1 Universidade Estadual de Feira de Santana Programa de Pós-Graduação em História Mestrado em História LUIZ ALBERTO DA SILVA LIMA Mulheres ocultas: cotidiano feminino e formas de violência em Feira de Santana 1930-1948. Feira de Santana 2010 2 Universidade Estadual de Feira de Santana Programa de Pós-Graduação em História Mestrado em História Mulheres ocultas: cotidiano feminino e formas de violência em Feira de Santana 1930-1948. Luiz Alberto da Silva Lima Orientadora: Profª. Drª. Márcia Maria da Silva Barreiros Leite Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História/Mestrado em História da Universidade Estadual de Feira de Santana como requisito parcial para a obtenção do grau de mestre em História Feira de Santana 2010 3 Ficha Catalográfica – Biblioteca Central Julieta Carteado L698m Lima, Luiz Alberto da Silva Mulheres ocultas: cotidiano feminino e formas de violência em Feira de Santana (1930-1948). / Luiz Alberto da Silva Lima. – Feira de Santana, 2010. 166f. Orientadora: Márcia Maria da Silva Barreiros Leite Dissertação (mestrado) – Programa de Pós-Graduação em História. Universidade Estadual de Feira de Santana, 2010. 1.História das mulheres – Bahia. 2.Mulheres –Violência – Feira de Santana. 3.Sociabilidades. 4.Gênero. I.Leite, Márcia Maria da Silva Barreiros. II. Universidade Estadual de Feira de Santana. III. Título. CDU: 396 (814.22) 4 TERMO DE APROVAÇÃO LUIZ ALBERTO DA SILVA LIMA Mulheres ocultas: cotidiano feminino e formas de violência em Feira de Santana 1930 -1948. Dissertação aprovada como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em História, Universidade Estadual de Feira de Santana, pela seguinte banca examinadora: Márcia Maria da Silva Barreiros Leite – orientadora_______________________ Doutora em História Social pela PUC-SP Universidade Estadual de Feira de Santana Cecília Conceição Moreira Soares___________________________________ Doutora em Antropologia pela UFPE Universidade Católica do Salvador Andréa Rocha Rodrigues ___________________________________________ Doutora em História pela UFBA Universidade Estadual de Feira de Santana Feira de Santana, 27 de julho de 2010. 5 A todas as mulheres pelas quais me apaixonei... 6 AGRADECIMENTOS Com certeza faltariam palavras para que eu pudesse agradecer as tantas pessoas que ajudaram a realizar este trabalho. Muitas delas leram e opinaram sobre o texto, auxiliaram na catalogação das fontes e outras que ainda que não contribuíssem academicamente, fizeram com que este percurso fosse mais prazeroso. Dessa forma, agradeço a minha orientadora a professora doutora Márcia Barreiros, pelo grandioso incentivo e pelas leituras minuciosas em todos os meus textos, sempre indicando caminhos, porém, sem nunca interferir na minha liberdade de produção. Desejo que este trabalho esteja à altura de sua dedicação e orientação, você que é para mim um exemplo de pesquisadora, historiadora e amiga. Às professoras Ione Sousa e Acácia Batista, pela leitura do texto e pelo interesse nesta pesquisa, indicando-me leituras que foram bastante úteis. À professora Lina Maria Brandão Aras, pelo incentivo e graciosidade, ajudando-me enormemente na análise metodológica das fontes. Aos meus professores e professoras do Programa de Pós-Graduação em História da UEFS, Charles Sant‟Ana, Rinaldo Leite e Celeste Pacheco que leram meu trabalho e contribuíram com o seu desenvolvimento. Aos amigos da turma de Mestrado: Rosana, Edcarla, Emanoel, Fabiana, Jorge, Célio e as Jaquelines. De fato, tive o prazer de dividir os prazeres e as pressões de escrever uma dissertação ao lado de colegas que estiveram sempre dispostos a contribuir com o melhor desenvolvimento do meu trabalho. À professora Maria Aparecida Prazeres Sanches pelas longas conversas sobre o trabalho e pelo interesse nesta pesquisa, que com toda certeza tem muito dela, sem contar pela bibliografia que me disponibilizou. 7 Aos professores e professoras da graduação na UEFS, Alberto Heráclito, Adriana Dantas, Elizete Silva e Wilson Paulo (in memorian), sempre me estimularam a pesquisa e acreditaram neste trabalho. Aos amigos e amigas historiadores, Silvia Karla, Kléber Simões, muito queridos, Marcelo Santana, que me cedeu com muita poética o título dessa dissertação, Luana Dantas, Aline Aguiar, Carol Silva e Fabiane Sant‟Ana, amigos para toda vida e colegas de profissão. A vocês todo meu carinho e amizade. Aos meus familiares pelo apoio, estímulo e credibilidade. Em especial às mulheres da minha casa: Dolores, Josefa, Joelma, Andréia, Carmem, Selma, Norma, Rita, Dó, mulheres trabalhadoras e que mereciam ter suas histórias contadas. Com certeza, vocês foram inspiração para que eu buscasse estudar as mulheres. Um agradecimento todo especial a Olinda, André e Jonson, sempre presentes, referências de amizade, afetividade e compreensão. Vocês tornam tudo em minha vida mais fácil. Aos amigos, Eric Ferreira, Leandro Oliveira, Joubert Ferreira e Maria Lima (Maroca), pelo apoio e por ter possibilitado que o caminho árduo e laborioso da dissertação tornasse-se mais leve. Aos funcionários e bolsistas do CEDOC/UEFS – Centro de Pesquisa e Documentação - sempre educados e receptivos, permitiram a digitalização dos processos, o que facilitou o andamento da pesquisa. De igual maneira, o Museu Casa do Sertão, que devido à digitalização dos jornais e seu fácil acesso, adiantou enormemente a pesquisa. À FAPESB – Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado da Bahia, onde encontrei apoio financeiro para a execução desta pesquisa, cujo resultado apresento nesta dissertação. 8 RESUMO Este estudo propõe a discutir o cotidiano feminino nas camadas populares em Feira e Santana nas décadas de 1930 a 1948. Analisa as relações de sociabilidades e as práticas de violência, enfocando as relações sexo-afetiva entre os populares, trazendo à baila as resistências repressões e empoderamentos femininos. As fontes utilizadas foram os Processos Criminais de Lesões Corporais, Homicídios, Defloramento, Estupros e Infanticídio, além do cruzamento com outras fontes como o Jornal Folha do Norte, dados do Censo do IBGE, Código de Posturas Municipais, Código Penal, Manuais Jurídicos e outros. A partir da análise da documentação foi possível estabelecer o perfil social dos sujeitos envolvidos nos crimes, apreendidos por uma leitura metodológica amparada no conceito de gênero, observando o cotidiano e as falas populares, assim como a interlocução com os agentes jurídicos, que são os manipuladores técnicos dos processos. Os conflitos evidenciados trazem à baila as lutas de representação e as territorialidades exercidas por estes sujeitos, além de apresentarem os valores sociais e códigos morais presentes na sociedade feirense, ligados especialmente ao conceito de honra, que se manifesta diferencialmente para cada sexo. Palavras-chaves: Mulheres, violência, sociabilidades, Feira de Santana. 9 ABSTRACT This work aims to discuss the female everyday on Feira de Santana‟s folks from 1930 to 1948. It analyses the social relationship and violence practices, focusing the sex-affective relationship among people, highlighting the resistances, repressions and female empowerment. It was used as resource the body injuries crimes, homicides, deflowering, rapes and child killing, as well as the crossing with others resources like Folha do Norte Newspaper and datas from IBGE, Municipal Codes Behavior, Penal Code, Law Manual and others. After analyzing these documents it was possible to establish the social profile of people involved in these crimes, understood by a methodological interpretation, based on the concept of gender, observing the everyday and folk tales, as well as the interlocution with the legal agents, that are the sues technical manipulator. The conflicts showed highlight the representation fights and the notion of territory exerted by them and shows the social values and moral codes on Feira‟s society linked specially to the concept of honor that it‟s manifested differently by each sex. Key words – Women; violence; everyday; Feira de Santana 10 LISTA DE ABREVIATURA E SIGLAS CEDOC Centro de pesquisa e Documentação IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística BSMRG Biblioteca Setorial Monsenhor Renato Galvão CENEF Centro de Estudos Feirenses – Museu casa do Sertão UEFS Universidade Estadual de Feira de Santana 11 LISTA DE TABELA Tabela 1 – Quanto ao sexo dos agressores(as) 65 Tabela 2 – Quanto ao sexo das vítimas 65 Tabela 3 – Relação agressores(as)/vítimas 66 Tabela 4 – Local de ocorrência dos crimes 66 Tabela 5 – Instrumentos empregados nos crimes 66 Tabela 6 – Profissão/ocupação dos agressores(as) 67 Tabela 7 – Profissão/ocupação das vítimas 67 Tabela 8 – Da autoria das queixas 113 Tabela 9 – Cor/idade/estado civil dos réus 114 Tabela 10 - Cor/idade/estado civil das vítimas 115 Tabela 11 – Profissão/ocupação dos réus 117 Tabela 12 – Profissão/ocupação das vítimas 117 Tabela 13 – Relação do réu com a vítima 118 Tabela 14 – Quanto à sentença 119 Tabela 15 – Grau de Instrução das vítimas 120 12 SUMÁRIO INTRODUÇÃO: INCLUINDO EXCLUÍDOS (AS) 13 CAPITULO 1 - “GENTE INFECTA” NA “FEIRA CULTA E ADIANTADA” 26 1.1. Feira de Santana: cidade culta e adiantada? 28 1.2. Mulheres da rua 36 1.3. Mundanas da Rua do Meio 46 1.4. A casa da mãe Joana! 53 1.5. Os “chivarís” da Rua do Meio 57 CAPITULO 2 - BRIGANDO, AMANDO E MORRENDO 62 2.1. Em defesa da Honra 68 2.2. Mulheres que matam! 75 2.3. Em briga de marido e mulher não se mete a colher! 85 2.4. Filha ingrata 93 2.5. Mãe desnaturada! 98 2.6. Mulheres que brigam 100 CAPITULO 3 - DOS CRIMES DO AMOR 104 3.1. Os envolvidos 114 3.2. As histórias 123 3.3. Afinal, quem desvirginou a vitima? 131 3.4. O perigo mora em casa! 140 CONSIDERAÇÕES FINAIS: GRITOS EM MEIO AO SILÊNCIO 151 FONTES 153 REFERÊNCIAS 156 ANEXOS 161 13 INTRODUÇÃO INCLUINDO EXCLUÍDOS (AS) Certa vez estava assistindo uma palestra na qual o palestrante afirmou: “se quisermos conhecer as histórias dos homens e mulheres pobres, devemos ir às delegacias”. Motivado por aquela frase que povoou meus pensamentos e aguçou meu ímpeto curioso, decidi procurar por esses sujeitos ainda anônimos na história e conhecê-los. Mulheres como Doralice, Zefinha, Alexandrina, Amanda, Ana, Pequena, Nininha, etc., surgiram-me através de páginas amareladas e envelhecidas dos Processos Criminais arquivados no Centro de Pesquisa e Documentação – CEDOC – na Universidade Estadual de Feira de Santana e do jornal Folha do Norte, principal veiculo de informação semanal feirense em meados do século XX. As histórias dessas mulheres em nada se assemelhavam às condições de seus processos, envelhecidos, empoeirados, tendo como companhia diária os ácaros e fungos que tanto mal causam a nós historiadores de arquivo. Pois bem, mesmo em páginas desgastadas, encontrei histórias repletas de vida, intocadas, mas que gritavam em som estonteante aos meus ouvidos como gritos em meio a silêncio, afinal, elas estavam ocultas, mas sempre estiveram lá. Há algum tempo que a historiografia despertou para novos objetos e temas, com isso possibilitou historicizar espaços e sujeitos que por longo período estiveram à margem da escrita da história. No que concerne ao estudo da História das Mulheres e, principalmente, a uma história das relações entre os sexos e das práticas culturais, este campo da historiografia foi bastante alargado, valorizando a perspectiva identitária atenta às subjetividades e particularidades dos sujeitos. Para Márcia Barreiros, as vertentes historiográficas que estudam as práticas culturais têm contribuído muito para a 14 crítica das representações e das ideologias de uma determinada sociedade. O campo da cultura se vê articulado às investigações acerca das relações entre os gêneros na história desde a década de 1980.1 O uso da categoria gênero é significativo para um maior aprofundamento dos estudos relacionados às práticas culturais, possibilitando responder questões ligadas ao cotidiano, ao privado, uma vez que este conceito contribui para tirar as mulheres da invisibilidade e questionar os lugares sociais significados pelo sexo. A leitura metodológica das fontes a partir da categoria de análise gênero coloca-nos um conjunto de questões e reflexões críticas. Maria Izilda Matos afirma que a discussão de gênero possibilita a desconstrução das universalidades do discurso historiográfico e faz emergir uma história das diferenças e da valorização do relacional2. O trabalho da historiadora americana Joan Scott, neste sentido, foi fundamental para a teorização deste conceito aplicado a História e aos Estudos Culturais. Para a autora: Gênero é, de fato um aspecto geral da organização social . E pode ser encontrado em muitos lugares, já que os significados da diferença sexual são invocados e disputados como parte de muitos tipos de lutas pelo poder. O saber social e cultural a respeito da diferença sexual é, portanto, produzido no decorrer da maior parte 3 dos eventos e processos estudados como história. Para a historiadora Raquel Soihet, o estudo sobre as mulheres pobres tem importância pela visibilidade que ela proporciona para a compreensão do cotidiano e para emergência de imagens cristalizadas que demonstram as mulheres e o feminino como algo homogêneo. A autora, pioneira no estudo sobre condição feminina e relações de violência, estudou as mulheres pobres no Rio de Janeiro entre os séculos XIX e XX. Segundo Soihet “a violência 1 LEITE, Márcia Maria da Silva Barreiros. Entre a tinta e o papel: memórias de leituras e escritas femininas na Bahia (1870-1920), Salvador, Quarteto, 2005, p. 27. 2 MATOS, Maria Izilda de. Meu lar é o botequim: alcoolismo e masculinidade. 2ª edição, São Paulo, Companhia Editora Nacional, 2001. p. 15. 3 SCOTT, Joan.. “Prefácio A Gender And Politcs Of History”. In: Cadernos Pagu: desarcordos e diferenças. Campinas (3) 1994, p 20. 15 sobre os segmentos populares tem sido uma presença constante na sociedade brasileira, apesar desta ser sistematicamente negada a nível ideológico, em termos do mito da índole pacífica do brasileiro, fruto de uma suave mistura de raças que teria dado lugar a uma sociedade harmônica”4. Os trabalhos sobre violência de gênero apoiados na égide do patriarcado5, tendem a reafirmar uma postura rígida sobre a vulnerabilidade feminina e, por sua vez, tornam o tema homogêneo. Segundo Helieth Saffioti o conceito de patriarcado exprime as formas de opressão social as quais as mulheres são submetidas. Para a autora a dinâmica do patriarcado funciona como uma máquina que opera sem cessar e pode ser acionada até mesmo sem a presença masculina.6 Concordamos com a autora em parte, mas buscamos evidenciar a violência como uma prática sócio-histórica, tendo, portanto que ser relativizada, o que nos leva a criticar essa postura de vitimização do feminino. Neste ponto, procuramos nos apropriar dos conceitos de Violência Simbólica e Dominação Masculina do sociólogo Pierre Bourdieu, considerando que o termo patriarcado, define de maneira homogênea uma opressão global, onde todas as mulheres já nasceriam inseridas numa dinâmica excludente. Com isso, deixa de observar os micro-poderes nas relações sócio-culturais, 4 SOIHET, Rachel. Condição Feminina e Formas de Violência: mulheres pobres e ordem urbana 1890-1920, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1989. p. 8. Ainda sobre essa discussão acerca da harmonia racial brasileira ver: FREYRE, Gilberto. Casa grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime de economia patriarcal. Rio de Janeiro: Jose Olympio, 1950. 5 O conceito de patriarcado pauta na lógica do poder direcionado pelo masculino. Isto define as representações sociais encaradas para cada sexo, no qual, pensado numa relação dicotômica, vê-se o masculino como representante da dinâmica de dominação. Pierre Bourdieu avança nessa discussão ao trabalhar a questão da dominação masculina como um mecanismo sóciohistórico e que apresenta-se de formas diferenciadas, rompendo com uma visão sexista da sociedade. Para conhecer sobre patriarcado ver: SAFFIOTI, Heleieth I. B. A mulher na Sociedade de Classes: mito e realidade. Editora Vozes, Rio de Janeiro, 1979; FREYRE, Gilberto. Casa grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime de economia patriarcal. Rio de Janeiro: Jose Olympio, 1950; BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. 5ª Edição, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. 6 SAFFIOTI, Heleieth I. B. Gênero, patriarcado e violência, São Paulo, Editora Perseu Abramo, 2004. 16 que não dicotomizam opressor X oprimido. Para Bourdieu, a violência simbólica se afirma quando aqueles que a sofrem contribuem para sua eficácia; ela só submete na medida em que são predispostas por uma aprendizagem anterior para reconhecê-la.7 A partir dessa noção, os estudos sobre as relações de violência entre os sexos podem ser compreendidos como constituintes das interações culturais. Dessa forma, as agressões físicas, morais, psicológicas são enfocadas como simbólicas e podem ser analisadas a partir das experiências sócio-culturais. Assim, rompe-se com a dicotomia sexista que opõe homem agressor x mulher agredida. Permitindo a análise do cotidiano das mulheres pobres e das relações de violências de gênero. Assim não se pensa a mulher vitimizada, numa concepção do poder patriarcal, mas possibilita a desconstrução das imagens e significados dos papéis sócio historicamente construídos. As contribuições das teorias pós-estruturalistas são de grande relevância, principalmente as do filósofo Michel Foucault, que em suas análises, propõe a diluição do poder em diversas esferas e dimensões das relações sociais, compreendendo e apresentando os discursos como produtores de saberes e, por sua vez, lócus de poder. Nesta lógica discursiva de produção de saberes se definem, na sociedade a sensibilidade e a fragilidade, ligados ao ser mulher, enquanto, por outro lado, se institui a dominação, a virilidade e a violência como características representativas do ser homem. Nosso posicionamento pela História Social visa trazer à baila as histórias de vidas de “pessoas comuns” em suas interações cotidianas como nos apresentou E. P. Thompson, em uma “história vista de baixo”. Essa postura historiográfica possibilita a visibilidade e a audição dos grupos marginais, ao evidenciar uma história sem heróis ou grandes fatos. Essa abordagem se constitui, sobretudo, pela aproximação entre a História e a Antropologia, principalmente, pela influência dos estudos do antropólogo Clifford Geertz e 7 BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. 5ª Edição, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. 17 sua concepção interpretativa da cultura. Essa noção de cultura rompeu com a dicotomia Cultura x Barbárie, onde a cultura passou a ser percebida como um conjunto de crenças, valores, costumes e ações de determinados grupos em suas especificidades, sendo assim, a cultura passa a ser compreendida como um texto a ser lido sócio-historicamente.8 Edward Thompson vinculou o conceito de Cultura ao de Experiência, no qual, considera relevante toda ação desencadeada na vivência dos sujeitos sociais. Segundo Thompson o conceito de experiência permite analisar os homens e as mulheres em sociedade, como sujeitos que experimentam suas situações entre as necessidades e interesses, tratando-os segundo a consciência e a cultura.9 Partindo desses pressupostos, nosso sujeito de pesquisa, as mulheres pobres em Feira de Santana em seu cotidiano e práticas de sobrevivência e violência, apresentam aspectos relevantes na compreensão da cultura dos populares. Segundo Charles Santana, “é nas relações inscritas na dinâmica da cotidianidade que se apreende o processo em que os indivíduos adquirem o estatuto de sujeito históricos”10. Na busca por evidenciar esse cotidiano de mulheres pobres e suas relações sócio-culturais e econômicas é que compreendemos a história de Feira de Santana, que nas décadas de 1930 – 1948, vivenciava um contexto particular de modernização e urbanização através de discursos e ações que afirmam esta ordem. O pensamento predominante nos grandes centros urbanos nos primeiros anos do século XX era a lógica da Modernização e Civilização, que estavam em consonância com os princípios políticos advindos com a República11. As cidades, dessa forma, foram espaços físicos e discursivos em que se estabeleceu o conflito da modernidade, com as questões ligadas aos costumes e ao cotidiano. 