Prof. Dr. Marcelo dos Santos Abreu e Profa. Dra. Janaina Zito Losada ―MALLEUS MALEFICARUM E IMAGEM DAS MULHERES PERANTE O TRIBUNAL DA SANTA INQUISIÇÃO‖ – SÉC. XV - XVII ...................................................................... 311 Hugo Albuquerque de Morais HISTORIOGRAFIA E ENSINO DE HISTÓRIA: UM ESTUDO SOBRE CONSCIÊNCIA HISTÓRICA E IDENTIDADES DE JOVENS ESTUDANTES E PROFESSORES DE HISTÓRIA EM ESCOLAS NO MEIO RURAL ...................................................................... 326 Astrogildo Fernandes da Silva Júnior O PENSAMENTO INDUSTRIAL NO BRASIL (SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX A 1930). ........................................................................................................................................ 337 Tomás Rafael Cruz Cáceres O PROJETO GRÁFICO DA REVISTA ILUSTRAÇÃO BRASILEIRA E A MATERIALIDADE DO DOCUMENTO HISTÓRICO .......................................................... 350 Márlon de Oliveira Borges Carneiro Fernanda Arantes de Moraes OS NEGADORES DO HOLOCAUSTO NA HISTÓRIA, DIÁLOGOS POSSÍVEIS? UMA REFLEXÃO ACERCA DAS POSSIBILIDADES DE DIÁLOGO COM OS NEGACIONISTAS ................................................................................................................... 368 Makchwell Coimbra Narcizo Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 O SURGIMENTO DO CAPITALISMO: UM DEBATE HISTÓRICO ................................... 360 310 MALLEUS MALEFICARUM E IMAGEM DAS MULHERES PERANTE O TRIBUNAL DA SANTA INQUISIÇÃO – SÉC. XV - XVII Hugo Albuquerque de Morais Acadêmico do curso de licenciatura em História na Faculdade Alfredo Nasser Introdução A história da Inquisição sempre despertou o interesse de diversas áreas do conhecimento acadêmico e variadas vinculações ideológicas ao longo do tempo. O assunto durante décadas motivou debates e discussões acaloradas nutridas por acusações e ressentimentos de ambos os lados. O processo Inquisitório que se estruturou no contexto histórico da Idade Média e perdurou por longos anos, revela aos pesquisadores uma visão de grande marco que este movimento desencadeou dentro de seu contexto histórico e das demais épocas. Todavia muitos dos arquivos da Inquisição continuam inacessíveis aos investigadores, dificultando a criação de um quadro completo e de um conhecimento mais aprofundado sobre a atividade inquisitorial ou o tribunal do Santo Ofício. Através deles poder-se-ia entender aspectos significativos da religiosidade que se desenvolveram na Europa Medieval e Idade Moderna. As bruxas personificavam os medos da sociedade dos séculos XV e XVII e ganham conotações negativas por serem seguidoras do demônio, entregues à luxúria e à aos vícios constantemente. A bruxaria era condenada como heresia. Assim as mulheres foram alvos de perseguições, tal atividade era vista como algo reprovável, como é ressaltado no Malleus Maleficarum, escrito em 1484: É preciso observar especialmente que essa heresia – a da bruxaria – difere de todas as demais porque nela não se faz apenas um pacto tácito com o diabo, e sim um pacto perfeitamente definido e explícito que ultraja o Criador e que tem por meta profaná-lo ao extremo e atingir Suas criaturas... [...] de todas as superstições, é mais vil, a mais maléfica, e mais hedionda – seu nome latino maleficium, significa exatamente praticar o mal e blasfemar contra a fé verdadeira (KRAMER & SPRENGER, 1991: 77). Em 1486 foi publicado o Manual Eclesiástico Malleus Maleficarum, de autoria dos dominicanos James Sprenger (1436 ou 8 - 1495) e Heinrich Kramer (1430 - 1505). Tendo por finalidade constituir-se num suporte normativo para todas as ordens religiosas e para os oficiais seculares no tratamento das heresias, o documento enumerava e caracterizava os males religiosos que assolavam o reino da cristandade naquele período. A obra explica o horror que se sentia em relação à bruxa porque ela Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 gula, pois nos seus rituais acabavam devorando crianças, adoravam o demônio e cediam 311 tinha de renunciar ao cristianismo, blasfemar, fazer um pacto e se entregar ao demônio, enfim, praticar o mal para poder obter benefícios: Atentemos, em particular, para o fato de que para a prática desse mal abominável são necessários, do modo mais profano, renunciar à Fé Católica, ou negar de qualquer maneira certos dogmas da fé; em segundo lugar, é preciso dedicar-se de corpo e alma à prática do mal; em terceiro lugar, há de ofertar-se crianças não-batizadas a Satã; em quarto, é necessário entregar-se a toda sorte de atos carnais com Íncubos e Súcubos e a toda sorte de prazeres obcenos. (KRAMER & SPRENGER, 1991: 77). Acredita-se que este livro foi escrito pela necessidade de normatizar e homogeneizar a ação dos Inquisidores que, apesar de estarem sob a jurisdição da Igreja romana não procediam da mesma maneira. O manual contempla diversas questões desde sua jurisdição do inquisidor até questões práticas do encaminhamento do processo, utilizando como base teórica os escritos dos doutores eclesiásticos. Nesta obra consta a descrição detalhada dos procedimentos considerados adequados ao inquisidor desde a investigação até a conclusão do processo, inclusive são classificados os hereges, as heresias, quais as formas de identificá-los, as torturas necessárias e permitidas e, em caso de arrependimento do réu qual procedimento para o perdão. O martelo das bruxas é um produto e um instrumento do que Jean Delumeau chamou de ―cristianismo do medo‖. No interior dessa nova intolerância, crença aterrorizada numa alucinante prática de bruxarias, o Sabat, introduziu uma nota tão mais espetacular porque inspirava facilmente a iconografia. Uma Europa da perseguição às Bruxas, uma Europa do Sabat tinha nascido.(Le Goff, 2007:235) número de réus na inquisição serem de mulheres e assim elucidar elementos que demonstram o estereótipo feminino na Idade Média e do início da Idade Moderna. Construção do estereótipo feminino As questões concernentes à mulher trazem numerosos problemas a serem analisados durante a história, no entanto, a figura feminina raramente é apresentada e muitas vezes sua participação é secundária na escrita da história. ―A participação e o lugar das mulheres na história foram negligenciados pelos historiadores por muito tempo. Elas ficaram à sombra de um mundo dominado pelo gênero masculino‖ (BURKE, 2002: 75-79). Neste sentido a história da mulher na Idade Média até o período moderno traz algumas questões que demonstram o modelo social patriarcal daqueles períodos. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 Assim a partir dos elementos estudados pretendi-se esclarecer o porquê do maior 312 Figura 1: Ilustração para Malleus Maleficarum. Séc. XV. Bruxas. Durante a Idade Média, as questões que englobam o padrão comportamental que regia a postura feminina ideal eram determinadas pelo clero, visto que a Igreja ainda conservava boa parte do monopólio da palavra. A Igreja baseada na interpretação das escrituras, vigente no medievo, ditava as normas para o procedimento dos indivíduos no âmbito social. Lucien Febvre (1978) faz uma abordagem da importância da religiosidade na vida dos europeus e com o cotidiano das pessoas, para ele o homem vivia sua vida No século XVI não havia escolha, Era-se cristão de fato pode-se divulgar em pensamento longe do Cristo: jogo de imaginação, sem suporta vivo de realidade, todavia, não se pode sequer dispensar a prática. Mesmo não querendo, mesmo não entendendo claramente, todos, desde o nascimento, se encontravam imersos num banho de cristianismo, do que não se escaparia nem na hora da morte: já que esta morte era necessariamente, socialmente, cristã, devido aos ritos a quem ninguém podia subtrair-se, ainda que estivesse revoltado em face da morte, ainda que tivesse feito gracejo e se mostrasse brincalhão nos últimos momentos (Fevbvre,1978: 38). Desta forma o indivíduo, as cerimônias e as práticas do cristianismo amarravam o homem, e acima de tudo cercava sua vida privada. ―Do nascimento até a morte, estabelecia-se uma imersa cadeia de cerimônias de tradições costumes e práticas que, sendo toadas cristãs ou cristianizadas [...] mesmo contra sua vontade‖ (Fevbvre,1978,p.38). O modelo patriarcal fazia com que homem estabelecesse um poder maior dentro da família e da sociedade. Toda a organização institucional na Idade Medieval repousaria sobre a figura paterna, na célula familiar, a mulher e os filhos estariam Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 baseada na igreja católica. 313 sujeitos ao poder e domínio masculino. A família era o espaço onde a mulher poderia circular, todavia até mesmo neste espaço sua liberdade era limitada. A mulher, nessa mentalidade, constituía ―uma ameaça contra a ordem estabelecida‖, pois, o poder patriarcal era estabelecido nos padrões comportamentais do período. O padrão patriarcal, por ser menos diferenciado do que o padrão de alteridade, não confronta diretamente sua sombra e a projeta à sua falta, como vemos no fenômeno do bode expiatório. [...] a polarização em que opera o dinamismo patriarcal exigiu um contra pólo para elaborar o símbolo de Cristo. Surgiu o fenômeno do Demônio como Anticristo (KRAMER & SPRENGER, apud Byington 1991: 33). A idéia que a mulher como a porta do diabo ganhava grande reputação nos inícios do cristianismo, principalmente através dos movimentos monacais, fomentará uma negação da carne e, por conseguinte uma exacerbação do anti-feminismo. Estabelece tal relação da seguinte forma que a objetividade tem haver com o ascetismo, que vem por sua vez de uma negação do corpo e, portanto, da rejeição da mulher, mais frágeis às tentações. Delumeau (1989), descreve o processo da criação do medo sobre a mulher As mulheres foram alvos de perseguições, pois segundo a Igreja elas mantinham certo grau de intimidade com as forças do mal. Esse fato pode ser entendido pela relação que as mulheres tinham com as velhas sábias da aldeia, a confiança era tamanha que o padre era tido como um ser que possuia poderes e determinava o destino das pessoas, para os assuntos como os que tratavam as mulheres era mais cabível a orientação dessas anciãs. Em linhas gerais, o padrão comportamental que regia a postura feminina ideal na época medieval era determinado pelos dogmas cristãos, visto que existiam dois paralelos comportamentais: o pecado original através de Eva, e a imagem de mãe benevolente vista em Maria. A Igreja ainda conservava atrás do monopólio da palavra, assim baseados nas interpretações das escrituras, vigente no medievo, ditavam as normas para o procedimento de toda a sociedade. De Lumeau (1989, p. 382.) mostra a mulher como bode expiatório, sobre o qual ―uns e outros exprimiam seu medo de subversão com a ajuda de um estereótipo há Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 Assim, o sermão, meio eficaz de cristianização a parto do século XIII, difundiu sem descanso e tentou fazer penetrar nas mentalidades o medo da mulher. O que na Alta Idade Média era discurso monástico tornou-se em seguida, pela ampliação progressiva das audiências, advertência inquieta para uso de toda a Igreja discente que foi convidada a confundir vida dos Clérigos e vida dos leigos, sexualidade e pecado, Eva e Satã. (DELUMEAU, 1989: 322.). 314 muito tempo constituído‖ e ―Mesmo nas velhas, a presença de todo um clamor desejaste e de inevitáveis atribuições fálicas faz de todas as bruxas figuras sexualizáveis por excelência. Como fator chave na diabolização da mulher, a sexualidade feminina‖ (DELUMEAU, 1989, p. 327.) Nos séculos XV e XVI, a figura do herege começa a se destacar e com isso, a imagem da bruxa construída no período medieval eclode na perseguição contra a mulher. O objetivo principal do tribunal da Inquisição era o combate a heresias e aos hereges, tanto homens quanto mulheres, todavia a caça as bruxas fizeram vítimas em sua esmagadora maioria mulheres. O feminino tornou-se o principal alvo, as mulheres tornaram-se as principais vítimas das fogueiras inquisitórias. Assim, apesar de as bulas papais não fazerem distinção de gênero ao fomentarem a repressão, a maioria esmagadora dos réus era constituída por mulheres. [...] 85% das pessoas que foram queimadas nas fogueiras foram mulheres. E foram alguns milhões! È um numero monumental. Havia cidades que tinha 800 mulheres e, num dia só , perderam 798, como a cidade de Trier, na Baviera, por exemplo. Não era brincadeira, a caça às Bruxas! Qualquer transgressão era pretexto para a fogueira (MURARO, 2000:39) Segundo Maleval (2000) o conteúdo de Malleus Malleficarum demonstra o modelo misógino do período, pois estava baseado no segundo capítulo do livro de Gênesis e na figura de Eva para justificar o seu ódio contra a mulher. As fraquezas do sexo feminino, quase lugar comum entre a prelazia medieval, virão à baila: luxúria, ambição, fraqueza carnal, lascívia, credulidade, indiscrição, impressionabilidade são essas as características que levariam as mulheres à bruxaria. Segundo Hilário Franco Jr. (2006), a Organização da Inquisição se dá entre 1184-1229. No período medieval, ela é incipiente, todavia já no Baixo Medievo este destacamento eclesiástico irrompe os limites de sua ação e se expande: ―o processo misógino efetivado na Idade Média ganha força de lei por meio dos manuais de caça aos hereges‖. A figura do herege começa a se destacar e com isso, a imagem da bruxa, já formada e composta, construída no período medieval. Segundo Ginzburg (1991) na Europa os processos de lei sobre a feitiçaria, entre os séculos XV e XVII, revelam um estereótipo criado com base em conhecimentos do senso comum sobre o sabá, reconhecido como uma seita de bruxas e feiticeiras. [...] Há, nas perguntas dos juízes, alusões mais que evidentes ao sabat das bruxas - que era, segundo os demonologistas, o verdadeiro cerne da feitiçaria: quando assim acontecia, os réus repetiam mais ou menos espontaneamente os Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 infidelidade, 315 esteriótipos inquisitoriais então divulgados na Europa pela boca de pregadores, teólogos, juristas, etc. (GINSBURG, 1991: 206). . As bruxas, depois de Lúcifer, excedem a todos os maiores pecados, visto que além de pactuarem com o Demônio, mantém relações carnais com este, espalham ódio e injúrias a todos os seres e negam o Cristo crucificado. O crime cometido pelas bruxas ―é o mais abominável dos três graus de infidelidade‖ (Sprenger e Kramer;1484:171). Processo de Criação da Inquisição A Inquisição foi instituída no século XIII pelo papa Gregório IX, ela vigorou até o século XIX. Como relata o autor Nachman Falbel na obra Heresias Medievais. A Gregório IX devemos a organização do tribunal inquisitorial e, em 1229, no Concilio de Toulouse, foi criado oficialmente o Tribunal do Santo Ofício. Os dominicanos logo se puseram à disposição da nova instituição, cabendolhes a tarefa de legislar e condenar os heréticos, entregando-os ao braço secular. (Falbel, 1976: 17). O Tribunal da Inquisição foi um método implantado pela Igreja Católica com o objetivo de combater as práticas de heresia. A Igreja era vista como representante de Deus na Terra, então a ela cabia as punições. ―A palavra herege se origina do grego hairesis e do latim haeresis e significa doutrina contrária ao que foi definido pela Igreja em matéria de fé‖ (Novinsky, 1982, p 10). O poder da Igreja se fazia quase que todo pelo discurso, mesmo porque os crença que oferecesse credibilidade ao cristão. Nesse sentido, a Igreja impunha controle através do discurso. À maneira de Foucault, ―o discurso verdadeiro, pelo qual se tinha respeito e terror, ao qual era preciso submeter-se, porque ele reinava, (...) era o discurso que renunciava a justiça e atribuía a cada qual a sua parte...‖(FOUCAULT, 1998:15). Assim, questionar ou agir de forma diferente dessa verdade mostrada pela Igreja iria contra as normas de Deus, sendo considerada heresia. Neste sentido milhares de pessoas contrarias as doutrinas ou práticas adversas ao que é definido pela Igreja Católica eram considerados Hereges. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 mecanismos de manutenção do poder sobre o sagrado precisavam se apoiar numa 316 Figura 2: Ritual de bruxaria. Ilustração para Malleus Maleficarum. Séc. XV. O Inquisidor se torna, dentro do contexto do período, o principal agente repressor dos hereges. Cabia a ele usar técnicas e instrumentos para reprimir as ações dos heréticos. Além dos instrumentos de tortura, os Inquisidores possuíam um poder muito grande diante dos acusados a ponto de fazê-los confessarem a heresia cometida. A pressão psicológica que o Inquisidor exercia sobre o acusado era tão grande que mesmo quando ele não havia cometido transgressões declarava-se culpado. Através de denúncias ou de levantamento de suspeita as pessoas eram torturados, flagelados, ou até queimados na fogueira pelos mais diversos crimes como: feitiçaria, condutas contrárias à moral e os bons costumes, oposição à Igreja e até ―idéias filosóficas‖. Jean Delumeau aponta os métodos de para a confissão feito pela a inquisição assim ‗fome privação de sono às quais eram submetidos os acusados de feitiçaria também rompiam ―qualquer resistência‖, a ponto de admitirem todas as atrocidades que lhes eram atribuídas.‖ (DELUMEAU, 1989, p. 381). A prática da tortura para se obter confissão contra os hereges era comum no Medievo, ―no entanto, a bruxaria se torna um dos alvos privilegiados [...] a bruxaria passou para o primeiro lugar na representação inquisitorial‖ (LE GOFF, 2007, p. 235). Outro aspecto que deve ser destacado foi a transformação da Inquisição medieval para a Inquisição moderna. ―A inquisição medieval foi um produto de uma longa evolução durante o a qual a Igreja e o Papado sentiam-se ameaçados em seu Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 convocadas a se apresentar diante dos inquisidores. Alguns eram absolvidos, outros 317 poder‖ (Novinsky, 1982, pg15). Ela foi criada inicialmente para combater o sincretismo entre alguns grupos religiosos, que praticavam a adoração de plantas e animais e utilizavam mandingas. Na modernidade a Inquisição está ligada à "crise da fé", pestes, terremotos, doenças e miséria social, assim neste período a inquisição alcançou seu apogeu. Desde a Idade Média existia um controle religioso socialmente incorporado às diversas esferas sociais que havia um manual de ―normas e condutas‖ utilizado em vários países. O Manual dos Inquisidores foi escrito em pleno século XIV para ser mais exata em 1376 pelo dominicano Nicolau Eymerich e revisado em 1578, sendo largamente utilizado até o século XVIII (BETHENCOURT, 2000). O autor ainda destaca que o tribunal da Inquisição foi um movimento único por causa da legitimação do Papa, mas teve suas peculiaridades de acordo com a local de ação. As inquisições são referidas, geralmente, no singular. Essa tradição exprime uma realidade: os diferentes tribunais de fé têm como fonte comum de legitimidade a delegação de poderes, feita pelo papa, em matéria de perseguição das heresias. A designação única pode ser cômoda, mas esconde realidades diversas. (BETHENCOURT, 2000: 10) A Igreja, que durante todo o período medieval desempenhou importante função na hierarquia social, possuindo hegemonia tanto econômica quanto política, já nos séculos XV-XVI existia uma necessita e recorre ao apoio das incipientes monarquias nacionais para tentar conter o avanço das transformações sociais, políticas e da centralização do poder real, do ressurgimento do direito romano e do incremento na burocracia todo o aparato de combate e de repressão à heresia se sofisticou e promoveu a transformação dos procedimentos criminais. A esse respeito Delumeau acrescenta que: O poder civil mais do que apoiou a Igreja na luta contra a seita satânica. A obsessão demoníaca, sob todas as suas formas, permitiu ao absolutismo reforçar-se. Inversamente, a consolidação do Estado na época da Renascença deu uma dimensão nova à caça aos feiticeiros e feiticeiras. Os governos marcaram uma tendência crescente a anexar-se ou ao menos controlar os processos religiosos e a punir as infrações contra a religião. Mais do que nunca a Igreja se confundiu com Estado, aliás em beneficio deste. Mas a urgência do perigo fez com que ela não pudesse ou não quisesse opor-se a essa anexação. (Delumeau ,1989: 356.) Dessa forma a caça aos hereges e aos feiticeiros e feiticeiras adquiriu uma dimensão capital dentro da sociedade moderna e qualquer um poderia ser considerado um inimigo. De um modo geral, o apoio do Estado se manifestava de duas formas, por meio de leis que proibissem a atividade de indivíduos criminosos da fé, e fornecendo Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 principalmente religiosas que ocorriam. Com o fortalecimento do absolutismo a partir 318 homens que auxiliassem no cumprimento das leis. Assim, os crimes canônicos poderiam ser julgados tanto pelo governador quanto pelo bispo metropolitano. É perceptível na Idade Média, como se dá de forma bem organizada a Inquisição, e para melhorar o serviço dos Inquisidores e de certo modo legalizá-los, foram sendo criados Manuais de Inquisição, com informações sobre os tipos de heresias, mostrando detalhadamente como descobri-las e como saná-las. A respeito disso Falbel (1977) explana que: Com o tempo, foram sendo elaborados manuais escritos por inquisidores experientes que procuravam orientar os perseguidores das heresias sobre os seus fundamentos doutrinários e também sobre a técnica ou modo de conseguir a confissão do acusado. Nesses manuais cada heresia é caracterizada, permitindo muitas vezes aos estudiosos um melhor conhecimento de suas concepções. (Falbel, 1977: 18). Desta maneira os manuais da inquisição contemplam diversas questões inerentes a jurisdição do inquisidor até questões práticas do encaminhamento do processo, utilizando como base teórica os escritos dos doutores eclesiásticos. A necessidade de normatizar e homogeneizar a ação dos Inquisidores que, apesar de estarem sob a jurisdição da Igreja romana não procediam da mesma maneira. Um dos Manuais mais conhecido, foi criado por volta do ano de 1486, um livro, chamado de Malleus Maleficarum (O Martelo das Bruxas), como o próprio nome nos mostra, esse livro era usado como um manual para identificar, combater e condenar legalmente as bruxas e as James Sprenger. Malleus Maleficarum e a perseguição às mulheres Figura 3: Página de Malleus Malefícarum Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 práticas hereges, escrito por dois monges alemães dominicanos, Heinrich Kramer e 319 O documento Malleus Malefícarum tem papel importante para explanar os motivos para a perseguição às mulheres, pois é a obra que representa a legitimação da caça as bruxas, sendo assim citada nos autos de todos os julgamentos do Santo Ofício por quase trezentos anos. O documento foi escrito em 1484 por James Sprenger e Heinrich Krameré que contém as normas e questão burocrática que Inquisição deveria utilizar em seus autos. O Malleus Malefícarum foi escrito em contexto caótico, em que, acreditavam-se no fim do mundo graça as peste e epidemias vividas no mundo moderno. Existia uma preocupação no crescimento das heresias como um fator primordial para o enfraquecimento da fé católica; o aumento da influência diabólica favorecendo a desordem e o caos apoiado em três condições fundamentais: o diabo, a bruxa e a permissão de Deus. O combate às heresias se fazia necessário e urgente. Carlos Amadeu B. Byington descreve o Malleus Malefícarum como uma da obras mais terríveis do O martelo das feiticeiras- Malleus Malefícarum é uma das páginas mais terríveis do cristianismo. É difícil imaginar que, durante três séculos, ele foi a Bíblia do inquisidor. Tentando demonstrar que não foi por acaso ele foi escrito no esplendor do Renascimento e se transformou no apogeu ideológico e pragmático da Inquisição contra a bruxaria, atingindo intensamente as mulheres. [...] ele é um manual de ódio de tortura e de morte, no qual o maior crime é o cometido pelo próprio legislador ao redigir a lei. Suas vitimas não nos levou a expor orgulhosamente seus crimes para a posteridade, que nos faz imaginar o terrível sofrimento passado pelos milhares de pessoas, em sua maioria mulheres, muitas das quais histéricas, que foram por eles torturadas e condenadas à prisão perpétua ou à morte. (KRAMER & SPRENGER, apud Byington 1991: 20) A obra é dividida em três partes: Primeira Parte traz as três condições necessárias para a bruxaria; o Diabo, a Bruxa e a permissão do Deus Todo Poderoso. Segunda Parte contém os métodos pelos quais se infligem os malefícios e de que modo podem ser curados. Terceira Parte Trata das medidas judiciais no tribunal eclesiástico e no civil a serem tomadas contra as bruxas e também contra todos os hereges. Contém as questões, em que, são definidas as normas para a instauração dos processos e explica os modos pelos quais devem ser conduzidos, e os métodos para lavrar as sentenças. Neste sentido o Malleus foi durante três séculos o livro mais utilizado pelos autos da igreja. Segundo Kramer e Sprenger (1993) o Papa Inocêncio VIII legitimou o Documento demonstrando assim a preocupação da igreja com o da depravação herética. Segundo a bula os dois inquisidores têm o poder para a chamada ―justa correção‖, Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 cristianismo. 320 aprisionamento e punindo quaisquer pessoas, sem qualquer impedimento, de todas as formas. Todos os que se lhes opuserem, a todos os rebeldes, de qualquer categoria, estado, posição, proeminência, dignidade ou de qualquer condição que seja não importando privilegio de que disponha-haverá de ameaçá-los com a excomunhão, a suspensão, a interdição, e inclusive com as mais terríveis penas, as piores censuras e os piores castigos, como bem lhe aprouver, e sem qualquer direito de apelação, e se assim o desejar poderá, pela autoridade que lhe concedemos, agravar e renovar tais penas quantas vezes necessário, recorrendo, se assim convier, ao auxílio do braço secular (KRAMER & SPRENGER, apud Inocêncio VIII 1993: 45) O período de atuação do manual é referido como período de ―caça as bruxas‖, datado entre século XIV a meados do XVIII. No início da obra os inquisidores fazem definições de heresia ―quem quer que pense de outra forma a respeito de assuntos pertinentes a fé que não do modo defendido pela santa Igreja Romana é herege. Eis a verdadeira Fé‖ (KRAMER & SPRENGER, 1991: 53). Neste sentido quem contrariasse os dogmas estabelecidos pela Igreja poderia ser considerado herege. Outro ponto é que qualquer suspeita de heresia, não necessariamente bem fundamentada, bastava para prender o suspeito por um bom tempo e, às vezes, mantê-lo no cárcere durante vários anos. Uma acusação não provada baseada em conjecturas, suposições, ou em provas indiretas era considerada razão suficiente para a detenção, além disto, todos os tipos de pessoas eram aceitos como testemunhas em causas criminosos, servos que prestavam depoimentos contra seus amos. E as leis permitem que se admita qualquer testemunha como prova. Pois isso é os Cânones que tratam de defesa da fé explicitamente recomendam. E o mesmo procedimento é permissível como punição por heresia. Quando se faz acusação dessa espécie, qualquer pessoa pode ser trazida como testemunha do crime, tal como em caso de lesa-majestade. (KRAMER & SPRENGER, 1991: 54). A tortura era um mecanismo previsto pelo manual para se obter a confissão dos acusados, sendo que, ―qualquer pessoa, de qualquer classe, posição ou condição social, sob acusação dessa natureza, pode ser submetida à tortura (KRAMER & SPRENGER, 1991: 54). Mesmo com a confissão o acusado deveria ser torturado, pois deveria ser punido na dimensão de feitos. Segundo análise de Rose Marie Muraro (2000) em sua obra ―Texto da fogueira‖ o Malleus Malefícarum é a continuação do livro gêneses da Bíblia, assim evidenciando a perseguição às mulheres. No Gênese Eva é eleita como a representante do sexo feminino que origina o discurso fundador sobre o mal. Nos três primeiros capítulos Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 relacionadas à fé: sócios e cúmplices de um mesmo crime, notórios malfeitores e 321 do Gênese, Eva é acusada de burlar as leis patriarcais do que se convencionou nomear de mal, foi inteiramente incorporada pelo lugar da bruxa. Ambas, portanto, reforçam um dado importante para esta análise: a exaltação da sexualidade não-dita organizada em torno da formação ideológica feminina, que exerce a função de desviar as contradições do todo complexo dominante das formações discursivas. Para a autora são sete as teses centrais do documento. 1) o demônio, com a permissão de Deus, procura fazer o máximo de mal aos homes, a fim de apropriar-se do maior número possível de almas; 2) e este mal é feito prioritariamente por meio do corpo, único ―lugar‖ onde o demônio pode entrar, pois ― o espírito [do homem] é governado por Deus, a vontade por um anjo e o corpo pelas estrelas‖ (parte I, Questão VI). E porque as estrelas são inferiores aos espíritos e o demônio é um espírito superior, só lhe resta o corpo para dominar; 3)e este domínio lhe vem por meio do controle e da manipulação dos atos sexuais. Pela sexualidade, o demônio pode se apropriar do corpo e da alma dos homens; 4) e como as mulheres estão essencialmente ligadas à sexualidade, elas se tornam as agentes por excelência do demônio(as feiticeiras); 5) a primeira e maior característica , aquela que dá todo o poder às feiticeiras, é copular com o demônio. Satã é, portanto, o senhor do prazer; 6) uma vez obtida a intimidade com o demônio, as feiticeiras são capazes de desencadear todos os males, especialmente a impotência masculina, a impossibilidade de livrar-se de paixões desordenadas, abortos, oferendas de criança a Satanás, estragos de colheitas, doença nos animais, etc. 7)e esses pecados eram mais hediondos do que os próprios pecados de Lúcifer quando da rebelião dos anjos e dos primeiros pais por ocasião da queda, porque agora as bruxas pecam contra Deus e o Redentor (Cristo), e portanto esse crime é imperdoável e por isso só pode ser resgatado com a tortura e a morte. (MURARO, 2000:72). idade da luz, ―processa-se a mais delirante perseguição às mulheres e ao prazer. Tudo aquilo que já estava em embrião no Segundo Capítulo do Gênesis torna-se agora sinistramente concreto.‖ (MURARO, 2000:72). Na questão 07 faz-se uma análise do porquê das mulheres serem mais entregues as superstições diabólicas. A primeira analise é que, para o manual, a credulidade feminina em relação à masculina faz com elas sofram uma pressão do diabo que tem como maior objetivo corromper a Fé. Utiliza-se até Eclesiástico 19 para justificar essa posição ―Aquele que é crédulo demais tem um coração leviano e sofrerá prejuízo‖ (KRAMER & SPRENGER, apoud Eclesiástico 19 1991: 115). A segunda razão é a natureza impressionável das mulheres propensas a influência dos ―espíritos descorporificados‖, tornando-as absolutamente malignas quando a utilizam para o mal. Segundo o documento a outra razão é que a mulher demonstra maior carnalidade do que homem, isso vem a partir de sua criação desde o Éden. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 A autora ainda acrescenta que mesmo na época do Renascimento que precede a 322 Mas a razão natural está em que a mulher é mais carnal do que o homem, o que se evidencia pelas suas muitas abominações carnais. E convém observar que houve uma falha na formação da primeira mulher, por ter sido ela criada a partir de uma costela recurva, ou seja, uma costela do peito, cuja curvatura e, por assim dizer, contrária à retidão do homem. E como, em virtude dessa falha, a mulher é animal imperfeito, sempre decepciona e mente. (KRAMER & SPRENGER, 1991: 116). Ainda nesta perspectiva os autores concluem que as mulheres deveriam ser as mais visadas, pois são mais propensas às heresias. O Manual mostrava a mulher como mais propícia aos desejos carnais do que o homem. Toda bruxaria tem origem na cobiça carnal, insaciável nas mulheres [...] Pelo que, para saciarem a sua lascívia, copulam até mesmo com demônios. Poderíamos ainda aditar outras razões, mas já nos parece suficientemente claro que não admira ser maior o número de mulheres contaminadas pela heresia da bruxaria. E por esse motivo contém referir-se a tal heresia culposa como a heresia das bruxas e não a dos magos, dado ser maior o contingente de mulheres que se entregam a essa prática. E abençoado seja o Altíssimo, que até agora tem preservado o sexo masculino de crime tão hediondo: como Ele veio ao mundo e sofreu por nós, deu-nos, a nós, homens, esse privilégio. (KRAMER & SPRENGER, 1991: 121). A caça às bruxas conduzida pelo tribunal da inquisição demonstra a mentalidade misógina da igreja católica. Assim, o Malleus Maleficarum aponta a mulher como Durante três séculos o Malleus foi a bíblia dos Inquisidores e esteve na banca de todos os julgamentos. Quando cessou a caça às bruxas, no século XVIII, houve grande transformação na condição feminina. A sexualidade se normatiza e as mulheres se tornam frígidas, pois orgasmo era coisa do diabo e, portanto, passível de punição. Reduzem-se exclusivamente ao âmbito doméstico, pois sua ambição também era passível de castigo. O saber feminino popular cai na clandestinidade, quando não é assimilado como próprio pelo poder médico masculino já solidificado. As mulheres não têm mais acesso ao estudo como na Idade Média e passam a transmitir voluntariamente a seus filhos valores patriarcais já então totalmente introjetados por elas. (KRAMER & SPRENGER, opud Muraro 1991: 16) Segundo imaginação dos inquisidores, isto decorreria do seguinte método: De posse da pomada voadora, que (...) tem sua fórmula definida pelas instruções do diabo e é feita dos membros das crianças, sobretudo daquelas mortas antes do batismo, ungem com ela uma cadeira ou um cabo de vassoura; depois do que são imediatamente elevadas aos ares, de dia ou de noite, na visibilidade ou, se desejarem, na invisibilidade; (...) E não obstante o diabo realize tal prodígio em grande parte através da pomada - para que as crianças se vejam privadas da graça do batismo e da salvação -, parece que também consegue o mesmo resultado sem o seu emprego. Já que, vez ou outra, transporta as bruxas em animais, que não são de fato animais, mas demônios naquela forma, e noutras ocasiões, mesmo sem qualquer auxílio. (KRAMER & SPRENGER, 1991: 228) O Malleus Malleficarum foi o manual, oficializado pelo Papa, para a perseguição às bruxas pela Inquisição, levando à tortura e à morte milhares de mulheres. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 maior pecadora, a origem de todas as ações nocivas ao homem. 323 Considerações Finais O presente artigo buscou entender o processo Inquisitório que se estruturou no contexto histórico da Idade Média. Esse processo culminou com perseguição as bruxas na Idade moderna. Neste período histórico, o sentimento e o controle religioso estavam incorporados às diversas esferas sociais. Dessa forma existia uma visão opressora ao feminino, em que, existia norma de conduta a ser seguida pelas mulheres. O padrão patriarcal era estabelecido pela igreja demonstrava uma mentalidade misógina. Neste sentido o Malleus Maleficarum foi desenvolvido a partir de uma realidade complexa. Suas preocupações eram: o crescimento das heresias como um fator primordial para o enfraquecimento da fé católica; o aumento da influência diabólica favorecendo a desordem e o caos apoiado em três condições fundamentais: o diabo, a bruxa e a permissão de Deus. O combate às heresias se fazia necessário e urgente. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BURKE, Peter. História e teoria social. São Paulo: editora UNESP, 2002. DELUMEAU, Jean. História do medo no ocidente 1300-1800. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. FALBEL, Nachman. Heresias Medievais. São Paulo: Perspectiva, 1976. FRANCO Jr., Hilário. Idade Média no Ocidente. São Paulo: Brasiliense, 2006. GINZBURG, Carlo. História noturna: decifrando o sabá. São Paulo: Cia. das Letras, 1991. KRAMER, Heinrich; SPRENGER, James. Malleus Maleficarum. O Martelo das feiticeras. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos,1991. LE GOFF, Jacques. As raízes medievais da Europa. Petrópolis: Vozes, 2007. MURARO, Rose Marie. Textos da Fogueira. Brasília: Letra Viva, 2000. NOVINSKY, Anita. A Inquisição. São Paulo: Brasiliense, 1982. Fonte das ilustrações: Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 BETHENCOURT, Francisco. História das Inquisições – Portugal, Espanha e Itália, séculos XV-XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. 