A MARgem - Revista Eletrônica de Ciências Humanas, Letras e Artes / ISSN 2175-2516
Seção Verbare, Uberlândia, ano 3, n. 5, p. 118-120, jan./jun. 2010
Autora: Aline Aparecida Ferreira | e-mail: [email protected]
O MATO
O relógio ainda não bateu a hora que corresponde ao infinito na
posição vertical e o sol já ilumina tudo, deixando todas as coisas
envoltas em uma espécie de névoa há muito deixada de lado, sem deixar
de ser familiar, e eu já caminho.
A cidade tem cheiros atraentes. Lembram a infância. Cheiro de
boneca nova, da ração do meu cachorro, da coxinha do aniversário.
Mas
eu ainda prefiro o mato. Não há nada mais interessante do que ele. O
mato sim é legal. Lá as cores são harmônicas, tudo está onde pelo
menos eu faço idéia de que deve estar. O cheiro é cheiro de verde,
cheiro de animal, cheiro de vida, de pó, de terra. Mas eu tenho medo
do mato. Medo do mato e do vento. A combinação perigosa do mato e
do vento.
Mato é mistério, é aventura, é, no meu caso, superação. Ando
pelo mato, me enrosco em folhas, galhos e gravetos. Quase caio de
pedras falsas e, às vezes, tropeço nelas. Sinto o vento levar ao alto
meus cabelos e tremo toda em face ao precipício a alguns passos de
distância.
Ao chegar ao topo, mais sensações. Pedra, mais vento, céu, sol.
Agora são grãos e líquidos. Sensações gustativas. Grãos de soja, trigo
industrializado e água, a grande, e futuramente mais cara, bebida do
universo.
Pedras, descanso. Risadas, fotos e o céu. O sol me atinge
direto no rosto e a sensação é estranhamente gostosa. Deitada na
118
A MARgem - Revista Eletrônica de Ciências Humanas, Letras e Artes / ISSN 2175-2516
Seção Verbare, Uberlândia, ano 3, n. 5, p. 118-120, jan./jun. 2010
Autora: Aline Aparecida Ferreira | e-mail: [email protected]
pedra, a sensação de saber como é voar de lá de cima, sentida, muitas
vezes, lá de baixo, é simplesmente esquecida. Não dá vontade de se
jogar de lá. Dá vontade de deitar e esperar que o tempo mude, que
passe, que me leve, como o vento leva as asas dos pássaros negros
que me rodeiam.
Revigorante. Mas calma! Essa é só a metade do
caminho.
Volto a andar. Mais árvores, mais galhos e folhas, mais terra,
mais pó. O calor é grande e o sol parece cruel, mas a vontade é a
maior e nem meu coração que parece sair pela boca por conta da
escolha errada da cor das minhas vestes e por tanto esforço podem
me fazer desistir.
Parei mais uma vez, sentei. O branco das pedras era de uma
ausência de conflito confortante. Deixei o cabelo ao vento junto com
meus pensamentos e ouvi. Simplesmente ouvi a conversa ao meu redor
(não estava sozinha!). Ri com eles e fiz poses para as fotos, únicas
recordações concretas. Tirei algumas também.
Voltei a andar. Ainda tinha que voltar a subir a montanha. Mais
uma vez, o coração reclama, mas não quero dar tanta atenção a ele
assim. É preciso subir a montanha. Parei, descansei. Conversa agradável,
lembranças dos acontecimentos passados e de pessoas que não foram.
Mais subida, mais estrada, mais fotos, mais conversas. Mais
superação. Passar por caminhos nunca antes notados, embora vistos.
Caminhos estreitos.
Rua. Civilização. A cor destoante e a forma bruta
das cidades. O excesso de informação, a barulheira de carros e motos.
O sol nunca foi tão quente, talvez pelo adiantado da hora, talvez
119
A MARgem - Revista Eletrônica de Ciências Humanas, Letras e Artes / ISSN 2175-2516
Seção Verbare, Uberlândia, ano 3, n. 5, p. 118-120, jan./jun. 2010
Autora: Aline Aparecida Ferreira | e-mail: [email protected]
pelo fim do devaneio. Andei, andei mais um pouco. Agora faltava nada
para chegar em casa.
Andei mais. Encontrei uma amiga no caminho. Conversa agradável,
coisa de mãe. Fotos do casamento do filho mais velho, meu amigo, em
primeiríssima mão. Álbum recém revelado.
Andei mais. Finalmente cheguei, sem antes passar pelo mato. Só
mais um pouco, só para não esquecer como é. O mato, mil vezes o
mato! Sagrado mato, sagradas sensações. Bendita seja a balbúrdia da
cidade que me faz gostar do mato. Bicho-homem, bicho do mato!
O que fica com tudo isso? Ficam as fotos, ficam as lembranças,
fica o rosto queimado do sol, ficam aguçados todos os sentidos.
120
Download

O MATO O relógio ainda não bateu a hora que corresponde ao