8 9 Ver GEERTZ, Clifoord. A Interpretação das culturas. LTC editora, Rio de Janeiro, 1989. THOMPSON, E. P. A Miséria da Teoria ou o planetário de erros: uma crítica ao pensamento de Althusser. Rio de janeiro, Zahar Editores, 1981, p.182. 10 SANTANA, Charles D‟Almeida. Fartura e Ventura camponesa: trabalho, cotidiano e migrações. Bahia: 1950-1980. São Paulo, Annablume: 1998, p. 20. 11 CARVALHO, J. Murilo. A Formação das Almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. 18 Neste estudo, não pensaremos a cidade apenas como um cenário para a ação dos sujeitos evidenciados, mas, a cidade aparece-nos como um lócus discursivo, por sua vez, permeado por relações de poderes que não se configurarão apenas na remodelagem urbana, mas também a partir das mudanças dos costumes e modos de viver a urbes. Segundo Rinaldo Leite, se o projeto modernizador inicialmente direcionou suas vistas para os problemas relacionados às estruturas urbanas e para a qualidade das habitações, não tardou em se preocupar com os hábitos da população, assumindo uma dimensão social. Este projeto implicou em „ações simultâneas em três planos: o do espaço público, o do espaço privado e o do modo de vida.”12 Leite ainda argumenta que somente quando a cidade assumiu a posição de campo privilegiado das operações políticas e econômicas é que emerge o aparecimento da “questão urbana”, que se caracterizou pela proliferação de discursos que apontavam para um conjunto de problemas relacionados ao espaço urbano e sua população, tendo como solução àquilo que convencionou chamar de modernização.13 Para Marshall Berman o conceito de moderno e modernidade avança no sentido de estabelecer transformações a nível estrutural e mental em dada sociedade. Para o autor, “ser moderno é encontrar-se em um ambiente que promete autotransformação e transformação das coisas em redor, mas ao mesmo tempo ameaça destruir tudo o que temos tudo o que sabemos 14 tudo o que somos.” Com isso, o que se apreende pela análise do Jornal Folha do Norte numa seriação dos anos de 1930 - 1948, é que Feira de Santana, vivenciou um contexto de modernização nas décadas evidenciadas, marcado por constante perseguição às práticas de vida e experiências dos populares, dentre estes, as 12 LEITE, Rinaldo César Nascimento. E a Bahia Civiliza-se – Ideais de civilização e cenas de anti- civilidade em um contexto de modernização urbana em Salvador – 1912-1916. (Dissertação de Mestrado) Salvador, UFBA, 1996. P.11. 13 14 Op cit. p. 8 – 9. BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo, Companhia das Letras, 1986, p.15. 19 mulheres “decahidas”15. É importante destacarmos que os processos de modernização diferem-se a partir de questões regionais e particularizadas. Essa modernização implantada na cidade pautou-se entre outras questões no controle dos comportamentos e modo de vida dos indivíduos, estabelecendo um olhar particularizado para as mulheres populares que viviam nas áreas centrais ou que transitavam pelas principais vias da urbe. Assim, evidenciou-se a perseguição a dita “gente de vida airada”, tencionando as relações de territorialização e des-re-torritorialização16 desses sujeitos. Indicadores dessa modernidade, os anúncios do jornal Folha do Norte destacavam os “melhoramentos da Feira” como a eletrificação e iluminação da urbe, as construções dos palacetes públicos, a ornamentação das vias públicas, a construção das malhas rodoviárias, entre outros beneficiamentos estruturais, que estarão diretamente relacionados à exigência de novos padrões de sociabilidade e re-significação de costumes. O periódico, também denunciava as práticas das mulheres marginais que habitavam o centro da urbe, exigindo providências políticas e sanitárias. Neste ponto é elucidativo destacar a política higienizadora que foi implementada na cidade, reafirmando que a Feira tornava-se uma cidade “adiantada” e “progressista”17. O contexto do processo de modernização que foi divulgado nos meios de comunicação, esbarrava na paisagem e nos modos de vida dos sujeitos em Feira de Santana, que até a década de 1950, viviam em sua maioria na Zona Rural e eram analfabetos18, dado que é comprovado pela documentação judicial, haja vista, a maioria das ocorrências de crimes de caráter sexo- 15 Os termos como “decahidas”, horizontais, mundanas, eram a maneira como os jornais e os procesos criminais referiam-se às mulheres que praticavam a prostituição ou tinham uma postura desviantes aos modelos de comportamento feminino exigidos para a época. 16 Ver: RAGO, Margareth. Os Prazeres da Noite: prostituição e códigos da sexualidade feminina em São Paulo. 1890-1930. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991; SOUZA, Eric Ferreira. Errância dos Desejos: territórios e sujeitos marginais no centro da cidade de Salvador. (Dissertação de Mestrado), Salvador, PPGNEIM/UFBA, 2008. 17 Fragmentos retirados do Jornal Folha do Norte nos anos de 1925 a 1948 ALMEIDA, Oscar Damião de. Dicionário personalístico, histórico, geográfico e institucional de Feira de Santana. Feira de Santana: Edição do autor, 2002; POPPINO, Rollie. Feira de Santana. Feira de Santana:Itapuã, 1968. 18 20 afetivo19, terem ocorrido nos distritos e povoados do Município de Feira de Santana. A escolha do Jornal Folha do Norte e dos Processos Criminais de Lesões Corporais, Homicídios, Defloramentos, Estupros e Infanticídios, está diretamente relacionada ao tema central da pesquisa, pois, esta documentação nos apresenta com riqueza de detalhes o cotidiano das mulheres pobres, em Feira de Santana, de meados do século XX, configurando-se pegadas na trilha que nos leva aos espaços ocultos das nossas protagonistas, estando elas, na zona rural ou na cidade. Os Processos Criminais acima evidenciados, constituem-se numa fonte privilegiada para a apreensão de discursos e interpretações; por meio dessa documentação é possível reconstruir (re)significando as falas dos envolvidos, o cotidiano e os valores dos populares, a relação com o discurso normativo dos códigos penais.20 Segundo Resende: “encerrando uma multiplicidade de discursos, o processo criminal afasta-se de seu objetivo original – estabelecer a verdade – e transforma-se numa invenção, numa construção da verdade de acordo com um conjunto de normas sociais”21. O Processo Crime é dividido em duas fases, primeiramente se faz a ocorrência na delegacia em que se instaura o inquérito, onde depõem os acusados ou acusadas, as vitimas, as testemunhas e os advogados quando alguma das partes o constituem. Temos ainda como agentes do Processo os policiais, o escrivão/ã e o delegado que elabora o relatório e o encaminha para 19 Ver: ASSIS, Nancy Rita Sento Sé. Questões de vida e de morte na Bahia Republicana: valores e comportamentos sociais das camadas subalternas soteropolitanas. Salvador: UFBA, dissertação de Mestrado, 1997; FERREIRA FILHO, Alberto Heráclito. Salvador das Mulheres: condição feminina e cotidiano popular na Belle Époque Imperfeita, (dissertação de Mestrado), Salvador: UFBA, 1994; SANCHES, Maria Aparecida Prazeres. Fogões, Pratos e Panelas: poderes, práticas e relações de trabalho doméstico. Salvador 1900-1950. (dissertação de Mestrado) Salvador, UFBA, 1998. 20 FAUSTO, Boris. Crime e Cotidiano: a criminalidade em São Paulo (1880-1924), São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2º Edição, 2001. 21 RESENDE, Edna Maria. Entre a solidariedade e a violência: valores, comportamentos e a lei em São João Del-Rei, 1840-1860. São Paulo: Annablume; Belo Horizonte: PPGH/UFMG; Fapemig; Barbacena:UNIPAC, 2008. P. 23. 21 o Juíz. A segunda fase do Processo Crime é iniciada com a denúncia do Promotor Público, onde começa o sumário de culpa do denunciado, convocando novamente os envolvidos e as testemunhas arroladas. Nesta segunda fase as versões ganham um tom mais dramático, pois, busca-se influenciar o Juiz para a sentença, buscando ou a pronuncia ou impronuncia do denunciado. Nessa instância, a jurisprudência procura formular e estabelecer uma “verdade” para os fatos evocando padrões hegemônicos de conduta e moralidade estabelecidos pelo processo de normatização dos comportamentos. No caso dos processos que utilizo, esses valores são elencados a partir de parâmetros elitistas, ainda que estejam retratando o cotidiano e as práticas populares. Segundo o que Foucault afirmou em sua obra: a lei é feita para todo mundo em nome de todo mundo; que é prudente reconhecer que ela é feita por alguns e se aplica a outros, que nos tribunais não é a sociedade inteira que julga um de seus membros mas uma categoria social encarregada da ordem que 22 sanciona outra. E continua: a linguagem da lei se constitue no discurso de uma classe a outra que não tem nem as mesmas idéias nem as mesmas palavras, sendo que a própia forma do tribunal pertence a uma ideologia da 23 justiça que é a da burguesia. Michel Foucault localiza a produção dos saberes e dos discursos jurídicos, analisando criticamente a constituição das verdades e a implantação da norma social, que estabelece os desvios, afirmando o que é permitido e o que é “patológico”. Desta maneira, os Processos funcionam como lócus discursivo no qual se constroem padrões de veracidade, seguindo uma dinâmica e compreensão do saber institucional e dos valores significados a partir da noção de normalidade social. 22 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir – nascimento da prisão. Petropolis, Ed. Vozes, 1977, p. 243. 23 Op. Cit. P. 243. 22 Mas se os processos são construídos sócio-historicamente e representam uma postura excludente, como poderemos saber o que realmente aconteceu? Como nos diz Sidney Chalhoub “O fundamental em cada história abordada não é descobrir „o que realmente se passou‟ (...), e sim tentar compreender como se produzem e se explicam as diferentes versões que os diversos agentes sociais envolvidos apresentam para cada caso”.24 Dessa forma, a fala dos atores e atrizes dos processos estão imbuídas de subjetividades e intenções particulares, o que não inviabiliza de forma alguma sua utilização como fonte histórica. Temos que atentar para as particularidades e as sensibilidades que decorrem dos fatos que se busca constituir como uma verdade em contextos localizados. Estas verdades reafirmam posicionamentos dominantes de normas e condutas sociais. segundo Marisa Corrêa: No momento em que os atos se transformam em autos, os fatos em versões, o concreto perde toda sua importância e o debate se dá entre os atores juridicos, cada um deles usando a parte do „real‟ que melhor reforce o seu ponto de vista. Neste sentido, é o „real‟ que é processado, moido, até que se possa extrair dele um esquema elementar sobre o qual se construirá um modelo de culpa e um 25 modelo de inocência. Através da leitura e análise dos Processos Criminais o cotidiano popular pôde ser apreendido e analisado. É bom destacarmos que os fatos nos processos nos chegam através de interlocutores, pois, são os manipuladores técnicos26 que norteiam as perguntas, direcionam as falas e as escrevem. No entanto, mesmo na condição não cômoda, os populares tem nos processos um meio de exporem suas opiniões, reproduzirem e re-significarem seus valores, apresentarem seu cotidiano e, principalmente, tentarem defender-se. 24 CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle époque. 2ª edição, Campinas, SP, Editora da Unicamp, 2001, p. 40. 25 CORRÊA, Marisa. Morte em Família: representações jurídicas de papeis sexuais. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1983, p. 40. 26 Op. Cit. 23 Com isso, implica que os autos estão imbuídos de julgamento de valores e subjetividade de quem os produziu, neste caso, os escrivãos, delegados, advogados, juízes e promotores. Dessa forma, aparecem os conflitos, as contradições e as solidariedades construídas através das experiências daqueles sujeitos em seu meio social. Para Rachel Soihet os processos criminais constituem-se num material privilegiado para uma aproximação com o cotidiano de homens e mulheres dos segmentos populares, especificamente, com vista a perscrutar as suas contradições de gênero, já que a existência desses sujeitos caracteriza-se pela invisibilidade, sendo parcamente representados em outra documentação.27 Entre os processos arquivados no CEDOC/UEFS, selecionamos 88 Processos- Criminais de delitos de Lesões Corporais (27), Homicídios (07), Infanticídio (01), defloramento e estupro (53). A quantidade dos processos é suplantada pela riqueza dos detalhes e pelas possibilidades de estudar as histórias de vida dos envolvidos relacionando-as com o contexto sociocultural e histórico. A partir dos Processos, visamos apreender a cartografia espacial e social dos sujeitos, descrevendo territorialidades, moradias, profissões, idade, cor, instrumentos, entre outros. Esses dados ajudam a estabelecer um perfil social dos indivíduos envolvidos nos atos criminosos. Entre os jornais que circularam no período em análise, utilizamos como fonte o Jornal Folha do Norte, que constitui uma importante fonte. Os jornais são os meios divulgadores de uma ordem “civilizadora” e modernizadora para Feira de Santana, pois, usavam sua eloqüência e suas páginas para imprimir na população um imaginário de progresso, através dos melhoramentos urbanos e das adequações nos costumes e comportamentos, exemplificando ao leitor o que era permitido ou proibitivo a uma sociedade que buscava estabelecer-se como pólo desenvolvimentista. Desta maneira, o trabalho com os periódicos se configura como uma forma de compreender as dinâmicas sociais no que diz respeito à percepção da cidade e dos discursos, uma vez 27 SOIHET, Rachel. Condição Feminina e Formas de Violência: mulheres pobres e ordem urbana 1890-1920, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1989, p. 270. 24 que estes mecanismos de mídia tornam visíveis os fatos que denunciam ou louvam os acontecimentos que imprimem para a cidade de Feira de Santana simbologias da cidade culta, progressista e moderna. O uso dos jornais como fonte tem se tornado muito comum entre os historiadores. Maria Aparecida Sanches afirma que “o jornal enquanto fonte de pesquisa para história, muito tem contribuído para o estudo de diversos segmentos sociais, mas em particular, tem-se mostrado valioso e muitas vezes imprescindível, quando se trata dos grupos que por seu caráter subordinado e marginalizado não deixaram quase nada escrito”28. Este trabalho está dividido em três capítulos. No primeiro analisamos as representações do processo de Modernização em Feira de Santana, elegendo as fontes jornalísticas como registro privilegiado, onde buscar-se-á perceber a cidade através dos discursos políticos que estavam em consonância com aspectos definidores da modernidade: higienismo, sanitarismo, urbanismo, eletrificação, vigilância e segurança, além de congregar valores normatizantes da Polícia dos Costumes. Neste capitulo, buscamos evidenciar as mulheres pobres em relação aos espaços públicos da rua, tendo como referência as zonas de meretrício e as sociabilidades estabelecidas pela territorialização desses sujeitos. Ainda inferimos sobre a ocorrência dos crimes e delitos praticados na zona de mulheres, tendo como mola propulsora de interação e conflito a feira livre semanal, o que é comprovado pela incidência de delitos nas segundas-feiras, dia da realização da referida feira. Este capítulo objetiva ambientar os leitores na cidade de Feira de Santana nas décadas de 1930 a 1948. No segundo capitulo discutiremos as relações de violência sexo-afetiva e sócio-espacial entre as mulheres das camadas populares. Utilizamos os processos criminais de Lesões Corporais, Homicídios e Infanticídios, para 28 SANCHES, Maria Aparecida Prazeres. Fogões, Pratos e Panelas: poderes, práticas e relações de trabalho doméstico. Salvador 1900-1950. (dissertação de Mestrado) Salvador, UFBA, 1998, p 13. 25 estabelecermos parâmetros de análise sobre o comportamento e o cotidiano dessas mulheres nas suas tramas sociais e culturais.. No terceiro capitulo enfatizamos os crimes sexuais, utilizando os processos criminais de estupros e defloramento, na compreensão da dinâmica popular dos significados e experiências relacionados aos valores ligados á moralidade, a honra, ao casamento e a virgindade entre os populares em Feira de Santana, tentando compreender os parâmetros acerca da economia sexoafetiva, evidenciando as normatizações e ditames que configuravam as feminilidades e masculinidades referentes aos exercícios sexuais estabelecidos para cada sexo, tomando como desencadeador os discursos moralista e médico-legal sobre o corpo e o comportamento dos sujeitos. Os três capítulos que compõem esta dissertação são em partes, independentes, isso por conta dos usos específicos das fontes em cada capítulo deste estudo. No entanto, apesar das diferenças temáticas e tipificações documentais, os capítulos convergem e interligam-se pela transversalidade da violência de gênero nas relações sexo-afetiva no cotidiano popular. 26 Capitulo I “Gente infecta” na Feira “culta e adiantada” 27 Buscamos neste capítulo analisar a documentação produzida pela imprensa local e pelas instâncias jurídicas, utilizando-a numa perspectiva teórico-metodológica a partir da História Social, visando compreender o espaço urbano de Feira de Santana e a relação entre as mulheres pobres e este espaço na construção das territorialidades e dos discursos, localizando-os como meio de perceber a produção dos saberes sobre os populares. A opção pela documentação e pelas relações de violência é uma postura metodológica, uma vez que, esses sujeitos não produziram uma cultura letrada, sendo, desta maneira, através dos processos Criminais e Jornais, a única forma de apreensão do cotidiano popular, retratado nos momentos violência, quando ganham visibilidade, entre as instâncias produtoras de discursos. Buscamos evidenciar uma esfera das mulheres ainda pouco explorada pela historiografia feirense, as mulheres pobres em situações de violência e as prostitutas, que nas décadas de 1930 e 1948 eram identificadas como mundanas, decahidas e horizontais. Essas serão nossas protagonistas deste primeiro capítulo, mulheres que habitam os casas em cômodos da Rua do Meio29 e da Rua de Cima30, dos becos da Esteira, do Bom e Barato, Castanha, freqüentando os cabarés e bares, promovendo risadarias que destoavam no centro da cidade como um grito por territorialidade31. Este trabalho tem a intenção de apontar perspectivas para a compreensão do estudo sobre a violência entre os populares e as mulheres, evidenciada pela pesquisa documental. Ele objetiva ainda a possibilidade de novas leituras e interpretações das fontes que sirvam para compor uma historiografia das mulheres feirense. 29 Nome da atual Rua Sales Barbosa.. Nome da atual Rua Marechal Deodoro 31 Essa cartografia marginal era situada no centro da cidade de Feira de Santana, enviesando as principais vias da urbe, que eram habitadas pelas famílias abastadas que residiam principalmente na Av. Senhor dos Paços, Praça Fróes da Mota, Visconde Rio Branco, Praça da matriz e Conselheiro Franco. 