324 http://www.google.com.br/imgres?imgurl=http://2.bp.blogspot.com/_kogaPvgVD34/TARy4Mc ndvI/AAAAAAAAAyo/AfwlpiJkokU/s1600/FOLHA.jpg&imgrefurl=http://questionetudosemp re.blogspot.com/2010_05_31_archive.html&usg=__iceDxsVpJ4Cg5iePUoTUX0CGlMg=&h=9 00&w=1200&sz=363&hl=ptbr&start=0&zoom=1&tbnid=GZeAeD44EXC3pM:&tbnh=147&tbnw=196&prev=/images%3F q%3Dmartelo%2Bdas%2Bbruxas%26hl%3Dpt-br%26client%3Dfirefoxa%26sa%3DG%26rls%3Dorg.mozilla:ptBR:official%26biw%3D1280%26bih%3D592%26gbv%3D2%26tbs%3Disch:1&itbs=1&iact=h c&vpx=248&vpy=307&dur=2573&hovh=194&hovw=259&tx=204&ty=156&ei=ajXcTP_EDI K88gaM4ambCQ&oei=ajXcTP_EDIK88gaM4ambCQ&esq=1&page=1&ndsp=24&ved=1t:429 ,r:17,s:0 Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 Acesso: dia 10 de novembro de 2010 325 HISTORIOGRAFIA E ENSINO DE HISTÓRIA: UM ESTUDO SOBRE CONSCIÊNCIA HISTÓRICA E IDENTIDADES DE JOVENS ESTUDANTES E PROFESSORES DE HISTÓRIA EM ESCOLAS NO MEIO RURAL Astrogildo Fernandes da Silva Júnior Doutorando em Educação – UFU Introdução O propósito deste texto é refletir sobre as diversas correntes historiográficas que fundamentaram o currículo de História ao longo da história da disciplina e a relação com a consciência histórica e com a identidade dos sujeitos envolvidos, ou seja, estudantes e professores. Em especial detemos nossos estudos nos Parâmetros Curriculares Nacionais – PCNs do ensino de História e nas Diretrizes Operacionais da Educação Básica da Escola do Campo, buscando identificar possibilidades, avanços e/ou retrocessos destes documentos na formação da consciência histórica e das identidades dos jovens estudantes e professores de História no meio rural brasileiro. Organizamos o texto em três partes. Na primeira, apresentamos as diversas correntes historiográficas que, ao longo do tempo, fundamentaram o currículo de História. Na segunda, apresentamos os PCNs e as Diretrizes Operacionais da Educação do Campo e procuramos fazer uma relação dos conteúdos com a formação da considerações. As diversas correntes historiográficas ao longo da história Uma questão que sempre nos instigou, ao longo da nossa experiência como professores e pesquisadores, foi a discrepância entre a história que se ensina na graduação e a história estudada nas escolas de ensino fundamental e médio. O que percebemos é que ao contrário das universidades, em geral, o que as pesquisas nos mostram é que nas escolas prevalece uma leitura historiográfica fragmentada e simplificada, o que interfere na formação da consciência histórica. Concebemos a história como o estudo da experiência humana no passado e no presente. A história busca a compreensão das múltiplas maneiras como homens e mulheres viveram e pensaram suas vidas e suas sociedades, ao longo do tempo e nos diversos espaços. Mas, como a história é registrada e transmitida ao longo das gerações? Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 consciência histórica e identidades de alunos e professores. Por fim, tecemos nossas 326 Neste tópico propomos revisitar as diferentes correntes historiográficas: escola metódica, escola dos annales, história nova, marxismo e a histórica cultural. Segundo Bourdé (s.d.) a escola metódica buscou impor uma investigação científica afastando qualquer especulação filosófica. Visava a objetividade absoluta no domínio da história, procurava atingir seus fins aplicando técnicas rigorosas respeitando o inventário das fontes, à crítica aos documentos e a organização da profissão. A fundação, em 1876, da Revista Histórica, por G. Monod e G. Fagniez, marcou a constituição da escola metódica. Essa corrente historiográfica partia do princípio de que a história não passava de aplicação dos documentos. Utilizava como fontes de estudo os documentos oficiais e não oficiais escritos como, por exemplo, leis e livros. Valorizava também os sítios arqueológicos, edificações e objetos de coleção e de museus como moedas e selos. Segundo Bourdé (s.d.), procurar escolher os documentos é uma das partes principais logicamente a primeira do ofício do historiador. Os documentos salvos, registrados e classificados deveriam ser submetidos a uma série de operações analíticas. Depois de realizadas as operações analíticas iniciavam as operações sintéticas. De acordo com Bourdé (s.d.) a primeira fase, dessa operação, consistia em comparar vários documentos para estabelecer um fato particular. A segunda fase caracterizava-se em reagrupar os atos isolados em quadros gerais. A terceira fase visava manejar o preencher as lacunas da documentação. A quarta fase forçava a praticar uma escolha na totalidade dos acontecimentos. Por fim, cabia ao historiador, fazer algumas generalizações. Podemos afirmar que os sujeitos da escola metódica eram as grandes personalidades políticas, religiosas e militares. Atores individuais que geralmente apareciam como construtores da história. Nessa corrente historiográfica estudava-se os grandes acontecimentos diplomáticos, políticos e religiosos do passado. Privilegiavam o estudo do passado que eram apresentados numa seqüência cronológica (linear e progressiva). Em síntese, nessa escola, os fatos deveriam ser tratados de forma objetiva e com base nos documentos. A escola dos Annales foi uma tendência da historiografia francesa, liderada por intelectuais como Bloch e Febvre, que no início do século XX, buscou estabelecer um diálogo crítico e de oposição à escola metódica. Abandonaram algumas posições, incorporaram outras e, fundamentalmente transformaram a forma de pesquisar e estudar Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 raciocínio, por dedução e analogia, com o intuito de ligar os fatos entre si, para 327 a história. Partia do princípio de que não existia um fato pronto, mas que serão construídos pelos historiadores, sendo sua função interrogar a realidade e que só haverá história na colocação dos problemas. De acordo com Bourdié (s.d.), M. Bloch além de explorar novos documentos, buscou descobrir novos domínios. Orientou-se pela análise dos fatos econômicos. Mesmo sem reconhecer explicitamente, foi influenciado pela obra de K. Marx, que o incitou a relacionar as estruturas econômicas e as classes sociais. A escola dos Annales defendia a afirmação de que para ser um autentico profissional da história era fundamental conhecer as ciências vizinhas: geografia, etnografia, demografia, economia, sociologia e a linguística. Essa corrente historiográfica ao criticar a história dos acontecimentos, característica da escola metódica, defende uma nova concepção de tempo histórico. Por meio da obra de F. Braudel, ―O Mediterrâneo‖, é possível identificar três diferentes tempos históricos. Segundo Bourdié (s.d.) o primeiro escalão é caracterizado por uma história quase imóvel, de longa duração, como por exemplo, o tempo geográfico que parece confundir com a eternidade. No segundo escalão, uma história lentamente ritmada, estrutural, uma duração cíclica, enfim uma história de média duração, na qual pode ser analisada a história econômica. No terceiro escalão, uma história de curta duração, um história não na dimensão do homem, mas do indivíduo. geral, preocupa-se com os acontecimentos do cotidiano da vida humana, ligados à vida das famílias, às festas, às formas de ensinar e aprender. De acordo com Fonseca (2005), a história nova ocupa-se de tudo aquilo que os homens e mulheres fizeram no passado e também fazem no tempo presente. De acordo com Bittencourt (2004), essa produção denominada nova história, foi alvo de uma série de críticas pelo caráter fragmentário de seus objetos de estudo, não havendo preocupação com o caráter globalizante e pela ausência de fundamentação teórica. Foi atribuída a essa produção o título de história de migalhas, devido ao predomínio da micro-história e pela não preocupação política e ausência de articulações mais estruturais da sociedade. Outra corrente historiográfica que merece nossa atenção é o marxismo. Embora é importante ressaltar que não temos a pretensão de aprofundar na concepção histórica engendrada por K. Marx. Nos limites deste texto nos contentamos em apresentar algumas características do marxismo. Segundo Lima (1997), Marx destacou em seus Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 A história nova, considerada a terceira geração da escola dos Annales, de forma 328 estudos o caráter dialético do conhecimento histórico. De acordo com o autor o passado não pode ser ressuscitado tal qual ocorreu, e o historiador não se resume a um mero ordenador de acontecimentos. Esse paradigma tem como princípio o caráter científico do conhecimento histórico, e o enfoque de sua análise é a estrutura dinâmica das sociedades humanas. De acordo com Bittencourt (2004) a análise marxista parte das estruturas presentes com o intuito de orientar a práxis social. Existe assim uma vinculação epistemológica dialética entre presente e passado. O marxismo, para compreender as sociedades humanas, utiliza conceitos como modo de produção, formação econômico-social e classes sociais. Reforçam que as mudanças sociais não ocorrem por indivíduos isolados, mas pelas lutas sociais. Bourdé (s.d.) assevera que nos anos de 1960 e 1970 a marca do marxismo não se limitava à história econômica, ao nível da infraestrutura, mas se estendia à história das mentalidades, ao nível da superestrutura. O autor nos alerta que não devemos procurar nos trabalhos de Marx uma ciência da história, definitivamente constituída, de que bastaria aplicar os princípios para compreender o funcionamento das sociedades. Com as críticas a certas produções marxistas, especialmente as de linha estruturalistas, começam a surgir uma produção marxistas com ênfase em conteúdos sociais articulando o conceito de classe social ao de cultura. Um exemplo é a obra de E.P. Althusser. A aproximação da Antropologia com a História sedimentou a história cultural que procura vincular a micro-história com a macro-história. Essa corrente historiográfica preocupa-se não apenas com o pensamento das elites, mas também com as ideias e confrontos de ideias de todos os grupos sociais. O intuito dessa corrente é renovar a história política, procurando renovar os temas políticos, introduzindo a história das culturas políticas, dos regimes e sistemas de governo e das representações do poder. É caracterizada por uma perspectiva globalizante. Segundo Duby (1998) a finalidade da história cultural é definir os modelos culturais que, em certos momentos, se impuseram a determinadas sociedades, dar conta do seu sucesso, enfim, perceber seu movimento, que de forma lenta ou viva, branda ou brusca acontecem ao longo do tempo. O autor continua, A tarefa consiste pois no inventário, numa determinada época, das bases de uma cultura. Quer dizer, em primeiro lugar, de um conjunto de signos e de símbolos – vocabulário, sintaxe, fórmulas e gestos rituais, figuras expressas Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 Thompson: Miséria da Teoria ou um planetário de erros – uma crítica ao pensamento de 329 pela música, pelo cerimonial ou pelas artes sólidas – que comandam os mecanismos mentais e pelos quais o espírito humano apreende o real, se situa em relação ao tempo, ao espaço e aos outros, e projeta no imaginário os seus desejos e as suas inquietações. A este nível de análise, em que podem ser utilmente postos em execução os métodos quantitativos, o historiador deve associar-se estreitamente aos dialectólogos e a todos aqueles que se dedicam ao estudo da semântica, da estilística, dos meios de percepção e de expressão (DUBY, 1998, p. 4005). É necessário destacar que a cultura nunca é recebida uniformemente pelo conjunto de uma sociedade, que esta se decompõe em meios culturais distintos, muitas vezes antagônicos. Dessa forma, de acordo com Duby (1998) a história cultural é naturalmente conduzida para o estudo da estratificação social e das estruturas de grupo. Dessa forma integra-se na história da sociedade, de que se alimenta e que, por sua vez, alimenta generosamente. Essa concepção de história é um desafio ao ensino de História. A proposta curricular do ensino de História, as Diretrizes Operacionais para Educação no Campo e a consciência histórica Entendemos o currículo como uma construção cultural, como um modo de organizar uma série de práticas educativas. O conhecimento corporificado no currículo não é algo fixo, mas um artefato social e histórico, sujeito a mudanças e flutuações. O currículo deve ser percebido como um processo constituído de conflitos e lutas entre diferentes tradições e diferentes concepções sociais. A seleção e a organização do processo lógico, mas social, no qual convivem, lado a lado, fatores epistemológicos e intelectuais. O currículo não é constituído de conhecimentos válidos, mas de conhecimentos considerados socialmente válidos. Segundo Apple (1982), o currículo participa do processo de construção das identidades que dividem a esfera social, ajudando a produzir, entre outras, determinadas identidades raciais, sexuais e nacionais. Sendo assim, podemos argumentar que, nas discussões críticas sobre o currículo, se evidenciam análises que focalizam a produção de identidades sociais. Ao longo da história da educação brasileira, os currículos escolares apontavam para a importância social do ensino de História. Uma das tradições da área foi a de contribuir para a construção da identidade, sendo esta entendida como a formação de um ―cidadão patriótico‖, ―homem civilizado‖ ou da ―pessoa ajustada ao seu meio‖. De acordo com a proposta do ensino de História, registrada pelos PCNs, é necessário Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 conhecimento escolar não podem ser vistas como escolhas inocentes, não são um 330 repensar sobre o que se entende por identidade e qual a sua relevância para a sociedade brasileira contemporânea. O que os alunos aprendem ou deixam de aprender vai muito além do que está prescrito nos documentos oficiais. Conforme Cerri (2001), os problemas e as potencialidades do ensino e a aprendizagem de história não estão restritos à relação professor – aluno na sala de aula, mas envolvem o meio em que o aluno e professor vivem, os conhecimentos e opiniões que circulam sua família, na igreja ou noutras instituições que frequentam e nos meios de comunicação de massa a que têm acesso. Entretanto, como afirmamos anteriormente, interessa-nos analisar o que está explícito e implícito na proposta curricular – PCNs – dos anos finais do ensino fundamental, documento que representa e legitima as decisões políticas para os sistemas de ensino no Brasil. De acordo com os PCNs, desde que a História ensinada foi incorporada no currículo escolar, tem-se mantido uma interlocução com o conhecimento histórico. O documento ressalta a importância de aprofundar e revelar as dimensões da vida cotidiana de trabalhadores, mulheres, crianças, grupos étnicos, velhos e jovens e de pesquisas que estudam práticas e valores relacionados às festas, à saúde, à doença, ao corpo, à sexualidade, à prisão, à educação, à cidade, ao campo, à natureza e à arte. Propõe a utilização das mais variadas fontes de pesquisas, como a documentação escrita É importante não reduzir o trabalho com cultura material ao arrolamento apenas ilustrativo de diferentes artefatos, sem pensar mais detidamente sobre sua situação num mundo de homens e mulheres que se relacionam por meio de símbolos e poderes e se fazem por diferentes vias. Nesse sentido, podemos compreender que a cultura material pode ser uma grande aliada dos professores de História. Peses (1990) nos ensina que é fundamental apreender a condição material dos homens ao longo do tempo, pois podese descobrir, por meio da cultura material, as relações sociais e os modos de produção das sociedades do passado. Para que isso se efetive, acreditamos que o objeto precisa ser fetichizado, ou seja, é necessário buscar os por quês, as questões sociais, políticas e históricas. Dessa forma é possível romper com a fragmentação da consciência histórica dos jovens estudantes e avançar na perspectiva de uma consciência histórica crítica e genética. Os PCNs defendem a afirmação de que as formas de estudar o passado são plurais. Ressaltam que a diversidade de temas e abordagens deve ser alimentada e Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 oficial, textos, jornais, revistas, imagens, relados orais, objetos e registros sonoros. 331 fundamentada pelo diálogo da História com outras áreas do conhecimento das Ciências Humanas, como a Filosofia, a Economia, a Política, a Geografia, a Sociologia, a Psicologia, a Antropologia, a Arqueologia, a Crítica Literária, a Linguística e a Arte. Reforçam que as atitudes do professor-pesquisador sejam de identificar, relacionar, interpretar o passado como expressões de vivências e de modos de pensar contraditórios de uma realidade social e cultural representadas. É possível perceber que o documento está mais ―antenado‖ com a complexidade do conceito de identidades. Comungamos com Bauman (2005) e Hall (2005), ao afirmarem que o que se tem de concreto é um sujeito fragmentado, cambiante, deslocado, no qual estão em conflitos várias identidades, algumas, inclusive, antagônicas. As identidades do indivíduo são organizadas em torno de imagens dinâmicas de exploração e transformação de diferentes realidades. Concordamos com Lévy (2007), ao asseverar que o ser humano volta a tornar-se nômade, pluraliza sua identidade, explora mundos heterogêneos e múltiplos, em devir pensantes. Defendemos a possibilidade de avançar na proposta dos PCNs e trabalhar os saberes históricos escolares na perspectiva de permitir alunos e professores fluírem, mesclarem-se, valorizarem-se, dilatarem-se e trocaram-se. Aceitarem distintos pontos de vista em uma perspectiva que abarque o desenvolvimento comum. Dessa forma, avançar na formação de uma consciência histórica crítica e genética. igual e único para toda a humanidade, valoriza-se o esforço de perceber a descontinuidade das mudanças. Enfatiza-se a importância de refletir sobre os diferentes níveis e ritmos de durações temporais. Durações relacionadas à percepção dos intervalos das mudanças ou das permanências nas vivências humanas. Essa concepção de tempo é baseada nos estudos de Fernand Braudel. Segundo Bourdé (s.d.), Braudel situa a história em três escalões: à superfície, uma história dos acontecimentos, que se inscreve no tempo curto; a meia encosta, uma história conjuntural, que segue um ritmo mais lento; em profundidade, uma história estrutural, de longa duração, que põe em causa séculos. De acordo com Páges e Santisteban (2008), a compreensão da temporalidade é fundamental para uma educação democrática. Destaca elementos como: entender o presente, tomar decisões e pensar o futuro. Consideramos uma grande contribuição do autor no que diz respeito a aprendizagem do futuro. O autor afirma que as aproximações ao estudo do futuro podem situar –se em três âmbitos: Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 Quanto à noção de tempo, em vez de percebê-lo como contínuo e evolutivo, 332 a)las creencias, que han dado lugar a la escatologia y a apocalíptica, también al milenarismo y al mesianismo, así como a los mitos del fin del mundo; b) las ideologias, que han producido las utopias, las cuales han jugado un papel muy importante en la configuración del pensamiento social contemporáneo; c) la ciencia, que utiliza la prospectiva para analizar la posible evolución de los acontecimientos en futuro, de tal manera que esta actividad se há convertido en uma parte esencial de la ciencia y de las ciencias sociales, por ejemplo en la economia o en la política. Este tercer âmbito del futuro es el que más nos interesa desde la enseñanza (PAGÉS; SANTISTEBAN, 2008, p. 6-7). Acreditamos que essa noção de tempo, defendida por Páges e Santisteban (2008), avança em relação ao que propõem os PCNs, comungamos com o autor ao afirmar que no ensino de História, devemos conectar o estudo do passado com a prospectiva no futuro. O ensino de História deve apoiar-se nos pré-requisitos temporais necessários para introduzir o aluno na experiência histórica e deve ser ensinado desde os primeiros anos de escolaridade. De acordo com os PCNs, espera-se que, ao longo do Ensino Fundamental, os alunos, gradativamente, possam ampliar a compreensão de sua realidade, especialmente, confrontando-a e relacionando-a com outras realidades históricas. Assim, supõe-se que os professores possam fazer suas escolhas, estabelecer critérios, selecionar saberes e Identificar relações sociais no seu próprio grupo de convívio, na localidade, na região e no país, e outras manifestações estabelecidas em outros tempos e espaços. Situar acontecimentos históricos e localizá-los em uma multiplicidade de tempos. Reconhecer que o conhecimento histórico é parte de um conhecimento interdisciplinar. Compreender que as histórias individuais são partes integrantes de histórias coletivas. Conhecer e respeitar o modo de vida de diferentes grupos, em diversos tempos e espaços, em suas manifestações culturais, econômicas, políticas e sociais, reconhecendo semelhanças e diferenças entre eles, continuidades e descontinuidades, conflitos e contradições sociais. Questionar sua realidade, identificando problemas e possíveis soluções, conhecendo formas político-institucionais e organizações da sociedade civil que possibilitem modos de atuação. Dominar procedimentos de pesquisa escolar e de produção de texto, aprendendo a observar e colher informações de diferentes paisagens e registros escritos, iconográficos, sonoros e materiais. Valorizar o patrimônio sociocultural e respeitar a diversidade social, considerando-os critérios éticos. Valorizar o direito de cidadania dos indivíduos, dos grupos e dos povos como condição de efetivo fortalecimento da democracia, mantendo-se o respeito às diferenças e a luta contra desigualdade (BRASIL, PCN – Ensino Fundamental, 1997, p. 43). Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 orientar suas ações. Nesse sentido, os alunos deverão ser capazes de: 333 A análise dos Parâmetros Curriculares Nacionais evidencia uma preocupação do Estado com a inclusão da diversidade cultural no currículo de História, com a formação para a cidadania e com a intenção de integrar o ensino ao cotidiano do aluno. Dessa forma, acreditamos na possibilidade de considerar as especificidades da educação escolar no meio rural, sem desconsiderar os saberes que devem ser comuns a todos os estudantes. Segundo as Diretrizes Operacionais para a Educação básica nas Escolas do Campo, a identidade da escola do campo é definida da seguinte maneira: Art. 2 - Parágrafo único. A identidade da escola do campo é definida pela sua vinculação às questões inerentes à sua realidade ancorando-se na temporalidade e saberes próprios dos estudantes, na memória coletiva que sinaliza futuros, na rede de ciência e tecnologia disponível na sociedade e nos movimentos sociais em defesa de projetos que associem as soluções exigidas por essas questões à qualidade social da vida coletiva do País (BRASIL, Ministério da Educação, Diretrizes Operacionais para a Educação básica nas escolas do campo, 2002, p.37). De acordo com o documento, os saberes docentes necessários aos professores Art. 13. Os sistemas de ensino, além dos princípios e diretrizes que orientam a Educação Básica no País, observarão, no processo de normatização complementar da formação de professores para o exercício da docência nas escolas do campo, os seguintes componentes: I – estudos a respeito da diversidade e o efetivo protagonismo das crianças, dos jovens e dos adultos do campo na construção da qualidade social da vida individual e coletiva, da região, do País e do mundo; II – propostas pedagógicas que valorizem, na organização do ensino, a diversidade cultural e os processos de interação e transformação do campo, a gestão democrática, o acesso ao avanço científico e tecnológico e respectivas contribuições para a melhoria das condições de vida e a fidelidade aos princípios éticos que norteiam a convivência solidária e colaborativa nas sociedades democráticas (BRASIL, Ministério da Cultura, 2002, p. 41). O diálogo entre os PCNs de ensino de História e as Diretrizes Operacionais da Educação Básica nas Escolas do Campo possibilita-nos uma reflexão sobre que tipo de consciência histórica é possível formar nos jovens estudantes de escola no meio rural. Para Rusen (2001), a consciência histórica é a realidade por meio da qual se pode entender o que é a História como ciência e por que ela é necessária. Acreditamos que o professor de História de escolas rurais, compromissado com a realidade em que atua, aprofundando seus estudos de forma crítico - reflexiva sobre os PCNs, auxilie seus alunos a construir uma consciência histórica crítica, proporcionando atividades que levem aos alunos o entendimento de uma narrativa construída, procurando nela o sentido que o autor quis pressupostos. dar a ela e sensibilizando-o, com as suas intenções e Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 das escolas devem levar conta as especificidades do meio rural: 334 Considerações finais O estudo sobre os PCNs de ensino de História nos revelou indícios de que estão ancorados em vertentes historiográficas que entendem a história como estudo da experiência humana no tempo. A história estuda a vida de todos os homens e mulheres, com a preocupação de recuperar o sentido de experiências individuais e coletivas. Os documentos apontam que este deve ser um dos principais critérios para a seleção de conteúdos e sua organização em temas a serem ensinados com o objetivo de contribuir para a formação de consciências individuais e coletivas numa perspectiva crítica. As Diretrizes Operacionais para a Educação básica nas Escolas do Campo, reforçam a necessidade de considerar os saberes dos jovens e a relação tempo e espaço no processo de ensino e de aprendizagem. Os documentos apontam para a necessidade de reformular os conteúdos, priorizando a construção de problematizações históricas. Sugerem a apreensão de várias histórias lidas a partir de distintos sujeitos históricos, das histórias silenciadas. Reforçam a importância de recuperar a vivência pessoal e coletiva dos estudantes. Na escolha dos conteúdos, a proposta dos PCNs é propiciar aos alunos o dimensionamento de si mesmos e de outros indivíduos e grupos em temporalidades históricas. Os conteúdos devem sensibilizar e fundamentar a compreensão de que os problemas atuais e cotidianos não podem ser explicados unicamente a partir dos acontecimentos restritos entre vivências sociais no tempo. O estudo nos revelou que os PCNs trazem um avanço considerável nas finalidades do ensino de História. A possibilidade de levar aos alunos à passagem de uma consciência histórica tradicional e exemplar para uma consciência história crítica e genética está dada nos documentos. Contudo não são suficientes para que se efetivem na prática. Defendemos a necessidade de pesquisas que registrem os saberes e os fazeres dos professores de História. De políticas públicas que possibilitem a formação continuada e contínua dos professores que atuam no meio rural, e, assim, estimular estudos críticos sobre os documentos oficiais. Acreditamos na importância de escutar, integrar e restituir a diversidade. Um ensino de História que auxilie na construção das identidades de estudantes e professores. Dessa forma, é possível uma consciência histórica crítica e genética. É fundamental que o ensino de História nos auxilie na construção de uma democracia em tempo real. Para isso, é imperativo considerar o que Lévy (2007) nos ensina: 1) escutar Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 ao presente. Requerem questionamentos ao passado, análises e identificação de relações 335 os outros coralistas; 2) cantar de modo diferenciado; 3) encontrar uma coexistência harmônica entre sua própria voz e a dos outros, ou seja, melhorar o efeito do conjunto. A relevância do conhecimento histórico, ou seja, do saber ensinado, encontrado nos indícios dos documentos analisados, se confrontados com a experiência cultural de estudantes e professores, pode permitir que esses sujeitos se apropriem e/ou construam maneiras pelas quais os saberes podem ser ensinados e aprendidos. Nesse sentido, é possível pensar em uma contribuição mais efetiva do ensino de História em escolas no meio rural, na transformação da sociedade. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS APPPLE, M.W. (1982). Ideologia e currículo. São Paulo: Brasiliense. BAUMAN, Zygmunt.(2005). Identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora. BOURDIÉ, Guy e MARTIN, Hervé. As escolas históricas. S.I.C., Portugal: Publicações Europa América, s.d. BRASIL. (1997). Proposta curricular de História, Ensino Fundamental, Secretaria de Educação de Minas Gerais. BRASIL. (2002). Ministério da Educação – Diretrizes operacionais para a educação básica nas escolas do campo. Brasília, DF. DUBY, Georges. A História cultural. In: J.P. RIOUX ET J.F. SIRINELLI (orgs). Por uma história cultural. Lisboa: Editora Estampa, 1998, p. 403-408. HALL, Stuart.(2005). A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva, Guaracira Lopes Louro – 10. ed. Rio de Janeiro: DP&A LÉVY, Pierre. (2007). A inteligência coletiva. Tradução Luiz Paulo Rouane. Edição Loyola, 5. edição São Paulo. LIMA, Sandra Fagundes. A história que se conhece, a história que se ensina. Dissertação (Mestrado em Educação). Faculdade de Educação, Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia – MG, 1997. PAGÉS, Jean; SANTISTEBAN, Antoni Fernández. (2008). Cambios y continuaidades: aprender la temporalidad histórica. In: JARA, M. A. (coord.): Enseñanza de la Historia. Debates y Propuestas. EDUCO Editorial de la Universidad nacional del Comahue (Argentina), 91-127. PESES, Jean-Marie. História da cultura material. In: LE GOFF, Jacques (Org.). A História Nova. Tradução Educardo Brandão. São Paulo: Martins, 1990, p. 177-213. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 CERRI, Luis Fernando. (2001). Os conceitos de consciência histórica e os desafios da didática da História. Revista da História Regional 6(2). p. 93-112, Inverno. 336 O PENSAMENTO INDUSTRIAL NO BRASIL (SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX A 1930). Ms. Tomás Rafael Cruz Cáceres Professor Assistente do Departamento de História da UNESP – FCL Assis. Doutorando do PPG em História da UNESP – FCL Assis Claudinei Mendes Orientador Carlos M. Pelaez120, analisando a evolução econômica desde o século XIX até meados do seguinte do Brasil e demais países conhecidos como de colonização recente, como foram os Estados Unidos da América do Norte, Canadá, Austrália, África do Sul e outros, observa que todos eles começaram dedicando-se à produção de produtos primários e que com a entrada de capital e trabalho qualificado conseguiram alcançar o progresso. E se pergunta por que o Brasil e a Argentina não conseguiram se desenvolver juntamente com esses países, já que ambos receberam um grande influxo de trabalho e capital europeus e se tornaram grandes exportadores de produtos primários. Identifica o insucesso do Brasil, em matéria de desenvolvimento antes de 1945 como um insucesso na industrialização, atribuindo a dois fatores interdependentes, relacionados com a econômica de proteção ao setor cafeeiro em relação às demais atividades. O segundo fator refere-se às políticas monetária, cambial e fiscal, e bases institucionais contrárias à industrialização. Considera que o sistema monetário e bancário de um país deve ser orientado para a promoção da industrialização, assim como fizeram os paises desenvolvidos. No caso do Brasil, esse sistema deveria ter fornecido liquidez para o estabelecimento de novas indústrias com base em tecnologia estrangeira, já que não estava disponível internamente. Porém, isso era praticamente impossível devido a que a orientação que prevaleceu na condução da economia na maior parte do século XIX e nas primeiras décadas do seguinte estava dominada pela escola de pensamento ortodoxo, que se traduzia em sua implementação em três objetivos de políticas econômicas, perseguidos sob quaisquer condições econômicas. Estes eram o equilíbrio orçamentário, a austeridade monetária e as altas taxas de câmbio, isto é, valorização da taxa cambial, 120 PELAEZ, Carlos M. As conseqüências econômicas da ortodoxia monetária, cambial e fiscal no Brasil entre 1889 e 1945. In: Revista Brasileira de Economia. Vol. 25, n. 3, jul/set, 1971 Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 política econômica oficial. O primeiro, o mais importante para ele, foi a política 337 constituindo o remédio ou receita ordinária e recorrente para qualquer contração dos negócios. Em relação ao atraso relativo da economia brasileira na primeira metade do século XIX, Furtado121 afirma que a causa principal foi o estancamento de suas exportações tradicionais (açúcar, algodão e fumo), e que fomentar a industrialização nessa época, sem o apoio de uma capacidade para importar em expansão, seria tentar o impossível num país totalmente carente de base técnica, ainda que se deixasse de considerar que uma política inteligente de industrialização seria impraticável num país dirigido por uma classe de grandes senhores agrícolas escravistas. Entretanto, ao contrastar esse estado de estagnação e decadência com as mudanças ocorridas na segunda metade desse século confessa que ―dificilmente um observador que estudasse a economia brasileira pela metade do século XIX chegaria a perceber a amplitude das transformações que nela se operariam no correr do meio século que se iniciava‖. Sendo impulsionadas essas transformações pelo aparecimento do café como produto de exportação, que rapidamente se converte na principal fonte de riqueza para o país, o que se constata com alguns dados que Furtado nos oferece: no primeiro decênio da independência o café já contribuía com 18% do valor das exportações do Brasil, colocando-se em terceiro lugar depois do açúcar e do algodão. E nos dois decênios seguintes já passa para o primeiro lugar, representando mais de 40% do valor das Porém, a partir de meados do século XIX, começa a modificar-se sensivelmente essa situação de atraso com o setor agrícola reintegrando-se novamente ao comércio internacional, através, fundamentalmente, da atividade cafeeira que se desenvolve com grande dinamismo, especialmente a partir da década de 1870, quando sua produção começa a ocupar a região oeste da província de São Paulo, graças à penetração da estrada de ferro. Até meados da década de 1890 o estado do Rio de Janeiro era o maior produtor de café do país, tendo como centro principal a região do Vale do Paraíba, que abarcava parte do estado de São Paulo. Daí em diante São Paulo assume a liderança. Pode-se afirmar que até as últimas duas décadas do século XIX não tinha havido no Brasil um movimento organizado pela própria indústria para lutar pelos interesses ligados a seu setor. Não obstante, ao longo de sua história, desde a época da colônia, sempre surgiram pessoas, ligadas ou não à indústria, que tentaram conscientizar à nação 121 FURTADO, Celso. Formação Econômica do Brasil. São Paulo: Ed. Nacional, cap. XIX, pp. 106-109; cap. XX, pp. 110-116. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 exportações. 338 de que sem a industrialização o país não alcançaria seu desenvolvimento econômico e social, nem sua real e efetiva autonomia frente às demais nações. Essa situação começou a mudar com a crise de meados da década de 1870 e a intensificação da concorrência de produtos importados. A reação foi iniciada pelos fabricantes de chapéus do Rio de Janeiro que sofriam uma violenta concorrência dos artigos importados da Alemanha. No começo colocaram o problema à Associação Comercial do Rio de Janeiro sem conseguir qualquer resultado; logo se dirigiram à Associação Auxiliadora da Indústria Nacional solicitando apoio a suas reivindicações protecionistas. Depois de intensos debates e com apoio da Associação, obtido em votação (já que o parecer da seção de comércio foi contrário e o da seção de Indústria a favor) a Associação decidiu enviar ao governo uma representação, pedindo providências para o desenvolvimento industrial e amparar as fábricas já existentes por meio de uma tarifa alfandegária adequada. Esse movimento encontrou um forte e decidido apoio na pessoa do Comendador Malvino da Silva Rei122. Este e mais alguns industriais convocaram uma reunião, dirigida a todos aqueles que se interessassem pelo desenvolvimento do trabalho nacional. O resultado foi a criação da Associação Industrial em 1881, tendo sido eleito como presidente Antônio Felício dos Santos, que logo teve que renunciar por ter sido eleito deputado. Esses acontecimentos tinham como cenário o Distrito Federal, cidade do Rio de Janeiro, já que era aí, juntamente com o Para conhecer as idéias que impulsionaram o movimento inicial a favor da industrialização do Brasil é fundamental recorrer ao manifesto que a Associação Industrial do Rio de Janeiro divulgou ao se constituir, redigido por Antonio Felício dos Santos123, seu primeiro presidente, e publicado no seu órgão de divulgação oficial, ―O Industrial‖, em 11 de maio de 1882. Esse documento constitui um ataque ao liberalismo e à política do governo, combatendo as objeções dos adversários da industrialização com uma argumentação que pretendia se basear em fatos concretos e nas condições econômicas e sociais do Brasil. Argumentava-se que com a industrialização o Brasil não só conseguiria a independência econômica, senão que resolveria outros vários problemas como a entrada de capitais e mão-de-obra estrangeiras; criação de oportunidades de ocupação para a população desocupada que poderia gerar um 122 ASSOCIAÇÃO INDUSTRIAL. Relatório apresentado à Assembléia Geral, sessão de 10 de junho de 1882, pela Diretoria. p. 28, In: LUZ, Nicia V. A. A luta pela industrialização do Brasil. 2 ª ed. São Paulo: Alfa-ômega, 1975, p. 56-57. 123 Associação Industrial. ―O Industrial‖. Rio de Janeiro, 21 de maio de 1881, n.1. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 Estado do Rio de Janeiro, onde então, se desenvolvia a indústria brasileira. 