30 28 Feira de Santana: cidade culta e adiantada? O advento da República e a concepção de modernidade que se estabeleceu no início de século XX no Brasil estamparam nos principais centros e, também, no interior, um modelo de “Civilização e Progresso”32. Com isso, se impôs às cidades um ordenamento modernizador através de elementos que a lhe dão forma, tais como: eletricidade, sanitarismo, higiene, vigilância, educação, etc. Assim, tais inferências no cotidiano citadino atingem diretamente os comportamentos dos sujeitos sociais, uma vez que a modernidade gesta e reivindica novas condutas, hábitos e socializações. Assim, a cidade não é apenas pensada como um cenário no qual se desenrola a vida urbana, mas a cidade é pensada com um campo discursivo no qual os sujeitos estão interagindo com o espaço, estabelecendo sociabilidade e conflitos na construção das territorialidades. Numa leitura discursiva sobre a cidade, a percebemos como um texto a ser lido, esse texto é produzido pelos seus habitantes e construídos a partir da alteridade e da inter-relação espaço/território/individuo. Como Roland Barthes afirmou “a cidade é uma linguagem, a cidade fala a seus habitantes”33 Essa linguagem cidade/individuo está diretamente relacionada a formação da territorialidade e as suas múltiplas facetas de des-re-territorialização. Dessa forma, a modernidade pensada a partir da transformação urbana como implementação de uma nova ordem, implica em mudar ou reorganizar o texto, sendo assim, é necessário de igual maneira ensinar a compreendê-lo e lê-lo integralmente. E nessa perspectiva que os meios de comunicação impressos atuaram em Feira de Santana, propagando esse novo texto, que apesar da sua 32 Rinaldo Leite afirma que o projeto modernizador das cidades não ficou restrito aos grandes centros, deslocando-se para o interior, onde apresentou feições diferenciadas da capital por apropriar-se de características regionais e localizadas. Ver: LEITE, Rinaldo César Nascimento. E a Bahia Civiliza-se – Ideais de civilização e cenas de anti- civilidade em um contexto de modernização urbana em Salvador – 1912-1916. ( Dissertação de Mestrado) Salvador, UFBA, 1996. 33 BARTHES, Roland. A aventura semiológica. São Paulo:Martins Fontes, 2001. 29 literalidade do jornal, representava uma lógica ainda maior que era a de construir uma opinião pública sobre a modernização da cidade e suas implicâncias. Assim, a questão urbana e o processo de modernização das cidades, que a principio estiveram mais diretamente ligados aos melhoramentos estruturais e as questões de saúde pública, estenderam-se ao controle dos costumes e comportamentos, pois, as mudanças urbanísticas e higiênicas requeriam um novo modo de viver na cidade. Com isso, a reestruturação urbana caminhou paralelamente em dois sentidos seja nas questões sociais, seja nas questões urbanísticas e estruturais34. Para a construção de uma nova cidade, era necessário o rompimento com o antigo, isso implicava em negar e negativizar os aspectos que parecessem socialmente atrasados, ou seja, a dinâmica era realizar as transformações necessárias para configurar a Feira de Santana, uma paisagem de cidade “culta e adiantada”. Nessa gestação de modernidade os indivíduos e seus comportamentos estavam entre as transformações requisitadas, não bastava demolir e construir paredes, era necessário educar e higienizar o morador ou moradora da nova casa e transeuntes dessa nova rua. Nesse debate sobre Modernização e Questão Urbana, um elemento fundamental nessa relação será o espaço das ruas da cidade, pois, este tornase o veículo de diálogo entre os moradores e os discursos moralistas e higiênicos. Assim, as ruas, deixam de ser o contraponto entre o público e o privado e passa a ser parte integrante do conjunto social. Higienizava-se as ruas e moralizava-se a população. Segundo Kléber Simões: A transformação da visão da cidade e do ambiente urbano durante o período republicano encontrava-se, com os processos históricos que culminavam na resignificação da rua que deveria preparar-se em termos estéticos e higiênicos para receber o 34 Ver: LEITE, Rinaldo César Nascimento. E a Bahia Civiliza-se – Ideais de civilização e cenas de anti- civilidade em um contexto de modernização urbana em Salvador – 19121916. ( Dissertação de Mestrado) Salvador, UFBA, 1996. 30 cidadão brasileiro que nascera com o novo regime35. Com a política de melhoramentos a rua é recriada e passa a integrar os espaços a serem higienizados, disciplinados e normatizados, extrapolando os domínios entre a casa e o passeio. Se a política de melhoramentos gestava um novo sujeito, então, a rua, assim como a cidade, deveria ser uma síntese da modernidade. Dessa forma, é necessário preparar essa rua para que novos sujeitos transitem, apresentando novos comportamentos convergentes com a ordem disciplinar.36 Logo, por ser o campo das trocas econômicas, simbólicas e culturais, o espaço da rua ganha cada vez mais importância na congregação destes conflitos e sociabilidades gerados pela modernidade, uma vez que, este lócus, se constitui num palco licencioso para práticas “marginais”. Dessa forma, a cidade é demarcada por territórios que são constantemente reelaborados e reterritorializados37. Opõem-se assim as ruas higiênicas e, por sua vez, limpas, arborizadas, iluminadas, que servem para socialização de uma elite e seu contraponto, as ruas sujas, pouco iluminadas, perigosas e barrulhentas. Em Feira de Santana de meados do século XX, encontramos essa dicotomia urbana, no olhar sobre a cartografia central da Urbe. De um lado encontramos as avenidas Senhor dos Passos, Conselheiro Franco e Visconde do Rio Branco, habitadas pela elite local. Paralelo a estas, porém opostas, temos as ruas Sales Barbosa, Marechal Deodoro, Rua do Fogo, habitadas por decaídas, pobres e marginais, onde localizavam-se os cabarés que promoviam os bas fonds. 35 SIMOES, Kleber José Fonseca. Os homens da princesa:modernidade e identidade masculina em Feira de Santana (1918-1938). Salvador/ UFBA, (dissertação de Mestrado), 2007. P.41. 36 CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril: cortiços e epidemias na Corte Imperial. São Paulo, Companhia das Letras, 1996; SIMOES, Kleber José Fonseca. Os homens da princesa:modernidade e identidade masculina em Feira de Santana (1918-1938). Salvador/ UFBA, (dissertação de Mestrado), 2007; SOUSA, Ione Celeste de. Garotas tricolores, deusas fardadas: as normalista em Feira de Santana, 1925 a 1945. São Paulo: EDUC, 2001 37 SOUZA, Eric Ferreira. Errância dos Desejos: territórios e sujeitos marginais no centro da cidade de Salvador. (Dissertação de Mestrado), Salvador, PPGNEIM/UFBA, 2008. 31 O Jornal Folha do Norte38, era o veiculo de comunicação impresso de maior circulação na cidade nas décadas estudadas, sendo este veículo o maior propagador dos ideais mordenizadores, lançando criticas, sugestões e elogios às ações de “melhoramentos da Feira” realizados pelos poderes públicos. Logicamente, os editoriais do periódico seguiam as conveniências do contexto político. Este veículo de informação e comunicação buscava estabelecer uma representação sobre a cidade e seus moradores, sempre em consonância com as idéias e projeções das elites na configuração da nova cidade 39. Assim, o Jornal funcionava como um órgão fiscalizador, pronto a acionar a polícia dos costumes40 no combate as práticas de anti-civilidade, seja na estrutura urbana ou, principalmente, no cotidiano e comportamento social. Aqui está a mola propulsora das perseguições aos populares do centro da cidade, no caso em evidência, as mulheres da rua de cima. Diversos noticiários traziam esses espaços marginais e seus sujeitos, caracterizados como impróprios ao centro de uma cidade “culta e adiantada”41, como em chamadas como estas, que diziam: “A policia precisa fazer uma limpa na 79”42, “O Becco da Esteira novamente em foco policial43, “Impõe-se a visitação da polícia à mal afamada travessa conhecida por Bêcco da Esteira, para a qual parece ter afluído ali o bas-fond”44. O jornal Folha do Norte teve de fato esse papel de sinalizador para o progresso e os melhoramentos, como também assumiu uma vigilância sobre as práticas e costumes que depusessem contra os “foros de cidade culta e 38 Os Jornais utilizados nesta pesquisa estão arquivados na Biblioteca Setorial Monsenhor Renato de Andrade Galvão no Centro de Estudos Feirenses/Museu Casa do Sertão/UEFS. Utilizamos uma seqüência serial dos anos de 1930 a 1948. 39 OLIVEIRA, Clóvis F. Ramaiana M. De empório a Princesa do Sertão: Utopias civilizadoras em Feira de Santana (1893 – 1937). (Dissertação de Mestrado), UFBA, Salvador. 2000. 40 Ver: FERREIRA FILHO, Alberto Heráclito. Salvador das Mulheres: condição feminina e cotidiano popular na Belle Époque Imperfeita, (dissertação de Mestrado), Salvador: UFBA, 1994. 41 BSMRG – CENEF - Folha do Norte de 27 de janeiro de 1940. 42 BSMRG – CENEF - Jornal Folha do Norte - 09 de março de 1935 43 BSMRG – CENEF - Jornal Folha do Norte - 14 de abril de 1935 44 BSMRG – CENEF - Jornal Folha do Norte - 23 de março de 1935 32 adiantada”45 como se esperava de uma cidade que despontava como a maior do Interior da Bahia. Dessa forma este veículo vai, “chamar a attenção da fiscalização municipal para aquilo o de que se recente a cidade, julgamos, é dever imprescindível que nos cabe, tanto mais quanto sempre foi o nosso programma a defesa dos interesses collectivos”46 O processo de crescimento urbano foi tomado como um aparato discursivo, habilmente utilizado pelos grupos políticos locais e pelas elites no sentido de modelar e imprimir uma nova cidade. Nas décadas de 1920 a 1940, muitas mudanças serão empreendidas no sentido visibilizar essa modernidade, tais como: construção do Paço Municipal (1921 a 1926)47, Construção das Estradas de Rodagem, como a Bahia – Feira (1928)48, Rio- Bahia (1933)49 Jacobina-Feira (1932), Rede Elétrica (1920), Implantação da Escola Normal (1925)50, Serviço telefônico (1931).51 Ione Souza apresenta esse desenvolvimento urbanístico e social como um dos fatores preponderantes para implantação da escola Normal em Feira de Santana, um marco no processo de mudança de comportamentos e mentalidades, uma vez que propunha “trazer luz ao sertão”, educando as moças e rapazes, gerando com isso um novo sujeito social. Quando a Escola Normal foi instalada em Feira de Santana, a cidade ostentava o título de maior cidade do interior da Bahia. Os políticos locais tinham consciência dessa condição e a utilizavam nos projetos de crescimento da cidade tanto que conseguiram aí sua localização quando por lei, não seria indicada, por distar apenas cem quilômetros da capital e ser intuito da reforma de 1925 criar escolas no sertão, nos lugares longínquos, visando formar professoras(es) locais. Feira venceu e um dos argumentos foi seu progresso urbano(!), que permitia melhores condições às normalistas que, na boca do sertão, fossem fazer estudos na Escola Normal. Impôs seu 45 Frase proferida pelo Delegado Durval Tavares Carneiro no processo de Gabina Amélia – CEDOC/UEFS Doc 807, Cx. 48, Est. 02, ano 1948. Utilizamos esta frase, pois, apresenta o cruzamento das fontes, assim como explicita que este debate permeava outras instancias da sociedade, não apenas os veículos de comunicação. 46 BSMRG – CENEF - Folha do Norte - 30 de novembro1929. 47 BSMRG – CENEF - Folha do Norte – 16 de junho de 1933. 48 C.f. ALMEIDA, Oscar Damião de. Dicionário personalístico, histórico, geográfico e institucional de Feira de Santana. Feira de Santana: Edição do autor, 2002. 49 C.f. ALMEIDA, Op. Cit., 2002 50 C.f. SOUSA, Op. Cit., 2001. 51 C.f. ALMEIDA, Op. Cit., 2002 33 poderio com a representação de ser a boca do sertão, sua princesa, como foi cognominada por Ruy Barbosa, na visita de 1919, durante a campanha civilista: portanto, merecedora do progresso que era, e que traria a Escola Normal, além de outras conquistas urbanas das quais 52 se orgulhava. Os melhoramentos na cidade de Feira de Santana convergiam para o projeto modernizador republicano. No contexto, o centro da cidade era remodelado, com a abertura e alargamento de ruas, demolições de casarões e casebres, criação de uma ordem pública e política, instituição de códigos de posturas, policiamento dos costumes, enfim estabelecendo uma re- territorialização do centro da cidade. Tudo isso viabilizaria os parâmetros entre a cidade moderna e os empecilhos para o “progresso” da Feira de Santana. Neste ponto, a crítica aos populares é o foco na exorcização do atraso da cidade e comparação aos grandes centros urbanos. Entre essas críticas, encontramos a perseguição aos “bas-fond’s”, como também a negação aos valores ruralistas e tradicionais53. Neste ponto, o semanário de notícias não poupou esforços no sentido de depreciar o cotidiano dos populares e seus costumes. As ações e atividades cotidianas ligadas às sociabilidades e sobrevivências dos populares foram alvo de críticas e ações políticas direcionadas. Dessa forma, com o processo de embelezamento e progresso da cidade, não havia espaço para essas pessoas transitassem. Em matéria do dia 27 de janeiro de 1940, o Jornal Folha do Norte noticia a desocupação de uma área no centro da cidade através de algumas demolições. Esta área era ocupada por populares, os quais terão seu cotidiano apresentado de maneira estigmatizada, demonstrando a noção de periculosidade que estes representavam para a higiene e para a moral pública. A permanência daqueles sujeitos nos espaços centrais da cidade depunha 52 SOUSA, Ione Celeste de. Garotas tricolores, deusas fardadas: as normalista em Feira de Santana, 1925 a 1945. São Paulo: EDUC, 2001, P. 97. 53 OLIVEIRA, Clóvis F. Ramaiana M. De empório a Princesa do Sertão: Utopias civilizadoras em Feira de Santana (1893 – 1937). (Dissertação de Mestrado), UFBA, Salvador. 2000; SIMOES, Kleber José Fonseca. Os homens da princesa:modernidade e identidade masculina em Feira de Santana (1918-1938). Salvador/ UFBA, (dissertação de Mestrado), 2007. 34 contra os avanços e empreendimentos progressitas. O título da matéria, bastante sugestivo, casebres que merecem desappacer, mostra de que forma o Jornal apresenta a política urbanística como uma necessidade de se expurgar da cidade os males sociais. O oxigênio vitalisante do urbanismo remodelado vetusto prédio da rua Cons. Franco, derreio também casebres que afeitavam a ruela transversal que liga a grande artéria citadina à praça Bernadino Bahia e serviam de quitanda e officina de ferreiro, aos fundos do Quartel do Tiro de Guerra 332. Foi providêncial essa desapparição e oxalá a engenharia municipal e a Saúde Pública conjuguem esforços no sentido de virem a ser demolidos outros antros de gente de vida airada infectos e inficcionantes, pocilgas já em ruínas, como são, por exemplo, os immundos cochicholos da rua Riachuelo, que não dispõem de um palmo dos mesmos, para serventia dos que ocupam. Ali faz-se despejo de excretos e águas servidas de toda espécie em pleno leito da travessa que também atravancam com vasilhames de cosinha, mêsas desconjuntadas, catres intanguidos de parasitas, bacias e gamelas em que lavam roupas ao ar livre, transformando em coradouro o passivo que os defronta. Ainda há mais: o glossário de termos indecorosos ali em uso constitue verdadeiro attentado à moral pública. Por tudo isso, merecem desapparecer taes casebres tão prejudiciaes no centro de 54 uma cidade adiantada e culta como é a Feira. A reestruturação estética do centro da cidade, na qual implicava alterações no cotidiano e nos costumes dos sujeitos que compunham este território, implicava, por sua vez, na incisiva expulsão de populares dos espaços centrais da urbe feirense. A maior preocupação dos órgãos políticos que exerciam esse controle sobre a população era a questão do embelezamento e higienização das estruturas e dos costumes. Essa questão levava ao desprestígio de determinados espaços, assim como a ridicularização dos comportamentos que não estivessem à égide da modernidade. Mesmo antecedendo a temporalidade evidenciada nesta pesquisa, a matéria do Folha do Norte publicada em 31 de janeiro de 1920, como o título de Justo Apelo, serve para demonstrar que esse debate em torno dos populares e a modernização da cidade, já ganhava fôlego desde os primeiros anos do século XX. Na referente matéria, o articulista direciona seu discurso no sentido de apresentar todo o empenho empreendido pela elite, com o objetivo de imprimir 54 BSMRG – CENEF- Folha do Norte de 27 de janeiro de 1940. 35 na cidade de Feira de Santana uma feição de cidade bela e higiênica, mas, em contrapartida os comportamentos dos populares e seu modus vivendi, representavam uma verdadeira afronta aos foros de civilidade, por isso mesmo, a necessidade do controle disciplinar e a policia dos costumes55. Contudo, isso não implica dizer que tais medidas gerissem melhorias efetivas na qualidade de vida desses sujeitos. O objetivo era expurgar o mal das áreas centrais, sendo conseqüência direta o crescimento das periferias e a territorialização de novas áreas marginalizadas Mais bonita e bela vae, dia a dia, material e socialmente a Feira evoluindo aos olhos dos viajantes e visitantes. E, de facto, é para se louvar e encarecer a patriótica dedicação e palpitante iniciativa, particular ou geral dos seus habitantes, quer procedente de cada um delles, em destaque da sua progressista e adiantada corporação municipal. Todos, ao que se vê, na medida de suas forças, mais uns, menos outros, cooperam se empenham, se esforçam para ajudar e engrandecer a feirense cidade central. De alguns annos para cá, a evolução material vai rápida, aos sonhados e almejados desideratos da moderna esthetica, da civilização contemporânea. Entretanto, há uma lacuna que se destaca aos olhos dos que a visitam, aos olhos de todo o mundo. Uma velharia que clama ser abolida; um descuido, que urge ser reparado; uma esquisitice, uma feia caricatura que obriga a ser extinta. Dos Olhos d‟Água à entrada da Feira, até a estrada de ferrovia central, vê-se fácil e claramente uma longa série de triste casinhas e casebres, um kilometro mais ou menos de extensão, cujos fundos com casinhas e fogões imundos de fuligem com quintaes antihygienicos,lixosos, com paredes e cercas sujas e muito mal construídas, que dão e despejam para a linha férrea à vista de todos os passageiros que, no trem vêm a remodelada e formosa cidade. Ora, a vista dos repetidos elogios que por toda parte se fazem à culta, esthetica, à moralíssima cidade bahiana, que impressão se não há de sentir, logo ao penetrar na entrada, quando, pelo contrario deverá de ser a prelibação da sua grandiosidade, o ponto inicial da 56 sua beleza física e do seu ponto artístico, da sua architectonica? 55 56 Ver essa discussão em ASSIS, 1996; CHALHOUB, 2001; FERREIRA FILHO, 1994; FAUSTO, 2001. BSMRG – CENEF - Folha do Norte de 31 de janeiro de 1920. 36 Não só de alargar de ruas e demolir casarões a “ordem civilizadora” em Feira de Santana estendeu seus ares de modernidade. Os comportamentos dos sujeitos sociais que habitavam o centro dessa cidade em transformação também foram alvo do alastramento dos discursos e práticas que buscavam configurar à Feira de Santana um representação de cidade moderna. Mulheres na rua Na configuração da modernidade do espaço central da cidade, os agentes dessa modernização estabeleceram, a partir de parâmetros amparados em valores higienistas, sanitários e moralizantes, uma reterritorialização do espaço citadino. Nessa dinâmica de re-territorialização emergem-se conflitos, resistências e negociações, estabelecidos a partir da interação dos sujeitos históricos envolvidos no processo. De um lado, os agentes políticos armados com ideais importados de modernização que direcionava a legislação municipal e a atuação dos aparelhos jurídicos, assim como, a segurança pública, do outro, estavam os sujeitos populares enlaçados nas tipificações unilaterais que as configuravam como decaídas, mundanas, horizontais e airadas. Essas mulheres foram trazidas à baila, retiradas de sua invisibilidade histórica concernente a sua condição social e de gênero, a partir dos seus conflitos de adequação a uma moral pública. Assim, essas mulheres aparecem corporificadas através das experiências do cotidiano, expostas pelo Semanário Folha do Norte. Segundo Maria Izilda Matos, as reflexões sobre as singularidades do cotidiano no processo de urbanização, não deve se limitar aos lugares mais visíveis, é importante compreender o espaço não como algo fixo, imutável ou como um simples palco da história, mas sim, como um elemento constitutivo da trama histórica, de seus fluxos e de sua dinâmica em permanente ação, interação, transformação e reconstrução57. 