339 problema social; o abastecimento do mercado interno com produção nacional melhoraria o resultado da balança comercial, ao diminuir a importação. O protecionismo defendido não era baseado em doutrina e sistema preestabelecido. Fundava-se, segundo os industrialistas, na situação real do país, beneficiando apenas as industrias viáveis. Rejeitavam as acusações de que defendiam um regime proibitivo, afirmando que as taxas solicitadas eram moderadas, reconheciam que tarifas exageradas isolariam o país e não era isso que perseguia a indústria nacional. O que ela defendia era um certo grau de estabilidade, pois acreditava-se que a instabilidade alfandegária afugentava os estrangeiros que poderiam investir no país. Um dos aspectos mais enfatizados na defesa da proteção à produção nacional era o desequilíbrio no comércio exterior do Brasil, do balanço de pagamentos. Idéia que se converte na força mais poderosa na evolução do nacionalismo econômico brasileiro. Antonio Felício dos Santos desenvolve este assunto em discursos no Parlamento e através do jornal da Associação, com amplitude e coerência frente à realidade dos fatos da economia brasileira. Denuncia o desequilíbrio real da balança de pagamentos, mascarado pelos saldos fictícios da balança comercial, afirmando que enquanto a estimativa do volume de exportação era quase exata, a da importação não correspondia à realidade, já que se baseava em valores oficiais fixados pelo governo para fins fiscais, valores que em geral estavam abaixo do valor real das mercadorias importadas. Indicava para a Europa, em pagamento de juros dos empréstimos levantados pelo governo brasileiro e ―pelas remessas dos particulares, a emigração constante dos capitais que não confiam na nossa estabilidade, as retiradas dos brasileiros que passeiam pelo velho mundo ou lá vivem, porque, senhores, o terrível cancro do absentismo já se faz sentir gravemente no Brasil: essa corrente esterilizadora parece mesmo avultar diariamente‖124. Em relação às medidas a serem tomadas para solucionar os vários problemas que enfrentava a economia brasileira – déficits orçamentários, desequilíbrio nas contas externas, alcançar a independência econômica – consideravam, os industrialistas, que não seria por meio de empréstimos anuais para saldar as diferenças da importação sobre a exportação, nem com emissões de papel-moeda e de apólices; nem com outras protelações e artifícios que seriam equilibradas as contas públicas. O único meio era o 124 Anais do Parlamento Brasileiro. Câmara dos Srs. Deputados. Segundo Ano da Décima Oitava Legislatura. Sessão de 1882, Rio de Janeiro, IV. P. 135-136. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 também a existência dos itens invisíveis constituídos pelo envio constante de dinheiro 340 fomento da produção e particularmente da industria. Adotar medidas que diminuam a importação enquanto não se eleva a exportação. Isso importa a proteção à industria nacional, que há de suprir grande parte da importação125. As idéias econômicas nacionalistas de Amaro Cavalcanti estavam relacionadas com o comércio e sua defesa das fontes produtoras da riqueza do país, que considerava constituídas essencialmente pelas atividades industriais. Na sua atitude contra o comércio, contra o intermediário considerado um parasita, o foco principal era o comércio importador, sobre o qual declarava: esses indivíduos que são agentes consignatórios ou representantes de fábricas ou manufaturas estrangeiras, os quais não importando, sequer, por contra própria, só tem a lucrar, como simples intermediário, dispondo de nossos mercados, como de outros tantos canais para os produtos que recebem. O mesmo se pode dizer das casas filiais que aqui negociam em gêneros e mercadorias que lhes são remetidos pelas suas matrizes no estrangeiro. (CAVALCANTI, A. 1892) 126 A solução para tal situação estava no desenvolvimento da economia nacional, das fontes geradoras de riqueza, sendo a indústria fabril a mais importante. Considerava a agricultura uma fonte precária e irregular ao depender das condições climáticas e do fator humano, devido ao pouco uso de maquinaria. Para desenvolver a indústria, porém, era necessário que o Estado lhe desse proteção, já que sendo o Brasil um país novo, a atividade industrial ainda era muito embrionária. Fundamentava a atuação protecionista do Estado nos seguintes termos: a) Dotar o país de indústrias necessárias ou lucrativas, trabalho e bem estar à população operária do país; c) Tornar-se independente do estrangeiro, dispensando-se de comprar-lhe produtos, a respeito dos quais, é de supor, aquele acabaria por adquirir o monopólio, depois de haver arruinado a industria nacional127. Para alcançar tais objetivos, defendia, ao igual que Felício dos Santos, um protecionista baseado nas circunstâncias e levando em conta o estagio industrial dos diferentes países, e rejeitava todo sistema preconcebido. Incluía nessa proteção, além das tarifas alfandegárias, medidas de auxílio direto, como empréstimos feitos pelo Estado e até emissões de papel-moeda. 125 Ibidem. Congresso Nacional. Anais do Senado Federal. Segunda Sessão da Primeira Legislatura. Sessões de 16 de julho a 15 de agosto de 1892. Rio de Janeiro, 1892, vol. III, p.42. 127 CAVALCANTI, Amaro. Elementos de Finanças. Rio de Janeiro, 1896. p. 220. 126 Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 que de outra sorte seriam sufocadas logo ao nascer; b) Assegurar, por esse meio, 341 As idéias de Serzedelo Correa128 coincidiam em vários pontos com as dos outros nacionalistas que o precederam, como o grau de protecionismo defendido, as justificativas a favor do mesmo, a recusa a todo sistema a priori. O que o diferenciava era sua visão de conjunto do problema econômico brasileiro que, para ele, consistia em desenvolver de modo harmônico as nossas forças produtivas por meio de uma política de proteção razoável tanto da indústria quanto da agricultura, a fim de garantir a independência nacional e aumentar o trabalho no seio de nosso vasto país. Defendia para esse desenvolvimento harmônico, não apenas uma política de moderada proteção alfandegária, mas enquadrava esse protecionismo num conjunto de medidas que abrangiam o setor monetário, como o saneamento da moeda; o fiscal, recomendando maior eficiência na arrecadação; o bancário pela organização do crédito; o desenvolvimento dos transportes e o incremento do comércio internacional. Dava especial atenção ao tema das companhias de seguro que o associava ao problema de drenagem de capitais para o exterior. Aconselhava o governo a ―favorecer o avigoramento das companhias de seguros nacionais de modo que os seguros dos valores de nossa exportação, de nosso comércio interestadual, de nossos valores móveis, fiquem no país, e as economias empregadas nos seguros de vida não sejam transferidas para o exterior, nada nos deixando‖. Em relação às companhias estrangeiras estabelecidas no país, considerava que suas respectivas reservas deviam ser empregadas no país, valorizando os nossos títulos e os nossos prédios. No conjunto das idéias nacionalistas de Serzedelo Correa o aspecto que mais se destaca é o relacionado à defesa da industrialização. Fundamentando essa defesa e da capaz de desenvolver as forças produtivas nos países novos, assegurar a prosperidade da nação, livrá-la da instabilidade econômica, pois em um país de estado econômico complexo, as crises serão sempre de caráter parcial sem se afetar a todas as manifestações da atividade do trabalho e manter a atividade do trabalho nacional, libertando o país dos monopólios industriais e comerciais. Nas primeiras décadas da República, além de intensificar-se o nacionalismo econômico brasileiro na defesa da produção nacional, incluindo tanto a industria como a agricultura, com medidas de proteção alfandegária e de política econômica interna, também se fortalecem as forças contrárias à industrialização ou à maneira como esta se estava levando a cabo. Essas forças iriam questionar o industrialismo defendido até então, utilizando como argumento fundamental o conceito de industria natural, em oposição à indústria artificial. Serzedelo Correa deixou bem claro que não admitia essa 128 CORREIA, Serzedelo. O Problema Econômico no Brasil (1903). Brasília. Senado Federal; Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1980. pp. 27-30. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 necessidade de uma política de proteção à industria, declarava que só a industria era 342 distinção, pois para ele o elemento fundamental da industria era a transformação realizada pelo trabalho: ―A indústria é sempre o resultado do trabalho humano é pelo trabalho que o homem consegue dar a todos os objetos a utilidade, isto é – a qualidade abstrata que os torna aptos à satisfação de nossas necessidades, e que os transforma em riqueza. Industria natural é, pois, um contra-senso‖. Entre as lideranças que questionavam o processo de industrialização vigente até o final da década de 18890, destaca-se Joaquim Murtinho, Ministro da Fazenda do Governo Campos Sales (1898-1902), por sua veemência e persistência na crítica contra a indústria artificial e a intervenção direta do Estado na economia e, sobretudo, por implementar com extremo rigor e determinação uma política econômica profundamente recessiva nesse período. Não obstante a expansão da indústria a partir dos primeiros anos do Século XX, isto é, após a recessão provocada pela política econômica do ministro Murtinho, não foi um fenômeno isolado. A possibilidade de crescimento decorria das transformações ocorridas no cenário político, econômico e social do país. Em 1900, a permanência do regime republicano já não era mais incerta. A participação dos paulistas nas discussões sobre a condução da política econômica no que respeita às atividades industriais ainda não se fazia sentir, tanto a nível do Congresso Nacional como da imprensa local. Essa situação começa a mudar com a crise internacional de 1913 e, sobretudo, com os efeitos produzidos pela Primeira crise internacional de 1913 repercute intensamente no Brasil com a queda dos preços externos dos produtos brasileiros de exportação e o retraimento do capital estrangeiro, afetando fortemente as atividades industriais, que haviam sustentado um ciclo de expansão da economia relativamente longo, desde 1903 até esse ano. Um dos ramos industriais mais atingidos foi o de tecidos. Como conseqüência da crise, a concorrência entre as fábricas brasileiras intensificou-se. O volumoso influxo de capital estrangeiro entre 1908 e 1912, destinado não só aos governos estaduais e ao federal como às empresas privadas, diminuiu abruptamente ao se iniciar a Primeira Guerra Mundial. A isso somava-se a situação precária da balança comercial brasileira em decorrência do grande volume de compra realizado no exterior e do colapso dos preços do café e da borracha no mercado internacional em 1913. Em 1912 Brasil recebeu uma quantidade líquida de ouro equivalente ao valor 17,5 milhões de Contos; no ano seguinte inverteu-se o fluxo, registrando uma sangria líquida de 23 milhões de Contos. A contração do crédito Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 Guerra Mundial no funcionamento da indústria nacional, especialmente na paulista. A 343 provocou por sua vez violenta redução nas operações das fábricas, dos atacadistas e dos comerciantes do interior. A Primeira Guerra Mundial, começa em 03 de agosto de 1914, e nos quatro dias subseqüentes os industriais debateram o assunto e decidiram ir ao Congresso pedir ajuda. Em 06 de agosto, uma comissão de industriais visitou as comissões de finanças do Senado e da Câmara, recomendando a adoção de medidas que atenuassem a escassez de crédito. Não obstante, é a guerra, precisamente, que iria ajudar sobremaneira a indústria nacional a sair da crise em que se encontrava, depois de um primeiro momento de aprofundamento do aperto das condições econômicas e financeiras do país. Com a interrupção dos fluxos do comércio internacional surge a oportunidade do mercado interno ser suprido quase que totalmente com a produção nacional, o que permitiu o fortalecimento das fábricas já existentes e o surgimento de novas. Era oferecida a chance de abastecer os consumidores de um largo cinturão ao longo de toda a costa do Brasil, de Belém, ao Norte, ao Rio Grande, no Sul. Os trabalhadores rurais, os operários fabris, os empregados domésticos, os artesãos e inúmeras outras categorias de trabalhadores urbanos mal remunerados. São Paulo, especialmente, foi beneficiado pelo novo surto industrial, tendo-se expandido, principalmente, a indústria de tecidos, de calçados e de chapéus. Segundo Nícia V. Luz129, a imprensa paulista, até então bastante silenciosa em relação ao movimento em motivo de orgulho nacional. A indústria, terminada a guerra, saiu com o poder político fortalecido dada sua importância em termos da sua participação na renda arrecadada pelo governo e o significativo aumento da população ocupada na indústria. Entretanto, o comércio importador, apoiado na massa de consumidores iria combater o prestígio crescente da indústria nacional. A luta se tornaria particularmente acirrada na década de vinte nos debates em torno, principalmente, das tarifas aduaneiras. O governo considerou depois da guerra oportuno o momento para tentar uma revisão da pauta alfandegária, e em 1919 o Ministro da Fazenda, Homero Batista apresenta seu projeto, enviado ao Congresso com uma solicitação para que fosse autorizado o governo a implementá-lo logo em seguida, a título de experiência. O governo queria evitar que sua reforma fosse muito alterada com as emendas. Mas, a indústria queria uma ampla discussão do 129 LUZ, Nícia Vilela. A Luta pela Industrialização do Brasil. 2ª ed. São Paulo: Ed. Alfa-Ômega. 1978. pp. 152-157. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 prol da industrialização, animava-se, exaltando essa indústria que já se estava tornando 344 projeto, do qual era contra. A oposição partiu principalmente dos industriais paulista que enviaram uma representação ao Congresso, protestando contra a reforma. Enquanto a industria defendia sua posição, levantavam-se contra ela os tradicionais ataques, qualificando-a de ―artificial‖. Estes provinham, principalmente, da lavoura paulista.130 Apesar dos ataques contra ela, conseguia a indústria conservar a proteção que lhe era dispensada. Pronunciou-se contra o projeto, Paulo de Frontin que invocou o problema social, a perturbação no trabalho nacional que a nova tarifa provocaria; toda a bancada paulista que apoiou o voto contrário emitido pelo representante de São Paulo, no Congresso, Rodrigues Alves, também votou contra. Apesar das investidas de certos representantes da lavoura paulista contra a indústria nacional, a bancada mostrou-se coesa numa questão de vital importância como a reforma da tarifa, fato bastante revelador da força política já exercida pela indústria paulista. A partir desse momento a defesa da indústria se amplia e fortalece cada vez mais, encontrando-se em sua fileira, além do grupo dos fundadores da Associação Industrial do Distrito Federal, os nomes de Serzedelo Correa, Amaro Cavalcanti, Jorge Street, Leite e Oiticica, Américo Werneck, Vieira Souto e outros, formando o que Edgar Carone131 chama de primeira geração de industrialistas. A segunda surge a parir da década de 1920, destacando-se os nomes de Roberto C. Simonsen, Edvaldo Lodi, João Daut d‘Oliveira, Carnelo D‘Agostini, Pupo Nogueira, entre outros. ―dumping‖ de tecidos de algodão ingleses, visando a exclusão dos tecidos importados de qualidade média e superior. Os industriais têxteis de São Paulo desempenharam nela um papel importante. Estes consideravam que os ingleses tinham perdido os seus extensos mercados no Oriente, onde vários países emancipavam-se da dependência comercial através da industrialização e que agora Brasil era visto como um vasto mercado a ―reconquistar‖ para o que estavam dispostos a vender, inicialmente, com prejuízos para esmagar a impotente indústria têxtil do algodão. A associação comercial de São Paulo, após formar uma comissão para estudar a revisão das clausulas tarifárias concernentes ao algodão e seus manufaturados decidiu ―colocar a disposição dos interessados‖ as suas conclusões. Publicou no O Jornal de 1 de janeiro de 1929 uma matéria paga de duas páginas, na qual sugeria que as cláusulas da tarifa referentes ao 130 VEIGA MIRANDA. Congresso Nacional. Anais da Câmara dos Deputados, Sessão de 10 de setembro de 1919. 131 CARONE, Edgar. O pensamento Industrial no Brasil (1880-1945). Rio de Janeiro/São Paulo: Difel, 1977, p. 6-7.. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 Em relação à concorrência externa, iniciou-se em 1928 uma campanha contra o 345 algodão precisavam ser modificadas com urgência em vista das bem conhecidas dificuldades que perseguem a industria têxtil nacional. Para evitar protesto dos que se opunham as tendências protecionistas da industria, a comissão recomendou que só fossem efetuados revisões de emergência nas tarifas, pois uma revisão completa e definitiva exigiria um longo e cuidadoso estudo. Além disso, as modificações tarifárias não tinham o objetivo de aumentar as taxas alfandegárias, apenas reajustar a taxas específicas aos níveis nominais indicador na tarifa ―proibitiva‖ de 1896132. Os panfletos e os artigos de jornal não foram os únicos instrumentos de pressão utilizados pelos empresários têxteis e seus aliados industriais. Desde os primeiros dias da República, a indústria vinha cimentando, pouco a pouco, os seus laços com o governo. A importância da indústria aumentou com a estreita colaboração do Centro Industrial do Brasil com o governo durante a guerra, atendendo aos pedidos de que a indústria ajudasse a amenizar o desequilíbrio econômico causado pela queda das importações de produtos vitais. A consolidação da estrutura política do Brasil, onde a todo-poderosa presidência e, conseqüentemente, a burocracia governamental inteira oscilavam entre as máquinas políticas das oligarquias de São Paulo e Minas Gerais, facilitou a ascensão dos industriais paulistas, ajudados pelos do Rio igualmente bem organizados. As campanhas, bem como a preservação da organização política entre uma e outra companhia exigia muito dinheiro. Os vários centros industriais, produtos da São Paulo do que a antiga Sociedade Rural, a organização dos fazendeiros de café. A ―caixinha‖ era administrada com eficiência, pois o partido no poder, através de seus líderes de bancada no Senado e na Câmara, invariavelmente fazia aprovar ou engavetar legislações, segundo os interesses, segregados nos bastidores, dos grupos de pressão organizados. E não havia nada que impedisse os industriais de ocupar cargos políticos na Primeira República, os fazendeiros de Café de São Paulo tomaram posse de sua herança política. Contudo, na época em que faliram os últimos planos de valorização do café, no final dos anos vinte, os grupos industriais em ascensão e seus porta-vozes em São Paulo e no Rio de Janeiro – Matarazzo e Street, Seabra e Oliveira Passos, Nogueira e Galliez – já ombreavam com os fazendeiros em termos de prestígio político.133 132 ―O Jornal‖ Associação Comercial de São Paulo. ―Tarifas sobre manufaturas de algodão‖, 1 de Janeiro de 1929. 133 STEIN, Stanley J. Opus. Cit. Pg.133. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 década de 1920, angariavam muito mais fundos políticos para o partido Republicano de 346 A influência política dos empresários têxteis revelou-se de forma clara por ocasião da reforma tarifária, no período de 1928-1929. A campanha pelo aumento da proteção tarifária contra o dumping de produtos ingleses ofereceu aos diretores das associações das indústrias têxteis do Brasil, assediados por três anos de dificuldades econômicas, uma plataforma capaz de aglutinar todos os empresários relacionados com a indústria. Embora não fossem a única causa da crise que a indústria atravessava, as importações constituíam, certamente um problema dos mais sérios. O relatório ―A Crise Têxtil‖ (preparado pelos industriais do Rio e São Paulo em 1928) e a matéria paga de duas páginas publicada em ―O Jornal‖ foram apenas parte de um plano bem organizado, visando o Congresso. No fim de agosto de 1928, o presidente da comissão bancária do Senado e porta-voz do governo, o Senador Arnolfo Azevedo, de São Paulo, reuniu os membros da comissão para discutir uma possível revisão das clausulas tarifárias concernentes ao algodão. A convocação apressada da reunião e as declarações ―vagas‖ do Senador Azevedo aos repórteres provocaram uma advertência do influente ―Jornal do Comércio‖, que não via quais as intenções da comissão, se de atenuar ou enrijecer as cláusulas. O jornal temia manobra de bastidores e advertiu que as ―questões‖ devem ser discutidas por todas as partes interessadas, sem esquecer os interesses permanentes da Nação. ―Era preciso chegar a um compromisso, mas ―através de discussão públicas‖. Recomendava a análise de todos os pontos de vista, para evitar pressões unilaterais do Alguns jornais censuram, ostensivamente, a campanha tarifária dos industriais têxteis de algodão. Os leitores de jornais em sua maioria consumidores de classe média e baixa, tinham seus rendimentos afetados pelas alterações tarifárias, uma vez que os preços dos produtos domésticos estavam muito pouco inferiores aos dos artigos importados, apenas o suficiente para tira-los do mercado. Foi para tais leitores que o jornal de esquerda ―A vanguarda‖ declarou que os proprietários das fábricas haviam engavetado a reforma tarifária por oito anos, até que o Presidente decidiu retirar a lei da revisão tarifária das mãos da comissão para que fosse rapidamente votada. O povo, afirmava ―A Vanguarda‖, tem razões para ficar apreensivo ―quem estiver consciente dos fortes laços que ligam os políticos aos homens de negócios não pode esperar que das discussões sobre a tarifa saia algo de bom para as classes desfavorecidas‖. ―A Vanguarda‖ acusava os jornais, em geral favoráveis ao governo, de silenciar sobre a 134 ―O Jornal‖ Associação Comercial de São Paulo, 23 de agosto de 1928. In: Stein, Stanley J. Opus. Cit. pp. 133-134. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 governo134. 347 natureza da revisão tarifaria proposta e de falar em ―circunlóquios‖, a respeito da necessidade de encontrar uma solução de compromisso para a indústria, o comércio e o consumidor. ―Paz e amor entre tubarões e sardinhas‖, (―A Vanguarda‖, 27 de agosto de 1928). Os comentários da imprensa não extremista também eram críticos. ―O Correio da Manhã‖, reproduziu as opiniões de H. F. Wileman,135 editor de uma publicação financeira em língua inglesa editada no Brasil. Quando os fabricantes de tecidos de algodão divulgaram memoriais em favor do aumento da proteção tarifária, em 1927, Wileman lembrou-os que as suas vendas totalizaram 87% dos tecidos de algodão vendidos no Brasil. A expansão do capital social, debêntures e reservas da indústria entre 1924 e 1926 fora bastante elevada. Em 1927, as reservas equivaliam a 58% do capital por ações. A revisão tarifária proposta, advertia ele, permitiria aos fabricantes elevar os preços além das possibilidades das classes médias e baixas. Como a maior parte das fábricas não estava produzindo os tecidos de alta qualidade que a revisão tarifária pretendia excluir, apenas um ―segmento minúsculo dos fabricantes brasileiros‖ seria beneficiado, penalizando o consumidor. Apoiando os argumentos de Wileman, ―O Correio da Manhã‖ enfatizava a próspera situação financeira da maior companhia têxtil do Brasil, a América Fabril. Investigando os balanços da companhia publicados em 1926 e 1927, o Jornal verificou dividendos, resgate de bônus e aumento de fundos de reserva e depreciação. Alertou seus leitores para a influência que os ―magnatas‖ da indústria têxtil algodoaria exerciam sobre o chefe do governo e o Congresso. No mês seguinte, qualificou um membro da comissão bancária da Câmara dos Deputados, Manuel Villaboim, de ―advogado dos magnatas‖, porque ele defendia o ponto de vista dos industriais. Quando Villaboim e Azevedo, os líderes da maioria na Câmara e no Senado, viajaram para São Paulo em dezembro de 1928 correram rumores de que essa viagem pressagiava um pacto político entre o Partido Republicano de São Paulo e os empresários têxteis Jorge Street, Francisco Matarazzo e Rodolpho Crespi.136 A campanha pela revisão da tarifa, iniciada em agosto de 1928, alcançou a vitória cinco meses depois, em janeiro de 1929, quando foram modificadas as cláusulas tarifárias do algodão. A eficácia da medida foi 135 136 ―O Jornal‖ Associação Comercial de São Paulo - 23 de novembro de 1927. CORREIO DA MANHÃ, 18 de outubro de 1928. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 que uma soma de quase 3.000 contos fora desembolsada após a distribuição de 348 comprovada pela redução das importações de tecidos de algodão que baixaram de um total 8,3 milhões de quilos para 1,3 milhões entre 1929 e 1930. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANAIS DO PARLAMENTO BRASILEIRO. Câmara dos Deputados e Senado. ASSOCIAÇÃO INDUSTRIAL. “O Industrial‖. R. J. 21/05/1881, nº 01. CANO, Wilson. Raízes da concentração industrial em São Paulo. 3ª ed. São Paulo, Hucitec, 1990. CARONE, Edgar. O pensamento Industrial no Brasil (1880-19450) Rio de Janeiro/São Paulo: Difel, 1977. CAVALCANTI, Amaro. Elementos de Finança. Rio de Janeiro: s.l., 1896. CAVALCANTI, Amaro. Resenha Financeira do Ex-Império. Imprensa Nacional, Rio de Janeiro, 1890. CORREIA, Serzedelo. O Problema Econômico no Brasil (1903). Brasília. Senado Federal; Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1980. FURTADO, Celso. Formação Econômica do Brasil. 18ª ed. São Paulo. Ed. Nacional, 1982. PELAEZ, Carlos M. Conseqüências econômicas da ortodoxia monetária, cambial e fiscal no Brasil entre 1889 e 1945. Revista Brasileira de Economia. V. 25, nº 3, jul/set, 1971. SUZIGAN, Wilson. Indústria brasileira: origem e desenvolvimento. Nova Edição. São Paulo, Hucitec/Ed. Unicamp, 2000. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 LUZ, Nícia Villela. A Luta pela Industrialização no Brasil: 1808-1930. 2ª ed. São Paulo, Alfa-Ômega, 1975. 349 O PROJETO GRÁFICO DA REVISTA ILUSTRAÇÃO BRASILEIRA137 E A MATERIALIDADE DO DOCUMENTO HISTÓRICO Márlon de Oliveira Borges Carneiro Graduando em História pela Universidade Federal de Uberlândia. Bolsista Iniciação Científica FAPEMIG, 2009. O Brasil na primeira metade do século XX é marcado por uma série de transformações que fundam, dentre outras coisas, uma urgência pela modernização do país. Modernização que foi proposta de múltiplas maneiras, uma vez que, se pensarmos no amplo crescimento urbano que congregou não só mais indivíduos em um menor espaço, comparado com o campo, mas também fomentou diferentes concepções de sociedade. Foram momentos marcados por tensões, onde disputas, não só entre pessoas, mas entre projetos de sociedade se firmaram. No período compreendido pela República, o nacionalismo correspondeu ao projeto de diversos grupos sociais que, com o modernismo, adquiriu novas características. Na perspectiva da esfera intelectual, a modernização do país também correspondeu ao surgimento de um público leitor regular, inseridos no crescimento da indústria editorial e na criação das universidades posteriormente, além de instituições que deram nova direção à produção cultural do conviver com constantes inovações. As novas técnicas transformaram o trabalho, o lazer, os comportamento e hábitos, as sensibilidades, enfim, afetaram os vários níveis da experiência social. A entrada no século XX caracteriza o Brasil pela busca às premissas da modernidade que irrompia e, em tal processo, a imprensa se destaca como lugar onde essa procura se torna mais evidente. Novas técnicas tipográficas, os avanços na ilustração, a velocidade da reprodução foram fatores que possibilitaram à imprensa, de modo geral, adequar-se à lógica mercadológica capitalista como um segmento lucrativo, ao mesmo tempo, que se tornou uma divulgadora de propostas de modernidade. Neste momento destacam-se as revistas ilustradas, já consagradas na Europa. Esse segmento da imprensa conseguia reunir texto e imagem, favorecendo uma leitura 137 A grafia do nome da revista possui dois ―LL‖ (eles) até 1941. Com uma reforma gráfica na língua portuguesa, buscando a simplificação, passa a se escrever ―Ilustração‖ com apenas um ―L‖ (éle). Neste trabalho, para evitar confusão ao leitor, evitei o uso das duas grafias. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 Brasil. Acentua-se, portanto, o caráter urbano industrial da sociedade que passa a 350 dinâmica e sucinta que atendia às novas condições da vida urbana e ao mercado – fator que impulsionou a publicidade e propaganda, com uso da ilustração, o que possibilitava um maior alcance considerando o processo de transmissão de mensagens. As revistas ilustradas igualmente possibilitaram a transmissão da imagem de um novo Brasil, relacionada às novas técnicas de produção, comportavam o caráter inovador e, simultaneamente em alguns casos, também em defesa de tradições. As publicações de modo geral indicam conflitos do período em que se situam, assim como são portadoras de significados construídos por múltiplas gerações. Meu envolvimento com tal temática se deu a partir de um convite da professora Luciene Lehmkuhl para participar de um grupo de estudo sobre a revista, que reúne diferente pesquisadores com interesses diversos sobre a o objeto. Como importante referência nesse sentido, há o trabalho de Geanne Paula de Oliveira Silva, graduada em História pela Universidade Federal de Uberlândia, cuja pesquisa de monografia se debruçou sobre a propaganda política varguista veiculada na revista Ilustração Brasileira (Cf. SILVA, 2008). Sua pesquisa é uma das pioneiras sobre o periódico, ainda pouco usado pela bibliografia específica sobre o tema. Com o desenrolar das discussões no grupo, outros projetos foram sendo construídos voltados a temas como as obras de artes veiculadas na revista, ou às relações da revista com o movimento modernista, ou ainda, os usos das cores em suas páginas e possíveis sentidos evocados. As diversas porém tem sido profícuos os diálogos com diferentes áreas, uma vez que o documento analisado também é múltiplo. A coleção da revista Ilustração Brasileira que se encontra no CDHIS compreende o período de maio de 1935 a janeiro de 1944, sendo parte da terceira fase de publicação do periódico (as três fases abarcam os seguintes períodos: 19091915; 1920-1930; 1935-1958). O seguinte texto resulta de pesquisas integradas ao projeto ―Documentos para ler e ver: a coleção da revista Ilustração Brasileira no acervo do CDHIS‖ aprovado em Edital Universal financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais – FAPEMIG/2009. Editada pela Sociedade Anônima ―O Malho‖; composta de crônicas, poesias, contos e abundantes fotografias e ilustrações, com uma tendência mais refinada e artística (a ver, por exemplo, na publicação de reproduções obras de artes). Tal revista insere-se na nova dinâmica proposta pelas revistas ilustradas, combinando técnicas de excelente qualidade para o período e conteúdo variado. Foi fundada por Luiz Bartolomeu de Souza e Silva e Antonio Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 abordagens expressam a amplitude que a historiografia tem se deparado recentemente, 351 Azeredo, editores da Sociedade Anônyma O MALHO que editava outras publicações e, ao longo de suas edições, a família Souza e Silva parece se revezar no comando, como é indicado na própria revista. Seu ―... conteúdo versava sobre artes, letras, doutrinação política e religiosa, exaltação a personalidades da história brasileira, questões econômicas, críticas literárias e de arte, comportamento, moda, festas e recepções da alta sociedade, e outros.‖ (SILVA, 2008, p. 12). Essa multiplicidade de temas associa-se ao posicionamento que a revista se propõe, característico a outras publicações do tipo: ―Sendo um órgão de diffusão cultural e o espelho de nosso momento literário, a ―Ilustração Brasileira‖ não tem partidarismos de escolas nem impõe restrições aos seus colaboradores, dando lhes ampla liberdade, que se extende ainda ao uso da forma de graphar que mais lhes agrade.‖( Ilustração Brasileira, maio, 1935, p. 01) A liberdade apregoada pela ―Ilustração Brasileira‖ indica um atributo dos seus colaboradores, escritores ligados à Academia Brasileira de Letras, que dentro da lógica de mercado, escreviam sobre diversos assuntos e em diversas maneiras como o inquérito literário, a reportagem, a crônica, etc. Tal amplitude de conteúdo possibilita diversas pesquisas em igualmente múltiplas abordagens. Intenciono estudar a revista, porém, a partir de seu projeto gráfico, isto é, sua materialidade buscando na forma como as imagens são organizadas, nas técnicas utilizadas na produção, nos símbolos gráficos, preocupações e desejos inscritos nesse projeto. Não se trata de mera descrição da composição gráfica, mas entendê-la como uma representação complexa de diversos elementos que pontuam a dupla via da técnica e das subjetividades envolvidas na produção e recepção das mensagens. Para realizar meu estudo busco auxílio de um campo do conhecimento que faz parte também de minha formação profissional e acadêmica, por isso em grande parte meu interesse nessa abordagem: o design gráfico. Tal área, em linhas gerais, constitui-se como o esforço criativo relacionado à elaboração, configuração e especificação de um projeto visual e, segundo o autor Richard Hollis, três funções sobressaem-se ao design: identificar, isto é, dizer o que é determinada coisa; informar e instruir, no sentido de explicar e transmitir uma mensagem; e finalmente, apresentar e promover que se refere a maneira de tornar a mensagem particular de modo a chamar atenção de quem entra em contato com o objeto (HOLLIS, 200, p. 4). Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 na ilustração, no uso da fotografia, entre outros, os diálogos possíveis com as 352 Pretendo, ao estabelecer o diálogo com os campos do design gráfico e das artes gráficas, encarar a revista Ilustração Brasileira como objeto composto por determinada historicidade, tanto material quanto simbolicamente. Na tentativa de desvelar tal historicidade por meio do design é possível, a meu ver, compreender quais significações estão imbricadas na produção da revista e, principalmente, quais mensagens desejavamse transmitir e como isso era materializado. Como nos diz Rafael Cardoso ―... o enfoque mais preciso da história do design sempre acaba recaindo sobe os objetos em si – aquilo que podemos chamar de ―cultura material‖ -, os quais codificam em sua estrutura e aparência um série de informações complexas sobre sociedade, tecnologia e criação individual que precisam ser decodificadas pelo trabalho de investigação histórica.‖(CARDOSO, 2005, p. 15). O interesse pelo diálogo com uma área ainda pouco explorada, particularmente no Brasil como é o design gráfico, é também desdobramento da abertura sofrida pelo campo historiográfico, principalmente a partir dos anos 1980 como nos diz Carl Schorske. Tal autor comenta como a historiografia passa por um processo de glasnost, em referência à abertura política russa, no qual ela constrói novas fronteiras com outras disciplinas, ampliando sua atuação a qualquer fenômeno da experiência humana e, por isso mesmo, por tal expansão, a necessidade dos encontros com outras áreas. A particularidade desse recente posicionamento, segundo Schorske, é a liberdade de tais instâncias, fosse o Estado, a religião, a política, etc. É um ato de ―tecer‖, no qual o historiador busca relacionar relações sincrônicas e diacrônicas, com o cuidado para que a euforia causada pela multiplicidade de perspectivas não prejudique o importante compromisso do historiador em registrar a mudança, além das continuidades. (SHORSKE, 2000). Caracteriza-se, portanto, uma relação com o documento que o entenda em si. Partilho das colocações de Le Goff, quando comenta: O documento não é qualquer coisa que fica por conta do passado, é um produto da sociedade que o fabricou segundo as relações de forças que aí detinham o poder. Só a análise do documento enquanto documento permite a memória coletiva recuperá-lo e ao historiador usá-lo cientificamente, isto é, com pleno conhecimento de causa.(LE GOFF, 1985, p. 102) Essa colocação está inserida na discussão acerca do conceito de documento/monumento, importante para o estudo da revista, assim como qualquer outro documento, tendo em vista a necessidade de entendê-la não apenas como um reflexo da sociedade, mas como uma materialidade que evoca e é resultado, como Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 escolhas que, ao contrário de momentos anteriores, estavam submetidas a outras 353 pontua o autor, de um esforço dessa mesma sociedade de impor ao futuro uma imagem de si própria. Como monumento o documento está relacionado à memória coletiva e, por ser uma construção, é uma ―roupagem‖ (LE GOFF, 1985, p. 104) que precisa ser desmontada e submetida a análise das suas condições de produção. De maneira análoga, Foucault comenta como essa atual transformação da ideia de documento para a historiografia exige ―uma massa de elementos que devem ser isolados, agrupados, tornados pertinentes, inter-relacionados, organizados em conjunto‖ (FOUCAULT, 2004, p. 08), em processo semelhante a análise descritiva do monumento realizada pela arqueologia. Investigar a materialidade da fonte suscita também do trabalho de procurar nos detalhes informações relevantes sugere a proposta de Gimzburg acerca paradigma indiciário, modelo epistemológico no qual, segundo o autor, as ciências humanas teriam tendido no final do século XIX (GINZBURG, 1989). Um método particularmente caro ao italiano Giovanni Morelli que, no século XIX, examinava pormenores em pinturas renascentistas a fim de buscar suas origens, de classificá-las segundo traços particulares do artista. Para Ginzburg se trata um representante elementar do novo paradigma que se instaura, apesar deste ter raízes mais antigas, retrocedendo a práticas das antigas civilizações mesopotâmicas. De modo análogo, se firma já no final do século XIX a psicanálise aponta Ginzburg: ―Se a realidade é opaca, existem zonas privilegiadas – sinais, indícios – que permitem decifrá-la.(...)