57 MATOS, Maria Izilda Santos. Cotidiano e Cultura: história, cidade e trabalho. Bauru, São Paulo, EDUSC, 2002. P. 37. 37 Desta forma, as “decaídas” são vistas e interlocutadas em meio aos seus movimentos e práticas do cotidiano, corporificando em si uma relação entre espaço/território/individuo. As “decaídas” e “mundanas” rompem assim a invisibilidade de sua condição sócio-histórica ao transitarem nas ruas e becos, incomodando dessa forma a “ordem civilizadora” que vigenciava. Essas mulheres e seus pares estabeleciam várias maneiras de socialização entrelaçadas em redes horizontais, que permeavam sua sobrevivência, seus prazeres e saberes. Sendo assim, a tipificação dessas mulheres como sujeitos marginais, estender-se-á aos seus territórios de ocupação que se configurarão como territórios marginais, pela prática das arruaças, bebedeiras e prostituição. Segundo Eric Ferreira Souza, através da constituição de redes de sociabilidades marginais que, ao estabelecerem condições liminares de existência, asseguram não apenas a sobrevivência individual ou grupal de determinados sujeitos, mas, a presença de alteridades, que rompem ou colocam à prova, cotidianamente, os discursos, as intervenções e os olhares homogeneizantes e naturalizadores lançados sobre as minorias que, ao longo da história, numericamente, muitas vezes foram as 58 maiorias. O processo de luta de territorialização das “decaídas” e seus pares é um confronto direto com a nossa política de modernização da cidade. Essa dinâmica no centro da cidade foi o espaço privilegiado como o campo confronto da polícia dos costumes e das vivências populares. A interferência policial no cotidiano dessas mulheres e dos seus territórios, demonstravam a inclinação legal de controle dos costumes. Assim, no dia 04 de fevereiro de 1933 “As decahidas Filippa de Telles Cerqueira e Maria de São Pedro Crysostomo foram catrafiladas e conduzidas à Cadeia Publica por se terem esbofeteado e proferido termos indecorosos em plena rua”59, como também na noite do dia 24 de maio de 1940, “Maria Bernarda e Ubaldina Maria de Jesus, que costumam promover desordens na Rua do Meio, foram recolhidas à cadeia Pública por terem promovido desordens”60. Dois dias depois dessa ocorrência, dia 26 de 58 SOUZA, Eric Ferreira. Territórios Marginais: disciplina e desejos na cidade de Salvador (1900-1958). In: ALVES, Ivia e COSTA, Ana Alice. Construindo interdisciplinaridades: estudos de gênero na Bahia. Salvador, UFBA, NEIM, 2008, P. 85. 59 BSMRG – CENEF - Folha do Norte de 04 de fevereiro de 1933 60 BSMRG – CENEF - Folha do Norte de 08 de junho de 1940 38 maio de 1940, “Almira Jacinta da silva, Maria pires de Almeida, Almerinda da Silva e Maria Jacinta da Silva, foram recolhidas à Cadeia pública por terem desacatado uma família no lugar denominado Queimadinhas”61. Sendo que um mês antes dessas prisões também foram recolhidas a Cadeia Pública “por ter desacatado com palavras injuriosas a uma senhora de família, Augusta de tal”62 Essa relação entre policiamento e decaídas era extremamente complexa, pois, os policias que faziam as rondas, aprendendo e moralizando os espaços, em outros momentos, serão encontrados interagindo com esses sujeitos em seus territórios espaciais e corporais.63 Mesmo nessa complexa relação, a força e e controle policial estava presente na paisagem da cartografia marginal do centro de Feira de Santana, principalmente motivados pelas reivindicações dos moradores das Ruas paralelas centrais, explicitados no Jornal Folha do Norte. Impõe-se a visitação da polícia à mal afamada travessa conhecida por Bêcco da Esteira, para a qual parece ter afluído ali do bas-fond. Ainda ontem, cerca de dez horas da noite ocorreram ali sérios distúrbios e facas andaram a lampejar ameaçadoramente, salientando-se pelas desenvolturas bellicas n‟a mulher preta, alta e 64 franzina cujo nome não conseguimos saber . Logo, as rondas e batidas na zona de meretrício do centro da cidade, situados na Rua do Meio, Rua de Cima, Rua do Fogo, constituíam parte integrante da paisagem marginal do referido território, configurando-lhe a licenciosidade da transgressão e perigoso. O lançamento de um novo Código de Posturas Municipais no ano 1937 é demonstrativo dessa tentativa de regularização da conduta social. No que tange aos populares/marginais, seus gestos e suas sociabilidades ganham 61 BSMRG – CENEF - Folha do Norte de 08 de junho de 1940 BSMRG – CENEF - Folha do Norte de 11 de maio de 1940 63 Ver: SOUZA, Eric Ferreira. Territórios Marginais: disciplina e desejos na cidade de Salvador (1900-1958). In: ALVES, Ivia e COSTA, Ana Alice. Construindo interdisciplinaridades: estudos de gênero na Bahia. Salvador, UFBA, NEIM, 2008. 64 BSMRG – CENEF- Folha do Norte 23 de março de 1935 62 39 conotação repressiva e proibitiva. No Capítulo III no Art. 144º diz que Aquele que, nas ruas, praças, logradouros e lugares públicos proferis palavras obscenas ou for encontrados na prática de atos ofensivos à moral e aos bons costumes, incorrerá na multa de 10$000, além da responsabilidade, em que incidir segundo a legislação vigente.65 O policiamento dos costumes presentes da legislação municipal converge para o ideal de cidade higiênica postulado para Feira de Santana pelos seus agentes políticos. Observamos que há um direcionamento cultural ao controle dos gestos e uma busca de dês-re-territoriliazação do espaço público. Os hábitos de gritos, arruaças, bebedeiras e xingamentos eram, como ainda o são, comportamentos culturais significativos dos sujeitos marginais urbanos em suas sociabilidades. A postura surge desta maneira como um aparato jurídico e social para uma dês-re-territorialização das decaídas e suas pares, que davam uma fisionomia marginal ao centro da cidade de Feira de Santana, depondo contra os “foros de cidade civilizada”. Apoiados nesses parâmetros, justificando-se e sendo endossados pelas elites locais que os veículos de comunicação impressos atuaram no sentido de discriminar e estabelecer uma licenciosidade perigosa aos espaços das “mulheres e homens da vida”. Como já demonstrado, o Semanário Folha do Norte ávido propagador da referida modernização, utilizou as suas páginas e a eloqüência dos seus articulistas e colaboradores para disseminar a partir de uma visão unilateral e depreciativa os comportamentos e territórios ditos marginais. Assim, divulgava-se amplamente notas policiais, cenas de crime e violência, além das denúncias à saúde e moral pública. Foi providêncial essa desapparição e oxalá a engenharia municipal e a Saúde Pública conjuguem esforços no sentido de virem a ser demolidos outros antros de gente de vida airada infectos e inficcionantes, pocilgas já em ruínas, como são, por exemplo, os immundos cochicholos da rua Riachuelo, que não dispõem de um palmo dos mesmos, para serventia dos que ocupam. Ali faz-se despejo de excretos e águas servidas de toda espécie em pleno leito da travessa que também atravancam com 65 Arquivo Público de Feira de Santana. Código de Posturas do Município. Decreto-lei nº 01 de 29 de dezembro de 1937. 40 vasilhames de cosinha, mêsas desconjuntadas, catres intanguidos de parasitas, bacias e gamelas em que lavam roupas ao ar livre, transformando em coradouro o passivo que os defronta. Ainda há mais: o glossário de termos indecorosos ali em uso constitue verdadeiro attentado à moral pública. Por tudo isso, merecem desapparecer taes casebres tão prejudiciaes no centro de 66 uma cidade adiantada e culta como é a Feira. (grifo nosso) O direcionamento da marginalização territorial focou-se principalmente da Rua de Cima e Rua do Meio, seguidos pelos becos ruelas que entrelaçavam-se e interagiam semiologicamente. As referidas vias compunham a “cartografia do Prazer” da urbe feirense, sendo as mesmas ocupadas por casas de cômodos, “cochicholos” e cabarés. A corporificação dos indivíduos com seus espaços dava-se numa leitura de pertencimento, identidade e performance67. Nessa perspectiva, a constituição da Rua de Cima e seu zonal como território de marginal, esta intimamente ligada à relação estabelecida entre seus habitantes, que corporificam seus espaços com seus movimentos cotidianos. No caso em questão, encontramos as decaídas e seus pares que habitavam a tal território, criando desta forma, redes de sociabilidade, que transitavam entre a prostituição, a manteúda, o alcoolismo, os furtos, as brigas, estabelecendo de fato, práticas de sobrevivência, resistência e territorialização. E o Jornal não poupava espaço em suas páginas para divulgar tais sociabilidades, visto pelo viés elitista. Estão se tornando celebres pelas proezas, as decahidas que residem no castelo de número 79, a rua de Cima. A noite, principalmente, as viciadas praticam ali toda sorte de desatinos, esquecendo-se de que passam e residem familiares naquele trecho. Correrias, risadas escandalosas, termos pornographicos e discussões em altas vozes e até actos indecorosos, eis tudo o que se ouve e se vê à porta do citado cortiço. O Sr. Cap. Delegado de policia ignora estes factos. Certos, porém, de que a digna autoridade saberá 66 BSMRG – CENEF - Folha do Norte de 27 de janeiro de 1940. Ver BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003. 67 41 tomar as necessárias providências, deixamos ao seu zelo o que fica 68 dito. (grifo nosso) Ainda: Fazendo concorrência às viellas mal afamadas em que se agita a gente do bas-fond, o Becco da Esteira continua em foco por seus eventos... policiaes. Na embocadura da celebérrima travessa arraiam viciosos para a pratica de jogo de azar às escancaras, sem temores dos dispositivos da lei e dos agentes da Força Publica. E o peór é que para ali affluem 69 garotos das ruas amestrando-se em trapaças. A dês-re-territorialização física e simbólica do centro feirense foi um campo de conflito e resistências. As decaídas e seus pares mantinham suas socializações nos cabarés e nos becos e enfrentavam a ordem modernizante com seus costumes e jogos cotidianos, através de xingamentos e brigas constantes, dando corporeidade a zona de meretrício. Segundo Margareth Rago, Ao agrupar os indivíduos através de redes subterrâneas de convivência e solidariedade, apresentava-se como um território que viabilizava a experiência de relacionamentos multifacetados e plurais, num contexto de distensão. Práticas licenciosas que contrariavam a exclusividade sexual imposta pela ordem, tanto quanto encontros, brincadeiras e jogos que ocorriam nos cabarés e “pensões alegres” 70 da cidade conformavam um espaço importante de interação social. Na leitura da cidade, a zona do meretrício é tipificada em Feira de Santana de meados do século passado entre a Rua de Cima, a Rua do Meio, os becos e ruelas, lidos pelas suas licenciosidades marginais e pelas performances das suas moradoras tão famosas nos meios de comunicação impressos. Assim, em publicação do dia 10 de fevereiro de 1945, o poeta Fabio Bahia publicou um poema com título Rua de Cima71. Neste poema, o autor faz 68 BSMRG – CENEF- Folha do Norte de 09 de março de 1935. BSMRG – CENEF- Folha do Norte de 14 de abril 1935 70 RAGO, Margareth. Os Prazeres da Noite: prostituição e códigos da sexualidade feminina em São Paulo. 1890-1930. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991 71 Poema Rua de Cima de autoria de Fabio Bahia, publicada no Jornal Folha do Norte de 02 de fevereiro de 1945. 69 42 uma caminhada pela afamada Rua como sugere Certeau72, apreendendo o cotidiano dos seus sujeitos. Em cada passo do autor pela rua, evoca-se aspectos das condições de vida dessa mulheres, debatendo sobre as sociabilidades e redes horizontais da dinâmica sexo/econômica e cultural dessas mulheres, assim como, apresentando noções de padrões de saúde e higiênicas. O poema é um olhar sobre esses sujeitos, mas permite-nos empreender sobre o cotidiano social e moral tanto dos indivíduos retratados, bem como, a moralidade sanitária republicana. Assim, ao tempo que o poeta adentra na “rua dentro de outras ruas”, caminha pelo que ele chama de “inferno de loucuras, pedaços infectos de vida”, mostrando-nos territorialidades. Rua de Cima Inferno de loucuras Pedaços infectos de vida De vida sem rumo De vida sem vida E o amor! O amor! Amor deteriorado Opulentando o gôso em cubículos imundos. São seios Seios queimando febre Seios jovens que dansam Na taça da doença. Rua de Cima algazzarra de vozes Gritando... Gritando... Nomes feios! Escândalos! Barulho! 72 CERTEAU, Michel. A invenção do Cotidiano. 1. Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994. 43 Barulho misturadocom samba Barulho misturado com beijos! Ria de cima Rua dentro das outras ruas Confraternização de inúmeras mizerias Meninas de doze... Meninas de treze... Meninas perdidas Sem culpa nenhuma. Mães parindo Morrendo de parto Sofrendo... Sofrendo... Rua dentro das outras ruas Rua de Cima A sífilis devora tudo Devora seios Devora beijos Meninas de doze... Meninas de treze... Meninas sem dono Meninas perdidas. 73 A “Rua dentro de outras ruas” foi assim o palco do desenrolar de história de mulheres marginais, onde se encenou provavelmente incontáveis conflitos sócio-afetivo-sexuais e econômicos, impossíveis aqui de serem mensurados. A conflitualidade dessa “cartografia do prazer” era postada no Semanário, evidenciando as cenas de violência e a perturbação da ordem. Essas veiculações reafirmavam a necessidade de um ordenamento daquele espaço, 73 BSMRG – CENEF- Folha do Norte 10 de fevereiro de 1945. 44 gerando, por sua vez, a des-re-territorilização dessas mulheres e seus costumes. Não é a primeira vez que nos ocupamos dos factos deprimentes que se desenrolam na celebre rua de Cima. Farta de ser, talvez, a via urbana freqüentada por farristas impenitentes e habitada por meretrizes desenvoltas, quer agora ter a feição turbulenta do tradicional morro da Favela. Na sexta feira passada, agredido a porta do bar de sua propriedade pela decahida de nome Helena, conhecida pelos seus maus costumes, o rapaz de nome Zuzuca procurou reagir. Helena, porém, que conduzia um copo de meladinha pra fazer os aperitivos de seu uso, produziu-lhe com o mesmo, fundo golpe no braço esquerdo, tendo havido grande derramamento de sangue. Enquanto a victima encaminhava-se para receber curativos na Pharmacia Sant‟Ana, a desordeira do 77 occultou-se para fugir à 74 ação punitiva da autoridade competente. [sic] Num rápido passeio pela Rua de Cima e uma entrada em um dos bordéis dos tantos becos da cidade, é possível notar nossas protagonistas corporificando o seu espaço. A efetivação das relações sexo-afetivas e econômicas que se estabeleceram nesses territórios nos permitem compreender os perfis sociais e a própria dinâmica sociocultural e econômica da cidade de Feira de Santana em meados do século XX. Isso é compreendido nas ocorrências e nos noticiários, no qual, o dia da segunda-feira é o dia da semana de maior fluxo no meretrício, lotando os cabarés. O fato desse fluxo de pessoas na zona era decorrente da realização da famosa feira livre que ocorria no centro da cidade, sendo esta, um espaço de sociabilidades múltiplas e de complexas redes de manutenção social, econômica, cultural e identitária.75 O fluxo migratório de pessoas que vinham para a cidade para o comércio na feira livre, facilitava e favorecia a manutenção dos territórios marginais, dando a estes sustentabilidade e manutenção. Com grande aborecimento para as famílias que residem nas proximidades da famosa rua de cima, voltou a funcionar em noite de 74 BSMRG – CENEF- Folha do Norte de 16 de março de 1935 MOREIRA, V. D. . Caminhos históricos da feira de Feira de Santana. Sitientibus. Revista da Universidade Estadual de Feira de Santana, Feira de Santana, v. 10, p. 185-189, 1992. 75 45 segunda feira passada o infernal bailarico que os farristas freqüentadores daquela anarchisada via publica, organizam quando querem e da maneira que melhor entendem. E foi assim que expandiu-se até ao amanhecer de terça-feira os incontentados dançarinos do incommodo cabaré, roubaram durante aquela noite o somno às pessoas que durante o dia empregam as 76 suas actividades em afazeres honestos. [sic] O fluxo migratório também favorecia o aumento das cenas de violência físicas e simbólicas envolvendo as mulheres do meretrício no centro da cidade e seus pares. Essas “cenas de sangue” eram motivadas por diversos fatores que incluem a própria socialização nesses espaços licenciosos às extravagâncias. Desta maneira, as bebedeiras, as arruaças e as risadarias, dominavam a cena nos dias de segunda-feira. Logicamente a polícia dos costumes não se furtaria de intervir nessa dinâmica. As batidas policias e confrontos violentos eram amplamente divulgados no Jornal Folha do Norte com a intenção de corroborar com periculosidade daqueles “territórios do prazer”. Os próprios títulos das matérias ganhava, um dom sensacionalista, objetivando estabelecer e alcançar a moralidade pública. Assim saiam no Jornal: Recebeu uma facada enquanto discutia77, Uma cena de sangue na rua de Cima78; Entre chamas de Fogo79, etc. É possível mensurar como estas notícias produziam discursos e representações, imprimindo tipificações moralistas sobre as decaídas e seus pares. Assim, o Jornal Folha do Norte ao relatar as ocorrências de transgressões na zona nos dias de segunda-feira, estabelecia uma lógica de compreensão da vida urbana feirense, ao lado da caracterização popular marginal, estavam inseridos códigos de sociabilidades que ultrapassavam o espaço do meretrício. Ainda assim, os manipuladores dos discursos jornalísticos feirense deleitavam-se nessas notas, estabelecendo cunhos morais. Segunda-feira última por questão de cuimes, perto de um casebre onde residem duas mulheres de vida airada e há pouco 76 BSMRG – CENEF- Folha do Norte de 25 de junho 1936. BSMRG – CENEF- Folha do Norte de 18 de junho de 1932. 78 BSMRG – CENEF- Folha do Norte 21 de junho de 1935 79 BSMRG – CENEF- Folha do Norte 25 de abril de 1938 77 46 tempo suicidou-se por ciúmes um infeliz, o individuo de nome Joaquim de tal, armado de larga faca a que chamam de peixeira, vibrou profundo golpe no peito esquerdo de seu desafeiçoado Elias, 80 prostando-o sem vida. Ainda: Segunda feira ultima, às 6 horas da noite, na travessa General Pedra, o individuo de nome Valentim de tal, Enciumado, travou forte discussão com Mariquinhas de tal, terminado o carroceiro por sacar de uma faca e craval-a na região clavicular de sua contendora. A Victima foi recolhida ao hospital desta, cidade onde se acha em 81 tratamento. Assim como: Ainda segunda-feira ultima, à luz do sol no zenith – meio-dia amotinou-se o becco recebendo ferimentos leve uma mulher 82 envolvida na arruaça. A potencialidade desses discursos construtores de uma civilidade moral para Feira de Santana era uma mecanismo de estabelecer controle e visões de mundo sobre os populares marginais do centro da cidade, especialmente, as mulheres que numa dinâmica de gênero contestavam com suas experiências cotidianas as submissões do controle do poder público e da polícia dos costumes, mostrando-se empoderadas, reagindo com gritos e arruaças, tumultuando as vias centrais da urbe, constituindo, ainda que, involuntariamente, uma posição política de luta e resistência. 