‖ (GINZBURG, 1989, p. 177), princípio que, similar ao trabalho do detetive, ampliou-se para várias áreas das ciências humanas de forma que a reflexão sobre tais indícios são tomados como reveladores de fenômenos mais gerais, ―... a visão de mundo de uma classe social, de um escritor ou de toda uma sociedade‖ (GINZBURG, 1989, p. 178). Para a análise dos elementos gráficos busco compreender a revista como um todo, entrelaçando aspectos técnicos com seu conteúdo, e mais especificamente, a forma com a qual o conteúdo é apresentado, sinalizando alguns recursos gráficos que a particularizam, assim como identificando certas regularidades e ressaltando a historicidade de tais elementos. Evidencia-se, a meu ver, a importância da parceria entre os campos da História e do Design. Dentro da área do design, assim como outros campos do conhecimento, são diversificadas as possibilidades de pesquisa, porém, como se trata da análise do projeto gráfico, minhas preocupações se Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 influenciada também pela análise de detalhes que inconsciente deixa transparecer. E 354 debruçam, por um lado, sobre a linguagem visual e técnicas de produção do objeto, e por outro, na busca por informações externas sobre a revista, ou seja, investigar sentidos veiculados, conhecer sua circulação e sujeitos envolvidos. Pensar o projeto gráfico como possível abordagem para análise de uma fonte historiográfica remete, invariavelmente, à reflexão sobre história e imagem, relação nem sempre valorizada pela historiografia. Nessa direção, Paulo Knauss identifica diferentes pontos de vista sobre essa questão que suscitam de modo geral a complexidade e a relevância do tema na atualidade. A relação entre escrita e imagem quando pensadas no âmbito da historiografia não é dicotômica, ou seja, a escrita, quando fixada como meio de expressão pelas sociedades, não substituiu a imagem. Ambas convivem juntas e admitir essa integração é vantajoso na busca por sua compreensão: ...desprezar as imagens como fontes da História pode conduzir a deixar de lado não apenas um registro abundante, e mais antigo do que a escrita, como pode significar também não reconhecer as várias dimensões da experiência social (...). O estudo das imagens serve, assim, para estabelecer um contraponto a uma teoria social que reduz o processo histórico à ação de um sujeito social exclusivo e define a dinâmica social por uma direção única (KNAUSS, 2006, p. 99). Diferentes enfoques, exemplifica o autor, podem ser dados ao estudo das elites do país, por exemplo, a partir de fotografias pessoais contrastados com diários pessoais. Nesses casos é possível perceber em um objeto formas de no debate e confronto de diferentes leituras de mundo que se expressam em ―textos de qualquer natureza – verbal escrito, oral ou visual.‖ (KNAUSS, 2006, p. 100, grifo meu). A recepção, ou no caso, a visualidade da imagem, também é um aspecto que complementa sua compreensão. Nesse sentido, outra referência importante à temática, citado por Knauss, é a reflexão sobre os modos de ver concebida por John Berger, que entende o ato de olhar como múltiplo, numa relação que se estabelece entre visão e o contexto, ou seja, as imagens e suas interpretações resultam de construções de sentido circunscritos a situações e relações sociais definidas, ―... considerando que as associações entre símbolos e códigos não são fixas, o que significa dizer que os sentidos são negociados. Assim, as práticas de olhar não devem ser consumidas como atos passivos.‖ (KNAUSS, 2006, p. 115). Desdobrase, pois, que o estudo sobre o visual deve buscar compreender as relações Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 produção de sentidos que são também processos sociais, organizadas pela sociedade 355 intercambiáveis entre cultura e sociedade, tomando o conceito de cultura como os elementos mediadores que viabilizam as relações sociais. Uma ressalva inicial que considero importante para este estudo é que o exame da ―fonte-em-si‖, por assim dizer, ou seja, a ênfase na materialidade e nas formas de construção dos discursos que a revista evoca, pode incorrer na unilateralidade da análise. É evidente que a recepção dessas imagens e textos da revista Ilustração Brasileira não era realizada apenas pelos públicos -alvo, contudo é difícil medir quão amplos foram a circulação da revista e os sentidos elaborados por diferentes segmentos sociais. Em outras palavras, o que discuto neste trabalho é a construção de discursos que provêem de segmentos específicos da sociedade, que materializam ideias e se destinam a grupos particulares, o que não significa que tais sentidos fossem homogêneos para o restante da sociedade. O que friso, como faz Burke, em relação ao uso de imagens para a análise histórica, é que elas ...não são um reflexo da realidade social nem um sistema de signos sem relação com a realidade social, mas ocupam uma variedade de posições entre esses extremos. Elas são testemunhas dos estereótipos, mas também mudanças graduais, pelas quais indivíduos ou grupos vêem o mundo social, incluindo o mundo de sua imaginação (BURKE, 2004, p. 232). Desses princípios se desdobram cuidados necessários, continua Burke, no contemporâneas daquele mundo analisado. O caráter múltiplo da imagem exige ao analista que a posicione em contextos, no plural, isto é, econômico, cultural, político, material, dentre outros. Além disso, é importante a reflexão sobre séries de imagens, buscando entender continuidades e mudanças, e, finalmente, também perceber detalhes e ausências na imagem, que informam, por usa vez, intenções e particularidades (BURKE, 2004). A ênfase na imagem para este trabalho é de especial estima pois compartilho o argumento de Charles Monteiro ao afirmar que as revistas ilustradas funcionaram como ―... vehículos de mediación de significados y sentidos sociales entre grupos sociales. Sobre todo, em La negocioación y diseminación de sentidos sociales entre elites políticas y sociales y lãs camadas medianas urbanas‖ (MONTEIRO, 2010, 247) e por isso, responsáveis por contribuírem na construção de uma nova visualidade urbana, difundindo novos códigos culturais como a modernização do espaço e do comportamento público. Atuaram como meio de expressão de uma Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 sentido de que as imagens não dão acesso à realidade diretamente, mas a visões 356 espécie de voyerismo social, com o consumo de imagens de corpos, gestos, objetos que se queriam modernos, mas nem por isso, destaca Monteiro, abandonando totalmente o passado, ―más bien proponía su atualización através de una negociación com la tradición.‖ (MONTEIRO, 2010, p. 546). E tal ambiguidade é uma das questões que permeia esse trabalho. Compreendo o design gráfico, nesse sentido, como um campo do conhecimento privilegiado, pois ao se preocupar sobre a projetação, ou seja, sobre o processo de criação e produção de uma peça visual, o design colabora n a compreensão acerca de quais mecanismos retóricos, persuasivos, estéticos, materiais etc, que uma publicação como a revista Ilustração Brasileira se estruturou. Mecanismos que, por sua vez, comunicam uma rede de sentidos mais ampla e múltipla em que, apesar do discurso moderno prevalecer, não está livre de gradações, de disputas com o passado que idealmente se quer superar. Portanto, com a peça gráfica como ponto de partida, estabeleço como recorte temporal as revistas produzidas durante o Estado Novo brasileiro, isto é, entre os anos de 1937 e 1944138, uma vez que nesse período, relações diferenciadas são tecidas no âmbito da imprensa e governo. Além disso, a imagem de um Brasil estabelecido na modernidade veloz do século XX está mais amadurecida, ao se observar, por exemplo, as ações políticas desenvolvidas a tal fim. A revista do período indicado evoca seção O Rio de hoje e de 30 anos que trazia fotografias de determinado local da capital carioca contemporânea à revista e outra de 30 ou 50 anos atrás, indicando por meio da imagem a clara noção do progresso. Outras seções também ricas em fotografias, que por sinal era um elemento abundante na revista Ilustração Brasileira, também apontavam para o caráter modernizante e de novidade ao país, ou pelo menos, aquilo que se desejava para o país. A seção Instantâneos de todo o mundo, que mostrava fotografias de personagens e fatos internacionais considerados importantes, indicam novas relações entre texto visual farto e texto escrito reduzido. Durante o Estado Novo a revista foi veículo de difusão do regime, com propagandas do presidente, reprodução de discursos, reportagens como O que Vargas anda fazendo pelo Brasil a fora, entre outros. 138 Justifico o caráter incompleto do recorte pelo fato do arquivo possuir apenas as revistas desse período. Apesar de recentemente se adquirirem os microfilmes da coleção completa, a materialidade da revista, isto é, manuseá-la em papel foi fundamental para este trabalho, como será visto posteriormente. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 interessantes possibilidades de estudo, por exemplo, traz o caráter de ruptura, como na 357 A ideia de Modernidade permeia o cenário da grande cidade e relações entre o espaço urbano e a noção de design são criadas. Entendendo o urbano como local de importante produção e circulação de bens culturais, que comporta, por sua vez códigos diversos, o autor Ferreira Junior se apropria do conceito de ―escritura urbana‖ (FERREIRA JUNIOR, 2003, p. 55), ou seja, evoca a existência de um conjunto de textos a serem decifrados na malha espacial das cidades que se configura como matriz de fluxos de linguagens. Assinala o autor citando Eduardo Elias: ―O presente urbano, quer dizer, a atualização cotidiana do código urbano, abarca pois uma contínua revisão das faixas signicas que constituíram os códigos passados bem como uma prospecção das novas faixas emergentes que apontam para os códigos futuros‖ (ELIAS apud FERREIRA JUNIOR, 2003, p. 55). A prática da observação se torna importante, uma vez que a cultura urbana esta marcada por recorrentes processos de assimilação e renovação. E isso se materializa em diferentes locais e suportes como ruas, praças, outdoors, posters etc, até mesmo a ocupação física indica a mescla entre elementos modernos com construções antigas, mas aceitas pela sociedade. Por essa perspectiva, sustento a ideia de que o projeto em um periódico, no caso deste estudo de uma revista como a Ilustração Brasileira, não deve ser entendido como gratuito, pois concilia, em seu conteúdo verbal e visual, interesses ―alta‖ sociedade que não é homogênea, mas que comunga até certo nível um repertório simbólico comum. Além disso, fatores econômicos e posturas individuais (a ver principalmente dos artistas gráficos) precisam ser equilibrados. E atravessando todos estes elementos há o espaço urbano em um momento de efervescência, onde projetos de modernidade diversos se enfrentam, assimilam -se entre si e tentam sobreviver. Ressalto que minha posição enquanto pesquisador não é afirmar que a Ilustração Brasileira foi um veículo da modernidade concebida como um lugar-comum. Meus objetivos de pesquisa pautam-se no questionamento sobre as relações entre o conteúdo encontrado em seus números publicados, expressos também por símbolos e imagens, principalmente. Pretendo confrontar a multiplicidade de temas suscitados dentro do recorte escolhido, que, como já demonstrado, indica a questão da modernidade como uma das preocupações. Nesse sentido, qual ou quais modernidades se queriam comunicar? E como isso se expressava materialmente? De modo geral, viso Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 de grupos sociais distintos, isto é, políticos, industriais, militares, em suma, u ma 358 compreender os diversos caminhos trilhados pela revista, buscando na estética e organização visual, a pluralidade de projetos e relações estabelecidas entre imprensa, o poder político, valores e hábitos cotidianos. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: BURKE, Peter. Testemunha ocular: história e imagem. Bauru, Sp: EDUSC, 2004. CARDOSO, Rafael (org.). O design brasileiro antes do design: aspectos da história gráfica, 1870-1960. São Paulo: Cosac Naify, 2005. CARDOSO, Rafael. Uma introdução à história do design. São Paulo: Edgar Blücher, 2004. FERREIRA JUNIOR, José. Capas de Jornal: a primeira imagem e o espaço gráfico visual. São Paulo: Editora SENAC São Paulo. 2003. FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 7º edição, 2004. GINZBURG, Carlo. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In: Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras. 1989. pp. 143-179 GOMES, Angela de Castro. A política brasileira em busca da modernidade: na fronteira entre o público e o privado. In: NOVAIS, Fernando (org.). História da vida privada no Brasil: contrastes da intimidade contemporânea. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. pp. 489-558. HOLLIS, Richard. Design gráfico: uma história concisa. São Paulo: Martins Fontes, 2000. LE GOFF, Jacques. Documento Monumento. Trad. Suzana Ferreira Borges. In: Enciclopédia Einaudi. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1985. v.5. pp. 95-106. MARTINS, Ana Luiza. Revistas em revista. Imprensa e práticas culturais em tempos de República, São Paulo (1890-1922). São Paulo: Ed. Da Universidade de São Paulo: Fapesp: Imprensa Oficial do Estado, 2001. SHORSKE, Carl E. Pensando com a História: indagações na passagem para o Modernismo. Trad. Pedro Maia Soares. São Paulo: Compannhia das Letras, 2000. SILVA, Geanne Paula de Oliveira. Estado Novo e imprensa ilustrada: propaganda política na revista Ilustração Brasileira (1935-1944). Monografia (Bacharelado). Universidade Federal de Uberlândia, 2008. 76 p. VELLOSO, Monica Pimenta. Os intelectuais e a política cultural do Estado Novo. In: O Brasil republicano. O tempo do nacional-estatismo – do início da década de 1930 ao apogeu do Estado Novo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, livro 2. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 KNAUSS, Paulo. O desafio de fazer História com imagens: arte e cultura visual. In: Revista ArtCultura, v. 8, n. 12. Jan.-jun. 2006. pp. 97-115. 359 O SURGIMENTO DO CAPITALISMO: UM DEBATE HISTÓRICO Fernanda Arantes de Moraes Graduanda em História Programa de Educação Tutorial - PET História Faculdade de Ciências Integradas do Pontal Universidade Federal de Uberlândia O conceito de capitalismo Para se debater o surgimento do modo de produção capitalista, se faz necessário, antes de tudo, conceituar o capitalismo. Ellen Meiksins Wood na introdução de sua obra O capitalismo é um sistema em que os bens e serviços, inclusive as necessidades mais básicas da vida, são produzidos para fins de troca lucrativa: em que até a capacidade humana de trabalho é uma mercadoria à venda no mercado; e em que, como todos os agentes econômicos dependem do mercado, os requisitos da competição e da maximização do lucro são as regras fundamentais da vida. Por cauda dessas regras, ele é um sistema singularmente voltado para o desenvolvimento das forças produtivas e o aumento da produtividade do trabalho através de recursos técnicos. Acima de tudo, é um sistema em que o grosso do trabalho da sociedade é feito por trabalhadores sem posses, obrigados a vender sua mão-de-obra por um salário, a fim de obter acesso aos meios de subsistência. No processo de atender às necessidades e desejos da sociedade, os trabalhadores também geram lucros para os que compram a sua força de trabalho. Na verdade a produção de bens e serviços está subordinada à produção do capital e do lucro capitalista. O objetivo básico do sistema capitalista, em outras palavras, é a produção e a auto-expansão do capital. (WOOD, 2001, p. 12) Este apontamento conceitual se torna útil porque nos mostra alguns dos elementos que se relacionam com o surgimento do capitalismo. Estão presentes na formulação acima noções como de que o capitalismo é um sistema baseado nos valores do mercado, no desenvolvimento tecnológico e na expansão do capital e do lucro. Karl Marx em sua principal obra, O Capital, trata a questão da ―acumulação primitiva‖ (MARX, 1984) – deve-se considerar que a tese de ―acumulação‖ já teria sido tratada por Adam Smith – como ponto de partida para o modo de produção capitalista. Precedente a tal acumulação capitalista, Marx conclui que a ―acumulação primitiva‖ nada mais é que o processo histórico de separação entre o produtor e o meio de produção, e é primitivo porque constitui a pré-história do capital e do próprio capitalismo. Mas para que compreendamos todo esse processo precisamos, antes, entender que a transformação de dinheiro e mercadoria em capital só é possível com o defronto da burguesia com o Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 A origem do Capitalismo, acertadamente nos apresenta o seguinte conceito: 360 proletariado, este que também só acontece a partir do momento em que o trabalhador deixa de ser vinculado à gleba e de ser servo e passa a ser um livre vendedor de força de trabalho. É aí que, dentro da concepção marxista, começa a surgir, de fato, o sistema capitalista. Depois que todos os meios de produção e todas as garantias de existência (oferecidas pelas velhas instituições feudais) foram tirados dos camponeses é que estes começam a assumir o papel de trabalhadores livres. Essa expropriação do povo do campo foi muito bem analisada por Marx, onde ele diz que: Os capitalistas industriais, esses novos potentados, tiveram de deslocar, por sua vez, não apenas os mestres-artesãos corporativos, mas também os senhores feudais, possuidores das fontes de riquezas. Sob este aspecto, sua ascensão apresenta-se como fruto de uma luta vitoriosa contra o poder feudal e seus privilégios revoltantes, assim como contra as corporações e os entraves que estas opunham ao livre desenvolvimento da produção e à livre exploração do homem pelo homem. (...) O ponto de partida do desenvolvimento que produziu tanto o trabalhador assalariado quanto o capitalista foi a servidão do trabalhador. A continuação consistiu numa mudança de forma dessa sujeição, na transformação da exploração feudal em capitalista. Para compreender sua marcha, não precisamos volver a um passado tão longínquo. Ainda que os primórdios da produção capitalista já nos apresentam esporadicamente em algumas cidades mediterrâneas, nos séculos XIV e XV, a era capitalista só data do século XVI. Onde ela surge, a servidão já está abolida há muito tempo e o ponto mais brilhante da Idade Média, a existência de cidades soberanas, há muito começou a empalidecer. (MARX, 1984, pp. 262-263) Na citação acima vimos também Marx tratar muito simples e rapidamente a diferente do feudalismo, no capitalismo encontramos uma socialização do ato de produzir, uma apropriação dos bens produzidos e da própria força de trabalho, não havendo mais a associação do trabalho com o produto. Em suma, a transformação original do dinheiro em capital se dá através das leis econômicas da produção de mercadorias e com o direito de propriedade delas derivado. No entanto, ela tem por resultado que o produto pertença ao burguês e não ao trabalhador; que o valor desse produto inclua uma mais-valia (a qual custa trabalho ao trabalhador, mas nada ao capitalista, e que, todavia torna-se propriedade legítima do segundo) e então, por fim, que o trabalhador continue a manter sua força de trabalho e podendo vendê-la de novo, caso encontre comprador. A chamada ―reprodução simples‖139 (MARX, 1984) é apenas a repetição cíclica dessa primeira operação, onde, 139 Na seqüência de seus estudos sobre o processo de acumulação de capital, Marx desenvolve também chamada ―reprodução em escala ampliada‖, onde o capitalista demonstra sua virtude burguesa pelo consumo de apenas uma parte e a transformação do resto em dinheiro. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 ―inversão‖ da apropriação do trabalho na mudança de modo de produção, onde, 361 sempre de novo, dinheiro é transformado em capital e a lei não é, portanto, violada, ao contrário, ela obtém apenas a oportunidade de atuar permanentemente. Pois diante breves explanações acerca do conceito de capitalismo e da decomposição da estrutura econômica da sociedade feudal (esta que então liberou os elementos para o desenvolvimento da estrutura econômica da sociedade capitalista), pretende-se ainda, aqui, entender como autores de diversas vinculações políticas manipulam fatores para construir um discurso a respeito do surgimento deste atual modo de produção que tem, impreterivelmente, uma função ideológica. O surgimento do capitalismo identificado com o crescimento do mercado Os autores que defendem o liberalismo (destacadamente os economistas clássicos ingleses, como David Ricardo, Adam Smith e Thomas Malthus) identificam o surgimento do capitalismo com elementos que induzem a compreensão de que o capitalismo desde sempre existiu. Para defender e justificar a razão do aumento do lucro, afirmam que existe uma razão natural humana que levaria o ser humano a ser um ―homem econômico‖ (termo cunhado por Adam Smith), onde teria propensão natural para trocar, comercializar e lucrar. Dessa forma o início da Idade Moderna assistiria não ao surgimento de algo novo, mas a vitória da propensão natural do ser humano para o comércio sobre as em qualquer momento da história onde haja a prática de comércio e troca. O capitalismo esteve, para tais, sempre latente esperando as condições ideais para se desenvolver. Segundo esta visão, o capitalismo é o futuro inexorável da humanidade. O surgimento do capitalismo, pois, explicitaria tão somente o desenvolvimento das melhores tradições humanas; desenvolvimento esse que havia sido rompido injustificadamente pela Idade Média e suas trevas. A crítica de Polanyi e a compulsão do mercado capitalista O historiador econômico e antropólogo Karl Polanyi apresenta uma crítica bastante consistente ao padrão acima descrito. Para esse autor as formulações clássicas não resistem a uma análise sólida da história do mercado. Para este, antes da Idade Moderna, as trocas não eram o princípio dominante da vida econômica. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 injustificáveis amarras impostas pelo feudalismo. Esses autores percebem o capitalismo 362 Segundo Polanyi (POLANYI apud WOOD, 2001), nas formações sociais anteriores (mesmo em sociedades com mercados bem estruturados) o comércio era incentivado por razões sociais, religiosas, políticas, familiares e não pela busca incessante pelo lucro. Para esse autor, é preciso ser diferenciada a sociedade com mercados e a sociedade de mercado. A diferença é que na sociedade capitalista o mercado passa a ser o regulador das relações sociais: não há mais relações econômicas imersas nas relações sociais, mas, ao contrário, há relações sociais imersas e mediadas pelas relações econômicas. Da crítica de Polanyi nasce um paradoxo no discurso clássico e mercantil: se houve sociedades em que a propensão ao lucro – mesmo sendo permitida e estruturada – não regulava a atividade econômica, então a propensão ao lucro não é característica natural do ser humano. Outra contradição advém da observação de que, em que pese a ideologia capitalista afirmar que o mercado é o símbolo da liberdade humana, a sociedade capitalista (notadamente a formação social que mais desenvolveu o mercado) compele o indivíduo a participar do comércio (uma vez que ele é o mediador das relações sociais, inclusive de subsistência), não existindo então a liberdade de dele não participar, ou seja, ao fim e ao cabo, não haveria liberdade para o indivíduo se existisse o destino Em busca do fator distintivo As reflexões feitas até aqui são suficientes para nos levar a crer que a discussão pautada pelo surgimento do capitalismo se baseia, muitas vezes, em premissas de caráter antes ideológico do que puramente científico. Também nos parece um reducionismo deplorável querer enxergar germes do capitalismo onde e quando tenha existido o comércio. Parece-nos que o desafio principal para se definir onde e quando surgiu o capitalismo está em definir o fator distintivo entre o capitalismo e as outras formações sociais pré-capitalistas. Pelo pouco já analisado fica claro que não há apenas um fator distintivo, mas uma série de fatores que se inter-relacionam. Arriscamos dizer, segundo uma livre opinião, que entre os fatores principais estão as classes sociais características da sociedade capitalista e a necessidade do mercado como mediador das relações sociais. No entanto, apenas definir esses fatores não é o bastante: a história da humanidade é mais complexa do que os conceitos gerais Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 manifesto da humanidade rumar, inevitavelmente, para o capitalismo. 363 (obtidos por abstrações) que a ciência histórica traça para compreendê-la. Para a intelectualidade é importante lembrar que a ciência, sobretudo as ciências humanas e sociais, sempre constará uma redução, uma síntese do objeto estudado. Com isso, porém, não queremos atacar a cientificidade do saber histórico, desejamos apenas ressaltar que – como em todo estudo da história – as realidades sociais se movem de acordo com lentos acúmulos e, portanto, existe um processo de transição também no estudo do surgimento do capitalismo. Sobre o surgimento das classes típicas da sociedade capitalista Assim como as outras questões em debate, essa também tem gerado muita controvérsia. Para entendermos parcialmente tal polêmica recorremos à discussão travada entre Paul Sweezy e Maurice Dobb, acompanhada pela contribuição imprescindível de H. K. Takahashi, Rodney Hilton e Christopher Hill. Para o economista Sweezy que defendia, a grosso modo, a forma tradicional (mercantil) de entender a transição entre feudalismo e capitalismo, a principal razão da decomposição do modo de produção feudal foi o renascimento comercial e urbano. Para ele o comércio e a cidade eram antagônicos ao sistema feudal. O crescimento comercial teria gerado nas cidades a classe capitalista, os burgueses e que, junto ao que Dobb (como veremos logo adiante) usa para referenciar o colapso do feudalismo, a fuga dos (...) não há dúvidas de que o rápido desenvolvimento das cidades – oferecendo, como ofereceu, liberdade, emprego e melhoria de condição social – atuou como um poderoso imã à oprimida população rural. E os próprios burgueses, necessitando de trabalho excedente adicional e de mais soldados para fortalecerem o seu poderio militar, tudo fizeram para facilitar a fuga dos servos à jurisdição dos seus senhores. (SWEEZY, P. M.; DOBB, M.; TAKAHASHI, H. K.; HILTON, R.; HILL, s/d, p.30) Já para Dobb e Hilton o motivo principal da decadência do sistema feudal seria a superexploração da mão de obra camponesa, que teria gerado então uma abertura para a luta de classes e com isso teria surgido um conjunto de produtores agrários voltados para a produção mercantil e, então, daí é que surgiria a classe de capitalistas. Para Takahashi em sua contribuição na discussão, definições conceituais gerais do feudalismo e do capitalismo (tratadas por Dobb e Sweezy), não são meras questões de terminologia, mas envolvem métodos de análise histórica. Assim, ele conclui que, existindo apenas a escravatura, a servidão e o trabalho assalariado livre como forma básica de trabalho, é errado separar a servidão do feudalismo como concepção geral. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 servos contribui para a incontrolável ascensão do capitalismo. Para Sweezy 364 Para ele a transição do modo de produção feudal para o capitalista não é simplesmente uma questão de transformação nas formas das instituições econômicas e sociais. O problema básico então seria o da mudança na forma existencial social da força de trabalho. Por fim, para Takahashi a causa central para o declínio do feudalismo e ascensão do capitalismo não foi o comércio ou o próprio mercado, afinal ele entende que a estrutura mercadológica está condicionada pela organização interna do sistema produtivo. E ainda que faça análises de acordo com as particularidades de cada região geográfica, em suma, acredita que (...) o desenvolvimento da troca na economia camponesa, servindo o mercado local diretamente ou os mercados mais distantes através dos mercados intermediários, levou ao desenvolvimento da troca na economia dos senhores, por outro lado, levou ao desenvolvimento das prestações de trabalho. (SWEEZY, P. M.; DOBB, M.; TAKAHASHI, H. K.; HILTON, R.; HILL, s/d., p. 96) Em verdade compreende que quando a economia de troca ou monetária se desenvolveu, foi quando o feudalismo desapareceu com maior clareza e mais facilidade. Não está, portanto, entre os modestos objetivos desse trabalho aflorar as divergências colocadas por tais economistas e historiadores. No entanto, parece-nos que é preciso estar atento aos argumentos de Dobb e Hilton sobre o fato de importantes centros comerciais europeus não terem gerado o capitalismo e nem a desagregação Por outro lado, é preciso notar que Sweezy levanta importantes falhas no pensamento de seus opositores. A maior delas é que Dobb caracteriza o declínio do feudalismo e o surgimento do capitalismo como um mesmo processo econômico. Apesar de atacar diversos fundamentos da lógica mercantil de ver a transição entre feudalismo e capitalismo, Dobb acaba por reproduzir a concepção do capitalismo sempre existente: bastou que a luta de classes (e não mais o desenvolvimento do comércio) arrancasse os grilhões do feudalismo para que o capitalismo florescesse. Esse autor acabou por enxergar a pequena propriedade mercantil e as formas pré-capitalistas de comércio um protocapitalismo. Síntese interessante nesse debate é a elaboração do historiador Robert Brenner que no embate Sweezy-Dobb tendia a concordar mais com o segundo, porém não negava as falhas do pensamento do mesmo. Brenner buscou superar as falhas de Dobb procurando uma alternativa para a deterioração do sistema feudal e o surgimento do capitalismo que não se baseasse na crença de que os agentes sociais teriam um Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 feudal. 365 comportamento capitalista latente esperando apenas uma oportunidade. Para Brenner – e essa nos parece ser a opção teórica e metodológica mais correta – a questão está em definir quando e em quais condições a luta de classes levou camponeses e proprietários de terras a se comportar segundo os padrões capitalistas. Destaca ele que, provavelmente, esse comportamento foi involuntário e inconsciente. Esse historiador então partiu da análise de que o capitalismo não surgiu primeiramente na Inglaterra. A desagregação feudal fez surgir realidades diversas nos diversos Estados europeus. Como exemplo, cita que a referida desagregação enquanto gerou o capitalismo na Inglaterra, gerou o absolutismo na França (para Brenner o Estado absolutista era um estado feudal e não compunha uma transição do feudalismo para o capitalismo). Assim, Robert Brenner passou a estudar as circunstâncias que geraram o capitalismo na Inglaterra. Este percebeu que, ao contrário da França onde os senhores feudais ainda recebiam o excedente de produção em espécie, na Inglaterra havia um sistema de arrendamento das grandes propriedades rurais que eram pagos em dinheiro. Assim o excedente produzido era o lucro em moeda, só possível na produção voltada para o mercado. Dessa forma a sobrevivência de arrendatários e dos proprietários dependia do mercado e do incremento da produtividade. Essa explicação de Brenner dá conta de responder a uma questão levantada por produtor agrícola voltado para a subsistência chegar a ser o capitalista pelo simples acúmulo de recursos. Nessa nova alternativa esse produtor já nasce capitalista, dependendo do mercado. Parece-nos que a análise de Brenner consegue identificar também o principal elemento distintivo da sociedade capitalista: com sua pesquisa, esse historiador demonstrou o processo que levou a sociedade inglesa a passar de uma sociedade com mercados para uma sociedade de mercado. Assim, explicando o surgimento da classe de capitalistas e demonstrando que esse processo gerou a primeira ―espécie‖ de capitalismo: o capitalismo agrário. O capitalismo agrário inglês seria então o precursor do capitalismo mundial. O imperialismo inglês teria por diversas vias e segundo diversificadas realidades regionais internacionalizado o capitalismo. Por fim, diante o complexo debate sobre o surgimento do capitalismo, é possível estabelecer algumas premissas para que possamos nos movimentar dentro dessa sinuoso reflexão. A primeira é perceber que o capitalismo se caracteriza pela existência de duas Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 Sweezy. O economista afirmava que era inverossímil a possibilidade do pequeno 366 classes antagônicas: uma que nada possui e por isso vende sua força de trabalho para a outra classe, a qual detém os meios de produção. A conseqüência dessa divisão da produção é que as relações sociais passam a ocupar lugar de apêndice das relações econômicas. Outra observação, por hora conclusiva, é que nesse debate é preciso tomar cuidado para não cair no erro de supor aquilo que se quer explicar. Ou seja: não podemos presumir que sempre existiu um capitalismo para que possamos, enfim, explicar o surgimento deste. Isto implicaria importar para as consciências dos homens e mulheres do passado conceitos e elaborações que são absolutamente da contemporaneidade. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DUBY, Georges. História da vida privada, 2: da Europa feudal à Renascença. Tradução Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das letras, 1990. MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. São Paulo: Abril Cultural, 1984. v.1-2. SANTIAGO, Theo. Do feudalismo ao capitalismo: uma discussão histórica. São Paulo: Editora Contexto, s/d. WOOD, Ellen Meikisins. A origem do capitalismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editora LTDA, 2001. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 SWEEZY, P. M.; DOBB, M.; TAKAHASHI, H. K.; HILTON, R.; HILL, C. Do feudalismo ao capitalismo. São Paulo: Martins Fontes, s/d. 367 OS NEGADORES DO HOLOCAUSTO NA HISTÓRIA, DIÁLOGOS POSSÍVEIS? UMA REFLEXÃO ACERCA DAS POSSIBILIDADES DE DIÁLOGO COM OS NEGACIONISTAS Makchwell Coimbra Narcizo Universidade Federal de Goiás [email protected] Em um trabalho que indague acerca das possibilidades de diálogo com os negacionistas da shoah140, haverá uma reflexão sobre seus métodos, e jamais uma discussão em torno do genocídio ou não de judeus e outros povos promovidos pelo Será empregado o termo shoah, por considerarmos que há uma disputa em torno da administração da memória do genocídio promovido pelos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial, o termo ―holocausto‖ e ainda mais ―Holocausto‖ são termos cunhados com objetivos políticos e ideológicos. O uso das aspas não objetiva menosprezar e tão pouco relativizar o sofrimento promovido pelos nazistas e seus aliados durante a Segunda Guerra Mundial, mas sim, explicitar que o trabalho é feito tendo consciência dessa disputa ideológica em torno do tema. No mais, o termo holocausto tem suas origens no grego clássico: ὁλόκαυστον, ὁλον (todo) + καυστον (queimado), que era uma espécie de ritual antigo em que plantas, animais e até mesmo pessoas eram oferecidas a divindades, sendo totalmente queimadas. Tal ritual fora bastante difundido na antiguidade, sendo utilizado pelos hebreus nos rituais de adoração a seu deus, Iaweh. Prosseguindo na problemática envolvendo o uso do termo holocausto, encontramos respaldo em Giorgio Agamben: holocausto é a transição douta do termo holocaustum, que é a tradução do termo grego holókasutos (um adjetivo que significa literalmente ―todo queimado‖). O livro de Levítico traduz os sacrifícios de quatro formas: olâh, hattât, shelamin e minhâ. A vulgata traduz o termo olâh como holocaustrum, assim, os padres latinos passam a usar esse termo para indicar os sacrifícios dos hebreus. Não demorou muito, para que esse termo fosse usado pelos padres como uma arma polêmica contra os hebreus, sendo usado assim de Tertuliano a Agostinho. Esse último usa o termo ―holocausto‖ para se referir ao sacrifício vicário de Jesus. Desde então, começa uma migração semântica que leva cada vez mais o termo a ser entendido como ―sacrifício supremo‖. No entanto, o termo continuou a ser usado em uma ―história secreta‖ do termo em um sentido polêmico contra os judeus. (AGAMBEN, 2008: 37-40). Com tal conotação o termo holocausto tem sido rechaçado tanto por parte da comunidade judaica, tal como o escritor Primo Levi quanto pelos cristãos, pois causa certo desconforto seu significado literal, já que conota uma expiação dos pecados; assim, é teologicamente ofensivo considerar que o massacre de judeus e outros povos durante a Segunda Guerra Mundial seja um sacrifício a Deus. A vinculação do termo a um sacrifício extremo no sentido de entrega a Iahweh faz com que o termo seja substituído por ―shoah‖ que é o que é feito no presente trabalho. Shoah ( )השואהque em iíndiche (dialeto alemão falado por judeus ocidentais, que mistura alemão e hebraico) significa devastação, catástrofe, que implica nos textos sagrados do judaísmo uma idéia de punição divina. Ainda sobre a recusa do uso do termo holocausto no presente trabalho, nos respaldamos mais uma vez em Agamben: ―[...] no caso do termo ‗holocausto‘, estabelecer uma vinculação, mesmo distante, entre Auschwitz e o olâh bíblico, e entre a morte nas câmaras de gás e a ‗entrega total a causas sagradas superiores‘ não pode deixar de soar como zombaria. O termo não supõe apenas, uma inaceitável equiparação entre os fornos crematórios e altares, mas acolhe uma herança semântica que desde o início traz uma conotação antijudaica. Por isso, nunca faremos uso desse termo. Quem continua a fazê-lo, demonstra ignorância ou irresponsabilidade (ou as duas coisas ao mesmo tempo)‖. (AGAMBEN, 2008: 40). Ainda ressaltamos o que fora dito no início, o termo ―holocausto‖ é uma forte ferramenta na disputa pela administração da memória da história da Segunda Guerra Mundial, logo, será empregado no decorrer do trabalho shoah, para referir-se ao genocídio promovido pelos nazistas e seus aliados durante a Segunda Guerra Mundial. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 140 368 Nacional Socialismo Alemão141 e seus aliados, sendo isso desnecessário em termos históricos, tendo em vista que dentro da própria historiografia existem provas conclusões suficientes sobre tal evento. A intenção é refletir acerca dos desafios que a negação da shoah implica para a História, isso ocorre porque, não seriam tais dúvidas as mesmas que temos em relação a nossa capacidade de estudo do passado? Ou seja, nossa capacidade de fazermos História. Os problemas levantados pelos negacionistas tornam-se ainda mais inquietantes por se tratar de um evento histórico bem próximo temporalmente, afinal, não se trata de algum arqueólogo negando algo que ocorreu há dezenas de séculos, é a negação de algo bem próximo a nós e com uma marcante conotação traumática A negação da shoah ocorreu pela primeira vez em 1951, pelo historiador francês e ex-interno do Campo de Concentração de Buchenwald Paul Rassinier, especificamente com o livro: A Mentira de Ulisses (1951). Nesse livro consta uma negação da existência das câmaras de gás e da ocorrência do holocausto, Rassinier começava duvidando dos números do holocausto até chegar a sua negação por completo. Depois que Paul Rassinier abriu precedência para que o holocausto fosse negado, inúmeras obras negando o holocausto foram publicadas. Entre os autores mais importantes do ―Negacionismo da shoah‖ está Robert Faurisson, este autor é quem centraliza o debate sobre a negação do holocausto desde a dezembro de 1978, o então professor de linguística da Universidade de Lyon publicou no Le Monde os artigos: Genocídio por Telepatia, Explica Hilberg (1978) e O Problema das Câmaras de Gás e o Rumor de Auschwitz (1978); Faurisson desde então é o grande nome dos ―negacionistas‖. Com as publicações de Faurisson a negação do holocausto chega ao grande público, o que outrora era distribuído de forma panfletária atinge o mercado editorial. A negação da shoah causa desconforto na sociedade ocidental em todas as áreas, na História não poderia ser diferente, afinal não seria esta incumbida de fazer com que aprendamos com o passado e não caiamos nos mesmo erros? Mas a questão é bem mais complexa que isso, os negacionistas tentam se inserir na academia, alegando que o que fazem é uma ―revisão da história‖. 141 NSDAP – Partido Nacional-Socialista, também conhecido como Partido Nazista ou partido Nazi. Que chegara ao poder com Adolf Hitler em 1933. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 década de 1970, isso se dá porque no final da referida década, especificamente em 369 Não seria um revisionismo algo frutífero em História? Revisões em História não acontecem constantemente? Sim, sabemos que as verdades que extraímos do passado estão em constante movimento, o que faz com que o conhecimento histórico seja algo fascinante, mas no caso dos negacionistas, sua visão de revisão histórica é comprometida por um aparato ideológico que direcionam suas respostas. A princípio existe um legítimo ―Revisionismo Histórico‖, que constituem escolas históricas que enfrentam outras quando novas problemáticas ou novos tipos de documentos aparecem; que diferenciamos do (auto) intitulado ―Revisionismo do holocausto‖, que será tratado mais especificamente do ―Negacionismo do shoah‖. Essa diferenciação entre ―Revisionismo Histórico‖ e ―Revisionismo da shoah‖ mais especificamente o ―Negacionismo da shoah‖ torna-se necessária para que seja feita uma distinção entre revisões históricas, pautadas em métodos acadêmicos e os que negam a shoah transplantando ações da esfera da política para o meio acadêmico. Esta passagem para o meio acadêmico é feita muitas vezes burlando regras e desconsiderando práticas exigidas para transitar nesse espaço. Nas palavras de Pierre Vidal-Naquet ―Negar a história, não é revisá-la‖ (VIDAL-NAQUET, 1988: 171). Na busca de um possível diálogo com os negacionistas, é necessário ressaltar que existe uma disputa em busca da administração da memória e da história da II Guerra Mundial. Se por um lado existem os negacionistas, que usam a história como Faurisson, Fred Leuchter, Roger Garaudy, Arthur Butz e Bernard Lewis, e pelo pensamento que influenciou todo esse grupo: Paul Rassinier e Maurice Bardèche.; por outro, existe o grupo dos ―exaltadores da shoah‖, grupo que explora o evento para justificar ações em diversos campos, como o econômico e político, sustentam a tese que esse é o evento mais importante para o estudo da História no século XX, promovendo uma espécie de instrumentalização do genocídio nazista. O que segundo Agamben, é uma forma de ―adoração em silêncio‖, adoração que segundo esse é feita comumente a um deus (AGAMBEN, 2008: 42), esse grupo tem marcante ligação com o governo sionista israelense. Tal grupo tem como principais representantes: Elie Wiesel, Israel Gutman, Daniel Goldgharen e Deborah Lipstadt. Os negacionistas constantemente colocam-se contra o Estado de Israel, defendem que fora tal Estado quem criou o ―holocausto‖, aqui está uma importante armadilha que os negacionistas propõem a seus leitores, o fato de atacar o Estado de Israel é compreensível, afinal esse é de fato um Estado violento, mas relacionar isso a Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 campo de afirmação de suas ideologias, tendo como principais representantes: Robert 370 uma organização que segundo os revisionistas existia antes da Guerra é absurdo, uma coisa é o Estado de Israel ser comprovadamente violento, outra é acreditar ou argumentar que o genocídio hitlerista não existiu e que é uma invenção desse Estado. Existem dois lados altamente antagônicos da mesma história e ambos podem estar equivocados. Obviamente o estudo da II Guerra Mundial e da shoah não é feito apenas por esses dois grupos, existem outros historiadores com competência acadêmica comprovada que trabalham a temática, dentre os quais podemos destacar: Saul Friedländer, Raúl Hilberg, Christopher Browning, tal como o professor Luis Milman, esses historiadores apesar de sua comprovada competência tem bem menos exposição na mídia e fama que o grupo liderado por Elie Wisel. O que queremos explicitar aqui é justamente uma disputa em torno do tema, disputa essa, que o grupo dos ―exaltadores‖ busca silenciar o grupo dos negacionistas. Outro ponto a ser destacado no que diz respeito a um possível diálogo com os negacionistas, é uma questão de elevada importância para nós historiadores, pois diz respeito à indagação acerca dos negacionistas fazerem história ou não? Essa questão perpassa obviamente por uma discussão acerca de o que seria então história? Entretanto, não será feita essa discussão no presente trabalho pelo curto espaço que caracteriza o mesmo, podendo ser feita em outra ocasião, porém explicitaremos métodos adotados pelos negacionistas no que diz respeito à construção de seus trabalhos. negacionistas, Jacques Rancière salienta que o ―Revisionismo do holocausto‖ é uma ―supressão pura e simples do objeto da história‖ (RANCIÈRE, 1995: 244). Para Rancière o modo de se pensar e escrever História, após os Annales, opõe acontecimento à mentalidade. O medo do anacronismo acaba por submeter o real ao possível, assim, os historiadores procuram encadear o acontecimento em uma conjuntura necessária, para que esse possa ser caracterizado como real. É neste ponto que os argumentos negacionistas ganham espaço, já que os ―Negadores do holocausto‖ formulam seus argumentos de uma forma racionalmente ordenada, de uma forma semelhante aos historiadores que não corroboram com suas teses, (RANCIÈRE, 1995: 240-241). O que Rancière demonstra, é que os negacionistas montam suas teses fazendo uso da mesma racionalidade usada por historiadores não negacionistas, ou seja, correspondem a certo padrão acadêmico. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 Primeiro ponto a ser destacado, é o jogo entre real e imaginário feito pelos 371 Acerca da racionalidade com que os argumentos negacionistas são postos, existe certa confusão, confunde-se a irracionalidade de seus argumentos, com a forma como tais argumentos são postos, vejamos isso em Deborah Lipstadt: Necessitamos nos ocupar da questão porque as forças da Razão são vulneráveis e porque a sociedade é suscetível a idéias aberrantes. As pessoas habitam reinos imaginários e irracionais, a exemplo das pessoas que negam a existência de Auschwitz, criam correntes de opiniões poderosas, em termos históricos como o próprio nacional-socialismo. LIPSDARDT, 1994: 48, Apud: KRAUSE-VILMAR, 2000: 97). Podemos notar, que não há uma definição clara se o que não é racional é a forma argumentativa ou o argumento exposto pelos negacionistas. No que diz respeito da aceitação ou não dos trabalhos negacionistas enquanto História, não devem ser pautadas no conteúdo de seus trabalhos, afinal ninguém em sã consciência nega que o NSDAP e seus aliados tenha promovido um genocídio durante a II Guerra Mundial, o problema trazido pelos negacionistas é justamente a forma como expõem seus argumentos, essa forma sim, corresponde a certa racionalidade comum entre os historiadores. Ao analisarmos essa forma nos deparamos com dois pontos importantes: a forma que tratam os documentos e sua base conceitual. Nestes pontos sim, encontramos erros importantes a ser salientados. Características marcantes entre os negacionistas, é sua capacidade de isolar determinados documentos em relação aos fatos que compõem seu contexto e sua negacionistas apresentam um grande esforço de investimentos empíricos, que se tratando no caráter histórico, químico ou técnico, muitas vezes causam perplexidade em um leigo em matéria de química e História, tanto pela técnica quanto pela quantidade de material apresentado, ocorrendo para Kause-Vilmar uma tentativa elaborada de descontextualizar os documentos de seu contexto histórico-político. Para Rancière isso ocorre porque a argumentação negacionista se sustenta da seguinte maneira: A provocação negacionista não se sustenta pelas provas que opõe ao acúmulo das provas adversas. Ela se sustenta porque traz cada uma das lógicas que ali se enfrentam a um ponto crítico em que a impossibilidade se encontra comprovado sob tal ou qual de suas figuras: falta na cadeia, ou impossibilidade de pensar o encadeamento. Ela obriga então essas lógicas a executar uma corrida em que o possível é sempre alcançado pelo impossível, e a verificação do acontecimento pelo pensamento de seu impensável. (RANCIÈRE, 1996, p. 129). Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 conjuntura histórica. Para Ditfrid Krause-Vilmar (2000: 104) acredita que as pesquisas 372 Rancière defende que os argumentos negacionistas consistem em uma ameaça a um sistema consensual, assim, o autor expõe que as afirmações negacionistas só são possíveis perante uma desestabilização de tal sistema, já que os negacionistas agem onde o pensamento inclina-se diante do impensável. O que os negacionistas fazem, quando em seus argumentos isolam fatos, buscando que esses não sejam ligados pelos historiadores, estão simplesmente fazendo uma enumeração do interminável e divisão do infinito. Rassinier em 1950 defendia que faltavam documentos para transformar os fatos em acontecimento e duvidava que um dia esses pudessem ser encontrados; mesmo hoje havendo documentos em abundância, a provocação negacionista não cedeu, na verdade conseguiram mais adeptos. (RANCIÈRE, 1996, p. 128). Com essa enumeração do infinito conseguem fazer um jogo perigoso com a verdade, se as vítimas das câmaras de gás não podem testemunhar, logo as câmaras não existiram, assim tais vítimas também não existiram. É um argumento que usa a razão para respaldar uma mentira, já que sabemos bem que uma vítima não pode dar testemunho de sua morte, o que não exclui como vítima. Para Pierre Vidal-Naquet (1988: 31) o que os negacionistas buscam é colocar as câmaras de gás como balizadoras da verdade sobre o genocídio, buscando negar o genocídio com a negação da materialidade das câmaras. Com essa tentativa de materialidade, acabam por excluir das câmaras de gás, não se vai atrás de aprofundar sobre o sistema totalitário. Assim, para Naquet (1988: 34), os revisionistas não trazem uma visão crítica para o assunto, apenas uma enumeração de documentos e fatos isolados. A respeito da base conceitual que rege os trabalhos negacionistas é que seus trabalhos encontram mais problemas, sua base conceitual é o anti-semitismo puro e simples. É partindo do anti-semitismo que os negacionistas estabelecem toda sua argumentação, é o mesmo anti-semitismo embasado em concepções racistas que levaram Hitler ao poder, mas tem havido uma pequena troca nesse quesito, deixam de lado as questões biológicas e colocam questões culturalistas, não se busca mais uma raça pura, busca-se uma ―identidade cultual autêntica, o ódio da raça é transposto para o ódio da tradição (MILMAN, 2000: 147). Essas concepções fazem com que os principais argumentos dos negacionistas partem de um pressuposto mitológico e mistificatório, já que na base de seus argumentos existe uma suposta guerra que os judeus europeus declararam aos alemães. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 toda a carga cultural por trás de tais atos. Ao ficar rodando em torno da funcionalidade 373 Sabemos que não existe provas históricas que comprovem tal tese, os argumentos negacionistas são cocados basicamente em um documento que tem sua autenticidade questionada: Os protocolos dos sábios de Sião. Argumentos partindo desse pressuposto são inaceitáveis, pois como expressa Vidal-Naquet (1988:65): ―O que houve não foi uma guerra, foi um genocídio.‖ Sob esse aspecto, os críticos do negacionismo têm razão em acusá-los de trocar a História pelo mito, sendo assim, cria-se um perigo real em História, vejamos no argumento de Pierre Vidal-Naquet: Substituir a história pelo mito é um procedimento que não ofereceria perigo existisse um critério absoluto para distinguir a primeira vista um do outro. É próprio da mentira apresentar-se como verdade. É claro que essa mentira nem sempre tem vocação universal. Pode ser verdade nas mãos de uns poucos (Vidal-Naquet 1988:81). Essa verdade nas mãos de poucos, que nem é uma verdade, mas é a sua verdade faz constituir uma seita perigosa no que diz respeito ao conhecimento histórico, não se pode construir uma história sem colocar suas concepções de verdade para dialogar com O compromisso com a verdade é um princípio geral da investigação científica. Não se trata de uma metodologia acabada. Há muitas razões metodológicas que tornam questões históricas factualmente sombrias e mesmo indecidíveis; mas, nestes casos, tais razões devem ser claramente expostas. Esta é uma questão epistemológica fundamental. Fora da perspectiva racional (que envolve condição reflexiva, critérios metodológicos definidos e de alcance intersubjetivo) não há como ensaiar a mais trivial das conclusões, porque não há como escolher entre afirmar uma hipótese e negála. Nesse caso, quando o imaginário e o ideológico assumem a dianteira de uma análise que se pretende racional, o discernimento acerca do próprio assunto em discussão se esvai; e, sem ele, métodos de pesquisa comparada, de investigação de fontes e análise das evidências propriamente ditas, tomam-se simplesmente inúteis. (MILMAN, 2000: 147). Essa advertência não é apenas para os negacionistas, mas para todos que fazem a história da II Guerra Mundial e especialmente da shoah, o diálogo deve ser feito para que as verdades sejam confrontadas, a intenção não é opor uma escola ―exterminacionalista‖ de uma escola ―negacionista‖, até porque isso seria absurdo, um diálogo para discutir ideologias é desnecessário no que diz respeito a esse tipo de abordagem que propomos em História, mas um diálogo um necessário na medida em determinadas concepções de verdade tendem a ser absolutizadas. O diálogo jamais será possível se for discutido o conteúdo de seus argumentos, nem mesmo vemos a utilidade real disso em História, mas essa discussão deve ser pautada sobre a forma que esses argumentos são expostos, afinal a História tem seus atributos próprios que a distingue de outras formas de conhecimento, para ser defendido Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 as outras. Até porque, como defende Luis Milman: 374 algo dentro da ciência história esses atributos devem ser minimamente respeitados, podendo até ser questionados, desde que sejam apresentadas alternativas plausíveis e que essas alternativas não se embasem em erros outrora cometidos e extirpados da História. É sim, função do historiador arrancar a História das mãos de ideólogos. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AGAMBEN, Giorgio. O Que Resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha. (Homo Sacer III). São Paulo: Boitempo, 2008. KRAUSE-VILMAR. Díetfrid. A Negação Dos Assassinatos em Massa do Nacionalsocialismo: desafios para a ciência e para a educação. In: Neonazismo, negacionismo e extremismo político. Porto Alegre: Ediufrgs, 2000. P 97-114 MILMAN, Luis. Negacionismo: gênese e desenvolvimento do genocídio conceitual. In: Neonazismo, negacionismo e extremismo político. Porto Alegre: Ediufrgs, 2000. P 115-151. RANCIÈRE, Jacques. A Partilha do Sensível: estética e política. São Paulo: Ed. 34, 2005. __________________. O Desentendimento: política e filosofia. São Paulo: Ed. 34, 1996. __________________. Políticas da Escrita. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995. VIDAL – NAQUET, Pierre. Os Assassinos da Memória: o revisionismo na história. Campinas: Papirus, 1988. ARCHIVE FAURISSON (The Faurisson Archive). Disponível em: <www.vho.org/aaargh/ engl/FaurisArch/FaurisArch.html>. Acesso em: 23 jan. 2009. ARCHIVE RASSINIER (The Rassinier Archive). Disponível em: <www.vho.org/aaargh/engl/RassArch/RassArch.html>. Acesso em: 21 jan. 2009. FAURISSON, Robert. Genocídio por Telepatia, Explica Hilberg. Disponível em: <www.vho.org/aaargh/port/arquivoRF/RF880901por.html>. Acesso em: 24 jan. 2009. __________________. O Problema das Câmaras de Gás e o Rumor de Auschwitz. Disponível em: < www.vho.org/aaargh/port/arquivoRF/RF960315port.html>. Acesso em: 28 de fev. 2009. RASSINIER, Paul. The Holocaust Story and the Lies of Ulysses. Disponível em: <http://www.ihr.org/books/rassinier/debunking.shtml>. Acesso em 10 de ago. de 2009. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 Sites: 375 SIMPÓSIO TEMÁTICO 7 – HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO ESCOLAR E DO ENSINO DE HISTÓRIA Coordenação: Prof.ª Dr.ª Betania de O. L. Ribeiro e Prof. Dr. Sauloéber Társio de Souza A CONCEPÇÃO DE ENSINO PENSADA POR ROBERTO MANGE- A FORMAÇÃO DE MÃO DE OBRA SENAI: A ESCOLA DO SENAI –PR.....................................................379 Desirê Luciane Dominschek A EDUCAÇÃO ESCOLAR E A IMPRENSA EM ITUIUTABA ........................................... 390 Jennifer Maria P. Matos , Isaura Melo Franco e Sauloéber Tarsio de Souza A EDUCAÇÃO FÍSICA NA HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO TIJUCANA (1942-1964) ......... 400 Andréa Azevedo de Oliveira, Thais Parreira de Freitas Oliveira e André Luis Parreira CURRÍCULO, CULTURA E RELAÇÃO DE PODER ........................................................... 415 Diana Lima Pereira EDUCAÇÃO PARA O TRABALHO: REFLEXÕES EM TORNO DA GENÊSE DO COLÉGIO COMERCIAL OFICIAL DE ITUIUTABA (DÉCADA DE 1960) ....................... 423 Jóbio Balduino da Silva ENSINO MÉDIO NOTURNO COMO ALTERNATIVA ....................................................... 434 FORMAÇÃO DE PROFESSORES PÓS LDB 9694/96: CONTEXTO E REALIDADE ........ 443 Angélica Bisinoto da Silva, Lorraine Cristina da Silveira Pereira e Armindo Quillici Neto ....................................................................................................................................... 443 IRONIDES RODRIGUES: VIDA E OBRA DO GRANDE E POUCO CONHECIDO INTELECTUAL NEGRO ......................................................................................................... 456 Gilca Ribeiro dos Santos O IDEÁRIO DE ESTUDANTE/ALUNO REPRESENTADO NOS JORNAIS DE ITUIUTABA-MG (ANOS 50 E 60) ......................................................................................... 464 Isaura Melo Franco e Sauloéber Tarsio de Souza A PRÁTICA DE FESTAS JUNINAS: A DESCONSTRUÇÃO DE UMA HERANÇA ......... 476 Layra Sarmento ................................................................................................................... 476 Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 Bruno Taumaturgo Bandeira e Maria Angélica da Costa Silva 376 PERSPECTIVAS DE FORMAÇÃO DAS PROFESSORAS DE EDUCAÇÃO INFANTIL E ENSINO FUNDAMENTAL: AS CONTRIBUIÇÕES DO CURSO DE PEDAGOGIA APÓS A PUBLICAÇÃO DA LDB 9394/96 ........................................................................................... 488 Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 Carla Lisboa Andrade, Jaqueline Andrade Calixto e Armindo Quillici Neto 377 A CONCEPÇÃO DE ENSINO PENSADA POR ROBERTO MANGE- A FORMAÇÃO DE MÃO DE OBRA SENAI: A ESCOLA DO SENAI –PR Desirê Luciane Dominschek Mestre em Educação –História e Historiografia da Educaçã/UFPR Desde que assumiu o Ministério em 1934, Gustavo Capanema mostrou seu interesse em desenvolver um amplo programa que aumentasse o número de estabelecimentos destinados a formar mão de obra para a indústria. Naquele mesmo ano, o Ministro Capanema formou uma comissão com este intuito, do qual fazia parte Roberto Mange (do Centro Ferroviário de Ensino e Seleção Profissional); Lourenço Filho (Diretor do Instituto de Estudos Pedagógicos); Leon Reunault (Diretor do Patronato Agrícola João Pinheiro); Joaquim Faria Góes Filho (Superintendente da Educação Secundária e Técnica do Distrito Federal); Horacio da Silveira (Superintendente da Educação Profissional e Doméstica de São Paulo); Artur Torres Filho (Diretor do Serviço de Econômia Rural); Lafaiete Belfort Garcia (Diretor da Divisão de Ensino Comercial); e, Rodolfo Fuchs (Inspetor do Ensino Industrial)142. A comissão teve seis meses de trabalho, de discussões e debates intensos, resultando no Decreto nº. 6.029, assinado em 26 de julho de 1940 por Vargas, decreto este que regulamentava a instalação e funcionamento dos cursos profissionais previstos Segundo Fonseca143, a solução não era ainda definitiva, nem as autoridades do ensino ficariam adstritas a elas. As idéias estavam em marcha, buscava-se uma solução que acelerasse o ritmo e incrementasse as atividades do ensino de ofícios. Havia uma comissão que trabalhava desde 1936 na elaboração de uma lei que abrangesse todos os aspectos do ensino profissional. Mas, conforme aponta Fonseca, foi em janeiro de 1942, sob o nome de Lei Orgânica do Ensino Industrial, que surgiu a tão esperada legislação que, pouco mais tarde, daria espaço à criação do SENAI — criado com o Decreto-lei nº. 4.048, de 22 de janeiro de 1942. O decreto nº. 6.029 de julho de 1940 não seria modificado; ele daria lugar, no entanto, já em 1942, a dois decretos quase simultâneos, um criava o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial, o SENAI, conforme as aspirações da indústria e do ministério do trabalho; e o outro que definia a Lei Orgânica do Ensino Industrial, oriundo das idéias e propósitos da área da Educação. A 142 De homens e máquinas, p. 114. 143 FONSECA, Op. cit. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 no Decreto nº. 1.238, assinado no ano anterior. 378 partir daí, os dois teriam que conviver. Na fórmula encontrada pelo ministro, o SENAI se encarregaria da ―formação profissional dos aprendizes‖, e seria tão somente uma peça, delegada a Federação Nacional das Indústrias, do amplo painel de ensino profissional estabelecido pela lei orgânica. Todavia, não deixa de ser sintomático que o projeto do SENAI, que só merece oito linhas na longa exposição de motivos de 5 de janeiro de 1942 com a qual Capanema encaminha a Lei Orgânica, termine sendo assinada em primeiro lugar.144 Em 1942 era criado o SENAI, sendo esta instituição organizada e mantida pela Confederação Nacional das Indústrias, ofertando diversos cursos de aprendizagem, aperfeiçoamento e especialização, além de possibilitar a reciclagem do profissional. Depois de verem concretizadas as primeiras medidas governamentais para a regulamentação do SENAI, cabia aos industriais montar o sistema que sustentaria a aprendizagem industrial em todo país, a fim de instalar os diversos Departamentos Regionais — células responsáveis pela implantação do sistema. Também foram criadas regiões administrativas, de acordo com as respectivas atividades industriais. Deste modo, em 1942, o SENAI estava organizado, nacionalmente, em dez regiões. Ao avaliar o desenvolvimento do SENAI nos seus primeiros seis anos de funcionamento, o relatório de 1948, editado pelo Departamento Nacional, em janeiro de 1949, considerava que a história da jovem instituição apresentava três fases distintas: a) a implantação do Departamento Nacional e dos órgãos locais com b) a compra de terrenos, com projeto de prédios definitivos; c) a atenção ao problema da qualidade de ensino e do rendimento escolar145. O SENAI sustentava suas atividades, inicialmente, com a arrecadação de 2 mil réis mensais, por empregado das empresas filiadas à Confederação Nacional da indústria. Quanto ao Departamento Nacional, sua instalação só ocorreu em 3 de agosto de 1942, no Rio de Janeiro, em solenidade presidida pelo Ministro da Educação, Gustavo Capanema146. Importa ressaltar que essa rede de ensino de âmbito empresarial era ambígua. Cunha assinala que esta ambigüidade se dá em uma dimensão pública e privada do SENAI, em decorrência do corporativismo do Estado Novo. Enquanto protagonista do desenvolvimento econômico, empenhado na industrialização, o Estado foi capaz de 144 SCHWARTZMAN, S. Tempos de Capanema. São Paulo: Paz e Terra, 2000, p. 254-255. 145 SENAI. Histórias e percursos. Departamento Nacional (1942-2002), Brasília ,2002. 146 SENAI, Op. cit., p. 25. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 prédios alugados; 379 perceber a necessidade do capital na formação da força de trabalho necessária à sua reprodução ampliada, antes mesmo dos próprios capitalistas. Estes por sua vez, incapazes de tomarem as iniciativas, chegaram a impor resistência aos encargos financeiros que lhes foram atribuídos147. Mas quem faria a manutenção desta instituição, de onde viriam os recursos financeiros? O Decreto nº 4.48/42 estabelecia que a manutenção do SENAI seria feita pelos estabelecimentos industriais, os quais seriam obrigados ao pagamento de uma contribuição mensal destinada às escolas de aprendizagem, sendo que a arrecadação dessa contribuição deveria ser feita pelo Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Industriários (IAPI) e repassada ao SENAI. O ensino industrial assumiu um papel relevante na formação da mão de obra, principalmente no contexto da industrialização do país. Tal foi sua importância que verificamos, a partir de 1942, tanto o Estado como a Confederação Nacional das Indústrias patrocinando esse ensino. Havia, pois, dois tipos de ensino industrial: um compreendia a aprendizagem sob o controle patronal, ligado ao SENAI; outro, sob a responsabilidade direta do Ministério da Educação e Saúde, constituía-se do ensino industrial básico. A partir da lei orgânica do ensino industrial, organizou-se o ensino industrial oficial, que ficou dividido em dois ciclos: o primeiro, chamado de fundamental, era curso de mestria de dois anos; o segundo ciclo, com duração de três a quatro anos, destinava-se a formação de técnicos industriais. Santos148 comenta que ―era oferecido nesse mesmo ciclo o curso de formação pedagógica, com o intuito de habilitar professores para lecionar no ensino industrial‖. O SENAI vem atender as exigências da expansão industrial brasileira, que demandava uma formação mínima do operariado, a qual teria de ser feita de modo eficaz e mais prático. E como assinala Weistein, segundo Raphael Noschese, membro do Conselho Regional do SENAI na década de 1940: ―o SENAI aprontava os homens para o mundo, não era para a fábrica do João, do Pedro e do Paulo. A nossa finalidade não é fazer um operário para você, é para São Paulo, para o Brasil‖149. 147 CUNHA, Op. cit., p. 46. 148 SANTOS, Op. cit., p. 271. 149 WEISTEIN, B. (Re) formação da classe trabalhadora no Brasil (1920-1964). São Paulo: Cortez, 2000, p. 191. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 ministrado em três ou quatro anos, e havia também o ciclo básico, que compreendia o 380 Porém muitos industriais entendiam o SENAI como uma instituição governamental que estava lá só para tirar o dinheiro deles. Com esta visão, as indústrias enviavam seus aprendizes menos promissores, os ―piores alunos‖, ao SENAI, pois eles consideravam o programa como perda de tempo, mas logo se percebeu que os alunos formados pelo SENAI eram melhores150. Segundo Weinstein, o SENAI era inovador em sua estrutura e em seu caráter ao mesmo tempo público e privado, mas deparava-se com grande ceticismo entre os industriais. Mas mesmo com todo esse ―ceticismo‖ pela parte dos industriais, a imagem do SENAI se fortaleceu, transformando os jovens menos capazes em operários competentes, conquistando assim uma relativa confiança dos industriais. A equipe do SENAI considerava que os alunos tinham uma educação formal deficiente e baixo padrão de vida e, ainda, destacavam que os alunos tinham padrões morais insuficientes, maus hábitos de trabalho e pouca ―cultura‖. Weinstein aponta que houve um estudo feito no SENAI para definir o perfil da média de seus aprendizes. O psicólogo responsável por este estudo concluiu que o aluno do SENAI não poderia ser considerado um adolescente comum, porém, ponto de convergência de influências deformativas da personalidade: falta de assistência familiar, trabalho desinteressante, má habitação e alimentação, ambientes inadequados, longo convívio com adultos mal-educados, precocidade de responsabilidades etc151. também levados a aproximar-se da imagem que o SENAI tinha do bom operário. O esforço para produzir um bom operário começava com uma série de testes a que eram submetidos todos os candidatos ao SENAI. A divisão de Seleção e Orientação Profissional usava esses testes não apenas para verificar se o candidato possuía as condições físicas e formação escolar necessárias, mas também para descobrir se as reais aptidões do aprendiz o qualificavam para outro ofício que não fosse o que tivesse escolhido para aprender e, se fosse este o caso, encaminhavam o pequeno aprendiz para o curso mais adequado. Weinstein152 afirma que estes testes tiveram um sucesso 150 Ibid., p. 190. 151 Ibid., p. 144. ‖O Aluno Senai‖. informativo Senai n. 11(setembro de 1946): O Conceito de comum de d´Avila, psicólogo que fez o estudo não refletia a preponderância numérica, uma vez que os adolescentes da classe operária eram mais numerosos no Brasil que os membros da classe média tomados como referência pelo autor.‖Normativo seria um termo mais apropriado para o que D´Avila chama de ―comum‖. 152 WEINSTEIN, Op.cit., p. 144. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 Desta forma, os alunos aprendizes precisavam não apenas ser treinados, mas 381 relativo, pois os dirigentes do SENAI muitas vezes comentavam a tendência que os alunos tinham de se concentrar nos cursos de torneiro mecânico, mesmo quando considerados habilitados para ofícios que ofereciam melhores oportunidades de emprego. Uma vez admitido no programa, o processo de socialização do aprendiz continuava nas oficinas e salas de aulas das escolas do SENAI. A instituição sempre apresentava sua instrução prática como puramente técnica, e todo o seu programa como ideologicamente neutro, mas Roberto Mange defendia o método de Formação Seqüencial como um meio de incutir disciplina e eficiência nos operários aprendizes. O SENAI acreditava em uma educação moral cívica, mas também considerava a oficina como um lugar de socialização, com ênfase na ordem, autocontrole e hierarquia. Para Weinstein, a própria concepção do SENAI refletia o conceito de Mange de uma hierarquia industrial composta rigidamente, em ordem ascendente, por trabalhadores não-especializados (braço anatômico), trabalhadores semiespecializados (braço atento), operários especializados (braço pensante), e encarregados da supervisão (braço pensante e dirigente). Nas palavras de Evaldo Lodi, pronunciadas na inauguração da Escola Roberto Simonsen do SENAI: ‗Nas escolas industriais do SENAI, a ordem primorosa, a pontualidade exata, a limpeza irrepreensível, a obediência constante, o sentido de hierarquia constituem lições vivas que embebem todos os jovens‘.153 No Paraná, no SENAI de Curitiba, um aluno assim descrevia a sua escola no O SENAI é uma escola a qual os alunos devem muito do seu aperfeiçoamento. è nela que entram os que desconhecem uma profissão, saindo, após a aprendizagem, oficiais. Aqui, nesta grande escola, só não aprende quem não quer. Ha muitos que não a merecem e, no entanto aqui estão, no lugar de muitos que seriam melhores. È por meio dos mestre, que Curitiba, o Paraná, o Brasil, cada vez mais vão possuindo mecânicos, marceneiros, eletricistas, soldadores, afiadores, gráficos, pedreiros – gente especializada, homens úteis em todos os ramos. Estudemos com arrojo e coragem não só nas oficinas, mas na teoria também Salve o SENAI, uma das melhores escolas do Paraná. Ademar Cunha – 4º CAO154 Era esta a imagem ideal desenvolvida por Roberto Mange155 e partilhada por seus colaboradores, a de uma instituição de formação orientada para operários de menor 153 Ibid., p. 145. O ESCUDO, edição de out. 1950. 155 Roberto Mange nasceu em Vevey, na Suíça, a 31 de dezembro de 1886, tendo obtido o diploma de estudos primários em Portugal, secundários na Alemanha e de engenheiro pela Escola Politécnica de Zurich, em 1910. Em 1913, com 28 anos, veio para o Brasil, pelas mãos de Paula Souza, contratado para a cadeira de Mecânica Aplicada as máquinas, na Politécnica de São Paulo, onde lecionou pelo espaço de 40 anos, cargo em que se aposentou, sendo declarado Professor Emérito em 1953. Em 1923, fundou, junto ao Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo, a Escola Profissional Mecânica, onde elaborou, com um 154 Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 início da década de 1950: 382 idade que teriam uma instrução teórica alternada com a experiência prática em seu local de trabalho. Roberto Mange trouxe para o SENAI sua longa experiência como diretor do IDORT e como professor de engenharia mecânica na escola politécnica, e sua enorme bagagem intelectual, com teorias sobre métodos adequados para a formação e socialização dos industriários aprendizes. A organização, a disciplina se refletiam em todas as escolas do SENAI, marcando claramente o tipo de cultura institucional que o aluno-aprendiz deveria aceitar e internalizar. A organização do SENAI difere profundamente da rede de escolas Industriais, pois se destina a aprendizes que já pertencem à indústria e que ganham salários, mesmo nos dias em que freqüentam as Escolas de Aprendizagem do SENAI, ao passo que os alunos das escolas Industriais são exclusivamente alunos e freqüentam a escola a custa própria. 156 Contudo o SENAI-SP em seus primeiros anos encontrou algumas dificuldades de ordem estrutural e pedagógica: Durante os seis primeiros meses de 1942 a recém-formada administração do SENAI/SP vasculhou a capital e o interior em busca de instrutores, instalações adequadas para cursos, e potenciais estudantes. Oferecendo salários 20% acima dos que eram pagos pelas escolas públicas, o SENAI teve pouca dificuldade em atrair uma equipe docente para matérias convencionais como português e matemática. O recrutamento de instrutores para tarefas práticas, que deveriam fazer um exame de qualificação e ter pelo menos cinco anos de experiência na indústria com o respectivo tipo de especialização, revelou-se mais difícil.157 que a população de baixa renda, desejosa de se profissionalizar, encontrasse nos cursos do SENAI condição ideal, mesmo porque os alunos eram pagos para estudar, ou seja, grupo de estudiosos, as conhecidas séries metódicas de ofícios. Em 1929, partiu para a Europa, tendo ocasião de estudar na Alemanha a aprendizagem de operários nas estradas de ferro daquele país. Dois anos depois, com Armando Salles Oliveira, Gaspar Ricardo, Geraldo de Paula e Souza, Aldo Mario de Azevedo, Lourenço Filho e outros, fundou o Instituto de Organização Racional do Trabalho (IDORT), destinado a: aumentar o bem estar social por meio de uma organização adequada a cada setor do trabalho e cada atividade; estudar, difundir e aplicar os princípios, métodos, regras e processos da organização científica do trabalho; evitar o desperdício sob suas múltiplas modalidades; dar o máximo de rendimento com o mínimo de toda segurança; quer sob o ponto de vista de atingir de forma plena a sua finalidade, quer sob o aspecto de eficiência qualitativa e quantitativa de operações. Assegurar administrações cientificamente exercidas. De 1940 a 1942, cuidou ele, em colaboração de outros expoentes da indústria, da fundação do SENAI, do qual foi o primeiro Diretor Regional em São Paulo, exercendo o cargo até sua morte em 1955. Com a concepção humanissima que teve, especialmente quando diretor do SENAI, dos múltiplos interesses e necessidades do aluno-aprendiz, o que fez brotar de sua generosidade e bondade, inúmeras obras de assistência e de acompanhamento desse jovem, concretizadas em serviços médicos, dentários, alimentares, esportivos, recreativos e culturais (BOLOGNA, 1980, p. 14). 