1.4 Mundanas na Rua do Meio Entre a casa de cômodos e o cabaré, as mulheres que habitavam a Rua Sales Barbosa, no centro da cidade de Feira de Santana, constituíam suas 80 BSMRG – CENEF - Folha do norte 21 de maio de 1938 BSMRG – CENEF - Folha do norte 18 de junho de 1932 82 BSMRG – CENEF - Folha do Norte de 14 de abril de 1935. 81 47 sociabilidades marginais, interagindo entre navalhas, socos e bebedeiras, com os farristas que enchiam os cabarés onde predominavam as decaidas e mundanas, com risadas escandalosas e “glossários de termos indecoros” que as eram peculiar. Não raro, um espaço como este, será palco de cenas de violência que interagiam com os habitantes nessa configuração das territorialidades. Para Eric Souza, observar alguns sujeitos marginais com seus corpos e performances em linhas de fuga, ou nas suas dês-re-territorializações, possibilita a percepção da dimensão do gênero como uma categoria de análise.83 Assim, as mundanas ao protagonizarem cenas de violência e arruaças no centro da cidade, usufruíam da desconstrução de modelos rígidos, que estabeleciam o feminino como delicado, meigo, materno e, por sua vez, privado.84 Assim no dia 22 de março de 1942, aproximadamente a meia noite, no cabaré do Janico situado na afamada Rua Sales Barbosa, entrou em conflito a mundana Josefa Pereira, mais conhecida como “Zefinha” e Dourivaldo Dórea, um negociante de gado.85 Esses dados já indicam algumas peculiaridades das mulheres da Rua do Meio86, pois, pelo avançado horário da noite, as ditas “mulheres de famílias” já estavam dormindo depois de cumprirem seu papel de esposa e mãe. A que ressaltar que o fato de uma mulher sair a noite era um indicador de sua “má conduta”87. O jovem Dourivaldo Dórea, com 21 anos, solteiro, era um freqüentador da zona de mulheres, sendo conhecido pelos seus “atos de libertinagem com que tratavam as mulheres do meretrício”88, no referido dia Dorivaldo embriagado provocou a mundana “Zefinha” dando-lhe um “purrute”. Pela 83 SOUZA, Eric Ferreira. Territórios Marginais: disciplina e desejos na cidade de Salvador (1900-1958). In: ALVES, Ivia e COSTA, Ana Alice. Construindo interdisciplinaridades: estudos de gênero na Bahia. Salvador, UFBA, NEIM, 2008, p. 90. 84 RAGO, Margareth. Os Prazeres da Noite: prostituição e códigos da sexualidade feminina em São Paulo. 1890-1930. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991 85 CEDOC/UEFS - Josefa Ferreira – Doc. 373; Cx 20; Est. 01; ano 1942. Termo também utilizado para identificar a Rua Sales Barbosa. 87 Esse fato é amplamente abordados nos Processos de defloramento que discutimos no III Capitulo. 88 CEDOC/UEFS - Josefa Ferreira – Doc. 373; Cx 20; Est. 01; ano 1942. 86 48 descrição, esse “purrute” foi uma beliscão nas nádegas da mundana, o que a deixou irritada, reagindo de maneira inusitada, jogando no mesmo a cerveja que estava no copo que a mesma bebia. Aqui aparece outra cena a ser discutida sobre o comportamento feminino e o contraponto estabelecido pelas mundanas, pois, Josefa reage a agressão, contestando a posição de submissão e passividade que configuravam as representações do feminino. O ato de “Zefinha” é uma nítida contestação à imposição masculina e uma demonstração de controle sobre da mesma sobre o corpo e seus territórios.. Alijado em sua masculinidade, Dorivaldo parte para cima de “Zefinha” objetivando agredi-la fisicamente, contudo, neste embate é Dorivaldo que acaba sendo ferido, apresentando um corte no rosto. A descrição da cena da briga é muito confusa no processo, mas o fato de Dorivaldo estar alcoolizado deu a Josefa uma vantagem em relação ao seu oponente. Como Dorivaldo estava acompanhado de um policial, Josefa é recolhida em flagrante para a cadeia pública, enquanto Dorivaldo seguiu para o Hospital Dom Pedro de Alcântara. Aqui surgem outras problematizações sobre o cotidiano na zona de meretrício, que pela manhã é perseguida pela polícia e a noite, servem de diversão à mesma89. Durante o inquérito aparecem outros elementos importantes na compreensão do cotidiano popular marginal, pois, Dorivaldo relata que a agressão de Josefa contra ele foi motivado por ciúmes, porque no momento em que Josefa lhe joga a cerveja ele estava com outra mulher. É bom frisarmos que Dorivaldo representava um “bom partido” dentro da zona, pois, era um negociante de gado, atividade de prestigio social, numa sociedade onde a base econômica era o comércio de bovinos. Indivíduos como Dorivaldo podiam representar na zona de meretrício, uma noite bem paga, talvez, este seja um dos motivadores de o mesmo agir com tanta libertinagem com as meretrizes. 89 SOUZA, Eric Ferreira. Territórios Marginais: disciplina e desejos na cidade de Salvador (1900-1958). In: ALVES, Ivia e COSTA, Ana Alice. Construindo interdisciplinaridades: estudos de gênero na Bahia. Salvador, UFBA, NEIM, 2008, p. 90. 49 Josefa Pereira é absolvida da denúncia de lesão corporal, incursa nos art. 129 do Código Penal de 1940. É interessante destacar neste processo a sensibilidade do Juiz Oscar Mesquita, que descreve Josefa Pereira com a verdadeira vítima do Processo. Segundo o magistrado: Da história desse vil episodio cru e realismo, refeito de “purrutes” e cervejadas, só pode haver uma conclusão: Zefinha aqui em legitima defesa não provocou, foi provocada. Não agrediu, foi agredida. O ferimento com a pulseira simples conseqüência da agressão, merece, 90 pois absolvição. Absolva-a. Voltando dois anos nosso olhar para a mesma Rua Sales Barbosa, encontramos a nossa protagonista envolvida em outra cena de violência. O fato ocorreu no dia 29 de setembro de 1940, aproximadamente as 21:00h na própria residência de Josefa Pereira, que era uma casa de cômodos que dividia com duas mundanas. Justamente em função das condições de moradia das mundanas é que se desencadeia esse conflito. Chalhoub na análise do cotidiano da classe trabalhadora no Rio de Janeiro observou que os problemas das moradias favoreciam entre os populares redes de solidariedade e ajuda mútua, que implicava em dividir cômodos, morar com parentes, entre outras estratégias, que necessariamente era marcada pela presença da violência. Segundo o autor: os eventuais conflitos entre parentes, compadres e amigos possuíam uma significativa densidade política, sendo expressão das tensões provenientes de lutas por poder e influencia no interior dos microgrupos socioculturais, tensões e lutas, estas inerentes à 91 dinâmica de funcionamento de qualquer grupo humano . Dessa forma, Josefa dividia a casa com outras mundanas de nome Joanita e Tavinha, na Rua Sales Barbosa, nº 55. O conflito que encerrou com o espaçamento de “Zefinha” se deu entre a referida mundana e Manoel das Candeias Sena, com 23 anos de idade, chauffer, solteiro, residente na capital do Estado. O referido chauffer mantinha sobre sua proteção financeira a 90 CEDOC/UEFS - Josefa Ferreira – Doc. 373; Cx 20; Est. 01; ano 1942. CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle époque. 2ª edição, Campinas, SP, Editora da Unicamp, 2001, p. 185. 91 50 mundana Joanita que coabitava com Josefa na mesma casa. No dia evento, Manoel e um amigo de nome Carlos estavam na casa de Josefa no quarto com suas referidas amantes e segundo a Josefa, “proferiam uma série palavras decunho obsceno, que a constrangeu”92, pois, como proprietária da casa não aceitava aquela situação, então decidiu bater na porta do quarto onde encontravam-se os amantes exigindo dos mesmos que “parassem com aquela gritaria, pois, não toleraria aquele comportamento mesmo sendo ela uma meretriz”93. Observamos que Josefa de fato era uma mulher que “não leva desaforo”. Nos dois casos em que esteve envolvida, a mesma interagiu com empoderamento, buscando evidenciar-se. As atitudes de Josefa trazem a balia uma ampla discussão acerca das desconstruções binárias do gênero, compreendendo este, não como um dado a partir do sexo, mas uma identidade sociocultural.94 O incidente de Josefa bater a porta do quarto em que se encontrava Manoel das Candeias, levou-os a uma intensa discussão na qual não pouparam palavras agressivas e insultos que alardearam a Rua Sales Barbosa, já acostumada a tais barulhos. No processo de afirmação de território e poder, Manoel avança para Josefa Pereira, agredindo-a fisicamente, dando-lhe diversos socos pelo rosto, tendo a ofendida fugido, sendo perseguida pelo mesmo pela Rua que residia, refugiando-se na casa de uma vizinha, ao tempo que o chauffer era controlado por populares que estavam nos bares. No inquérito policial o depoimento de Manoel das Candeias é elucidativo na compreensão das relações sexo-afetivas que mobilizavam a economia sexual da Rua do Meio. Segundo o acusado, o fato de o mesmo pagar parte do aluguel do quarto que caberia a Joanita, dava-o o direito de desfrutar daquele espaço, estabelecendo sues próprios códigos, assim afirmou: 92 CEDOC/UEFS – Manoel das Candeias Sena. Doc 536; Cx 31; E 02; ano 1940. CEDOC/UEFS – Manoel das Candeias Sena. Doc 536; Cx 31; E 02; ano 1940. 94 Ver: MATOS, Maria Izilda de. Meu lar é o botequim: alcoolismo e masculinidade. 2ª edição, São Paulo, Companhia Editora Nacional, 2001; SCOTT, Joan.. “Prefácio A Gender And Politcs Of History”. In: Cadernos Pagu: desarcordos e diferenças. Campinas (3) 1994. 93 51 Que tem direito por pagar parte do aluguel, com um companheiro de nome Carlos, ele respondente com a mulher de nome Joanita que vivia a custa dele, um outro companheiro de nome Roque, que 95 também estava ahi com uma outra mulher apelidada de Tavinha. Aqui aparece uma nova configuração do processo de dês-re-territorialização. Enquanto para Manoel, aquela casa era um espaço custeado por ele para sua licenciosidade prazerosa do sexo, para Josefa, aquela casa era uma referência de lar. A relação da zona de meretrício com os indivíduos que dão representatividade e configuração ao seu espaço é bastante complexa. A zona de meretrício é um espaço de territorialidades múltiplas que se constitui a partir das experiências extravagâncias e dos licenciosidades, indivíduos, em meio construindo às códigos possibilidades e condutas de na cotidianidade que também estabelecem as proibidades. Segundo a concepção de Josefa Pereira, o fato de Manoel e outros homens manterem suas amantes em sua casa através de alugueis de cômodos, não dava aos mesmos, o direito gozar de todas as liberdades e privacidades, pois este era seu lar. A atitude de Manoel pode ser compreendida como um exercício de masculinidade, estabelecendo “quem manda”, “quem tem a força”, “quem tem o dinheiro”, valores estes, propagados de maneira normativa, o que dava ao homem o direito de sobrepor-se socialmente. A agressão neste caso, não implica apenas na violência concreta, mas simbolicamente, uma vez que, Manoel além de impor-se a partir da sua força física, busca impor-se moralmente, tendo como atributos o próprio exercício da masculinidade, buscando com isso, estabelecer o seu domínio sobre aquela situação. Como discute Chalhoub o homem recorre à violência quando se percebe alijado em sua masculinidade e, dessa forma, busca na forma física reafirmá-la e impôla.96 95 CEDOC/UEFS – Manoel das Candeias Sena. Doc 536; Cx 31; E 02; ano 1940. Ver: CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle époque. 2ª edição, Campinas, SP, Editora da Unicamp, 2001. 96 52 Joana ou Joanita, inquilina da casa de Josefa Pereira, no inquérito, posiciona-se contra a sua companheira de casa e de profissão. Esta atitude é facilmente compreensível, uma vez que Joanita, mantinha uma relação sexoeconômica com o acusado, que implicava na sua manutenção e provimento. Joanita afirma que Josefa era uma mulher “barulhenta e arruaceira” 97, dado contestado por outras testemunhas arroladas no processo, que afirmavam ser Josefa uma mulher de bom proceder, mesmo “sendo uma mulher de vida livre”98. É importante destacar que esta falta de solidariedade entre as “mundanas” é motivada por questões não meramente econômicas, pois, se Joanita apoiasse Josefa, ficaria contra o seu amante, e isso seria uma inferiorização do seu “macho viril”, numa perspectiva das representação de gênero. Da mesma forma no dia 17 de abril de 1941, em mais uma casa de cômodos da Rua Sales Barbosa, nº 87, Renato de tal, conhecido vulgarmente como Renato Congo de Ouro, casado, artista, residente na cidade de Cachoeira, agrediu com uma navalha a mundana Maria Pereira de Souza, com 25 anos de idade. A vitima relata que a motivação do crime foi o ciúmes que Renato sentia dela, pois, este já havia sido seu amante. Renato não aparece para prestar depoimento durante todo o processo, então não é possível contestar a versão de Maria Pereira, que declarou que no dia do referido crime, estava ela em casa quando chegou Renato Congo de Ouro, iniciando uma forte discussão com a declarante, segundo a mesma: “depois de muito discutir com Renato, ele foi a venda que fica próxima a casa e trouxe um pouco de cachaça em um copo e procurou forçá-la a beber e como ella respondente negou-se a beber a cachaça, tendo nesta hora Renato jogado nela respondente a cachaça”99. Pelo fato ocorrido de estar suja com a cachaça, Maria desloca-se para seu quarto a fim de trocar a roupa, sendo surpreendida por Renato que faz os ferimentos no ombro com a navalha, rasgando-lhe suas vestes. 97 CEDOC/UEFS – Manoel das Candeias Sena. Doc 536; Cx 31; E 02; ano 1940. CEDOC/UEFS – Manoel das Candeias Sena. Doc 536; Cx 31; E 02; ano 1940. 99 CEDOC/UEFS – Renato de tal – Doc. 2206, Cx. 106, Est. 04, ano 1941. 98 53 A mundana Maria Pereira é muito escorregadia em seu depoimento, deixando muitas informações soltas sobre a relação que ela mantinha com Renato Congo de Ouro. Temos que atentar que as perguntas são direcionadas pelos manipuladores técnicos do processo, que as fazem seguindo os interesses dos mesmos em estabelecer verdades e contradições. Foram arroladas cinco testemunhas, todas do sexo feminino, sendo quatro moradoras da Rua Sales Barbosa. Neste caso, encontramos a solidariedade entre as mundanas que interferem no conflito acudindo a companheira de infortúnio, conduzindo-a para a hospital e delegacia. Entre as testemunhas, destacamos o depoimento da companheira de casa Maria Pereira, a mundana Ernestina Silva, com 30 anos de idade, que declarou “que quando estava ela respondente no interior da casa, ouviu os gritos de Maria Pereira que gritava pedindo socorro, pois Renato Congo de ouro queria matá-la, que foi ao quarto onde encontrou com Maria Pereira cortada e as veste rasgadas e Renato com a navalha aberta”100. Ernestina interferiu diretamente no conflito, pedindo a Renato que se retirasse da casa. A atitude de Ernestina, comparada a de Josefa Pereira e outras mulheres da zona, demonstra como estas enfrentavam os homens, subjugando a força física, em prol do seu empoderamento. Na casa de Joana No imaginário popular, quando um determinado lugar apresenta certa desordem e desmando a partir de comportamentos extravagantes, é 100 CEDOC/UEFS – Renato de tal – Doc. 2206, Cx. 106, Est. 04, ano 1941 54 vulgarmente denominado de “casa de mãe Joana”101. As zonas meretrícios, ilustradas com casas entreabertas, pouca iluminação e com mulheres a sua porta, eram um convite a praticidade do ditado, pois, como já apresentamos, estes espaços configuravam-se licencioso para a extravagância e outras atividades libidinosas e permissivas. Essa visão de fora para dentro, parecenos equivocada sobre as casas das meretrizes, pois, com a leitura da documentação observamos que as mundanas, requeriam o controle sobre suas casas e as decisões de quem poderia ou não freqüentá-la. O caso de Josefa Pereira logo acima, demonstrou esse conflito de relações com espaço do meretrício a partir de códigos internos e externos à zona. Coincidentemente, nossa próxima protagonista chama-se Joana Estrela, com 27 anos de idade, solteira, residente a Rua Sales Barbosa, nº 82. O conflito ocorreu no dia 01 de outubro de 1942, envolvendo Joana Estrela e o guarda de freios da Estrada de Ferro Leste Brasileiro, Alcebiades Francisco Pinto, 33 anos, casado. Neste conflito, Joana foi violentamente espancada na porta de sua casa102. A confusão foi desencadeada justamente pelo fato de Joana “tentar por ordem em sua casa” numa alusão ao ditado que apresentamos. O processo que envolve Joana e Alcebiades está incompleto, o que nos impediu de saber os resultados deste conflito, contendo apenas os depoimentos e o exame de corpo de delito. No entanto, a precariedade no processo de conservação do documento não inviabiliza sua potencialidade histórica no sentido de possibilitar as leituras sobre o cotidiano das mulheres na zona de meretrício, em Feira de Santana, em meados do século passado. Os depoimentos como falas “diretas” dos envolvidos no permitiu observar as versões do crime, seus motivadores e a dinâmica social das decaídas e seus amantes. 101 Esta expressão vem da Itália. Joana, rainha de Nápoles e condessa de Provença (13261382), liberou os bordéis em Avignon, onde estava refugiada, e mandou escrever nos estatutos: “Que tenha uma porta por onde todos entrarão”. O lugar ficou conhecido como Paço de Mãe Joana, em Portugal. Ao vir para o Brasil a expressão virou “Casa da Mãe Joana”. Fonte: CASCUDO, Luis Câmara. Locuções tradicionais no Brasil - 2ª edição, MEC, Rio, 1977. 102 CEDOC/UEFS – Joana Estrela. Doc. 1583; Cx 83; E 03; ano 1942. 55 Joana prestou depoimento no dia 02 de outubro de 1942, na qual a depoente dá a sua versão do fato, afirmando que Alcebiades a agrediu porque não aceitou que a depoente o abandonasse, pois, segundo Joana, esta o pediu “que não mais a procurasse e parasse de freqüentar a sua casa” 103, desencadeando uma discussão verbal entre os dois. A depoente afirma que mesmo com o seu pedido, Alcebiades continuou a freqüentar a casa da ofendida, chegando até mesmo a acomodar-se, ainda que, contra a vontade da mesma que insistia em não mais recebê-lo. No dia da ocorrência do crime, Alcebiades chega até a casa de Joana onde trava uma discussão com palavras ofensivas, afirmando Alcebiades que “ia tomar uma cachaça e voltava para ali ficar”104. Antes de retornar para casa, Joana encontra com Alcebiades na Rua, que já alcoolizado pede que ela retorne para casa, o que não é atendido, resultando em uma nova discussão culminando no espancamento. A versão acima foi apresentada por Joana Estrela na delegacia de policia. É importante atentarmos que na construção dos processos criminais, as partes constroem suas defesas e acusações a partir do próprio universo social e psicológico, buscando com isso mobilizar as opiniões daqueles que de direito possam interferir no desenrolar de cada processo, nas versões construídas, nos fatos alterados, nas contradições. Tudo isso se dá por meio dos atores e atrizes sociais envolvidos, que buscam no espaço da instância jurídica produzir um discurso que visa sempre a auto defesa105. Atentemos agora para a versão produzida pelo Guarda de Freios Alcebiades Pinto. Segundo o denunciado, ele “freqüentou” por muito tempo a casa de Joana, porém, tinha algum tempo que deixou de “fazer as visitas”. O sentido cotidiano de “frequentar a casa”, transmite-nos a certeza que havia uma relação entre os envolvidos, e esta relação permeava fatores de sobrevivência econômica e social. Segue o depoente a afirmar que, por causa 103 CEDOC/UEFS - Joana Estrela. Doc 1583; Cx 83; E 03; ano 1942. CEDOC/UEFS -Joana Estrela. Doc 1583; Cx 83; E 03; ano 1942. 105 CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle époque. 2ª edição, Campinas, SP, Editora da Unicamp, 2001; CORRÊA, Marisa. Morte em Família: representações jurídicas de papeis sexuais. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1983. 104 56 desta ausência, Joana passou a procurá-lo constantemente, indo por diversas vezes ao seu local de trabalho, reivindicando a presença do mesmo em sua casa. Devido às idas constante de Joana ao local de trabalho de Alcebiades na Estrada de Ferro, o mesmo já havia recebido algumas reclamações do supervisor, afinal, Joana tratava-se de uma “mulher de vida livre”106. Devido à tamanha insistência de Joana, o mesmo decidiu ir “visitá-la”. No entanto, ao chegar à casa de Joana, ao vê-lo em sua porta, a referida mundana impediu a sua entrada, mandando-o embora. O comportamento de Joana deixou Alcebiades extremante irritado, afinal, ele como homem, estava sendo sujeitado por uma “meretriz”, dessa forma, a atitude de Joana que impedindo que o mesmo adentrasse em sua casa, demonstra um processo de empoderamento de controle de Joana sobre sua casa, seu corpo e sua vida. Mesmo irritado, Alcebiades afirma que foi embora da casa de Joana, porém, momentos depois, o acusado a encontra andando na Rua Sales Barbosa, este que já estava sob o efeito da embriaguez, volta a discutir com Joana, agredindo-a fisicamente. Entre as versões de Joana de Alcebiades, existem muitos pontos convergentes, o primeiro é a confirmação de que havia uma relação sexoeconômica entre ambos, mesmo sendo Alcebiades casado, com residência na cidade de São Felix. O segundo, é o fato de que houve um conflito motivado pelo controle de territórios, pois, tanto Joana quanto Alcebiades, relatam a questão da permanência ou impedimento do acusado freqüentar a casa da mesma. O terceiro está associado ao fato da própria materialidade do crime e sua ocorrência na Rua Sales Barbosa. As relações de sobrevivência das mulheres pobres eram marcadas por certa autonomia em relação ao homem. As mundanas da Rua do Meio apresentam essa face das mulheres populares, que por sua condição de classe social, permitiam que as mesmas realizassem escolhas em sua vida sexo- 106 CEDOC/UEFS -Joana Estrela. Doc 1583; Cx 83; E 03; ano 1942 57 afetiva.107Assim, era Joana e suas congêneres nesse contexto de interação sócio-sexual e econômico das zonas de meretrício feirense. A negação de Joana a presença de Alcebiades em sua casa, pode ter sido motivada por diversos fatores, um dos motivos prováveis seria o fato de que Joana, possivelmente, estivesse se relacionando com outro homem e, portanto, estivesse escondendo de Alcebiades. No entanto, este fato de empoderamento é significativo para repensar as construções sociais de submissão feminina e os papéis de gênero. O desenvolver destes fatos nos releva fatores importantes para a compreensão da dinâmica afetivo-sexual das camadas populares, inclusive das “mulheres de vida livre”108. Joana era uma das mundanas que morava no centro da urbe feirense e Alcebíades era um dos muitos homens casados ou solteiros que freqüentavam cotidianamente a “zona”, estabelecendo redes de sociabilidades nesta economia sexual. Os” chivarís” da Rua do Meio Como já apresentamos, a Rua Sales Barbosa era o centro da vida boêmia de Feira de Santana no primeiro meado do século XX, assim, este espaço de sociabilidade marginal conjugava meretrizes, farristas, jogadores, gatunos, etc. Num misto de conflito e solidariedade esses sujeitos interagiam uns com os outros e com o espaço, constituindo territorialidades que 107 ASSIS, Nancy Rita Sento Sé. Questões de vida e de morte na Bahia Republicana: valores e comportamentos sociais das camadas subalternas soteropolitanas. Salvador: UFBA, dissertação de Mestrado, 1997; CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle époque. 2ª edição, Campinas, SP, Editora da Unicamp, 2001; FERREIRA FILHO, Alberto Heráclito. Salvador das Mulheres: condição feminina e cotidiano popular na Belle Époque Imperfeita, (dissertação de Mestrado), Salvador: UFBA, 1994. 108 CEDOC/UEFS – Joana Estrela. Doc 1583, Cx 83, E 03, ano 1942. 58 transcendiam entre os espaços, os corpos e comportamentos desses sujeitos estabelecendo uma “cartografia do prazer”. Assim, no dia 01 de setembro de 1947109, o negociante Gilberto de Oliveira, casado, com 23 anos de idade, dançava e bebia em cabaré na Rua Sales Barbosa. Mesmo alcoolizado, Gilberto continuava a dançar, empunhando de uma garrafa de cerveja na mão que “imprudentemente” deixou cair no chão, produzindo estilhaços que atingem a “mundana” Doralice, cortando-lhe no pé, fazendo jorrar “muito sangue no salão”110. A principio este fato poderia ter passado despercebido frente aos constantes conflitos encenados naquela via urbana. No entanto, este caso chega ao conhecimento das autoridades policiais sem que a ofendida tenha produzido uma queixa. Na portaria do inquérito o delegado Durval Tavares Carneiro explicita os fatos: Chegando ao meu conhecimento que a mundana Doralice de Oliveira da Silva, quando dançava ontem em um cabaré, no baixo meretrício desta cidade, foi ferida por um estilhaço de garrafa, jogada no chão, imprudentemente por Gilberto Ferreira, provocando forte hemorragia, ao ponto de precisar socorro medico, determino que, 111 seja instaurado inquérito. Este fato nos leva a alguns questionamentos, pois, o que motivou com que um fato corriqueiro na zona de meretrício, ocupasse as páginas policiais produzindo-se um inquérito e posteriormente uma denúncia pública? Ainda que o crime em questão não tenha sido motivado por questões explicitamente de conflito de gênero ou sexo-afetivo, o caso abre portas para compreender o controle policial sobre este território, assim como revela outras facetas do cotidiano das mulheres da Rua do Meio. O importante para os manipuladores técnicos desse processo não foi a agressão, mas sim, o debate sobre a sociabilidade marginal das mundanas e seus agregados. Dessa forma, os discursos produzidos pelos manipuladores técnicos estavam em consonância com as propostas da elite local, em 109 CEDOC/UEFS – Gilberto Ferreira. Doc 827; Cx 49; E 02; ano 1947. 110 CEDOC/UEFS – Gilberto Ferreira. Doc 827; Cx 49; E 02; ano 1947. 111 CEDOC/UEFS – Gilberto Ferreira - Doc 827; Cx 49; E 02; ano 1947. 59 depreciar o cotidiano desses sujeitos, assim como evidenciar as possibilidades de perigo desses sujeitos em seu espaço, buscando interferir através de uma política de controle moral. Isso é denotativo na denúncia do Promotor Público Fernando Alves Dias: Não sabemos se tudo esta acabado ou se é sinal e requintada civilização. O certo é que o circulo da moral que era maior do que o do direito, hoje em dia é muitas vezes menor. E vamos de ladeira abaixo. Gilberto Pereira de Oliveira, branco, casado, dansava[sic] no dia 01 de setembro de 1947 num bas fond da Rua Sales Barbosa. As horas tantas, já embriagado, dansa[sic] imprudentemente com uma garrafa de cerveja, deixando a mesma cair no chão. Os estilhões[sic] 112 atingem a mundana Doralice Oliveira da Silva Os envolvidos prestam depoimento, sendo uníssono, entre réu e vítima o caráter acidental da agressão, afirmando até, que o próprio Gilberto deu toda assistência a vítima, conduzindo-a ao hospital e custeando todos os cuidados referentes a curativos.113 O processo foi arquivado, porém, todas essas ações foram denotativas da política moral de combate ao meretrício e sua efetiva perseguição. Em outro processo, encontramos a mesma Doralice Oliveira envolvida em outra cena de polícia, apesar de Doralice ser a motivação para este processo ter sido lido, ela não é nem agressora nem é a vítima em questão. Ela aparece como coadjuvante, mas protagonizou com seu amante a cena que deixou o motorista Martins Alves Pereira, solteiro, 27 anos, residente na Rua Quintino Bocaiúva ferido na cabeça. Era madrugada de segunda-feira, no dia 04 de agosto de 1946, o cabaré do Zuzuca na Rua Sales Barbosa estava cheio, como de costume os cabarés aumentarem a freqüência neste dia da semana, com já evidenciamos. Nessa interação de farristas e mundanas, entrou no cabaré, o policial Walter Lacerda, chegando logo em seguida Doralice, amante do referido policial, que já entrou no cabaré em discussão com amante. Dessa discussão resultou em Walter partir para agredi-la, 112 113 CEDOC/UEFS – Gilberto Ferreira - Doc 827; Cx 49; E 02; ano 1947. CEDOC/UEFS – Gilberto Ferreira - Doc 827; Cx 49; E 02; ano 1947. 60 “levantando um tamborete do bar para arrumar em Doralice, quando pegou em cheio na cabeça de Martins”114, que agredido volta-se para Walter Lacerda questionando sua atitude, tendo como resposta um murro, acompanhado da máxima: ““eu sou Policia”115. O proprietário do cabaré, Zuzuca, declarou que Walter Lacerda já entrou no seu estabelecimento dando muitas risadas, e gabando-se do fato de ter agredido a amante, dizendo “eu agora mesmo dei um tapa na cara de Doralice”116 e continuou a dizer palavras obscenas dentro do cabaré. Zuzuca ainda traz mais detalhes da cena, declarando que “no mesmo momento entra Doralice pela casa a dentro chorando ai Walter foi ao encontro da mesma querendo bater novamente” afirmando a todo instante “sou polícia, eu faço o que quero aqui dentro”117. Os casos em que Doralice esteve envolvida, são interessantes no processo de leitura da política moral das zonas de meretrício. A mesma polícia de perseguia a zona, convivia cotidianamente nesses espaços e com os sujeitos outrora perseguidos. O segundo processo sinaliza-nos para o fato de Doralice manter um caso com um policial; este pode ter sido um dos veículos que levaram a abertura do inquérito no incidente da mesma com Gilberto um ano após o evento no cabaré do Zuzuca. Segundo Eric Ferreira, “é imprescindível perceber que o policial que reprimia a desordem era o mesmo que podia subverter a ordem, logo após a retirada da sua farda, ou, até mesmo, ainda com ela. Portanto, ele era um dos construtores da “cartografia marginal”118 Essa compreensão de gênero, territórios e identidades é significativo para a compreensão do cotidiano das mulheres pobres do meretricio. Sujeitos tipificados como decaídas, horizontais, mundanas, infelizes, mas, em seus 114 CEDOC/UEFS – Walter Lacerda – Doc. 1765, Cx. 91, Est. 04, Ano 1946. CEDOC/UEFS – Walter Lacerda – Doc. 1765, Cx. 91, Est. 04, Ano 1946. 116 CEDOC/UEFS – Walter Lacerda – Doc. 1765, Cx. 91, Est. 04, Ano 1946. 117 CEDOC/UEFS – Walter Lacerda – Doc. 1765, Cx. 91, Est. 04, Ano 1946. 118 SOUZA, Eric Ferreira. Territórios Marginais: disciplina e desejos na cidade de Salvador (1900-1958). In: ALVES, Ivia e COSTA, Ana Alice. Construindo interdisciplinaridades: estudos de gênero na Bahia. Salvador, UFBA, NEIM, 2008, p. 90. 115 61 movimentos territoriais, sejam físicos ou simbólicos mostram-se empoderadas. Percebendo as interações e continuidades históricas, observamos que até hoje, no centro da cidade, sem a presença das famílias abastadas, mas dominado pelo comércio colorido, disforme e barulhento, encontramos as prostitutas, habitando os mesmo espaços, porém com novas territorializações da Rua do Meio, Rua de Cima, nos becos e esquinas, ocupando ainda as páginas dos jornais locais e as delegacias da cidade, evidenciando as práticas de violência, vividas e praticadas pelas mesmas. 62 CAPITULO II BRIGANDO, AMANDO E VIVENDO... 63 Adentrar na intimidade das nossas protagonistas é ao mesmo tempo conhecer e ultrapassar os limites da porta da rua e penetrar no cotidiano doméstico, revelando assim os comportamentos de homens e mulheres das camadas populares, em Feira de Santana, em meados do século XX. Pensar as relações do cotidiano de homens e mulheres pobres parece-nos uma forma de trazer à baila a maneira como viviam e interagiam esses sujeitos sociais, a partir de seus códigos, condutas e valores que davam significados aos seus modos de viver119. Assim, esse tema pode parecer simples no primeiro olhar, porém, ganha uma complexidade com a aproximação do olhar sobre as relações de conjugalidade, vizinhança, trabalho, estabelecendo, desta forma, espaços de resistência e sobrevivência onde se observa a dinâmica das lutas sociais particularizadas.120 Olhemos assim para além do buraco da fechadura. Faz-se necessário compreender o cotidiano popular e os sentidos dos comportamentos das mulheres e homens pobres que buscaram nas instâncias policiais e jurídicas um veículo de resolução dos seus conflitos. Este cotidiano nos revela histórias corporificadas, numa completa práxis, no qual se estabelece que o “privado é público”. Assim, somente através de uma reconstituição investigativa de um completo e complexo quebra-cabeça, onde cada peça em questão sugere que outra se encaixe, afim de formar num amplo mosaico de cores e formas, uma figura legível e compreensível da sociedade feirense e seus conflitos de sexo-afetivo. No declinar das histórias com suas incontáveis peças do quebra-cabeça social, revelam-se as numerosas cenas onde emergem as experiências e sobrevivências dos sujeitos sociais revelando o cotidiano e as formas de amor e violência em Feira de Santana nas décadas de 1930 a 1948. No presente capítulo selecionamos trinta e cinco processos, divididos entre processos criminais de lesões corporais, homicídios e infanticídios, sendo 119 Ver: GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. LTC editora, Rio de Janeiro, 1989; e CERTEAU, Michel. A invenção do Cotidiano. 1. Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994. 120 GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. 64 a distribuição quantitativa são de vinte e sete processos de Lesões Corporais e sete processos de Homicídios e hum processo de infanticídio, nos quais pudemos coletar dados e estabelecer relações acerca das construções sociais sobre as identidades sexuais e de gênero, bem como, compreender as formas de conjugalidades e os conflitos domésticos motivados pela dinâmica sexoafetiva, assim como, as redes de sociabilidades entre vizinhos, focalizando nas relações de motivadas pela condição de gênero, procurando estabelecer uma análise sobre os elementos constituintes dos conflitos e tensões. Mariza Correia no estudo sobre as representações sociais e sexuais através dos aparelhos judiciais demonstra que o julgamento da justiça é um esforço de imprimir na sociedade um modelo lógico e legitimo de comportamento. Assim, julgam-se comportamentos a partir de um sistema de normas e valores pensados universalmente. Desta maneira, os julgamentos não focam nos indivíduos, mas de que maneira aquele ato tem representação social.121 Segundo Boris Fausto, a peça artesanal dos processos criminais, contém uma rede de signos que se impõem à primeira vista, antes mesmo de uma leitura mais cuidadosa do discurso, assim, o documento é carregado de significações juntando as redes de relações dos envolvidos, como cônjuges, patrões, vzinhos, parentes, estabelecendo assim, as conformidades dos envolvidos com sua compreensão dos ditames socioculturais122. Dessa maneira, constatamos que os valores evocados nos pelos agentes jurídicos, ou manipuladores técnicos, na apropriação do termo utilizado por Correa, através dos advogados, promotores e juízes, visam sempre a universalidade, buscando adequar o sumário de culpa aos padrões exigidos socialmente. No caso em questão, ligados à condição de gênero, sugerem sempre valores pautados em modelos dominantes de masculino e feminino, que não correspondem ao modo de vida dos populares, tais como recato, delicadeza, submissão, sempre vinculados como constituintes da feminilidade. 121 CORRÊA, Marisa. Morte em Família: representações jurídicas de papeis sexuais. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1983. 122 FAUSTO, Boris. Crime e Cotidiano: a criminalidade em São Paulo (1880-1924). São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2º Edição, 2001. 65 No que tange à questão das representações jurídicas, uma conduta amplamente utilizada nos crimes passionais será a defesa da honra, uma vez que, a honra do homem depende da conduta da mulher, estando nesta máxima, uma chave da dominação e expropriação sexista da mulher. Assim, justifica-se que o homem, ferido em sua honra, prive-se dos sentidos racionais e se sinta motivado ao crime, ainda mais se acompanhado estiver de uma boa dose de cachaça, ou seja, o alcoolismo nos atos de crimes passionais é mais um elemento tensionador no mundo dos delitos. Nos processos-criminais observamos uma face da sociedade que julga e outra que é julgada, a partir de modelos de conformidades legais. 123 Nos trinta e cinco processos aqui evidenciados de lesões corporais e homicídios, podemos estabelecer um perfil social sobre os indivíduos envolvidos nos delitos, observando as relações entre agressores e vitimas, os instrumentos utilizados no delito, as ocupações profissões, entre outros dados que nos permitem fazer afirmações sobre o período estudado. Com o objetivo de estabelecer uma leitura a partir do conceito de gênero, buscamos analisar os perfis e padrões de comportamentos dos envolvidos nos crimes, identificados a partir dos conflitos sexo afetivos. Dessa forma, observamos que a relação entre agressores(as) e vítimas, segundo a identificação sexual, encontramos uma predominância masculina entre os agressores, (68,57%), onde é possível discutir essa configuração da violência masculina, apreendida socialmente como um dado “natural” e por sua vez, constituinte da identidade masculina, sendo portanto, compreensível a partir das relações simbólicas de dominação, como chamou a atenção Bourdieu 124. Quando observamos os índices das vítimas, esses dados ainda são mais reveladores, pois, a mulheres representam 80%. Cabe ressaltar que são sinalizadores das condições de violência de gênero, tomadas como referências os conflitos entre mulheres X homens e mulheres x mulheres em Feira de 123 Ver FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. 36. ed. Petrópolis – RJ, Vozes, 2009. 124 BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. 5ª Edição, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. 66 Santana, em meados do século XX. Vale destacar que há um número muito maior de processos arquivados no CEDOC/UEFS que permitem essa análise, porém, frisamos, que os aqui evidenciados foram selecionados pelas histórias e peculiaridades que nos dão suporte de estudar as relações cotidianas e as relações sexo-afetivas entre os populares. TABELA 1 - QUANTOS AO SEXO DOS AGRESSORES(AS) Sexo Quantidade Porcentagem Masculino 24 68,57% Feminino 11 31,42% Total 35 100% Fonte: CEDOC/UEFS – Processos Criminais de Lesões Corporais e Homicídios (1925 -1948) Sexo Masculino Feminino Total TABELA 2 - QUANTO AO SEXO DAS VÍTIMAS Quantidade Porcentagem 07 20% 28 80% 35 100% Fonte: CEDOC/UEFS – Processos Criminais de Lesões Corporais e Homicídios (1925 -1948) No campo das relações entre agressores e vitimas, constatamos que as agressões são dirigidas a pessoas que integram o circulo sócio-afetivo dos agressores (amasios(as), vizinhos(as), parentes, etc). Bem como, o local de ocorrência dos crimes que estão associados, ao campo de interações dos indivíduos em destaques, sendo o espaço doméstico, o locus privilegiado dessas ocorrências, bem em função da relação de proximidade e intimidade entre os envolvidos. Assim, observamos que a prática da violência surge como uma resposta legítima a uma dada ofensa, que pode ser real ou simbólica, revelando códigos particularizados de cada grupo social. 