156 BOLOGNA, I. Roberto Mange e sua obra. [S.l.]: Unigraf, 1980., p. 2. 157 WEINSTEIN, Op. cit., p. 137. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 Ademais muitos empresários não enviaram seus melhores aprendizes embora, 383 recebiam uma bolsa-auxílio como incentivo. Apesar das dificuldades que o SENAI encontrou em se estabelecer. As escolas do SENAI, quando comparadas com as de ensino industrial das redes públicas, evidenciavam de modo patente a inferioridade destas. A autonomia que lhes faltava, a adesão de alunos motivados (e remunerados), a possibilidade de organizar cursos conforme as demandas locais, o entrosamento com empresário-consumidores da força de trabalho qualificada eram qualidades do SENAI cuja carência, nas escolas industriais, mostrava necessidade urgente de modificar os cursos básicos, senão acabar com eles158. Houve ainda uma complementação da regulamentação do SENAI que contribuiu para o sucesso de seus cursos, o Decreto nº 4.481 de 16 de julho de 1942, obrigava as empresas do ramo industrial a custear os cursos e manter em seus quadros 8% de menores aprendizes do total de operários. A prioridade era dada aos filhos de operários empregados nos estabelecimentos industriais; aos irmãos dos operários que atuavam nas indústrias e aos órfãos cujos pais estivessem vinculados ao ramo industrial. No jornal dos alunos da escola do SENAI de Curitiba, aborda-se a importância De acordo com a lei, todo menor que trabalha deve possuir carteira profissional. Assim sendo logo que matriculamos e empregamos um aluno no SENAI, imediatamente providenciamos a mesma. Entregamos ao menor uma relação de documentos necessários e os respectivos impressos: declaração de função, a ser preenchido pela firma e autorização de responsável, para ser assinado pelo responsável pelo menor. Depois de reunidos todos os documentos solicitados, a escola oferece uma ―declaração‖ de que o aluno sabe ler e escrever. Juntamos esta aos demais documentos e levemos tudo a Delegacia Regional do Trabalho. Dois ou três dias depois o aluno vai a referida delegacia e recebe a sua Carteira Profissional de Menor. Dessa maneira, com satisfação, a escola vê todos seus alunos munidos de importante documento.159 A nota sobre a questão da legalidade do trabalho do menor operário constante em ―O Escudo‖ revela á comunidade de operários que, além da instituição prover uma vaga de emprego para o pequeno aprendiz, o faz dentro da legalidade, propiciando segurança e reconhecimento ao aluno aprendiz. Percebe-se que, com os cursos profissionalizantes do SENAI, incluindo-se também a trajetória da educação profissional no Brasil, teve-se uma preocupação com os ―desfavorecidos da fortuna‖, 158 CUNHA, Op. cit., p. 48. 159 O ESCUDO, nov. 1952. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 da legalização do trabalho do menor operário, 384 exercendo-se sempre um papel social extraordinário em função da própria legislação educacional. Ao estabelecer a idade mínima de catorze anos para ingresso no emprego, a legislação acabou gerando aquilo que no SENAI ficou conhecido como hiato nocivo, já que, para a população pobre, a escolarização raramente ultrapassava o ensino primário, quase sempre concluído em idade superior a dez anos. Por isso, o SENAI foi obrigado a sentir o problema bem de perto, pelo fato de receber muitos jovens após um período mais ou menos longo de interrupção da escola primária, gasto em vadiagem ou em pequenos misteres. Intentando solucionar o problema, o SENAI criou os cursos vocacionais, onde valorizava, sobretudo, o trabalho manual e onde se buscavam mecanismos que pudessem preencher o chamado hiato nocivo. 160 Weinstein161 assinala que a educação de crianças com idades entre doze e quatorze anos era uma área de especial interesse do SENAI, nos cursos chamados vocacionais. Desde o debate sobre a lei do trabalho infantil na década de 1920, os industriais e engenheiros sociais de vários matizes vinham denunciando o ―hiato nocivo‖, ou melhor, o intervalo entre os doze anos, quando normalmente a criança acaba o curso primário, e os catorze anos, quando a lei autorizava sua entrada no mercado de trabalho. Embora alguns patrões soubessem que essas crianças provavelmente preenchiam este hiato nocivo com um emprego ilegal ou com trabalhos no setor informal, os educadores temiam que aqueles dois anos de atividade sem acompanhamento e sem regularidade levassem a comportamentos nocivos e mesmo criminosos e tornasse mais difícil para os aprendizes, a adaptação na rotina da fábrica. do ―hiato nocivo‖, em tom de convocação para o progresso e prosperidade da nação. Mesmo que sua circulação fosse interna, ainda assim atingia os aprendizes que já se encontravam na instituição e que poderiam trazer irmãos, parentes, amigos. Mange afirma ―que é justamente durante esse tempo que o menino adquire vícios e sofre, pela ausência da escola, acentuado retrocesso intelectual e moral‖, ele ainda lamenta que ―centenas e centenas de crianças se entreguem a perigosa ociosidade das ruas‖162. A solução para tal situação, sob o ponto de vista do SENAI, foi ofertar cursos vocacionais a parte para crianças com idade abaixo do mínimo exigido para aprendizes 160 SENAI, Op. cit. 161 WEINSTEIN, Op. cit., p. 150. 162 WEINSTEIN, Op. cit., p. 150. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 O jornal ―O Escudo‖ em 1949, fazia chamadas a procura de aprendizes em idade 385 do SENAI. O currículo elaborado para esses menores tinha dois objetivos básicos: aperfeiçoar sua cultura geral e iniciá-los em várias ocupações manuais. O SENAI não procurava preparar esses alunos para um determinado ofício, mas sim colocá-los em contato com várias ocupações manuais, Mange163 ressalta, O caráter do SENAI, pode levar alguém a apressada e falsa conclusão de que se trata de mera organização de ensino profissional, o que não é verdade. Cumpre não perder de vista o verdadeiro sentido da obra que compete ao SENAI promover, ou seja, o conceito educativo-social de suas realizações. Esta orientação implica necessariamente dentro do âmbito de aprendizagem industrial na realização de serviços de natureza para-escolar no campo da educação, da higiene e da assistência social. Serviços esses que embora representem, evidentemente, um forte acréscimo no custo de cada aluno, constituem, todavia, condição precípua para a eficiência do ensino. Este discurso proferido por Mange afirma a cultura institucional que se pretendeu incorporar ao SENAI desde a sua fundação, em que a disciplina, a ordem, a higiene seriam mecanismos para se alcançar um alto conceito educativo social dentre os aprendizes. Roberto Mange apontará sobre tudo a compatibilidade entre formação técnica e a denominada ―educação integral do individuo‖ . Para ele a técnica tinha caráter utilitário, devido ao rigor da racionalidade e da rapidez destoando do conceito espiritualista da ―educação integral‖.Nesta perspectiva os aprendizes eram educados, passado período dos cursos vocacionais. aspecto pedagógico, relacionado ao trabalho, mas tinha preocupações com a valorização total do operário, isto é, com a ―Educação integral‖164 tão almejada por Mange, que pode ser definida como "cultura geral e profissional em torno de uma sadia personalidade". Salienta Bologna, Seria inútil que o SENAI cuidasse unicamente do ensino, pois ele não se propõe apenas a ensinar, mas principalmente a educar. Por isso mesmo, a missão do SENAI não pode ser exclusivamente de natureza técnica. Não se trata simplesmente do problema da formação profissional do trabalhador, mas de uma ação educativa de sentido muito mais amplo e elevado, visando acima de tudo formar o cidadão, isto é, fazer do aprendiz um homem integro, moral física e profissionalmente falando, cioso das prerrogativas inerentes a sua dignidade de pessoa humana e consciente de sua responsabilidade pessoal e profissional com a coletividade.165 163 164 165 MANGE, Roberto. Relatório SENAI. Capítulo I, 1945 apud BOLOGNA, 1986, p. 378. BOLOGNA, Op. cit., p. 215. Ibid., p. 215. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 Dessa maneira, o problema de aprendizagem dos industriários não se limitava ao 386 As aspirações de Mange, segundo o relatório do SENAI-SP de 1946, implicavam o desenvolvimento da cultura geral, da educação moral e cívica e das lides abrangidas pelo Serviço Social, para procurar elevar o espírito do aprendiz. Para Mange subsiste algo de antagônico com a rigidez da técnica do trabalho em que a individualidade, o culto pela matéria, o senso artístico e o amor ao belo não tem oportunidade de se expandir. Com estas palavras, o idealizador do SENAI expõe contundente crítica ao trabalho que estava sendo desenvolvido pelo SENAI, deixando claro que suas reflexões pela educação integral dentro do contexto da aprendizagem industrial deveriam tornar-se mais presentes nas escolas. Segundo Bologna, os fundamentos da orientação do ensino decorrem do aspecto psico-social e profissional do aprendiz-aluno, o que requer uma perfeita adaptação a essa mentalidade especial do adolescente, sujeita as mais variadas influências no setor do trabalho, da sociedade e do lar. Buscando seus objetivos, Mange alterou várias posturas que até então pareciam indestrutíveis. Uma delas era sobre o tipo de escolas construídas; outra dizia respeito aos métodos de ensino adotados pelo SENAI. Havia necessidade de utilizar a psicologia do aluno, eliminando a rigidez curricular tradicional, o que se traduz em uma inversão da linha de ação pedagógica. Segundo ele não era o professor que deveria inculcar a matéria ao aluno, mas sim o aluno que deveria desejar adquirir os conhecimentos, o O aprendiz já ocupado com a atividade industrial e que é aluno dos cursos do SENAI, apresentava características bem diferentes de um menor que freqüenta o curso primário, secundário ou uma escola industrial, pois é um aprendiz que produz na fábrica, ganha seu salário e possui acentuada independência. E no âmbito social e familiar em que vive, pouco estímulo encontraria para melhorar sua cultura geral e elevar seu conceito cívico e moral. Mange também destaca a aprendizagem do SENAI com foco no perfil do aprendiz: Atentemos, por exemplo, para o caso do aprendiz de nossas escolas: se bem que menor, ele não deixa de ser um pequeno operário relativamente independente, que se comporta dentro da fábrica como homem que produz e ganha seu salário. Por isso mesmo, o aluno das Escolas SENAI é completamente diferente daquele que freqüenta as demais escolas industriais e secundárias. Tanto se saliente a personalidade definida do aprendiz na fábrica, como na família a qual presta sua ajuda [...]. Este tríplice aspecto do aluno, operário e membro de uma certa sociedade, deve ser cuidadosamente 166 RELATÓRIO SENAI/SP, 1951 apud DE HOMENS E MÁQUINAS, 1991, p. 140. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 como e o por quê da prática e da teoria do seu ofício166. 387 considerado para que se tenha uma idéia real do tipo de aluno que freqüenta as Escolas Senai.167 Como se pode observar na cultura institucional do SENAI, foi muito demarcado o comportamento do aprendiz como parte do ensino-aprendizagem e de sua formação. Para Bologna: Os métodos de ensino adotados pelo SENAI visam, de modo geral, a educação eficiente do aprendiz. Para isso, são utilizados todos os processos pedagógicos recomendáveis, procurando-se tornar a Escola ativa e interessante. De acordo com cada disciplina, são empregados processos de ensino que levam o aluno a pensar por si os problemas de sua vida real. 168 Tendo como meta possibilitar uma educação profissional de qualidade e também humanística, o SENAI propôs o método de instrução individual, que compreendia quatro fases: estudo do assunto; comprovação do conhecimento; aplicação, generalização ou transferência do conhecimento; e, avaliação. Cunha169 elucida que, no início da existência do SENAI, não se tinha a necessidade de dissimular a diretividade de seu método de ensino, nem a padronização de procedimentos. Tanto uma como outra eram vistas como tendo vantagens óbvias. A razão pela qual essa metodologia de caráter taylorista foi revestida pelo ativismo parece ser a necessidade de responder as críticas vindas de dentro e de fora da instituição — de dentro, em razão das mudanças dos processos produtivos, cada vez mais difíceis de serem acompanhados devido às adaptações das folhas de operações e de tarefas; de fora, caráter psicológico quanto de caráter social e político. Enfim todo esse conteúdo ideológico e pedagógico do curso de aprendizagem do SENAI propiciava ao aprendiz um sentimento de auto-estima, de confiança e de autorealização, resultado de eficácia do ensino ministrado e da sintonia com o ambiente da empresa. REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS BOLOGNA, I. Roberto Mange e sua obra. [S.l.]: Unigraf, 1980. CHARTIER, R. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1986. 167 RELATÓRIO SENAI/SP, 1945 apud DE HOMENS E MÁQUINAS, 1991, p. 137. 168 BOLOGNA, Op. cit., p. 214. 169 CUNHA, Op. cit., p. 69 Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 pela prevalência do não diretivismo no campo pedagógico, com motivação tanto de 388 CUNHA, L. A. O ensino industrial-manufatureiro no Brasil. In: Revista Brasileira de Educação. ANPED, n.14, maio/ago., 2000, p. 89-107. _____. O Ensino industrial-manufatureiro no Brasil: origem e desenvolvimento. Coleção Políticas Públicas de Trabalho, Emprego e Geração de Renda. Convênio: ABC/TEM/SEFORFLCSO/Brasil (1999-2000). DANTAS, M. A força nacionalizadora do Estado Novo. Rio de Janeiro: DIP, 1942. FARIA FILHO, L. M. Pesquisa em história da educação: perspectiva de análise, objetos e fontes. Belo Horizonte: MG,1999. FONSECA, C. S. História do ensino industrial no Brasil. Rio de Janeiro: SENAI/DPEA, 1986. FONSECA, T. N. de; VEIGA, C. G. História e historiografia no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. LE GOFF, J. História e memória. 4. ed. Campinas: Unicamp, 1996. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E SAÚDE. Oportunidades de preparação no ensino industrial. Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos, 1950. RAGAZZINI, D. Para quem e o que testemunham as fontes da História da Educação. Educar em Revista. Curitiba, PR: Editora da UFPR, nº 18, 2001. RODRIGUES, J. Celso Suckow da Fonseca e a sua ―História do ensino industrial no Brasil‖. Revista Brasileira de História da Educação, Sociedade Brasileira de História da Educação, n. 4, jul./dez. 2002. SANTOS, J. A. dos. A trajetória da educação profissional. In: VEIGA, C. G. et al (org). 500 Anos de Educação no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. SENAI. Histórias e percursos: o departamento nacional do SENAI (1942-2002). Brasília, 2002. WEISTEIN, B. (Re) formação da classe trabalhadora no Brasil (1920-1964). São Paulo: Cortez, 2000. FONTES O ESCUDO - Órgão oficial dos alunos do SENAI. Curitiba: Oficina de Artes Gráficas da Escola do SENAI, 1949-1962. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 SCHWARTZMAN, S, BOMENY,HELENA MARIA B., COSTA,VANDA MARIA R. Tempos de Capanema. São Paulo: Paz e Terra, 2000. 389 A EDUCAÇÃO ESCOLAR E A IMPRENSA EM ITUIUTABA Jennifer Maria P. Matos FAPEMIG/UFU [email protected] Isaura Melo Franco Cnpq/Pibic/UFU [email protected] Dr. Sauloéber Tarsio de Souza UFU/CNPq [email protected] O presente trabalho se reporta ao projeto "Educação Escolar e Imprensa (Ituiutaba 1950-2000)" apoiado pela FAPEMIG. Tem como um dos objetivos a construção de um acervo digital com as notícias jornalísticas referentes ao universo escolar no município de Ituiutaba (Pontal do Triângulo Mineiro), no período entre as décadas de 1950 e 1990. Portanto, consideramos o periódico como fonte documental primária para a história da educação. Os jornais se constituíram como uma das principais fontes de informação histórica na atualidade. Por isso, compete aos pesquisadores que os utilizam, olhar os registradas em suas vidas cotidianas de forma bastante particular (CAPELATO, 1988). A importância dos periódicos também pode ser compreendida observando-se seu surgimento no país, que se deu paralelo ao nascimento da nação: A nação brasileira nasce e cresce com a imprensa. Uma explica a outra. Amadurecem juntas. Os primeiros periódicos iriam assistir à transformação da colônia em Império e participar intensivamente do processo. A imprensa é a um só tempo, objeto e sujeito da história brasileira. (MARTINS & DE LUCA, 2008, p.8) Os jornais permitem estudar fatos aparentemente miúdos e irrelevantes do cotidiano, contudo, até mesmo os anúncios de variedades presentes nos jornais, representam uma grande via de acesso aos fenômenos mais gerais do passado de determinada cultura, constituindo-se em fontes privilegiadas de aproximação ao pensamento coletivo de uma época: A utilização de jornais, como fonte complementar para a recuperação da evolução factual, dos projetos coletivos, das polêmicas, bem como da ideologia que circulava na região é fundamental se acrescida da literatura Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 personagens do passado procurando entendê-los como produto de sua época, figuras 390 sobre o tema e o período. De suas páginas afloram não apenas o cotidiano de cidades do interior brasileiro, marcadas por observações de caráter doméstico, muitas vezes provincianas, mas também preocupações maiores com o futuro da comunidade, onde sobressai a questão da educação como mecanismo de promoção social dos indivíduos e de progresso material para a cidade (GONÇALVES NETO, 1997). Por meio da pesquisa realizada no acervo da Fundação Cultural Municipal de Ituiutaba, constatamos que o jornal mais antigo do município que se tem notícia seria o Villa Platina, fundado em 1901 pelo tipógrafo João Lourenço. Assim como vários outros folhetins essa primeira experiência teve vida efêmera, contudo, há registros de que tenha causado grande euforia na população local, alguns teriam se alfabetizado por incentivo de sua circulação, mesmo assim, a maior parte da população era composta por analfabetos, algo natural num país até então rural. Sobre a relação da imprensa mineira com as questões políticas assim afirmou um pesquisador norte-americano: A imprensa local foi outro marco do regionalismo mineiro. De maneira geral, um jornal de cidade pequena continha notícias políticas e anúncios comerciais numa edição semanal de menos de 500 cópias. Geralmente pertencia ao chefe político local, cujo domínio era disputado por um chefe rival com sua própria imprensa. Fica evidente que os jornais desempenharam uma função primordial na política local. Como foro para o combate verbal, a imprensa deu às celebridades locais um meio de sustentar a violência em nível menor, sem tiroteios ou assassinatos (WIRTH, 1982). O número de jornais que circulou em Ituiutaba ao longo do século XX, cerca de duas dezenas, e observando-se a origem social dos diretores desses periódicos indicam- em Ituiutaba. O surgimento e a extinção deles em curtos períodos de existência evidencia a mudança das lideranças políticas ou a tentativa de se construir novos projetos locais em oposição aos já estabelecidos.170 Na primeira etapa do projeto (1949-1970) foram catalogadas 531 notícias sobre as atividades escolares da cidade que abordavam diferentes assuntos e níveis de ensino, a saber: 130 notícias se referiam ao ensino primário; 101 ao ginasial; 64 ao colegial; 57 ao superior; 56 ao técnico e 169 voltadas para assuntos diversos, tais como homenagens, torneios esportivos estudantis, formaturas, etc.171 Podemos perceber por esses números 170 Os jornais que vão de 1901 a 1950 e que não foram incluídos no projeto são: Villa Platina-1901, Gazeta Paltinense-1913, A Alvorada-1914 a 1917, O Porvir 1918 a 1919, O Sertão 1919 a 1934, Jornal de Ituiutaba 1934 a 1952, O Vencedor 1935 (pensamento estudantil), Folha da Semana 1943 a 1944, Gazeta de Ituiutaba 1949 a 1952, O Tagarela-1913 (humorístico), A Tesoura-1917 (humorístico), A Colmea1927, O Capeta-1935, Saneando-1946 (Jornal da Congregação Espírita), Folha de Ituiutaba-1942-1954 (Partido Social Democrático). Fonte: Acervo da Fundação Cultural Municipal – PM Ituiutaba. 171 Nesse primeiro momento foram pesquisadas as coleções constantes do acervo da Fundação Cultural do Ituiutaba dos seguintes jornais: ―Gazeta de Ituiutaba‖ (1949 a 1952); ―Folha de Ituiutaba‖ (1952 a 1964); Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 nos que essa relação entre imprensa e poder nos municípios mineiros também era regra 391 que 42% das notícias faziam referência aos ensinos ginasial, colegial e superior, ou seja, níveis da educação limitados a pequena parcela da população daquele período, evidenciando que os jornais priorizavam o restrito universo das classes privilegiadas/letradas do município, já que em 1950, a taxa de analfabetismo chegava a 57% dos indivíduos acima de 10 anos de idade (Fonte: IBGE, 1950). Buscando uma melhor visualização dos discursos jornalísticos, procuramos apontar também algumas das especificidades dos jornais lidos na tentativa de compreender que interesses estavam por detrás das idéias difundidas por esses veículos de comunicação. Foram pesquisadas as coleções dos jornais constantes do acervo da Fundação Cultural Municipal de Ituiutaba constando os seguintes periódicos: ―Gazeta de Ituiutaba‖ (1949 a 1952), impresso em duas folhas, era de propriedade da antiga Gráfica Ipiranga S/A, sob a direção de Benjamin Dias Barbosa; ―Folha de Ituiutaba‖ (1952 a 1964), impresso em duas folhas, era de propriedade do diretor Ercílio Domingues da Silva, tendo como redatores Geraldo Sétimo Moreira e Manoel Agostinho; ―Correio do Pontal‖ (1956 a 1959) circulava em duas folhas, tinha como diretor-proprietário Pedro de Lourdes Morais e a participação de colaboradores diversos; ―Correio do Triângulo‖ (1959 a 1965) circulação em três folhas, possuía como proprietário Benjamin Dias Barbosa, direção e redação de Jayme Gonzaga Jayme e como diretor comercial Joaquim Pires das Neves; ―Cidade de Ituiutaba‖ (1966 a 1970), impresso em duas folhas, pertencia ao diretor-redator Benjamin Dias Barbosa; ―Município de Ituiutaba‖ (1967 a 1970) controlado por órgão oficial, variava de três a quatro folhas e circulava em edições semanais. Podemos observar acima que a grande atuação nesse período foi do editor Benjamin Dias Barbosa que entre 1949 e 1970 ficou apenas alguns anos sem atuar no ramo jornalístico, sendo proprietário de três dos seis jornais pesquisados. Com exceção do jornal ―Município de Ituiutaba‖ – órgão oficial do município, todos os outros eram de iniciativa privada, e viviam às custas dos anunciantes e colaboradores. Em ―Correio do Pontal‖ (1956 a 1959); ―Correio do Triângulo‖ (1959 a 1965); ―Cidade de Ituiutaba‖ (1966 a 1970); e ―Município de Ituiutaba‖ (1967 a 1970). Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 392 depoimento de um ex-redator e ex-diretor comercial do Jornal ―Correio do Triângulo‖, constatamos que a maioria dos redatores e colaboradores dos jornais pesquisados, constituía-se por homens influentes tanto no campo cultural quanto na esfera política do município, porém todos eles exerciam outras ocupações profissionais, no setor bancário, no comércio ou na indústria. A leitura e catalogação dos jornais dessas duas décadas revelam-nos relações existentes entre a realidade nacional, em que passava o país, e a local, colaborando para a compreensão do processo histórico local, marcado por acelerados processos de urbanização e industrialização do município, impulsionados pela expansão do cultivo do arroz a partir dos anos de 1950 (Ituiutaba ficaria conhecida como a ―Capital do Arroz‖). Ituiutaba fora inserida na política de modernização nacional, à medida que sua população tornava-se urbana, formando mercado consumidor em potencial, além de liberar terras para a expansão dos negócios agrícolas, o que gerava empobrecimento da população migrante, em função de que nas cidades nem sempre conseguiam sustento. Nos anos de 1950, o poder público preocupou-se com o Plano Urbanístico local, com ampliação dos serviços de abastecimento de água e de iluminação pública, arborização e calçamento de ruas, construção de prédios públicos, buscando atender às demandas da população que se avolumava. Na década seguinte, a mudança urbanística acelerou-se ainda mais, com a chegada do asfalto, a construção de praças, implantação do Distrito O esforço dos dirigentes na consolidação da sociedade de consumo de massa conciliava interesses tanto das elites nacionais como dos centros capitalistas mundiais, mentores desse projeto de modernização. A noção de moderno surgira como sinônimo de mercado de massa, nos EUA, desde os anos de 1920. Após a 2a Grande Guerra, o conceito de modernização foi utilizado principalmente para caracterizar o provável processo de transição que os países ―atrasados‖ deveriam passar para alcançarem os níveis de renda, educação e produtividade dos países industrializados, mas resultou, numa significação de moderno bastante específica, definida em função do mundo das mercadorias, da indústria e dos negócios, onde a educação deveria estar a serviço deste tipo de modernidade. Tal significação fora elaborada por variados canais, entre eles, por meio da massificação da educação durante os anos de 1950 e 1960, no Brasil, vividos entre a democracia e o autoritarismo, mas em ambos os regimes de governos, buscou-se reforçar esta noção de moderno (SCHWARTZMAN, vol.05). Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 Industrial e do primeiro Campus Universitário no município (CORTES, 2001). 393 De acordo com o crescimento da população urbana, também aumentava o número de escolas, de forma que as notícias sobre a criação dessas instituições ganhavam destaque nas páginas dos jornais, totalizando 58 matérias jornalísticas, fator relevante para se compreender a expansão do ensino público no município, demonstrando sua inserção na política nacional. A criação de escolas passava a gerar prestígio político já que a população tinha expectativas de ter acesso à educação, num momento em que o contingente de analfabetos era grande o que preocupava parte das elites que necessitava de mão-de-obra minimamente qualificada, fator que poderia entravar o desenvolvimento local. Destacamos que os anos de 1950 e 1960 foram marcados pela criação de instituições escolares por todo o país e Ituiutaba também fez parte dessa lógica. Importante ressaltar que a criação de escolas públicas passou a ser uma das principais bandeiras dos políticos que buscavam votos junto ao eleitorado portador da expectativa de acesso a educação. Na inauguração do grupo escolar citado na matéria jornalística abaixo estiveram presentes autoridades como prefeito, secretários e o deputado estadual Omar Diniz. Este último ao longo do seu mandato encaminhou vários projetos criando escolas no município de Ituiutaba: Nos anos de 1960, seria o Deputado Luiz Junqueira quem colheria os dividendos políticos associando sua imagem a criação de escolas na região: ―Governador sancionou lei criando o Ginásio Estadual neste município – Deputado Luiz Junqueira‖ (Folha de Ituiutaba, 18/01/1961) E também: ―Prédio do Ginásio Estadual de Ituiutaba será realidade. Ituiutaba está, por assim dizer, com a sua infra-estrutura econômica assentada e o progresso que nos espera de agora para frente é o mais seguro e promissor. A construção de um prédio para ginásio estadual aqui, (...) por obra do deputa Luiz A. F. Junqueira.‖ (Correio do Triângulo, 29/08/1965) Vemos acima que o progresso a ser alcançado passava agora pela construção de escolas, essas instituições representavam, a partir de então, a própria materialização do futuro grandioso, o que atenderia a parte dos anseios sociais que viam no acesso a educação a possibilidade de ascensão social. Na segunda etapa do projeto (período de 1970 a 2000) iniciamos a catalogação dos jornais Cidade de Ituiutaba (1970 a 1987), Diário Regional (1995 a 2000) e Gazeta do Pontal (1999) cujas coleções mesmo que incompletas estão devidamente organizadas Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 Solenemente inaugurado o Grupo Escolar Senador Camilo Chaves (...) os presentes de pé cantaram o Hino Nacional. (...) o prefeito Antonio S. Martins sugeriu então que ao 4o. Grupo Escolar de Ituiutaba seja dado o nome de Governador Clóvis Salgado. (Folha de Ituiutaba, 14/01/1956) 394 no acervo da Fundação Cultural Municipal de Ituiutaba. Destacamos no início dos anos de 1970 o grande foco dado a criação da primeira instituição de nível superior na cidade, as notícias falavam dos cursos criados ―Escolas superiores aprovadas definitivamente‖ (Cidade de Ituiutaba, 17/02/1970) matéria que citava a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, mas a euforia estava em torno dos cursos de engenharia, administração e pós-graduação que representavam a maior parte das notícias levantadas: ―Faculdades de Engenharia‖ (Idem, 25/04/1971) ou ―Escola de Engenharia sairá mesmo‖ (Idem, 24/06/1971) e ainda: ―Faculdade de Engenharia autorizada a funcionários‖ (Idem, 22/11/1973). É preciso reconhecer que outros assuntos eram abordados pelos jornais nos anos de 1970 e 1980, tais como a importância do MOBRAL e das escolas rurais na solução do problema do grande número de analfabetos na região, a distribuição da merenda escolar, etc. Porém, a tendência de se discutir com grande ênfase as questões referentes aos ensinos médio e superior continuou evidente também nesse período, representando cerca de 36% das matérias jornalísticas catalogadas até o momento. Nos anos de 1980, acrescente-se as primeiras notícias sobre greve dos professores: ―Professores Mineiros ameaçam entrar em greve na próxima semana‖ (Idem, 07/05/1986) e: ―Greve dos professores já obteve grande vitória‖ (idem, 11/06/1986), ainda: ―Professores prometem deflagrar greve‖ (Idem, 28/04/1987). Nesses anos, as greves por reposição salarial Ao longo dos anos de 1990, percebe-se uma grande diversificação nas notícias debatidas pelos jornais, discutindo-se desde as políticas do ministério da educação até as questões locais de menor relevância como o anúncio da volta as aulas (Diário Regional, 07/02/1995) ou ainda, problemas relacionados ao governo estadual como vemos: ―O governador Eduardo Azeredo garante serão pagos todos os atrasados inclusive alguns acumulados e diferentes pendentes‖ (idem, 21/01/1995) ou como a determinação de eleições para a direção colegiada das escolas no estado de Minas Gerais (Idem, 28/02/1995). Vemos pelos dados acima que os jornais como fonte de pesquisa primária revelam muito sobre o universo escolar, permitindo abordagens mais amplas em relação ao fenômeno educacional, possibilitando o estudo de concepções pedagógicas que circulavam pelo imaginário da população local, veiculando ideais de educação, de professor, de aluno, por exemplo. Recorrendo a Araújo (2005, p.177): Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 seriam comuns em função da superinflação em que vivia a economia brasileira. 395 Do ponto de vista temático, a imprensa tem-se revelado em fonte impar, pois sua peculiaridade é revelar o movimento da história (seja ela educacional, social, comercial, industrial, político, literário, econômico, cultural etc.) em sua dinâmica cotidiana, tal como visto por aqueles que decidem o que noticiar. Já afirmou alguém que o jornalismo vive das circunstâncias. Embora, por vezes, o jornal seja encarado como uma fonte suspeita, na verdade é um rico manancial para a investigação histórico-educacional. Dessa forma, a importância do jornal como fonte nessa pesquisa está no fato de que sua atividade não consiste apenas em transmitir, mas, igualmente, em gerar acontecimentos, compondo-os com elementos de uma visão bastante particular do mundo, somatória de subjetividade e de interesses aos quais o jornal está vinculado (CAPELATO, 1988).172 Diante dessa perspectiva: O trabalho do historiador, portanto, pode e deve estar bem próximo daquele exercido pelo jornalista. Ambos utilizam os fatos e voltam-se para a análise do real. A perspectiva do jornalista, contudo, é conjuntural, construindo mais uma memória coletiva, enquanto o historiador busca a observação de longa duração, esperando encontrar as explicações para toda a estrutura, numa análise mais profunda e ampliada. Mas a atitude de curiosidade, de busca dos fatos e da explicação está presente em ambos (GONÇALVES NETO, 1997). O historiador deve estar atento a quem está por detrás das noticias, pois o jornal sempre foi espaço de defesa das forças políticas e de interesses dos proprietários, de forma que as matérias são lançadas de forma estratégica, assim, há a interferência não apenas dos elementos subjetivos de quem produz, mas também dos interesses aos quais pesquisa historiográfica alegam a interferência das ideologias no ato de noticiar. De fato, as ideologias perpassam todas as páginas de qualquer jornal. Não há como ignorálas ou fugir delas. Contudo, as ideologias não interferem apenas na veiculação de notícias jornalísticas, já que integram todo processo de produção e divulgação de idéias, em todos os tempos e lugares. O estranho seria, justamente, se os jornais fossem isentos ou neutros (CAPELATO, 1988). A utilização dos jornais nas pesquisas em história da educação tem relação com o novo fazer histórico que decorreu das mudanças na dinâmica social, com a imersão de sujeitos até então, pouco presentes na história oficial. Historiar passou a ter uma amplitude maior do que se fazia tradicionalmente, de forma que o uso de documentação oficial, de dados quantitativos, levantamento de datas e personagens ganhou a 172 Lembremos que, até o início da década de 70, os jornais, sobretudo os do interior, ainda eram um dos principais veiculadores de discursos e imagens, ficando atrás do rádio que ultrapassava a barreira do analfabetismo, por meio da difusão oral. A televisão só passaria a dominar o mercado da informação mais tarde (MILANESI, 1978). Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 o jornal está vinculado. Os que duvidam do valor dos jornais de época como fonte de 396 contribuição de outros testemunhos do passado, enriquecendo-se o ofício do historiador que passou a melhor recuperar as relações que os homens estabeleceram entre eles em épocas passadas. Nesse sentido, buscou-se documentação que se aproximasse mais do corpus teórico utilizado, enriquecendo a análise através da utilização de descrições das medidas governamentais na área da educação, os atores principais deste processo, em nível local e estadual, a ação da elite política local e as relações de poder existentes, a ideologia vigente e o discurso que a justifica, o cotidiano da escola, dos alunos, dos profissionais da educação, o ideal de sociedade projetado, as funções explicitadas para a educação, os temas malditos ou "esquecidos", a posição dos veículos de comunicação, etc. Para este tipo de preocupação o jornal é uma fonte que não pode ser descurada. Sua grande vantagem - e ao mesmo tempo desvantagem - é a grande quantidade de informações que concentra num mesmo espaço. A importância do historiador e da perspectiva teórica impõem-se exatamente por esta falta de organicidade na tematização dos periódicos. Jornal é notícia, é momento, é mercadoria e não pode ser direcionado apenas a um tipo de público, o que reduziria sua área de influência, seu mercado - consequentemente o lucro do editor (GONÇALVES NETO, 1997). Por fim, entendemos que a importância desse projeto consiste na ampliação das fontes para a pesquisa histórico-educativa local, especialmente, em função de que a preservação da documentação escolar oficial é ainda bastante precária em todas as fontes tais como a oral e a jornalística. Acreditamos que as iniciativas de salvaguarda de diversificadas fontes de informação sobre a cultura das escolas ocorrem pela constatação da escassez dos acervos escolares, não existindo no interior das escolas o hábito da guarda da documentação produzida no seu cotidiano, de forma que anualmente, cadernos/relatórios de planos de aula são descartados, e em muitos casos queimam-se papéis antigos com a justificativa de que são ―velhos‖ não tendo validade como documento. Dessa maneira, muito pouco dos registros oficiais das escolas e praticamente nada das produções escolares de professores e alunos foi preservado. Essa prática tem prejudicado em grande medida o acesso a memória escolar, uma vez que muitas práticas das gerações passadas acabam por desaparecerem com o descarte desses arquivos. Assim, cremos que a digitalização das matérias jornalísticas ao longo dessas cinco décadas de grandes mudanças no campo da educação contribuirá para o resgate de elementos fundamentais para a história da educação local, constituindo-se em banco de Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 regiões do país o que faz com que a pesquisa histórico-educativa se utilize de outras 397 dados disponível a toda a comunidade. A opção por disponibilizar as notícias sobre o universo escolar na internet é importante também no sentido de se estabelecer interlocução com outros pesquisadores da área, contribuindo para se construir análises comparativas entre contextos diversificados que envolvem as questões históricoeducativas. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARAÚJO, J.C.S., GATTI JR, D. (orgs.). Novos Temas em História da Educação Brasileira: Instituições Escolares e Educação na Imprensa. Campinas, SP: Autores Associados; Uberlândia, MG: EDUFU, 2002. ARAUJO, José Carlos S.; GONÇALVES NETO, Wenceslau; INÁCIO FILHO, Geraldo & GATTI JUNIOR, Décio. ―Educação, Imprensa e Sociedade no Triângulo Mineiro: A Revista A Escola, 1920-1921‖. História da Educação, Pelotas (RS), 2 (3): 59-93, abr. 1998. CAPELATTO, Maria H.R. Imprensa e História do Brasil. São Paulo: Contexto-EDUSP, 1988. CAPELATO, Maria Helena, Imprensa, uma mercadoria política. História e Perspectiva. Uberlândia: nº 4, jan/jun, 1991. CATANI, Denice Barbara & BASTOS, Maria Helena Camara (Org.). Educação em Revista: A Imprensa Periódica e a História da Educação. São Paulo: Escrituras, 1997. CÔRTES, Carmen D.C. Ituiutaba Conta a sua História. 2ª ed. Ituiutaba, EGIL, 2001. DINES, Alberto. O Papel do Jornal: uma releitura. São Paulo: Summus, 1986. GONÇALVES NETO, Wenceslau et alii. Educação e Imprensa: análise de jornais de Uberlândia, MG, nas primeiras décadas do século XX. Revista de Educação Pública, 1997, Cuiabá, nº 6. JOSÉ, Emiliano. Imprensa e Poder: ligações perigosas. São Paulo: Hucitec, 1996. LIMA SOBRINHO, Barbosa. O Problema da Imprensa. São Paulo: EDUSP, 1997. LINHARES, Joaquim Nabuco. Itinerário da Imprensa de Belo Horizonte: 1895-1954. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro/Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1995. LUSTOSA, Isabel. O nascimento da imprensa brasileira. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. MARTINS, A.L. e DE LUCA, T.R. (Orgs.) História da Imprensa no Brasil. São Paulo: Contexto, 2008. MELO, José Marques de. A Opinião no Jornalismo Brasileiro. Petrópolis (RJ): Vozes, 1994. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 CONTIER, Arnaldo D. Imprensa e Ideologia em São Paulo: 1822-1842. Petrópolis (RJ): Vozes, 1979. 398 PALLARES-BURKE, Maria Lúcia Garcia. A imprensa periódica como uma empresa educativa no século XIX. Caderno de Pesquisa, Cortez, n. 104, p. 144-163, jul. 1998.. SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1977. SCHWARTZMAN, Simon ―Educação básica no Brasil: a agenda da modernidade‖ in Estudos Avançados, São Paulo/USP, vol.05, no.13, 1991, pp.49-60. WIRTH, John D. O Fiel da Balança: Minas Gerais na Federação Brasileira 1889-1937. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1982. FONTES: ―Gazeta de Ituiutaba‖ (1949 a 1952); ―Folha de Ituiutaba‖ (1952 a 1964); ―Correio do Pontal‖ (1956 a 1959); ―Correio do Triângulo‖ (1959 a 1965); ―Cidade de Ituiutaba‖ (1966 a 1987); ―Município de Ituiutaba‖ (1967 a 1970); ―Gazeta do Pontal‖ (1999) ―Diário Regional‖ (1995 a 2000) Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 Coleções dos Jornais: 399 A EDUCAÇÃO FÍSICA NA HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO TIJUCANA (19421964) Andréa Azevedo de Oliveira UFU/FACIP [email protected] Thais Parreira de Freitas Oliveira UFU/FACIP [email protected] André Luis Parreira UFU/FACIP [email protected] Dr. Sauloéber Társio de Souza UFU/FACIP [email protected] Introdução Este artigo insere-se na linha de pesquisa da História da Educação, para o curso de Pedagogia, da Faculdade de Ciências Integradas do Pontal (FACIP), da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), campus do Pontal, apresentando resultados parciais de investigação inédita e em andamento sobre a disciplina escolar Educação Física na cidade de Ituiutaba-MG, no período que compreende os anos de 1942 a 1964, tendo norteia a disciplina com as instituições médicas e militares. Nas instituições médicas considerando a ―Educação Física como sinônimo de saúde física e mental, como promotora da raça, das virtudes e da moral‖ (SOARES, 1994, p. 86). E, militares, devido a presença dos mesmos na formação dos primeiros professores civis de Educação Física e de sua prática de forma sistemática no Brasil. Castro (1997) salienta que a Educação Física no Brasil estava relacionada à experiência francesa, pois os militares brasileiros desempenhavam papel semelhante aos da França. Nesse contexto, os militares adentraram as escolas com propostas para a prática da Educação Física e, somente com o fim do Estado Novo houve modificação nessa situação. Desse modo, apresenta-se nesse trabalho como objetivos: verificar o papel da Educação Física na disciplinarização e higienização da sociedade, por meio de atividades físicas implantadas nas escolas do município; pesquisar como a Educação Física surgiu num cenário militarista e se estendeu ao escolar; apontar as especificidades Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 como referencia histórico que pauta a questão da perspectiva histórico-cultural que 400 da prática de professores e alunos nas aulas cotidianas de Educação Física nas escolas de Ituiutaba-MG (1942-1964). Para realização da pesquisa adotou-se um questionário com 21 (vinte e uma) questões, entrevistando 05 (cinco) sujeitos estudantes do período de 1942 a 1964, que apresentaram documentos os quais comprovaram os seus relatos com fotos, ficha médica, controle de distribuição de merendas, receitas de um curso de alimentação escolar. Os fatos históricos narrados pelos depoentes os conduziram até a década em estudo, retratando a sua percepção quanto às aulas realizadas, os jogos, os desfiles em praça pública, um momento histórico que vivenciou como protagonista em sua realidade vivida. Descortinava-se, assim, sua vivência entre outros atores presentes como os educadores físicos, despertando emoções até então ―guardadas‖, quando percebiam a amizade, o respeito e a o autoritarismo do seu professor. A realidade contextualizada neste recorte temporal e, ainda, sua memória recordara ações das aulas e com muita nitidez, o perfil dos professores e com admiração recordam o nome dos mesmos. Percebe-se o quanto foi significativa essa realidade vivida, o ensinar e o aprender, a oportunidade de reviver a década de uma trajetória histórica. Assim, pode-se evidenciar que os fatos ocorrem de acordo com os atores envolvidos permeados pelo Este trabalho teve como objetivo central investigar a Educação Física como disciplina escolar na cidade de Ituiutaba-MG, no período de 1942 a 1964 e, para melhor compreensão faz-se uma retrospectiva na história da disciplina buscando fragmentos de sua origem no cenário militarista e sua inserção na instituição escolar. Fragmentos da História da educação física A Educação Física ao ser refletida e/ou debatida confunde-se sua história com a dos médicos e dos militares, no que concerne a realização de sua prática e de seus métodos utilizados e seguidos. Soares traz sua contribuição ao explicitar que: As instituições médicas foram privilegiadas e o discurso médico higienista ouvido, pois acreditamos poder encontrar naquelas instituições e no seu discurso, elementos que nos auxiliem na compreensão de uma Educação Física como sinônimo de saúde física e mental, como promotora de saúde, como regeneradora da raça, das virtudes e da moral (SOARES, 1994, p. 86). Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 espaço e tempo num contexto histórico-cultural. 401 Desse modo, os médicos higienistas construíram uma abordagem positivista de ciência com propostas disciplinares dos corpos, em nome da saúde contribuindo para uma sociedade brasileira que construía ―uma nova ordem econômica, política e social‖ (SOARES, 1994, p. 86). 1- Educação Física: influência dos médicos higienistas Nesse contexto, evidenciam-se avanços nas descobertas científicas da higiene e, assim, os médicos higienistas ganham lugar de destaque com o apoio do poder de Estado que ―[...] medicaliza suas ações políticas, reconhecendo o valor político das ações médicas‖ (COSTA, 1983, p. 29). Pode-se acrescentar ainda que: ―a medicina social, em sua vertente higienista, vai influenciar e condicionar, de modo decisivo, a Educação Física, a educação escolar em geral, e toda a sociedade brasileira‖ (SOARES, 1994, p. 87). No que concerne a Educação Física no espaço escolar, no Brasil, a partir da segunda metade do século XIX, Soares (1994) salienta que, pode contar como base para as propostas pedagógicas o pensamento médico higienista que considerou-se como valioso componente curricular, uma vez que, acentuava-se o caráter higiênico nos Historicamente, percorreu um longo caminho, já que as questões da saúde, da higiene relacionados aos corpos dos indivíduos foram percebidas no Brasil colonial como preocupação das elites estrangeiras, originando nesse período, porém instaurou-se na República e, assim, expressou-se como traços da modernidade. No que se refere ao lócus de atuação definido pela higiene teve a família de elite, como é explicitado por Costa apud Soares: [...] Não interessava ao Estado modificar o padrão familiar dos escravos que deveriam continuar obedecendo ao código punitivo de sempre. (Os escravos) juntamente com os desclassificados de todo tipo, serão trazidos à cena como aliados na luta contra a rebeldia familiar. Escravos, mendigos, loucos, vagabundos, ciganos, capoeira, etc, servirão de anti-norma, de caos – limite de infração higiênica. A eles vão ser dedicadas outras políticas médicas. Foi sobre as elites que a medicina fez incidir sua política familiar, criticando a família colonial nos seus crimes contra a saúde (COSTA apud SOARES, 1994, p. 88. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 pressupostos da moralidade sanitária. 402 Nesse contexto, evidencia que os higienistas consideravam que a família de elite era incapaz de criar os seus filhos e de cuidar dos adultos, assim, entre a família e a criança eram colocados os interesses dos médicos e estes assumidos pelo Estado. Percebia, assim que enquadrava-se o corpo dos indivíduos de elite num espaço disciplinar pela educação física incluindo os cuidados higiênicos, o exercício físico acreditando-se como um fator de transformação social. Segundo Soares: Essa educação física (que incluía exercícios físicos sob as forma de ginástica), pensada pelos médicos, só poderia ser desenvolvida a contento, se os Colégios que lhe reservavam espaço considerável fossem reorganizados. Eles não poderiam ser um prolongamento da desordem familiar e, muito menos ainda, o espaço de reprodução das idéias dos pais sobre a educação de seus filhos. Aquelas idéias eram absolutamente nocivas conforme observa o médico Joaquim José de Oliveira Mafra, em tese apresentada à Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, no ano de 1855. Para ele, os Colégios deveriam ser contrários às idéias educacionais dos pais, porque estes desejam que seus filhos sejam superalimentados onde o paladar é mais importante; exigem leitos confortáveis, macios e o excesso de agasalhos; temem pela fadiga dos filhos se submetidos a passeios longos onde a exposição ginástica temendo possíveis acidentes (SOARES, 1994, p. 93). Nesse sentido, os Colégios deveriam trabalhar no sentido de construir um indivíduo saudável, porém lhes faltava um compromisso maior com a unidade nacional, já que foram criados com o espírito regionalista. desse modo, não ofereciam condições adequadas para educar as elites, já que a administração nacional era responsável somente pelo ensino superior. Durante o Império, a partir da segunda metade do século XIX, as reformas educacionais buscam a orientação literária e científica, Soares (1994) ressalta que essas orientações eram sensíveis à necessidade da Educação Física, mas sua incorporação não ocorreu tranquilamente no ensino regular, pois os argumentos médicos não foram suficientes para acabar com o preconceito em relação à Educação Física julgada como imoral, em especial quando se dirigia às mulheres. Soares revela ainda: Entretanto, se de um lado existiam aqueles que a consideravam imoral para as mulheres, de um outro, vamos encontrar aqueles que a defendiam por julgá-la necessária. Estes afirmavam que o corpo feminino devia ser fortalecido pela ―ginástica‖, adequada ao seu sexo e às peculiaridades femininas, pois era a mulher que geraria os filhos da pátria, o bom soldado e o elegante e civilizado cidadão (SOARES, 1994, p. 102). Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 Notava-se, também que os Colégios não eram mantidos pelo poder público e, 403 O período do Império marcou-se por formulações legais sobre a Educação Física nas escolas, havia proibições e liberações bem distintas, principalmente preocupações com a educação das elites. Assim aumentavam as propostas médicas, propostas legais, detalhamento do espaço escolar, currículos. No entanto, no final deste período uma certa preocupação da elite surgiu em relação à educação da população em geral, isto é, à educação pública. Ao referir-se às reformas do ensino, no final do Império, Soares (1994) revela que os dirigentes buscam incorporar a ginástica nos currículos escolares, podendo destacar o Decreto nº 7.247, de 19 de abril de 1879, assinado por Carlos Leôncio de Carvalho que trazia na grade curricular o espaço obrigatório nas escolas primárias e secundárias do município da Corte. E, ainda, o Parecer de nº 224 sobre a Reforma Leôncio de Carvalho sintetiza o conjunto de medidas necessárias para a ginástica nos currículos escolares: 1º - Instituição de uma secção especial de ginástica em cada escola normal. 2º - Extensão obrigatória de ginástica a ambos os sexos na formação do professorado e nas escolas primárias de todos os graus, tendo em vista, em relação à mulher, a harmonia das formas feminis e as exigências das maternidade futura (grifos nossos). 3º Inserção da ginástica nos programas escolares como matéria de estudo, em horas distintas das do recreio, e depois das aulas. 4º Equiparação, em categorias e autoridade, dos professores de ginástica aos de todas as outras disciplinas (BARBOSA apud SOARES, 1994, p. 113). recreio, extensão da ginástica a ambos os sexos, realçando que à mulher deveria acentuar as suas formas feminis, desse modo mostrava-se as diferenças da mulher em relação ao homem. Percebe-se, também, a preocupação em tornar os indivíduos saudáveis e fica claro a definição dos papéis e funções desempenhadas pelos homens e mulheres. Com o novo regime, ou seja, com o advento da República, tendo na liderança uma elite liberal, burguesa, capitalista houve um grande impacto com a libertação das idéias destes líderes, acentuando os padrões de moral e honestidade, como Soares explicita sobre esse regime: Um regime assim, se por um lado ―desenvolve‖ a sociedade brasileira, iniciando ainda que tardiamente a sua integração ao capitalismo mundial, por outro, e como face do mesmo processo, acentua a miséria, degrada a vida e destrói os laços mais singelos e ternos que unem os indivíduos, atirando-os, desde muito cedo a um tipo de trabalho degradante e mal pago. Como testemunho da miséria do povo estão os altos índices de doenças e de mortalidade nas primeiras duas décadas da República [...] é com o advento da República que será colocado em prática através de ações intervencionistas Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 Nesse sentido, evidencia-se o seu caráter obrigatório, distinguindo das horas de 404 apoiadas pelo Estado, com o objetivo de, em nome da saúde, manter a ordem, ampliando para o conjunto da população a determinação de normas para conseguir uma vida saudável, e o ―pleno funcionamento da sociedade‖ (SOARES, 1994, p. 117). Na República, os médicos começam a assumir cargos administrativos e, assim, os médicos higienistas mostraram-se eficientes no combate a algumas doenças, às epidemias. Destaca-se, também, que havia uma grande preocupação, dos médicos higienistas, em relação à cidade, considerada alvo que exigia um controle maior, uma intervenção higiênica; portanto, não foi objeto de preocupação e intervenção higienista no meio rural, embora havendo apresentasse os mesmos problemas de saúde e as mesmas taxas de mortalidade. ―A intervenção médico-higiênica, que ocorre neste cenário citadino e que expressa, sobretudo, a voracidade do novo regime, não se dará no sentido de alterar as relações sociais ali presentes. Aquela intervenção estará voltada exclusivamente para o meio ambiente‖ (SOARES, 1994, p. 120). Assim, revela este autor que, o ambiente era considerado responsável direto pela saúde do corpo individual e social. O cuidado corporal se estende com a Educação Física nos espaços escolares, a higiene faz parte da Ginástica e da Educação Física e integram às propostas 2- Educação Física: inspiração militar no espaço escolar A inspiração militar no espaço escolar, no que concerne à educação física, se deve à preparação dos primeiros professores civis de Educação Física e de sua prática de forma sistemática no Brasil. Tem-se, ainda, que a Educação Física no Brasil relacionava-se à experiência francesa, já que desempenhava-se no Brasil, pelos militares papel semelhante aos da França. Nesse contexto, Castro revela: No Brasil, já em 1921 foi aprovado o Regulamento de Instrução Física Militar, destinado ao Exército e calcado no Projet fancês, por influência direta da Missão Militar Francesa, recentemente chegado ao Brasil. No ano seguinte, uma portaria do Ministra da Guerra (10/1/1922) criou um Centro Militar de Educação Física, destinado a ―dirigir, coordenar e difundir o novo método de educação física e suas aplicações desportivas‖. A portaria estabelecia que: ―O curso de instrutores e monitores será dirigido por um oficial da Missão Militar Francesa, auxiliado por dois oficiais brasileiros conhecedores do novo método de educação física e indicados pelo Estado- Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 pedagógicas, tendo suporte legal nas reformas educacionais. 405 Maior do Exército‖. Esse Centro não chegou a ser instalado (CASTRO, 1997, p. 65). Nesse sentido, a educação física de orientação francesa foi utilizada no Exército durante toda a década de 20. ―Em 1928 a Missão Militar Francesa passou a contar entre seus integrantes com um oficial encarregado exclusivamente de dirigir a instrução de educação física‖ (CASTRO, 1997, p.65). No ano seguinte, um anteprojeto de lei, elaborado por uma Comissão Física, presidida pelo ministro da Guerra, general Nestor Sezefredo Passos, tornava obrigatória a educação física em todos os estabelecimentos de ensino, federais, municipais e particulares. Essa obrigatoriedade atingia a todos, a partir da idade de seis anos e para ambos os sexos. Estabelecia, ainda, neste anteprojeto que, enquanto não existisse um método nacional deveria ser adotado o Método Francês. As iniciativas práticas não tardaram. O Centro Militar de Educação Física promoveu um Curso Provisório que funcionou inicialmente na Escola de Sargentos de Infantaria da Vila Militar (Rio de Janeiro, sob a orientação técnica do 1º tenente Inácio de Freitas Rolim. O curso, que teve a duração de um ano letivo, formou, além de militares, 22 professores civis, que foram lecionar em escolas públicas do Distrito Federal, principalmente na Escola Normal. O método utilizado era o francês, assim defendido por um dos professores: ―Da colaboração de todos os interessados, civis e militares, levados em contas as características da curva fisiológica brasileira, surgirá o método geral, aplicável a todos os brasileiros, sem distinção de sexo ou idade, concretizado em regulamento geral. A nossa tendência é, assim nos parece, a adaptação do Método Francês, mais de acordo com o nosso temperamento de latino (CASTRO, 1997, p. 67). Nesse sentido, a Educação Física praticava o Método Francês, mas surgiu o interesse dos brasileiros, em uma adaptação de acordo com o temperamento latino, até que projetassem um método nacional. Após a Revolução de 30, com destaque ao papel que ocupava os militares no Estado, a implantação do projeto militar para a educação física e sua inserção nas escolas ficaram mais fortes. No entanto, a Associação Brasileira de Educação – ABE, defendia a introdução da educação física nas escolas, proposta que constava em um projeto de reforma do ensino secundário elaborado em 1929. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 Castro revela que: 406 A ABE propunha, ainda, a criação de uma Escola de Educação Física anexa à Universidade do Brasil, e tinha como objetivo a preparação de instrutores civis que atendessem as escolas primárias, secundárias e normais. A ABE não queria permitir que os militares invadissem as escolas, principalmente por ser um projeto militar; e, também, não concordava com o Método Francês, que considerava este com espírito e tendências militares. Outras críticas surgiram em relação ao projeto militar para a educação física, que ocorreu entre 1930 e 1945, quando da oposição de alguns educadores civis e da Igreja, porém nada conseguiram, fracassando frente à força militar. Castro revela que: Em novembro de 1930 o governo provisório de Getúlio Vargas criou o Ministério da Educação e Saúde Pública (MÊS). Em 1931, o ministro Francisco Campos reformou o ensino secundário, tornando obrigatórios os exercícios de educação física em todas as classes (decreto nº 19.890, de 18/4) e pouco depois, ignorando os apelos da Associação Brasileira de Educação, mandou adotas as normas e diretrizes do Centro Militar de Educação Física (portaria nº 70, de 30/6), o que implicou, mais uma vez, a adoção do Método Francês (CASTRO, 1997, p. 69). Desse modo, prevaleceu a força militar, sendo oficialmente aprovado o Regulamento de Educação Física do Exército, pelo Decreto nº 21.324 de 27/04/1932. Segundo Castro (1997), entre 1934 e 1945, o Ministério da Educação e Saúde área militar em relação à educação física, tornando-a definitivamente institucionalizada no ensino civil. Em 1937, com a reorganização do MES criou-se a Divisão de Educação Física – DEF, subordinada ao Departamento Nacional de Educação. De acordo com Cantarino Filho apud Castro: Com o fim do Estado Novo, a situação no campo da educação física modificou-se rapidamente. Professores civis reunidos no IX Congresso Brasileiro de Educação, promovido pela ABE em junho de 1945, aprovaram uma Carta Brasileira de Educação Democrática que indicava, entre outras medidas, a extinção da organização Juventude Brasileira (inspirada na juventude nazista) e do Departamento de Educação Nacionalista, bem como ―de quaisquer vestígios desse tipo, acaso impregnados na administração escolar‖ (CANTARINO FILHO apud CASTRO, 1997, 69). As preocupações continuavam, naquele momento, para a mudança do Método Francês para um Nacional. Em 1943 foi promovido um concurso de contribuições para o Método Nacional de Educação Física, publicado um edital no Diário Oficial de Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 Pública – MES, chefiado por Gustavo Capanema, tornou-se estreitos os contatos com a 407 27/7/1943, vencendo o trabalho elaborado por uma Sociedade de Estudo dos Problemas da Educação Física, intitulado Bases Científicas da Educação Física. Em 1944, outro concurso, promovido pela Divisão de Educação Física. Portanto, com a desagregação do regime autoritário do Estado Novo, as iniciativas para a criação do Método Nacional foram abandonadas. Assim, outros métodos além do francês foram utilizados. Assim, a Educação Física continuou a mostrar e assegurar as mudanças necessárias na educação e a conquistar seu espaço na instituição escolar. Com a Lei nº 4.024/61, em seu artigo 22, teve ratificada sua obrigatoriedade no ensino primário e médio, não se cogitava de torná-la obrigatória também no ensino superior. Em 1966, o Conselho Federal de Educação deixou transparecer sua posição a esse respeito, que segundo Castellani Filho, assim se expressou no Parecer nº 424: Nesse sentido, defende com clareza o seu ponto de vista. E, mais tarde, com a força legal, a Educação Física passou a ter a sua obrigatoriedade estendida a todos os níveis e ramos de escolarização. Concluindo, nos anos sessenta, iniciou-se nova atenção do governo pela Educação Física 3- A Educação Física na instituição escolar Ituiutabana (1942-1964) O município de Ituiutaba-MG, no período de 1942 a 1964, passou a atender as exigências educacionais da população, cada vez maior, pois destacava-se seu desenvolvimento político, econômico e social. Nesse período contava com escolas conceituadas como Instituto Marden, Colégio Santa Teresa, Ginásio São José, Escola Noturna Machado de Assis, entre as demais destacavam as escolas rurais e grupos escolares. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 Todos receonhecemos a necessidade e o benefício de exercícios físicos em qualquer idade, desde que devidamente adaptados. Entretanto, a razão de ser da obrigatoriedade prescrita em lei, não é tanta o beneficio, e sim o papel de fator formativo, que inclui atitudes físicas, mentais e morais. Por isso, a obrigatoriedade da Educação Física se ajusta bem aos cursos de nível médio que, de conformidade com a Lei de Diretrizes e Bases, se destinam à formação do adolescente. Ultrapassada essa faixa de formação, a prática de exercícios físicos já deve ser um hábito agradável e saudável, resultante de um processo formativo [...] Nada impede que nas escolas superiores, haja diversas modalidades de exercícios físicos. O que parece não caber mais, é a obrigatoriedade da Educação Física [...] (CASTELLANI FILHO, 1988, p. 117). 408 Segundo o Centenário de Ituiutaba 2001, a educação para este município sempre foi uma prioridade e, fundamenta que: O município contava com 31 (trinta e uma) escolas funcionando, com apenas 4 (quatro) de pau a pique, porém, cobertas de telhas. As demais possuíam salas amplas e arejadas, quase todas convenientemente com carteiras, quadros-negros, etc. De maio de 1964 a setembro de 1965, foram construídos os seguintes prédios exclusivamente para escola: Escola Prof.ª “Maria José Fratari” – prédio de estilo moderno, situada na Serra da Aroeira. Prof.ª Sônia Maria dos Reis. Escola “Antonio Pedro Guimarães” – local denominado Macado. Prof.ª Maria Divina Martins Mariano. Mobiliário fornecido pela prefeitura. Escola “Diôgo de Souza” - local denominado Rancharia. Prof.ª Aurora Tereza de Morais. Mobiliário fornecido pela prefeitura. Escola “São José” – situada no Córrego do Mosquito. Prof.ª Itelvina Silveira da Costa. Mobiliário fornecido pela prefeitura. Escola “Gerôncio Rodrigues Chaves” – situada na Fazenda Ibiranga. Prof.ª Lisbete Rezende (até 22/7/1965). Escola “Aureliano de Freitas Franco – situada na Usina. Prof.ª Mafalda de Melo. Mobiliário fornecido pela prefeitura. Escola “Rui Barbosa”. Situada no Brejão. Prof.ª Célia Maria da Silva. Mobiliário fornecido pela prefeitura. Escola “Carlos Gomes” – situada na Mateirinha. Prof.ª Elza Rosado de Morais (CENTENÁRIO DE ITUIUTABA, 2001, p. 129-130). Dentre as escolas do município de Ituiutaba-MG tornou-se possível o contato com alunos que frequentaram as mesmas, no período de 1942 a 1964 e, assim, contribuíram para a coleta de dados que retrata a Educação Física neste município. Metodologia O estudo constituiu-se da pesquisa bibliográfica, baseada na literatura que (cinco) sujeitos estudantes do período de 1942 a 1964, do município de Ituiutaba-MG. Assim que discursavam uma realidade vivida, envolvidos pelo espaço e tempo de um contexto histórico-cultural, suas emoções tornavam-se explicitas. Os anexos foram oferecidos pelos sujeitos entrevistados para retratar o momento histórico. Resultados A caracterização dos sujeitos pode ser assim apresentada. A faixa etária dos sujeitos estudantes entrevistados do período de 1942 a 1964 compreendem os anos de 1922 a 1952. A escola que estudaram foram: Instituto Marden – Escola Normal ―Dr. Benedito Valadares‖; Colégio Santa Teresa; Ginásio São José; Grupo Escolar João Pinheiro. Ao serem questionados se lembravam o nome de seus professores de Educação Física, a resposta foi afirmativa e falavam os nomes com muita emoção. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 aborda a temática nesse período histórico e, a pesquisa de campo, entrevistando 05 409 Quanto à questão referente à pergunta ―Como eram as aulas de Educação Física na sua época?‖ As respostas obtidas são visualizadas na Tabela 1, a seguir. Tabela 1 – Como eram as aulas de Educação Física na sua época? Sujeitos Respostas 1 As aulas eram realizadas pela manhã, no horário de 6h às 6h50min. Três aulas por semana. Tínhamos uniforme próprio e era obrigatório. As aulas eram bem diversificadas, fazíamos exercícios com bastão, com alteres, praticávamos salto de altura, salto à distância com vara e tínhamos a parte de esporte e o preferido era vôlei. 2 Eram de muito exercício. 3 Eram boas, com muitas brincadeiras. 4 Eram aulas que não nos motivavam fazê-las. Fazíamos por obrigação. 5 Fazíamos ginástica com um bermudão e depois jogávamos bola. Percebe-se, bastante clareza em suas respostas, mostrando o horário, o número de aulas por semana, o uniforme obrigatório, aulas diversificadas, a ginástica, o jogo e, ainda, a ludicidade presente. No entanto, o Sujeito 4, não apresenta muito entusiasmo com as aulas, sentindo-as como uma obrigação. A questão a seguir: ―Que atividades a escola desenvolvia dentro da Educação Tabela 2 – Que atividades a escola desenvolvia dentro da Educação Física que você considerava mais importante? Sujeitos Respostas 1 O que considerava mais importante dentro das atividades praticadas na Educação Física naquela época é que fazíamos apresentações fora da escola, local preferido praça da prefeitura, usando uniforme de gala, com grande público nos assistindo e aplaudindo. Nós estudantes tínhamos prazer e orgulho de nos apresentar, esse dia era dia de festa. 2 Vôlei e marcha. 3 Vôlei, Ping-Pong, Basquete, Queimada. 4 Os desfiles de sete de setembro e dia dezesseis (Aniversário de Ituiutaba) 5 Me fazia feliz quando tínhamos as competições e as gincanas. As respostas nos mostram a diversidade das atividades e a vida social dos estudantes, sentindo-se bem com as atividades extra-classe. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 Física que você considerava mais importante?‖ As respostas são apresentadas na Tabela 410 Dentre as perguntas, muito significativa para o estudo tem a questão de número 10: ―Como a Educação Física, em sua opinião, contribuía nos aspectos da higiene pessoal?‖ Tabela 3 – Como a Educação Física, em sua opinião, contribuía nos aspectos da higiene pessoal? Sujeitos Respostas 1 De uma maneira geral, a Educação Física, contribuí na higiene pessoal, levando a pessoa a tomar banho diário. 2 -3 -4 Pela importância da higiene pessoal, na manutenção da qualidade de vida do ser humano. 5 Preocupávamos apenas com os cabelinhos das pernas e braços. Fica clara a contribuição com os aspectos da higiene, nas aulas de Educação Física, que afirma a investigação realizada na literatura, do ponto de vista dos autores apresentados que delinearam o período de 1942 a 1964. Outra questão que tornou-se relevante é a de número 15: ―Você se recorda se em algum momento houve repressão quanto à participação das mulheres em atividades Tabela 4 – Você se recorda se em algum momento houve repressão quanto à participação das mulheres em atividades esportivas ou em outro evento qualquer? Sujeitos Respostas 1 Já na minha época de estudante, as mulheres participavam ativamente das atividades esportivas e não me lembro de nenhuma repressão. 2 Não. 3 -4 Não. 5 -Vale ressaltar diante dos resultados que as respostas foram dadas por mulheres, sendo a escolha dos sujeitos entrevistados aleatoriamente, como procedimento somente o período da pesquisa coincidindo com o período de suas escolaridades. Na Tabela 5 visualiza-se a questão de número 18: ―Como você avalia a participação dos estudantes da época nas aulas de Educação Física? Tinha avaliação, registro de frequência, exames médicos? Como era o processo?‖ Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 esportivas ou em outro evento qualquer?‖ 411 Tabela 5 – Como você avalia a participação dos estudantes da época nas aulas de Educação Física? Tinha avaliação, registro de frequência, exames médicos? Como era o processo? Sujeitos Respostas 1 A maioria dos alunos demonstrava interesse pelas aulas de Educação Física. Os alunos eram avaliados mensalmente, atribuindo-lhes, notas de zero a dez. A frequência era obrigatória, havia exame-médico, duas vezes por ano. 2 Com muita alegria e participação. Tinha avaliação, respondendo um questionário e fazendo exame-médico todo ano. 3 -4 A participação era boa. Sim, éramos avaliados através de examesmédico e havia registro de frequência. 5 Tinha tudo e era muito organizado as 6 horas e 15min. Desse modo, e a partir da leitura das respostas das questões que constituíram o questionário, pode-se perceber que a Educação Física teve grande importância para os estudantes, naquele momento, contribuiu para o físico como também para incentivar a prática dos exercícios físicos e esporte, base para se ter uma boa saúde. Considerações Finais A pesquisa revelou diante do significado histórico que as aulas de Educação Física surgiram num cenário higienista e militarista, com o propósito de tornar a população mais saudável, tanto no contexto militar como acentuando a sua importância Os resultados foram significativos e surpreendentes, pois a maioria dos discursos revelou prazer e disciplina, diversidade nos jogos e modalidades de esporte variadas. Retratou-se, também, nos discursos, a relação interpessoal professor-aluno, em que apresentaram divergências em suas respostas, enquanto uns apontavam o autoritarismo dos professores, outros os admiravam enfatizando o respeito e a disciplina, amizade e compreensão, dentro de seu perfil exigente. O registro das narrativas promoveu a análise e compreensão das questões elencadas que abordam a práxis do docente que ministrou a disciplina Educação Física, bem como a contribuição nos aspectos que concerne à relação professor-aluno, à postura do educador físico e ao significado desta disciplina para os sujeitos entrevistados. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 na escola. 412 CANTARINO FILHO, Mário Ribeiro. A educação física no Estado Novo: história e doutrina. Dissertação de Mestrado (UnB), 1982, In: CASTRO, Celso. In corpora sano: os militares e a introdução da Educação Física no Brasil. Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil – CPDOC. Niterói, RJ, 1997. CASTELLANI FILHO, Lino. Educação física no Brasil: a história que não se conta. Campinas, SP: Papirus, 1988. CASTRO, Celso. In corpora sano: os militares e a introdução da Educação Física no Brasil. Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil – CPDOC. Niterói, RJ, 1997. ITUIUTABA. Centenário de Ituiutaba 2001. Prefeitura Municipal de Ituiutaba. Secretaria Municipal de Educação e Cultura. Ituiutaba: EGIL, 2001. SOARES, Carmen Lúcia. Educação Física: raízes européias e Brasil. Campinas, SP: Autores Associados, 1994. ANEXOS Fonte: arquivo pessoal Fonte: arquivo pessoal Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 Fotos dos desfiles realizados e atividades físicas 413 Fonte: arquivo pessoal Fonte: arquivo pessoal Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 Ficha Médica 414 CURRÍCULO, CULTURA E RELAÇÃO DE PODER Diana Lima Pereira Graduanda em história/UFG Introdução: o que é currículo? O currículo é uma transposição didática, onde o conhecimento produzido pela sociedade transforma-se em cultura escolar. Desde o período da ―redemocratização‖ o Brasil, com - influências internacionais- está reescrevendo seus PCNs. Preocupado com o papel a ser desempenhado por cada disciplina. Porém se na teoria o currículo nacional não é obrigatório, na prática é ele que determina as avaliações e os livros didáticos. ―Há, no entanto um grau de autonomia das instituições escolares e dos professores que possibilita a seleção dos conteúdos, sendo salutar que às escolas tenham espaços de estudo e de discussão do que está sendo proposto pelos PCNs, tanto para seguir como para rejeitar.‖ (Libâneo). Mas como é ressaltado pelo próprio autor, o professor se acomoda pelo currículo (no caso o livro didático). O currículo pode ser entendido como a forma de se socializar crianças e jovens de acordo com valores tidos como desejáveis (Moreira. 1997). É necessário fazer a definição da palavra currículo. Cito aqui algumas definições discorridas por Moreira: a) Conhecimento escolar e experiência de aprendizagem: entende-se o que deve ser compreendido e aplicado pelo aluno. Essa perspectiva trás dois b) Ênfase nas diferenças individuais dos alunos. A escola torna-se o ambiente em ação para as experiências totais dos alunos. c) Influência da pscicologia: nesse caso o Behaviorismo. d) Reconhecimento de que currículo não acarreta apenas a parte escrita, mas também a prática escolar efetiva. Distinguindo então o currículo formal (criado pelo poder estatal), currículo real (o que efetivamente é realizado em sala de aula, e a interação entre professor e aluno), e currículo em ação. e) O conceito de currículo oculto, no qual é valorizada a interferência que o professor realiza no currículo. Esta concepção vai além do reducionismo marxista da escola como reprodutora e fixadora dos valores de divisão de classe, uma vez que a escola ―é o espaço no qual se travam lutas ideológicas e políticas, passível, portanto, de abrigar intervenções que visem a mudanças sociais. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 questionamentos: ―O que deve um currículo conter? Como organizar esses conteúdos?