67 TABELA 3 - RELAÇÃO AGRESSORES/VITIMAS Relação Amasiamento Casamento Vizinhança Trabalho Parentesco Ignorado Total Quantidade 13 06 07 04 03 02 35 Porcentagem 37,14% 17,14% 20% 11,42% 8,57% 5,71% 100% Fonte: CEDOC/UEFS – Processos Criminais de Lesões Corporais e Homicídios (1925 -1948) TABELA 4 - LOCAL DE OCORRÊNCIA DOS CRIMES Local Ambiente doméstico Espaço público Cabarés Total Quantidade 21 12 02 35 Porcentagem 60% 34,28% 5,71% 100% Fonte: CEDOC/UEFS – Processos Criminais de Lesões Corporais e Homicídios (1925 -1948) Os instrumentos utilizados na prática do delito revelam uma direta ligação com as ocupações cotidianas dos envolvidos, ou seja, as armas são improvisadas a partir do acesso dos mesmos ao seu universo econômico e social. Assim, encontramos esses indivíduos manipulando facas, foices, facões, etc. Na análise das ocupações entre agressores/vítimas, observamos que esses instrumentos são corriqueiros nas atividades cotidianas de trabalho. Vejamos a tabela: TABELA 5 - INTRUMENTOS EMPREGADOS NOS CRIMES Instrumento Faca Foice Pedra Pau/cacete Armas de fogo Espancamento Navalha Facão Tesoura Outros Total Quantidade 07 02 01 05 02 05 02 05 01 05 35 Porcentagem 20% 5,71% 2,85% 14,28% 5,71% 14,28% 5,71% 14, 28% 2, 85% 14,28% 100% Fonte: CEDOC/UEFS – Processos Criminais de Lesões Corporais e Homicídios (1925 -1948) 68 TABELA 6 - PROFISSÃO/OCUPAÇÃO DOS Profissão/ocupação Quantidade Lavrador/lavradora 10 Operário/operária 05 Chauffeur/motorista 01 Pedreiro 01 Comerciante/negociante 01 Alfaiate 01 Guarda Noturno 02 Cozinheira 01 Domestica 04 Artista 01 Diarista 01 Mundana 01 Carpinteiro 01 Ignorada 05 Total 35 AGRESSORES(AS) Porcentagem 28,57% 14,28% 2,85% 2,85% 2,85% 2,85% 5,71% 2,85% 11,42% 2,85% 2,85% 2,85% 2,85% 14,28% 100% Fonte: CEDOC/UEFS – Processos Criminais de Lesões Corporais e Homicídios (1925 -1948) TABELA 7 - PROFISSÃO/OCUPAÇÃO DAS VÍTIMAS Profissão/ocupação Quantidade Porcentagem Doméstica 16 45,71% Lavrador/lavradora 07 20% Operário/operária 01 2,85% Oleiro 02 5,71% Magarefe 01 2,85% Negociante 01 2,85% Mundana 04 11,42% Ignorada 03 8,57% Total 35 100% Fonte: CEDOC/UEFS – Processos Criminais de Lesões Corporais e Homicídios (1925 -1948) Em defesa da honra Um recurso jurídico largamente utilizado nos Processos de Lesões Corporais e Homicídios Passionais foi a chamada legitima Defesa da Honra, que norteou basicamente os conflito sexo-afetivo entre os populares. A honra 69 que lançava-se nos autos e arvorada como imaculável, estava diretamente ligada a construções e concepções simbólicas dominantes na sociedade, produzidos pelas esferas dominantes, interferindo nos comportamentos e identidades masculinas e femininas, configurando de maneira diferenciada as formas de homens e mulheres se apropriavam desse conceito125. Não raro, foram os discursos utilizados pelos manipuladores técnicos, especialmente, os advogados de defesa, os promotores e delegados que lançaram mão do recurso da honra ultrajada para enquadrar os envolvidos no aparato da lei prevista pelo Art. 27 §4126 do Código Penal de 1890. Destaca-se que a justificativa da defesa da honra, também, era utilizada por mulheres quando envolvidas em crimes que de caráter sexual. Dessa maneira muitos homens levam ao sumário, histórias nas quais, os mesmos são constantemente provocados por suas amasias, ultrajando assim a sua imaculada honra masculina. Dessa forma, Alexandre Dias dos Santos, com 22 anos de idade, roceiro, solteiro, analfabeto, agrediu com um facão a sua ex-amasia, Maria Alves de Jesus, 28 anos de idade, solteira, doméstica, residente no Lugar denominado São João. No interrogatório, na delegacia, Alexandre conta que foi amasiado com Maria Alves por seis anos, ou seja, quando iniciaram a relação o mesmo ainda era menor de idade. Que em dado momento Maria Alves tendo se aborrecido do acusado, sem o mesmo explicitar o fato deste aborrecido, deixou sua companhia e voltou para casa do pai, o Sr. André Alves de Jesus. Porém , o fim da relação não foi o fim dos conflitos, Alexandre acusa que Maria Alves passou constantemente a fazer-lhe “pirraças”, deixando-lhe irritado culminado na agressão lhe fez com um facão. As testemunhas arroladas no processo trazem novos dados que se não explicam, dão sinalizações para entender os motivos dos conflitos que levaram 125 Para Bourdieu o efeito da dominação simbólica se exerce não na lógica pura das consciências cognocentes, mas através dos esquemas de percepção, de avaliação e ação que são constitutivos dos habitus e que fundamentam aquém das decisões da consciência e dos controles da vontade.( BOURDIEU, 2007. P. 49-50). 126 Não são criminosos os que se acharem em estado de completa privação de sentidos e de inteligência no acto de commetter o crime. (GAMA, 1923, P.37) 70 o rompimento da relação como também, a justificativa das ditas “piraças” pela qual Alexandre diz ser vitima. Assim, a testemunha Endira Ferreira da Silva, com 45 anos de idade, viúva, residente no lugar denominado São João, lavradora, analfabeta, afirmou que o denunciado “agrediu Maria de Jesus sua companheira por ter esta lhe traído com João Xavier, vendente em São João”. Outra testemunha, o velho Lúcio Macena, com 65 anos de idade, casado, lavrador, relata que “sabe por ouvir dizer que o motivo do crime foi ter Maria traído ao denunciado que o facto deu-se na estrada que fica próximo a São João, ainda sabe pelo dono da venda que João Xavier pagava compras para Maria”.127 Encontrado o referido João Xavier – que na verdade chama-se João Patrício de Oliveira, 41 anos de idade, casado, lavrador, em depoimento, João confirma que de fato mantém a referida ofendida, provendo a casa da mesma, fazendo-lhe compras de mantimentos na “venda de Caribé”. No dia do crime João encontrou com Alexandre na dita venda, no mesmo momento em que chegou Maria Alves, recebendo do depoente o seu provimento, que custou a João à importância de dois mil e trezentos reis.128 Afirmando ainda que “passou a ter intimidades, ou melhor, relações sexuais com Maria, porém quando esta já não estava com o denunciado” 129 . Observamos, nesta cena, uma contestação do poder masculino de Alexandre, que perde sua amasia para um sujeito mais velho e que pode mantê-la, sendo dessa forma, vilipendiado em sua honra masculina. Como afirma Chalhoub, em alguns casos a violência do homem surge mais como uma demonstração de fraqueza e impotência do que como uma demonstração de força e poder130. A ofendida suprime as informações sobre o novo amasiamento em seu depoimento, descrevendo apenas o fato que a deixou ferida, relatando que o fato se deu “quando ia desta cidade para sua a residência no logar São João, cerca de vinte horas mais ou menos, ao aproximar-se da casa de seu pai, 127 CEDOC – Alexandre Dias dos Santos – Doc. 1253, Cx. 69, Est. 03, ano 1939. CEDOC – Alexandre Dias dos Santos – Doc. 1253, Cx. 69, Est. 03, ano 1939. 129 CEDOC – Alexandre Dias dos Santos – Doc. 1253, Cx. 69, Est. 03, ano 1939. 130 CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle époque. 2ª edição, Campinas, SP, Editora da Unicamp, 2001. P. 216. 128 71 encontrou no caminho parado Alexandre e sacando de um facão fez-lhe os ferimentos”.131O próprio acusado no interrogatório falou em aborrecimentos e pirraças, não informando detalhadamente o fato. Isso nos permite inferir sobre a construção da honra masculina entre os populares, pois, o fato de ser trocado por um homem mais velho que tinha condições de suprir sua amasia, tornando este fato público e notório na comunidade em que residiam, expôs e fez transparecer uma fragilização do potencial masculino do ofendido. A norma social estabelecia que coubesse aos homens o provimento e dominação do lar. Esse será o mecanismo utilizado pelo famoso advogado Vicente dos Reis, que demonstrará que o crime de Alexandre foi motivado pela desonra em que o mesmo encontrava-se e pelas provocações pelas quais foi sujeitado. Apesar de não conseguir a absolvição do denunciado Alexandre, foi pronunciado e condenado nas penas míninas do Art. 303132, que prevê reclusão de três meses em prisão celular. Alexandre Dias dos Santos, nosso constituído, é victima D‟uma systematica perseguição claramente demonstrada nos respectivos autos. Desde o flagrante sui generis, até a occulta vingança preparada pela testemunha João Patrício de Oliveira, que sendo chefe de família, com idade que podia ser pai do acusado, sabendo que Maria Alves de Jesus vivia maritalmente com este acusado, pai de dois filhos do mesmo. O dito João Patrício de Oliveira em seu depoimento afirma que „elle depoente entrou na venda de caribe, onde achava o denunciado e depois chegou Maria Alves, que no dia em que se deu o conflicto elle depoente fez compras para Maria Alves na importância de dois mil e trezentos reis, que de facto elle depoente passou a ter intimidades, ou melhor relações sexuais com Maria Alves, que conhece o denunciado desde menino e sempre teve bom procedimento”. Bastava somente isso para demonstrado ficar que o denunciado Alexandre Dias dos Santos, levado pela 133 deshonra, se encontra envolvido nas malhas deste processo. [grifo nosso] Diversos foram os casos conflitos sexo-afetivos entre amasiados e examasiados, motivados por intrigas de vizinhos, falatórios na rua, abandono da casa. Todos esses fatos integravam o cotidiano popular feirense, mobilizando 131 CEDOC – Alexandre Dias dos Santos – Doc. 1253, Cx. 69, Est. 03, ano 1939. Ofender fisicamente alguém, produzindo-lhe dor ou alguma lesão no corpo, embora sem derramamento de sangue. (GAMA, 1923) 133 CEDOC – Alexandre Dias dos Santos – Doc. 1253, Cx. 69, Est. 03, ano 1939. 132 72 as instâncias jurídicas a visibilizarem as histórias e conflitos das pessoas comuns e despossuídas da sociedade. Dentre os fatores considerados como motivadores do crime, o fato dos homens não aceitarem o fim da relação, estavam entre os mais recorrentes índices de agressão. Fato que ocorreu no dia 23 de junho 1940, na Praça do Mercado, mais ou menos ao meio dia, em que Elias Ferreira da Silva, 25 anos de idade, diarista, analfabeto, esfaqueou sua ex-amasia Maria dos Santos Borges de Assis, 19 anos de idade, doméstica, analfabeta. Elias tenta justificar o crime acusando ter sido vilipendiado pela ofendida, inclusive tendo esta o chamado de fêmea em plena Praça do Mercado.134 Na leitura do processo novos indícios aparecem que configuram o crime como motivado pelo ciúme e pelo fato do companheiro não aceitar o fim da relação amorosa. Maria dos Santos, a ofendida, assim como quatro testemunhas das cinco arroladas no sumário, relata que a motivação foi vingança pelo abandono e pela negação da ofendida em reatar a relação. A testemunha Maria dos Anjos Santos, 40 anos de idade, solteira, roceira, analfabeta, relata que encontrou no lugar denominado Tranca, parado em uma esquina o acusado presente Elias Ferreira da Silva, que perguntando a Elias o que estava fazendo ali, este lhe respondeu que estava esperando a passagem de Maria dos Santos Borges de Assis, sua ex-amasia, para vingar-se; que ela respondente fez ver a Elias, o inconveniente que havia e a responsabilidade deu, aconselhando-o a se deixar daquilo e se ir embora para casa, que perguntou a Elias o motivo de querer vingar-se de Maria e este lhe disse que Maria tinha lhe sido 135 falsa e lhe e desrespeitado. Em depoimento, a ofendida relata que o que a motivou a deixar a relação foram às constantes agressões e os espancamentos empreendidos por Elias contra a sua pessoa. Foi por muito tempo amasia de Elias e que foi abandonado por ela respondente devido às constantes surras que lhe dava o mesmo, lhe fazia ameaças de ser esfaqueada como foi Vitória, noiva de Agostinho, que neste encontro Elias pediu a ela uma cachaça, sendo logo atendido o seu pedido, que Elias logo tomou a cachaça sahiu em 134 135 CEDOC – Elias Ferreira da Silva – Doc. 2355, Cx. 116, Est. 04, ano 1940. CEDOC – Elias Ferreira da Silva – Doc. 2355, Cx. 116, Est. 04, ano 1940. 73 sua frente e escondendo-se na esquina, esperou a passagem dela Maria, que quando ela respondente isto fazia, Elias deu-lhe uma 136 grande facada, deixando ainda a faca presa na barriga. Sem ter como amparar suas justificativas e sendo condenado a quatro anos de prisão celular incurso nas penas da lei do Art. 304 137, o réu foi preso, adquirindo livramento condicional depois de 16 meses de reclusão. De igual maneira João Anastácio dos Santos, também conhecido como José Felix de Araujo, 28 anos de idade, operário, preto, analfabeto, esfaqueou sua ex-amasia Valdete Silva Araujo, 20 anos de idade, analfabeta, parda, no já conhecido Mercado Municipal.138 Pelos dados, percebemos que o Mercado era um lugar de sociabilidade dos indivíduos das camadas populares feirenses, sendo um ponto de convergência entre a zona urbana e a zona rural, além de ser um espaço onde haviam possibilidades de amplas redes de socialização. José Anastácio fez uma descrição detalhadíssima da sua convivência com a Valdete, chegando até a data do crime no dia 28 de junho de 1947. O relato do acusado impressiona pela recriação do cotidiano do casal que vivia em uma casa alugada de Afonso Pinheiro de Melo, na região das Baraunas de Cima, era uma casa de quintal, na qual o denunciado criava alguns pombos. Viveram amasiados por dois anos e segundo José Anastácio, “tinha a melhor convivência possível do casal e assim mantiveram-se os amantes por mais de dois anos, como o declarante gostasse imensamente de Valdete não poupava sacrifícios para vê-la satisfeita”. No dia de Corpus Cristi, José Anastácio, ao voltar para casa, não encontrou sua amasia, achando a chave do lado de fora da porta, procurando notícia entre os vizinhos, descobriu que a mesma havia em companhia de algumas vizinhas ao qual ele não gostava que a mesma mantivesse relações 136 CEDOC – Elias Ferreira da Silva – Doc. 2355, Cx. 116, Est. 04, ano 1940. Se da lesão corporal resultar mutilação ou amputação, deformidade, ou privação permanente do uso de um órgão ou membro, ou qualquer enfermidade e que prive para sempre o ofendido de poder exercer o seu trabalho. (GAMA, 1923, p.374 e 375) 138 CEDOC – José Anastácio dos Santos ou José Felix de Araujo – Doc. 207, cx. 10, Est. 01, ano 1947. 137 74 estreitadas, deixando a casa e seguindo para residir com outro homem, conhecido como Carlito magarefe. Valdete Silva havia deixado a casa sem informar ao seu amasio, “sem dar a menor satisfação ao declarante e sem com ele ter a menor desinteligência”. Devido ao abandono de Valdete, José Anastácio decide retirar-se das Baraunas, entregando a casa e vendendo os pombos do seu criatório, indo residir na Rua da Bolacha. José Anastácio afirma que “sempre gostou muito de Valdete, mas diante do seu abandono, dela se esquecera, não alimentando idéias de ciúmes ou vingança contra sua ex-amante”. O denunciado ainda expõe que sua ex-amásia, após abandoná-lo, passou a insultá-lo “sempre que passava ao seu lado, chamando-o de “BOIÃO, o que fez com que amigos do declarante o aconselhasse a deixar a cidade, evitando a constante provocação da aludida amante”139 Antes de cumprir com aconselhamento dos amigos, José Anastacio e Valdete se encontraram no Mercado, onde ocorre uma contenda entre os dois, resultando dessa forma, no esfaqueamento da ex-amásia. Sobre o ato do crime, o acusado traz uma versão acidental, narrando mais uma vez de maneira minuciosa o ocorrido: estando o declarante no mercado descascando uma laranja com uma faca tipo jacarandá, tomada de empréstimo do vendedor de jeijão, quando chega Valdete acompanhada de Raimunda e Maria Elisa, tendo uma delas apontado o declarante a Valdete, ao tempo que lhe atribuíam estar zangado e para evitar qualquer agressão de sua parte, uma delas entrega a sombrinha a Valdete para com ela agredir o declarante. (...) No dia do fato, depois de haver recebido a sombrinha das mãos de sua amiga, Valdete aproximou-se do declarante servindo-se deste intrumento para dá-lhe uma bancada no rosto e em ato continuo, o declarante que ainda continuava a descascar a laranja, levantou o braço em atitude de defesa e neste momento, fere a Valdete sem que houvesse da sua parte a intenção de atingi-la, ferida, Valdete sai em direção ao mercado da farinha e o 140 declarante deixa o local indo para Cruz das Almas. 139 CEDOC – José Anastácio dos Santos ou José Felix de Araujo – Doc. 207, cx. 10, Est. 01, ano 1947. 140 CEDOC – José Anastácio dos Santos ou José Felix de Araujo – Doc. 207, cx. 10, Est. 01, ano 1947. 75 José Anastácio dos Santos é denunciado como incurso no Art. 121§2º141. O Promotor Público afirma que o motivador do crime foi o ciúme, assim denuncia que: o acusado vivia amasiado com Waldete Silva Araujo, depois a sua amante deixou o denunciado. Este enciumado, cego pelo monstro magnificamente descrito pelo grande Shakespeare, resolveu por termo as suas mágoas e ao seu desespero. No dia 29 de junho de 1947, no mercado desta cidade, vibrou certeira facada no peito 142 esquerdo de Waldete, deixando desfalecida no solo. José Anastácio é condenado a sete meses e quinze dias de reclusão na Cadeia pública, em Feira Santana, sendo enquadrado na lei no Art. 129.143 Mulheres que matam Aos analisar os processos de homicídios passionais e lesões corporais envolvendo homens contra mulheres, ou vice-versa, os fatores recorrentes serão motivados pelas relações sexo-afetiva e brigas de vizinhanças144. Nos processos nos quais as mulheres são as agressoras, em especial, nos casos de homicídios, observamos, uma completa instabilidade judicial no processo de julgamento, pois, isso combate e fere uma construção social em que pauta-se em parâmetros sexuais para definir lugares e posicionamentos socioculturais em que mulheres e homens se opõem dicotomicamente a partir de valores ligados, principalmente às noções deterministas que visam os sexos cristalizados em elementos, passividade e docilidade X virilidade e força, respectivamente. Assim, as mulheres que mataram, romperam essa relação binária e burlaram um código cultural. 141 Matar Alguém. Código Penal Brasileiro. Dec. 2.848 de 07 de dezembro de 1940. CEDOC – José Anastácio dos Santos ou José Felix de Araujo – Doc. 207, cx. 10, Est. 01, ano 1947. 143 Ofender a integridade corporal ou a saúde de alguém. Código Penal Brasileiro. Dec. 2.848 de 07 de dezembro de 1940. 144 Ver: ASSIS, Nancy Rita Sento Sé. Questões de vida e de morte na Bahia Republicana: valores e comportamentos sociais das camadas subalternas soteropolitanas. Salvador: UFBA, dissertação de Mestrado, 1997. 142 76 Assim, no dia 01 de junho de 1948, na fazenda Santa Iria, no Distrito de Jaguara do termo de Feira de Santana, o velho Manoel Macário da Silva, lavrador de sessenta e oito anos, mais conhecido como Teixeira, foi assassinado, pela lavradora Francisca Soares de Jesus, viúva, trinta seis anos de idade, que golpeou com uma foice a referida vítima. A princípio o relato parece assustador, uma mulher matou um idoso, cortando-lhe com um golpe fatal de uma foice, porém, o desenrolar do processo, denunciará muitos gestos e peculiaridades da sociedade feirense, que levaram a ré a ser inocentada do crime nas duas instâncias. Francisca Soares, assim como a maioria da população feirense da década de 1940, vivia na Zona Rural. O levantamento dos dados recentes aos censos da década registrados pelo IBGE aponta uma população composta por 83. 268 habitantes, sendo que menos de vinte mil ocupavam a área urbana145, demonstrando assim uma marcante ruralidade da população feirense. Ao analisarmos os dados referentes ao nível de alfabetização da população, observamos que pelo recenseamento de 1940, havia uma realidade de 55. 579 analfabetos,146 o que representa a maioria esmagadora da população que não sabia ler nem escrever. Isso é verificado nos autos dos processos criminais em que são denotativos os altos índices de analfabetismo. Exemplo claro é o referido no processo das partes entre Francisca Soares e Manoel Macário, na qual todas as cinco testemunhas arroladas no processo, além da interrogada e depoente, são analfabetos. Aqui, cabe relembrarmos Chauloub e Mariza Correa, quando os autores atentam para observar os detalhes na construção do documento. O fato de os populares não produzirem uma cultura letrada, não inviabiliza que tenhamos acesso ao seu cotidiano, mesmo que seja distorcido através das mãos dos escrivães e advogados. “Pequena” como era conhecida nossa a acusada,vivia na Fazenda Santa Iria, no dia crime que ocasionou a morte de Manoel Macario da Silva, mais conhecido como “Teixeira”. A acusada estava em companhia da vizinha 145 146 Enciclopédia dos municípios Brasileiros. V. XX. Rio de Janeiro: IBGE, 1958. Pp. 228. IBGE – Recenseamento Geral de 1940. 