‖ 415 f) Influência do pós-modernismo. O currículo como campo de identidades e subjetividades. Desenvolvimento: currículo, globalização e utopia. No Brasil são fortes as tendências vindas do exterior. No caso da disciplina história a maior interferência vem da França. Essa orientação internacional se embasa nos pressupostos construtivistas, que nortearam também os países latino americanos. Vários autores como Bittencourt, Libâneo, Silva e Fonseca concordam que há no currículo relações de poder. ... concebemos currículo como uma construção, um campo de lutas, um processo, fruto da seleção e da visão de alguém ou de algum grupo que detèm o poder de dizer e fazer. Logo, o currículo revela e expressa tensões, conflitos, acordos, consensos, aproximações e distanciamentos. É histórico, situado, datado no tempo e no lugar social. (SILVA E FONSECA, 2007. p.44). Há forças ideológicas no currículo além de interesses capitalistas. Concordamos com Bittencout quando esta diz que as reformulações curriculares atendem a nova configuração mundial ―para submeter todos os países a lógica do mercado‖. Os países periféricos têm o desafio de se ―enquadrar‖ no novo contexto mundial. Para que os integrantes da sociedade sejam capazes de sobreviver no capitalismo neoliberal, tornase necessário que tenham amplos domínios do conhecimento. mercado reina. A estranha lógica do mercado submeti tudo e todos. Inclusive os currículos. Estes abordam a necessidade de formar futuros trabalhadores competentes. Quanto melhor a formação, melhor será o emprego e consequentemente o status. A escola virou um bem de consumo, e influenciada pela competitividade, escolas disputam quem classifica mais alunos nos vestibulares das melhores universidades. Procura formar sujeitos aptos á armazenar informação e não compreender problemas humanos. Quem também obtém demasiada influência nos currículos é o discurso pósmoderno. Entre as principais mudanças estão: (a) o abandono das grandes narrativas; (b) a descrença em uma consciência unitária, homogênea, centrada; (c) a rejeição da idéia de utopia; (d) a preocupação com a linguagem e com a subjetividade; (e) a visão de que todo discurso está saturado de poder; e (f) a celebração da diferença. (Moreira, 1997. Página 10) Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 A globalização trouxe o modelo econômico do neoliberalismo, onde o livre 416 Para Moreira a rejeição da idéia de utopia seria nociva á educação. O autor sugere o não abandono total do modernismo. Utilizando assim a idéia de otimismo e utopia na educação. Porém, ao discorrer sobre utopia, não cai na idéia reducionista de um mundo social e político imaginário e perfeito. É clara a recusa pela metanarrativa para se conquistar o modelo utópico de sociedade. A conquista da utopia aconteceria apenas com a capacidade de se retirar a hierarquia presente das duas ciências (naturais e sociais). É necessária a valorização do senso comum, ou seja, não enaltecer apenas as ciências como a única fornecedora de verdades, reconhecendo assim as inúmeras formas de conhecimento. Rejeitam-se as práticas hegemônicas. O que ganha realmente destaque é a dignidade humana. E é esse princípio que deve ser valorizado pelas culturas. Seguindo também a tendência da globalização, está na moda nos textos acadêmicos a palavra multicultural. Para Santos e Lopes multiculturalismo é uma expressão indefinida, o que dificulta a sua compreensão, sendo até mesmo, em alguns países como os Estados Unidos, confundido com interculturalismo. As distinções dos prefixos ―multi‖ e ―inter‖ se dariam porque o primeiro é limitado á valorização das diferenças. Por outro lado o interculturalismo seria mais abrangente, preocupando-se O sentido é de que, ao entrar em interação com as outras culturas, uma dada cultura poderá se desestabilizar ou ser relativizada e até mesmo contestada em seus princípios básicos, expondo-se à crítica e à autocrítica, o que possibilita a eliminação dos aspectos negativos presentes nas diferentes tradições culturais. (Santos e Lopes.2006. pagina 35) Santos e Andriolli falam sobre a desvalorização das disciplinas de humanas em comparação com as exatas e biológicas. Por outro lado houve a valorização da ―sociedade do conhecimento‖, no qual entre outras coisas se exigem habilidades intelectuais mais complexas. Com a globalização as salas de aula estão ficando heterogêneas, é dever do professor respeitar a individualidade do seu aluno. Além do mais a mídia traz imagens de outros povos, outras culturas, outras religiões. Estamos vivendo a cultura da imagem173, no qual o professor deve tomar cuidado para não ser apenas um transmissor das informações estereotipadas trazidas pela mídia. Ou seja, muitos professores no intuito de renovarem suas aulas procuram técnicas diferentes, porém a metodologia de transmitir um conhecimento já formado ainda continua. 173 Bittencourt Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 com a troca e interação. 417 Como fora citado acima, currículo é uma transposição didática do conhecimento e da cultura humana. Dessa forma há uma reelaboração dos conteúdos culturais. ―Nesse processo de seleção, a escola termina por trabalhar apenas com uma parcela restrita da experiência coletiva humana‖. (Santos e Lopes. 2006. página 36). Isso significa que culturas são marginalizadas do conteúdo escolar, sendo eliminada e devendo ser substituída pela cultura hegemônica (identidade). Se por um lado os currículos sofrem a influência do neoliberalismo, para formar sujeitos aptos, competentes, que saibam ter informações, por outro há grupos que reivindicam ter sua história contada. Desde o processo de redemocratização da década de 80, houve a preocupação de que todos participassem do processo político. Há necessidade em formar sujeitos ativos, que saibam compreender a sociedade no qual estão inseridos, para desse modo ser dono de suas ações, ao contrário do sujeito passivo. Há então a necessidade de reconhecer o espaço escolar para dar voz aos oprimidos, indo além do reconhecimento e valorização das diferenças culturais. Mas também para a problematização e questionamento do que seriam essas diferenças e como elas se formaram. Deve-se também identificar o conceito de multiculturalismo, para não cair em equívocos como ressaltam Santos e Lopes, de aceitar uma cultura dominante que pode assimilar as desprivilegiadas. O termo multiculturalismo demonstra preocupação com a diversidade O conceito é utilizado também para expressar a defesa de um caminho mais flexível para a escola que se pretende aberta aos saberes do cotidiano, inserida no espaço do multi, do pluri. O professor, nesse contexto multicultural, ―deve‖ está além dos territórios e dos limites que o saber especializado representa no contexto da escola. Assim, ―deve‖ ter a capacidade de interdisciplinarizar, de integrar, de incluir em contextos específicos os sujeitos e os saberes dos excluídos: negros, índios, pobres, homossexuais, portadores de deficiências físicas, mentais e outros. (SILVA E FONSECA, 2007.p. 45) Nota-se que no contexto multicultural o Estado e algumas instituições estão preocupados com as ―minorias‖, de valorizá-las. Havendo uma preocupação em apresentar a escola ―como um espaço de acolhimento, inclusão, respeito, de ‗resgate‘ de identidades e culturas múltiplas.‖ (SILVA E FONSECA, 2007.p.45). Os PCNs são influenciados com a introdução de temas transversais como ―ética‖ e ―pluralidade cultural‖. A questão da identidade e da diferença: Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 geográfica, racial, religiosa, política entre outros. 418 Mas não se deve esquecer o caráter, talvez ingênuo, do termo multicultural. Isto é, este traz consigo dois termos politicamente corretos: respeito e tolerância, mas se não questionados tornam-se vagos, apenas reforçando que existe um diferente para ser tolerado. Tadeu da Silva levanta a questão se essa pedagogia da tolerância e respeito pelo diferente é suficiente para servir de base para uma pedagogia crítica e questionadora. É importante que esse aluno saiba ver o outro não como algo natural, em sua essência, mas como uma produção social, com relações de poder. O diferente, não é uma essência pacífica da cultura, é uma construção. O outro cultural é sempre um problema, pois coloca permanentemente em xeque nossa própria identidade. É necessário questionar a construção da identidade e diferença. Identidade é dizer o que se é e o que não se é. Afirmo ser algo para deixar claro que não sou outra coisa. Exemplo: ―sou católica‖, ou seja, ―não sou evangélica, não sou mulçumana‖. Deve-se perceber que identidade depende da diferença e vice e versa. O diferente serve para dizer aquilo que ele é, o que ele não é. Essa relação identidade e diferença podem ser mostradas no que Bhabha fala sobre ―eu - outro‖. Isto é, ―eu‖ como ser que possui a identidade, devo respeitar e tolerar o ―outro‖, aquele que é diferente. Isto reflete a tendência a tomar aquilo que somos como sendo a norma pela qual descrevemos ou avaliamos aquilo que não somos. Por sua vez, na pespectiva que venho tentando desenvolver, identidade e diferença são vistas como mutuamente determinadas.‖ (TADEU DA SILVA, ano. P. 76) diferença apresentar-se-ia como o reflexo. Porém é necessário que ambos sejam compreendidos como produções. Isso significa que não são naturalmente colocados. Ao contrário são interdependentes e criações lingüísticas. ―A identidade e a diferença têm que ser ativamente produzida‖ (TADEU DA SILVA, ano. P. 76). São criadas por meio de atos de linguagem, pois identidade e diferença devem ser nomeadas. Porém essa nomeação não é simples, seu aspecto não é apenas gráfico ou fonético. Há tanto o conceito, como uma cadeia de conceitos que o permeiam. Quero dizer que, sistemas simbólicos e culturais que compõem o que distingue identidade e diferença e não aspectos culturais. ―Dizer isso não significa, entretanto, dizer que elas são determinadas, de uma vez por todas, pelos sistemas discursivos e simbólicos que lhes dão definição‖. Para Tadeu da Silva a linguagem não é estável, ela vacila. Hall apresenta três concepções distintas de identidade, que são: sujeito do iluminismo; sujeito sociológico; e sujeito pós-moderno. O primeiro é centrado, fixo e masculino. É o homem no centro (laicizado) racional, o que está ciente da vinda do Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 Como a identidade é aquilo que se deve ser, isto é, a ―norma padrão‖, a 419 progresso. O segundo faz abordagem da interação com o meio. O sujeito não é mais o que é (essência), ou apenas o que é. Ele também é o seu meio. Esse sujeito ―nasce‖ na primeira metade do século XX. Mas o sujeito que importa aqui é o sujeito pós-moderno. Pois se percebe não ser fruto de sua essência, com características pré moldadas. Exemplo: o oriental é exótico, ignorante, atrasado. O sujeito agora é definido historicamente e não biologicamente. Ele vive (confuso) com várias identidades. É partido, dividido, ao mesmo tempo em que: Ele vivencia sua própria identidade como se ela estivesse reunida e ―resolvida‖, ou unificada, como resultado da fantasia de si mesmo como uma ―pessoa‖ unificada que ele formou na fase do espelho. (HALL. 1992. pagina 38) A identidade não é algo acabado, ela está em processo. Existe sempre uma procura para podermos construí-la. A globalização traz duas conseqüências culturais, que é a homogeneização da cultura e a cultura hegemônica. O primeiro significa a cultura única, igual, enquanto que o segundo ―escolhe‖ qual a cultura ideal a ser ―copiada‖. Ameaçando assim a afirmação cultural de diferentes grupos. Da mesma forma, a globalização da cultura é uma estratégia importante, no plano econômico, uma vez que cria condições para a produção de mercadorias compatíveis com interesses e gostos de consumidores de todo o planeta. (Santos e Lopes. 2009. página 31). Hall nos adverte sobre estados nações que são compreendidos com pureza comunidade imaginada‖. Sendo assim as diferenças entre nações surgem das formas pelo qual essas diferenças são imaginadas. Ao ser criada a diferença entre nações, entende-se que há uma nação identidade, a que teria a cultura hegemônica. Tornando as outras nações em diferentes. Essa concepção acaba por transformar (ou tentar transformar) as nações em homogêneas, como se não houvesse conflitos culturais e étnicos nelas. Ou seja, como se cada nação tivesse sua identidade definida e uma essência. A globalização traz consigo a superação das fronteiras pelo capital. Ao mesmo tempo em que se enfraquece o Estado Nação, sentimentos nacionalistas se reforçam trazendo confrontos. Muitas vezes havendo um reforço das tradições e a construção da identidade nacional que no intuito de se fortalecer e fixar-se constrói representações através de símbolos e um discurso, e com isso o sentimento de lealdade para com a nação. Surgindo então a essência da cultura nacional. Outro quesito Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 tradicional. Na realidade estes seriam imaginados. ―A identidade nacional é uma 420 influente é o discurso da cultura dominante, isto é, há uma cultura homogênea da nação, porém há divergências locais, étnicas, de gênero e raciais. Trazendo então a cultura hegemônica que subordina as demais através da mídia e do que Hall chama de instituição cultural (Sistema educacional Nacional), essa subordinação está mais presente na língua. Mesmo assim é evidente o fortalecimento da identidade local sobre a identidade nacional. Conclusão: Este presente trabalho teve a intenção de relacionar currículo com tendências e conflitos culturais e as relações de poder presentes nesse. Compreender como que as tendências globalizantes e o mercado neoliberal interferem na construção do currículo escolar para a criação de um sujeito capaz de se adequar ao mercado de trabalho. Há uma relação de poder presente nos currículos, uma vez que, este não está apenas objetivado em atender as exigências do mercado. Mas há uma luta entre as classes e grupos. Tendo cada vez mais, necessidade dos grupos, tidos como excluídos da sociedade, em terem voz na construção curricular. Nessa perspectiva, procurei abordar a noção de identidade e diferença, para poder relacioná-las ao currículo. Pois neste há a seleção cultural, o que é tido como identidade, como norma padrão, a parte necessária para a compreensão e apreensão do sendo apenas diferente (inferior) ao que é identidade. O currículo deve ir além da celebração da diferença, ou ao seu consumo. Ao invés de simplesmente respeitá-lo deve-se compreender como se construiu a diferença, tentar conhecê-lo, não como algo exótico e questionar essa diferença. Pretende-se dessa forma, elevar a dignidade humana sobre valorização cultural. Pois assim o currículo poderá, de acordo com Moreira, ter capacidade utópica para a sociedade, excluindo as hierarquias do saber. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: SILVA, Tomas Tadeu da. Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais/ Tomaz Tadeu da Silva (org.). Stuart Hall, Kathryn Woodward. – Petrópolis, RJ: Vozes, 2000. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 aluno pela escola. O diferente pode ser abordado com preconceito explícito ou não, 421 MOREIRA, Antônio Flávio (org.). Currículo: questões atuais. In: ________. Currículo, Utopia e Pós-Modernidade. São Paulo: Papirus, 1997. Cap. 1, p. 9-28. MOREIRA, Antônio Flávio (org.). Currículo: questões atuais. In: ________. Globalização, Multiculturalismo e Currículo. SANTOS, Lucíola Licínio. LOPES, José de Souza. São Paulo: Papirus, 1997. Cap. 1, p. 9-28. BITTENCOURT, Circe Maria F.Ensino de História: fundamentos e métodos. In: ________. História nas atuais propostas curriculares. São Paulo : Cortez, 2004. Cap. 3, p. 99-113. HALL,Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução Tomaz Tadeu da Silva, Guacira Lopes Louro. 11ed. – Rio de Janeiro: DP&A, 2006. LIBÂNEO, J. C.; OLIVEIRA, J. F.; TOCHI, M. S. Educação Escolar: políticas, estrutura e organização. 1. Ed. São Paulo: Ed. Cortez, 2003. BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Documentos não escritos em sala de aula. In: Ensino de História: fundamentos e métodos. Cortez Editora, 2004 p.353-382. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 <http://www.rieoei.org/deloslectores/905Santos.pdf> 422 EDUCAÇÃO PARA O TRABALHO: REFLEXÕES EM TORNO DA GENÊSE DO COLÉGIO COMERCIAL OFICIAL DE ITUIUTABA (DÉCADA DE 1960) Jóbio Balduino da Silva Mestrando em Educação/UFU Introdução Este trabalho decorre das indagações surgidas durante as investigações iniciais para elaboração da dissertação de Mestrado em Educação do PPGED da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), tendo como objeto de estudo a gênese e o desenvolvimento do Colégio Comercial Oficial de Ituiutaba, promovendo reflexões sobre a história da educação profissional pública em Ituiutaba-MG, no período de 1965 – data da criação da escola – até 1981 – quando foi implantado o ensino médio regular. Dessa maneira, pretendemos analisar os propósitos do ensino que foi ministrado e a importância do Colégio para a formação técnica dos jovens tijucanos, tentando compreender a interferência das políticas do Estado Ditatorial no processo de criação do Colégio, na estruturação do currículo e nas práticas pedagógicas dos docentes. Além disso, buscamos também contribuir para a ampliação das discussões historiográficas sobre as instituições escolares no município, incrementando os estudos relacionados à Acreditamos também que essa pesquisa se justifica pela escassa produção científica em torno da história das instituições escolares de ensino técnico no Pontal do Triângulo. Nos últimos anos, foram concluídas pesquisas referentes ao Educandário Espírita Ituiutabano, Colégio São José, Instituto Marden e Colégio Santa Tereza, instituições de ensino do município que antes e no decorrer na década de 1960 ofereciam cursos profissionalizantes e, com exceção do Educandário, eram privadas, restringindo-se o acesso de grande parte da população a essas escolas. Nos trabalhos mencionados não se privilegiou a pesquisa relacionada especificamente ao ensino técnico profissional, em especial os cursos de Comércio, um dos focos deste estudo. Para realização da pesquisa, o desenvolvimento metodológico se constitui primeiramente da realização de um estudo bibliográfico referente à temática educacional, por meio da leitura e análise de livros e textos científicos envolvendo a História da Educação e das Instituições Escolares. Em seguida, demos início ao Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 história das escolas do Triângulo Mineiro. 423 levantamento do acervo, elaborando a catalogação preliminar das fontes que, em sua maioria, é composta de documentação impressa, tais como leis, ofícios, cartas, memorandos, livros de registros, estatutos, regimentos e relatórios. Além dessas fontes, há, também, um acervo de fontes iconográficas e jornais da época. Por fim, no decorrer da pesquisa, buscaremos os depoimentos que possam, em complementação as demais fontes, ajudar no processo de compreensão da escola em análise. O Golpe Militar de 1964 e a educação profissional, breves considerações. Partimos da premissa central de que a educação profissional atende a dupla função de formar o trabalhador dando-lhe em muitos casos apenas uma profissão, restringindo-lhe os horizontes educacionais e ao mesmo tempo atende aos propósitos do capitalismo gerando mão-de-obra para o mercado de trabalho. A partir dessa perspectiva, apresentamos breves reflexões sobre o contexto histórico do país nos anos de 1960, buscando relaciona-lo as questões locais, o contexto socioeconômico e cultural do município de Ituiutaba no mesmo período. Embora tenha como objetivo focalizar o período que se inaugura a ditadura militar de 1964, precede o golpe um cenário político e socioeconômico que se arrastou [...] o que se convencionou em chamar Revolução de 1930 foi o ponto alto de uma série de revoluções e movimentos armados que, durante o período compreendido entre 1920 e 1964, se empenharam em promover rompimentos políticos e econômicos com a velha ordem oligárquica. Foram esses movimentos que, em seu conjunto e pelos objetivos afins que possuíam, iriam caracterizar a Revolução Brasileira, cuja meta maior tem sido a implantação do capitalismo no Brasil. (ROMANELLI, 2007, p.47). No ano de 1961, teve início no Brasil um período de crise política causada pela renúncia de Jânio Quadros, e pela posse de seu vice, João Goulart (Jango), que assumiu a presidência num clima tenso, promovendo a abertura às organizações sociais: estudantes, movimentos populares e trabalhadores ganharam espaço no cenário político. No país, essa mudança contrariou as classes conservadoras e fora dele, no auge da guerra fria, os Estados Unidos da América (EUA) temiam que o fantasma do comunismo pudesse contaminar outros países além de Cuba, entre eles o Brasil. Além desses fatores, partidos como a União Democrática Nacional (UDN) e o Partido Social Democrático (PSD) se opunham ao presidente e o acusavam de estar planejando um golpe esquerdista e de ser o responsável pelos problemas que o país enfrentava. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 desde a década de 1930 e colaborou para a instalação da ditadura militar no Brasil. 424 Alheio ao cenário prospectivo que se formava, em 13 de março João Goulart realizou um grande comício na Central do Brasil, no Rio de Janeiro, onde prometeu mudanças radicais na estrutura agrária, econômica e educacional do país. O comício foi tido pelos conservadores como uma clara ameaça aos ideais do grupo e, em resposta, uma semana depois, organizaram um protesto intitulado a Marcha da Família com Deus pela Liberdade que reuniu milhares de pessoas pelas ruas do centro da cidade de São Paulo. Nesse contexto, aumenta a preocupação dos militares com os caminhos que tomavam o país, Conforme descreve o memorialista Figueiredo (1970), em seu livro de depoimentos: [...] no curto espaço de pouco mais de uma quinzena, o comício altamente subversivo de 13 de março, na praça fronteira à Estação D. Pedro II, da E. F. Central do Brasil, a baderna armada na sede do Sindicato dos Metalúrgicos pela Associação de Cabos e Marinheiro – que significa a implantação de autêntico soviete na Marinha de Guerra – e, como ato final, a inacreditável sessão de homenagens dos sargentos ao Presidente da República, no Automóvel Clube, a 30 de março, não deixavam dúvida sobre o futuro que aguardava o Brasil. Indo ao encontro do anseio de seus camaradas e com a intenção de dirimir as dúvidas que pairavam no seu espírito, o Gen. Humberto Castelo Branco, chefe do Estado-maior do Exército, baixa a histórica circular de 20 de março, na qual analisa a conjuntura nacional e suas implicações no comportamento das Forças Armadas. Foi como uma luz que iluminasse a escuridão do Caminho. Era preciso agir, enquanto ainda havia tempo, pois os indícios faziam crer que esses maus patrícios e seus mentores alienígenas pretendiam muito em breve colher os frutos de sua traição. Para muitos, o que faz sentido, já havia até data marcada, que seria o Dia do Trabalho, 1º de maio. (p. 10-11) governo de João Goulart, conforme descreve ROMANELLI (2007) Os velhos interesses latifundiários e a burguesia industrial temiam a política de massas. João Goulart não obtivera o apoio das forças armadas. As bases populares de seu Governo não eram sólidas, devido ao nível cultural, ao grau de interesses e ao nível real de consciência política do povo. Tampouco as esquerdas estavam contentes com sua atuação dúbia. Sua tomada de posição pró-esquerda, à última hora, não conseguiu salva-lo do 31 de março de 1964. A própria esquerda foi surpreendida pela rápida reação dos militares. (p.53) E assim, naquele fatídico dia, tropas das forças armadas de Minas Gerais e São Paulo saíram às ruas, conforme o depoimento de FIGUEIREDO (1970) Coube ao Gen. Olympio Mourão Filho, Cmt. da 4ª. Região Militar, essa histórica iniciativa, a 31 de março, nas altaneiras montanhas de Minas. E a revolução, sem que tivesse havido elaboradas articulações prévias entre chefes militares, – não que teria havido mesmo tempo para isto – empolga o exército, Marinha e Aeronáutica, para ter seu epílogo às 11,45 horas do dia 2 de abril, no Aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre, com a partida do exPresidente João Goulart, para o estrangeiro. (p.11-12) E os militares finalmente tomaram o poder. Era o fim do Estado democrático e início de uma nova era na política brasileira. Manifestações políticas Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 Nesse quadro de crise política e insatisfação pública, tem-se o desfecho para o 425 foram proibidas e perdem espaço os que buscavam melhoria de vida, operários, camponeses e estudantes. O forte autoritarismo se segue inserindo a repressão e a censura em todos os setores sociais. Brasileiros perderam o poder de participação e crítica, e a ditadura se impôs violenta. Uma sucessão de presidentes fortaleceu o Executivo enquanto fragilizava o Legislativo. Diversas medidas de exceção acentuaram o caráter autoritário do governo: Lei de Segurança Nacional, Serviço Nacional de Informações, prisões políticas, inquéritos policiais militares, proibição do direito de greve, cassação de direitos políticos, exílio, etc. (ARANHA, 2006, p.314). O regime é marcado por uma sucessão de governantes militares e de Atos Institucionais (AI) cada vez mais duros. Ribeiro (2003) faz importantes considerações acerca do golpe militar, descreve o terror causado pelas prisões e perseguições e os interesses políticos e econômicos intrínsecos aos atos dos governos militares que se seguem e que impõem, pela força, um Estado com a tarefa concreta de eliminar os obstáculos à expansão do capitalismo internacional. A autora considera, ainda, os efeitos dessa medida sobre os recursos financeiros necessários à organização escolar e sobre a orientação teórica seguida e expressa nas leis que vão sendo aprovadas até 1971. Pois, não diferente de outros setores essenciais do país, a educação também sofreu com o centralismo do poder militar e, ‖não é, portanto, um fenômeno neutro, mas sofre os efeitos do jogo do poder, por estar de fato envolvida na política‖ (ARANHA, 2006, p.24). Portanto, as reformas trabalho e aos interesses da elite, envolvendo aspectos políticos, econômicos e pedagógicos. Entre as reformas que foram sendo aprovadas, uma das primeiras foi a expansão da rede de ensino profissional com a criação de novos cursos nos anos seguintes ao golpe. Em Minas Gerais, por exemplo, nos anos de 1964 e 1965 existia apenas um curso de Comércio em nível colegial no Estado, em 1966 foram criados outros dezenove (IBGE, 1967, p.638). Na soma geral do país, em 1965, existiam 103 cursos e, em 1966, foram criados outros 38, totalizando 144 cursos (idem, p.639), um aumento de 40% em apenas um ano. Em consequência das políticas de educação voltadas para o trabalho em organizações empresarias, foi firmado com os EUA, de 1965 a 1968, uma série de convênios de assistência técnica e cooperação financeira à educação entre o Ministério da Educação brasileiro (MEC) e a United States Agency for International Development Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 educacionais foram realizadas procurando atender a demanda por capital humano para o 426 174 (USAID). As relações entre os dois paises se estreitaram ainda mais com a abertura de capital estrangeiro e a adoção do modelo associado-dependente, consequência e reforço da presença de empresas internacionais no país, motivo que se importava também o modelo organizacional que as presidia. A necessidade de preparação de mãode-obra para essas empresas associada à elevação da produtividade do sistema escolar levou à adoção do modelo educacional tecnicista (SAVIANI, 2008, p.367-369). Confirma-se assim, a intenção do novo regime de adotar políticas educacionais voltadas à utilização da escola como um espaço de formação de mão-deobra para as empresas. Uma expressão disso foi a promulgação da Lei 5692/1971 que fixa diretrizes e bases para o ensino de 1º e 2º graus, focada, principalmente, na habilitação profissional em detrimento ao desenvolvimento do pensamento crítico, conclusão que chegamos pela análise do Artigo 5º, parágrafos 2º, alíneas a) e b), e 3º, da citada Lei: [...] § 2º A parte de formação especial de currículo: a) terá o objetivo de sondagem de aptidões e iniciarão para o trabalho, no ensino de 1o grau e de habilitação profissional, no ensino de 2º grau; b) será fixada, quando se destine a iniciação e habilitação profissional, em consonância com as necessidades do mercado de trabalho local ou regional, à vista de levantamentos periodicamente renovados. § 3º Excepcionalmente, a parte especial do currículo poderá assumir, no ensino de 2º grau, o caráter de aprofundamento em determinada ordem de estudos gerais, para atender a aptidão específica do estudante, por indicação de professores e orientadores.[..] ensino médio, mas que não obtivera êxito pelas metas ambiciosas e os parcos recursos investidos (CUNHA; GÓES, 1985). Paralelo às discussões sobre o modelo de educação, é certo que a entrada do capital estrangeiro oriundo de empréstimos financeiros possibilitou a industrialização e consequentemente o aumento de empregos, financiou construções e iniciou grandes obras: era o ―milagre econômico‖. Contudo, o preço do desenvolvimento foi muito além dos empréstimos contraídos, concentração de renda e muitos outros fatores puseram fim ao período, restava apenas à herança deixada pelo Governo, a famosa dívida externa. A Ituiutaba da década de 1960. Uma das mais importantes transformações ocorridas na sociedade brasileira durante o Século XX consistiu no processo de urbanização. Ainda rural em 1960, duas décadas mais tarde tornara-se o Brasil um país de população 174 Agência Norte Americana para o Desenvolvimento Internacional Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 A Lei 5692/1971 foi uma tentativa de institucionalizar e profissionalizar o 427 predominantemente urbana. Esse percentual, que era de 31,2 %, em 1940, passou a 67,6 % em 1980, com sensível aumento da velocidade da mudança na década de 1960-1970 (IBGE, p.113). Não diferente do contexto nacional, o município de Ituiutaba passava na década de 1960 por um processo acelerado de urbanização, industrialização e desenvolvimento econômico. A expansão das lavouras, em especial a cultura do arroz, projetou o município nacionalmente dando a ele o título de ―capital do arroz‖, conforme relatado por Humberto Guimarães, com dados fornecidos pelo Agente de Estatística José Luiz de Oliveira, na Enciclopédia dos Municípios Brasileiros (IBGE, 1959). A principal atividade do município é a agricultura. As terras de Ituiutaba e do ex-distrito de Capinópolis são reputadas entre as mais ferazes do mundo, comparadas segundo Humboldt, Sainte-Hilaire e Edward Miliward, às da Ucrânia, na Rússia, e às do Vale do São Lourenço, no Canadá. O cultivo em toda a zona obedece a um alto nível de mecanização, possuindo Ituiutaba mais de meio milhar de tratores, bem como numerosas colhedeiras de arroz, o que lhe vale o título de ―capital do arroz‖. (p. 306). Novais (1974, p. 33), descreve ainda que ―outras indústrias vieram aos poucos aumentar o ritmo industrial de Ituiutaba, principalmente no que se refere ao setor rizicultura, contando atualmente com mais de 100 máquinas de beneficiar arroz e seus sub-produtos.‖ Essa afirmativa também pode ser confirmada pela análise e comparação dos dados do Quadro 1 com os do Quadro 2 , que demonstram um aumento expressivo na produção de arroz, milho e algodão, da década de 1950 para a de 1960, Quadro 1 - Agricultura, pecuária e silvicultura – A produção agrícola no município, em 1955, foi expressa pelos dados constantes da tabela: PRODUÇÃO CULTURAS AGRÍCOLAS Arroz Milho Algodão Mandioca Feijão Laranja Banana Outras TOTAL ÁREA (ha) Unidade 38 720 23 232 16 940 1 312 8 712 1 862 1 575 1 190 Saco 60 kg Saco 60 kg Arroba Tonelada Saco 60 kg Cento Cacho – 95 552 – VALOR Quantidade 600 000 400 000 200 000 44 000 50 000 300 000 200 000 – – Fonte: Enciclopédia dos municípios Brasileiros p. 306. Cr$ 1 000 % sobre o total 180 000 48 000 32 000 26 400 21 000 9 000 7 000 17 685 52,80 14,07 9,38 7,74 6,15 2,63 2,05 5,18 341 085 100,00 Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 representando um aumento de 433%, 375% e 170% desses produtos, respectivamente. 428 Quadro 2 - Principais espécies cultivadas no município A safra de 1966/1967 foi expressa pelos dados constantes da tabela: PRODUÇÃO CULTURAS AGRÍCOLAS Unidade Quantidade Arroz Saco 60 kg 2 600 000 Milho Saco 60 kg 1 500 000 Algodão Arroba 340 000 Gergelim quilos 1 700 000 Feijão Mandioca TOTAL Saco 60 kg 40 000 Tonelada 35 000 – – Fonte: Revista Ituiutaba Ilustrada. p. 67. A rápida expansão na indústria e comércio e a população migrante do campo para a cidade, somada aos grupos de nordestinos que fugiam da seca e buscavam melhores condições de vida e trabalho, aumentaram a demanda por serviços públicos, foram construídas novas redes de energia e luz e um novo serviço de abastecimento de água com grande capacidade de captação e tratamento. Com esses serviços, o capacidade de expansão para as indústrias. Na edição comemorativa do sexagésimo sexto aniversário da cidade, a matéria intitulada ―A obra do século‖ descreve as obras do serviço de abastecimento de água da cidade: O Departamento Nacional de Obras e Saneamento (DNOS) está financiando o grande empreendimento que levará água em abundância aos lares tijucanos. [...] p. 24. Dos mais perfeitos e modernos é o serviço de abastecimento dágua que o Consórcio Nacional de Construções está realizando em nossa cidade, no propósito de dotar Ituiutaba de um dos mais revolucionários serviços de captação e distribuição dágua que se possa conceber. (Revista Ituiutaba Ilustrada, 1967, p.102). Bessa et al (2008), relata que as grandes safras e colheitas de arroz se mantêm como principal atividade econômica até o ano de 1970, quando, por diversos fatores, ocorre o declino da cultura e o início de uma outra fase econômica. Educação profissional pública e gratuita: um breve relato da gênese do Colégio Comercial Oficial de Ituiutaba. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 município possibilitou a uma parcela de seus moradores melhores condições de vida e 429 É neste contexto histórico dinâmico, nacional e local, que se insere a origem do Colégio Comercial Oficial de Ituiutaba, no Triângulo Mineiro, popularmente chamado de Colégio ―Comercial‖. Essa escola foi criada pela Lei nº 3878 de 20 de dezembro do ano de 1965 e teve, no decorrer de sua história, a denominação mudada para Colégio Estadual de Ituiutaba e, por último e até os dias atuais, para Escola Estadual Professora Maria de Barros (Lei 7896, de 18 de dezembro de 1980). O colégio foi criado sem possuir sede própria e nem previsão de construção de uma. A solução, típica e comum para o período, foi o uso compartilhado de espaço físico com outras escolas. O ―Comercial‖ ficou instalado, no início, nos prédios da Escola Estadual Governador Clóvis Salgado e Escola Rotary. No ano de 1973 transferiu-se para as novas instalações da Escola Rotary e, finalmente, em 1979, após o encerramento das atividades do Educandário Ituiutabano, absorveu os alunos da escola e transferiu-se definitivamente para o prédio da União da Mocidade Espírita de Ituiutaba (UMEI), proprietária do prédio e antiga mantenedora do Educandário. Desde a sua criação, o Colégio ―Comercial‖ teve como finalidade oferecer ensino profissionalizante na modalidade de ginásio de comércio (1º ciclo) e o Técnico de Contabilidade (2º Ciclo); e assim se manteve até 1981, quando foram incluídos os ensinos regulares de 1º e 2º graus. Com essa finalidade, o Colégio teve papel importante na educação profissional dos jovens da época. Pois, antes de 1965, não tentativa de ensino gratuito foi a do Colégio Comercial de Ituiutaba 175, homônimo do colégio estudado e anexo ao Educandário Ituiutabano, que solicitou a implantação do curso de Técnico de Contabilidade em 1963, contudo só conseguiu a autorização para funcionamento no ano 1967176, instalando a primeira turma a partir de 1968. Antes, contudo, o ensino profissional era oferecido somente em colégios particulares, confessionais como o Colégio Santa Tereza, fundado pela Congregação das Irmãs de São Carlos Borromeo-Scalabrinianas, com a finalidade de formar professoras, em sua 175 O nome do Colégio estudado difere do nome do Colégio Comercial, anexo ao Educandário Ituiutabano, apenas pelo termo ―Oficial‖ que o caracteriza como escola pública e do Governo. Por seres similares os nomes, em 1968, o Colégio Comercial Oficial de Ituiutaba teve sua denominação mudada para Colégio Estadual de Ituiutaba. 176 Outras informações podem ser encontradas em FRATTARI NETO, N. J. Educandário Espírita Ituiutabano: caminhos cruzados entre a ação inovadora e sua organização conservadora. Ituiutaba, Minas Gerais (1954-1973). 2009. 202 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal de Uberlândia 2006. Anais da I Semana de História do Pontal/FACIP /UFU, 2010 existia escola pública e nem a oferta de cursos profissionalizantes gratuitos. Uma 430 maioria, da elite urbana e rural da época, por meio do curso Normal. (OLIVEIRA, 2003); e Colégio São José com o ginásio comercial (1º Ciclo) que era, também, tido como colégio para os filhos da elite. Por fim, um laico, o Colégio Comercial ―Barão de Mauá‖ mantido pelo Instituto ―Marden‖, que ofereceu o ginásio Comercial (1º Ciclo) e o Técnico de Contabilidade (2º Ciclo), conforme descreve CHAVES (1984). Prosseguindo sua rota luminosa o ―Marden‖ instala, em 1951, o Colégio Comercial Barão de Mauá e é criado, para favorecer àqueles que não podiam estudar durante o dia, o curso noturno de ―Ginásio Comercial e Técnico de Contabilidade‖. E já em 1953 se cobre de glórias novamente, com a 1ª Turma de Formandos do Ginásio Comercial, mais 21 obreiros para o progresso da cidade. (p. 61-62) Fica claro que, à época, a finalidade do ensino profissional era o de atender a demanda por capital humano visando ao progresso local. O curso no ―Marden‖ era oferecido no período noturno e atendia a parcela da população que não podia estudar durante o dia, ou seja, os jovens trabalhador