77 Egídia, pois, ambas pretendiam fazer uma visita a uma doente conhecida por “Nita de Manoel de Andreza”. Neste momento, chegaram à residência da acusada o seu compadre “João do Pão” e Manoel Macário, que regressava de uma tapação de casa no lugar São Jorge. Essa tapação é um mutirão feito, na maioria, por homens, que auxiliam um vizinho na construção de sua casa, que era feita de taipa; construções de madeira roliças retiradas no mato e entrelaçadas, que formam a estrutura física da construção que é preenchida por barro pisado e umedecido e depois coberta com palhas de uma parreira. Como é costumeiro entre as solicializações masculinas, nessas tapações, serviam-se cachaça como recompensa pela atividade laboriosa. A presença do álcool nas socializações populares, demarca o fator do embriaguez que os envolvidos nos processos apresentam. Como afirma a acusada que Manoel Macário que era um indíviduo “acostumado a andar embriagado”. Aproveitando-se da situação de embriaguez, o velho Macário “procurou adiantamento com a interrogada, a quem disse liberdade, ofendendo-a de toda a forma, que João do Pão, a pedido da interrogada conduziu “Teixeira” para longe de sua residência, cujas portas e janelas estavam fechadas”. Observamos que houve uma tensão de caráter sexo-afetivo, pois, o velho Macário, segundo a interrogada, insinua palavras e gesto obscenos que davam a entender que o mesmo propunha estabelecer um contato sexual com a mesma, gerando com isso grande indisposição entre ambos. Com isso, “pequena” conta que se trancou em sua casa e ficou com sua vizinha Egidia até o jantar, e que, logo após, ao abrir a janela da frente da casa, deparou-se de modo surpreendente com Manoel Macário, que estava escondido, aguardando a sua saída. Relata a interrogada: Que Macário saltou rápido a janela para dentro da casa agarrando logo a interrogada com quem lutou por muito tempo procurando dominá-la para sujeita-la aos seus desejos libidinosos, que antes da meia noite, resolveu Macario agredir fisicamente a interrogada, em quem vibrou uma bofetada por cima do olho esquerdo, cujo sinal ainda pode ser visto, conforme mostra a Autoridade. Que a casa da Interrogada estava inteiramente as escuras, razão por que não percebeu logo que Macário estava armado com um facão, que foi Egidia quem a advertiu a Interrogada desta circunstância, razão por que apanhou um pau que encontrou atrás da porta para se defender, que estando Manoel Macário de arma em punho, a interrogada se 78 defendeu com o pau que somente depois veio notar que era uma foice, recordando-se de haver dado duas pancadas em Macário, não sabendo em que parte do corpo fora o mesmo atingido que na luta travada com Macário a interrogada sentiu um forte tombo na mesa da sala de jantar, caindo da mesma certos vasos que se quebravam, produzindo forte ruído, que Macário com os golpes que receberam recuara um pouco, dando margem a que a interrogada fugisse 147 amedrontada para o mato em companhia da amiga Egidia. [grifo nosso]. Após o fato relatado, da fuga das envolvidas no crime, as mesmas vão até a casa do vaqueiro da fazenda “Barra”, de nome Bernardo, e conta-lhe o ocorrido, pedindo que ele as acompanhe, pois, temiam sofrer novas agressões de Macário. Francisca, constrói nas peças jurídicas uma representação de ingenuidade e inocência quase infantis, convergindo com a proposta de modelo feminino proposto pela normalidade social e jurídica, afirmando ainda que, “por não saber as conseqüências do acontecido que ao deixar a casa a porta ficou aberta e Macário ficou em seu interior ainda com vida, somente depois veio a saber que a interrogada da sua morte.” Francisca continua em defesa de sua índole irrefutável, colocando-se adequada ao modelo requerido de uma mulher nas condições de classe, ela afirma que: não bebe, não joga, nunca foi presa ou processada, vivendo honestamente nas fainas da lavoura, que nunca teve intenção de matar quem quer que seja “só tendo este trabalho porque se viu na rua das armarguras” que antes dos últimos acontecimentos, de trágica conseqüências a interrogada havia procurando a esposa de Macário no sentido de evitar as suas atitudes inconvenientes e os seus desejos insensatos, que conhecidas as conseqüências de seus 148 atos, procurou logo a polícia, apresentando-se as autoridades. [grifo nosso]. É bom destacar que Francisca apresenta-se à polícia em companhia de seu advogado, o Dr. Edelvito Campello de Araujo, ocorrendo o seu interrogatório no dia 03 de junho de 1948, dois dias após o crime. O fato de Francisca possuri um advogado esclarece o fato de a mesma apresentar bastante coesão no seu discurso de interrogatório, da mesma, focar na questão da defesa da honra e evidenciar sua índole de mulher trabalhadora. Em contrapartida, a mesma apresenta a vítima como um indivíduo provocador, 147 148 CEDOC - Francisca Soares de Jesus – Doc. 2418, Cx. 120, Est. 04, ano 1948. CEDOC - Francisca Soares de Jesus – Doc. 2418, Cx. 120, Est. 04, ano 1948. 79 libidinoso e alcoólatra. Essas representações jurídicas foram bastante evidenciadas durante todo o julgamento, o que levou Francisca Soares a obter êxito. No entanto, a viúva de Manoel Macário, surge no processo trazendo outra versão para o crime. Em depoimento, Leocádia Gomes da Silva, lavradora, com cinqüenta anos de idade, traz em diversos momentos do processo a utilização da imagem de mulher desprotegida e vitimada, que com a viuvez ficou com onze filhos e netos para cuidar. Ao contrário do que algumas testemunhas apresentaram no sumário, onde se referiam a Macário como um homem violento, Leocádia apresenta que “foi casada com há cerca de trinta e nove anos com Manoel Macário da Silva e sempre viveu bem com o mesmo até o dia que foi assassinado”. A viúva conta que mantinha uma boa relação de amizade com a acusada Francisca soares de Jesus, sendo costumeiro as visitações entre ambas, chegando a rezarem novenas juntas na casas de ambas, porém, os conflitos iniciaram-se devido a uma contenda de vizinhas, segundo a depoente: “ Pequena” no sábado último, antes da morte de Teixeira, botou Maria Anita na anca de cavalo que cavalgava fogosamente, dando por isso três quedas em Maria Anita, caindo ambas no chão, que disseram isso ao seu marido “Teixeira” e este então reclamou com “Pequena” dizendo que ia contar a “Seu Né” que pequena zangou-se e lhe respondeu “que antes de contar a „Seu Né‟, que ela “Pequena” o mataria, que devido a jura de “Pequena” só parece que “Pequena” 149 estava esperando seu marido para matá-lo. O depoimento de Leocadia não surtiu muito efeito para o julgamento de Francisca Soares, pois, a prova testemunhal foi unânime em confirmar o interrogatório da acusada. Segundo Egídia Pereira, casada, lavradora, analfabeta, moradora na fazenda Santa Iria, “Manoel Macário não tinha bom procedimento, sendo dado a bebidas e a provocações, que não respeitava famílias de quem quaisquer que seja, era até temido por várias moças das redondezas, que no dia anterior aos dos fatos era relatado que Manoel Macário espancou a própria esposa”150. Ainda outra testemunha o vaqueiro Bernardo 149 CEDOC - Francisca Soares de Jesus – Doc. 2418, Cx. 120, Est. 04, ano 1948. 150 CEDOC - Francisca Soares de Jesus – Doc. 2418, Cx. 120, Est. 04, ano 1948. 80 Gomes da Silva, com trinta e três anos afirma que “Macário quando bebia era impulsivo e brigão e desrespeitador de famílias, que o depoente nunca viu, mas sabe por ouvir dizer que Macário espaçava a própria mulher”. Com isso, o depoimento da viúva não influenciou a jurisprudência que sentenciou absolvendo Francisca Soares. A sentença foi apelada para a egrégia corte, a qual negou provimento à apelação e confirmou a sentença de absolvição. Vejamos o parecer do Sub-procurador geral da Justiça, o Dr. Nicolau Calmon. É um imperativo de justiça e decência negar-se provimento ao recurso de oficio do Dr. Juiz Criminal da Comarca de Feira de Santana. A recorrida matou Manoel Macário da Silva, na defesa de seus mais sagrados direitos: seu lar, sua integridade física e sua honra de mulher honesta. A coragem demonstrada em defender-se, sua bravura no revidar a sua brutal agressão a intrepidez com que repeliu as satíricas investidas de Manoel Macário, sagram-na mulher de espírito forte, honesto, incorruptível paradigma da sertaneja inquebrável ante as agruras da sorte. Fosse ela uma dama da sociedade uma vez de um processo crime teria toda a imprensa do país a exaltar-lhe a resistência oposta o denovo, o arrojo e valentia com que defendeu seu lar e sua honra. A legitima defesa com que com agiu emerge tão evidente e 151 incontroversa do processo que, ocioso, nos parece ressaltá-lo. O parecer do Dr. Nicolau Calmon traz à baila algumas representações socioculturais que identificam ou visam identificar as mulheres pobres, consideradas honestas. Para essas mulheres, louva-se o fato do labor diário, da força exercida para este trabalho que as sustentam juntamente com a família, além de sublimar aspectos característicos das performances ruralista e sertanejas, como no caso da valentia empreendida na defesa da honra. Essa valentia é cara a uma cidade que tem uma mulher heroína, como é o exemplo de Maria Quitéria. Observa-se que os agentes do judiciário em Feira de Santana sensibilizaram-se com a história de vida de Francisca Soares, a conhecida 151 CEDOC - Francisca Soares de Jesus – Doc. 2418, Cx. 120, Est. 04, ano 1948. 81 “Pequena”. O próprio codinome da acusada já representava uma noção semiológica de fragilidade, requerido de proteção, uma vez pequena, está é incapaz de ser uma criminosa. Logicamente não é nossa intenção ser um julgador dos processos evidenciados nesse trabalho, mas podemos inferir que a justiça feirense sensibilizou-se com os julgamentos femininos. No total de sete processos envolvendo homicídios produzidos por mulheres, em três houve absolvição e nos demais as penas foram menores que quatro anos de reclusão celular. Essa é uma observação particularizada do judiciário feirense. Nos casos de homicídios passionais e nos conflitos sexo-afetivo desenvolvidos no âmbito doméstico, como nos casos já relatados, observamos a presença de códigos sociais que identificam os sexos, especialmente, as mulheres, a partir de valores ligados ao privado. Não raro, foram as defesas que se construíram a partir dessa premissa que davam as mulheres esse salvo-conduto jurídico de defensoras dos lares, mães dedicadas, indivíduos frágeis e sensíveis. No próximo caso continuamos a relatar peculiaridades do cotidiano popular feirense, observado do privado para o público. Assim, no dia 15 de março de 1939 ocorreu um assassinato na Vila de São Vicente distrito do Município de Feira de Santana, praticado por Maria do São Pedro, uma lavradora, analfabeta, 33 anos de idade, mãe do menor Francisco Paulo de Jesus, contra o seu amásio, com que convivia a mais de nove anos, o magarefe Liberato Ferreira de Lima, com 35 anos de idade. Após praticar o crime de homicídio, Maria de São Pedro procurou as autoridades policiais para relatar o ocorrido, assumindo a autoria do crime e estabelecendo sua verdade para os fatos que passou a narrar, afirmando ter sido a autora do assassinato de Liberato Ferreira de Lima. Informou ainda, ter sido obrigada a cometer a transgressão em sua legítima defesa. Maria de São Pedro, no seu depoimento traz à baila aspectos da vida conjugal do seu amasiamento, ao afirmar que era constantemente violentada pelo seu amásio, habituado a espancá-la. Continua a narrar o seu cotidiano, contando os detalhes do fato vitimizador, dizendo que se “achava no seu trabalho tratando uma carne com uma faca, na ocasião em que Liberato quis furá-la, procurou 82 defender-se do golpe com o braço e a faca que estava na mão dela respondente feriu mortalmente a Liberato que faleceu logo após”.152 Como já discutimos anteriormente a utilização da legitima defesa era uma arma jurídica utilizada pelos acusados para justificar seus crimes de caráter sexo-afetivo, seja pelos homens, que evidenciavam a defesa da honra masculina ultrajada em sua virilidade, seja pelas mulheres, que defendiam os lares, a integridade moral e a sua condição de fragilidade. O depoimento de Maria de São Pedro e todo o processo do seu sumário de culpa são recheados desses recursos que buscavam imprimir uma construção ideal de mulher. O advogado de defesa, o Dr. Vicente dos Reis, utilizou também, em sua peça judicial, esses artifícios que tinham como efeito a sensibilização dos julgadores, apoiando-se em padrões socioculturais que definiam posturas idealizadas para o masculino e o feminino. A denunciada Maria São Pedro a custa dos maiores sacrifícios construiu uma casa para residência em logar[sic] chamado “cuba! na Vila de São Vicente, deste termo. Esta casa, porém, afirmavam a testemunha Manoel Mario da Cruz em depoimento – “esta casa é de propriedade da denunciada que possui apenas uma porta de frente”. Maria de São Pedro a denunciada passou a viver maritalmente com Liberato Ferreira Lima, morando na referida casa. Há alguns anos porém Liberato Ferreira Lima resolveu espancar Maria de São Pedro que isso, procurou garantir sua vida pedindo providencia a polícia. Firmino José de Cerqueira em depoimento diz que mais de uma vez a denunciada se queixara a ele depoente que é inspector do quarteirão local de que Liberato lhe espancava, e o depoente lhe aconselhou que mudasse de terra, abandonando Liberato, que por certo não a acompanharia, ao que ela retrucava não poder isso fazer porque a casa que vive e morava era de propriedade della, que não tomou nenhuma providencia por que não se tratava de espancamento grave. Claro está que a denunciada Maria São Pedro uma mulher franzina, agredida por Liberato Ferreira Lima, homem robusto, forte e ágil, tendo feito algumas afiadíssimas facas de seu trabalho – magarefe- numa apertada casa cuja porta ela não podia alcançar sem poder pedir e receber socorro, não teria outro recurso senão usar de um direito que lhe faculta a lei – o direito da legitima defesa. 152 CEDOC – Maria de São Pedro – Doc. 2281 cx. 110, Est. 04, ano 1939. 83 O que é certo ate provarem contrario, é a seguinte declaração da acusada Maria São Pedro: que foi ela autora do assassinato de Liberato Ferreira Lima, o que fez em sua defesa porque Liberato habituado a espancar a ella respondente, hoje a agrediu armado de faca e ella respondente que se achava no seu trabalho – tratando uma carne com uma faca na ocasião em que Liberato quiz feril-a procurou defender-se de golpe com o braço e a faca que estava na mão dela respondente feriu mortalmente a Liberato que faleceu logo 153 depois. [grifo nosso] A defesa da acusada ampara-se no próprio cotidiano dos envolvidos para construir o discurso jurídico que visa a impunibilidade da acusação, focando-se nos maus tratos empreendidos por Liberato contra Maria do São Pedro, especialmente, destacando o fato de que a casa em que viviam pertencia a acusada. Sendo assim dava-se a acusada um empoderamento na relação do amasiamento, colocando-a numa proximidade simétrica com o parceiro conjugal. Definitivamente Maria de São Pedro apresentou em seu favor, o fato de prover, também, o lar. As testemunhas arroladas no processo trazem informações sobre a convivência dos envolvidos, afirmando que os mesmos eram dados à embriaguez, “gostavam de tomar uns tragosinhos”154 e estavam constantemente em “rusgas”, vivendo da prática de trabalhos rústicos e braçais.155 Apesar da caracterização social dos envolvidos, as testemunhas do processo trazem uma nova versão para os autos ao afirmarem ter encontrado o corpo da vitima deitado em uma cama num compartimento da casa onde dormiam Liberato e Maria, estando a vítima com as pernas para fora da cama, trajando uma calça e nu da cintura para cima. O corpo da vítima apresentava um grande ferimento no peito direito, havendo muito sangue junto a cama, segundo as testemunhas que afirmavam só terem visto vestígio de sangue no quarto de Maria do São Pedro. As testemunhas que depuseram no processo ainda frisaram o fato de ser Liberato um individuo forte e corpulento, que tinha bastante agilidade com facas devido ao seu oficio de magarefe. Isso significa 153 CEDOC – Maria de São Pedro – Doc. 2281 cx. 110, Est. 04, ano 1939. Depoimento da testemunha Manoel Brlarmino de Cerqueira - CEDOC – Maria de São Pedro – Doc. 2281 cx. 110, Est. 04, ano 1939. 155 CEDOC – Maria de São Pedro – Doc. 2281 cx. 110, Est. 04, ano 1939. 154 84 que numa luta corporal, Maria do São Pedro, como já descrita, franzinha, não haveria como subjugar este homem. A partir dos depoimentos surgem novos caminhos para a investigação do crime. As versões construídas nos depoimentos sugeriam que Maria de São Pedro premeditou o crime, não podendo afirmar se ela assassinou a vítima quando esta dormia, ou se preparou alguma bebida para fragilizar Liberato a fim de concluir o assassinato. Partindo dessas observações a Promotoria Pública através do Promotor Lauro Azevedo apresenta os indícios da culpabilidade da acusada. Os indícios são fortes, existem na casa convincentes de que a acusada faltou com a verdadde quando procurou explicar como se teria dado o facto. Assim é que alegou: é ela respondente que se achava no seu trabalho tratando uma carne com uma faca na ocasião em que Liberato quiz feril-a, procurou defender-se do golpe com o braço e a faca que estava na mão della respondente ferio mortamemente a Liberato que faleceu após. Porém, o encontro do cadáver de Liberato no quarto e não na salinha do casebre, deitado numa cama baixa, de ventre para cima, com as pernas para o lado de fora apenas trajando calça e apresentando um extenso ferimento no peito do lado direito, depõem inilludivelmente contra aquela assertiva da denunciada. São taes indicicios bem, a testemunha muda a que se refere Bentham, que Deus parece haver colocado junto à denunciada para fazer jorrar luz nas trevas em que ela procurou ocultar o seu crime. Ademais, verifica-se que a denunciada e a victima viviam em constantes rusgas, e o facto attestado pelas testemunhas de que a victima era homem robusto e bastante forte, residem em logar ermo, longe de visinhos, ao envez de favorecera situação da denunciada no caso, mas explica a maneira de como teria agido. E a conclusão a tirar-se da prova é, pois que Liberato achava-se deitado na cama dormindo ou não – a vítima encontrava-se apenas vestida de uma calça- portanto nu da cintura para cima, maneira usual de dormir própria de indivíduos da classe de Liberato – ocasião em que foi assassinado pela denunciada e a qual pretendia tira-lhe mesmo a vida conforme de feita dissera a testemunha Firmino Cerqueira. E para liquidar tão rapidamente a vitima, a própria natureza do ferimento do lado direito do peito e num homem forte e robusto – e de molde a mostrar que Liberato não podia ter recebido o ferimento de faca com resultados tão rápido e certo de maneira como pretendeu 156 fazer crer a denunciada. 156 CEDOC – Maria de São Pedro – Doc. 2281 cx. 110, Est. 04, ano 1939. 85 Os indícios apresentados pelo promotor e as versões por ele construídas levaram a ré ser condenada através do artigo 294§ 2º em grau médio. No entanto, no Tribunal do Júri, a defesa utilizando do recurso de perturbação dos sentidos e inteligência no momento do crime, garantiu, assim, a absolvição da ré em sessão do dia 18 de outubro de 1939. O recurso jurídico amparado no Art. 27§ 4 estabelece que não são criminosos os que se acharem em estado de completa privação de sentidos e de inteligência no ato de cometer o crime, segundo o Código Penal Brasileiro, Dec. N. 847, de 11 de outubro de 1890. Apelada a sentença pela promotoria à Egregio Tribunal, Maria do São Pedro foi de fato condenada no Art. 294§ 2 em grau médio, que implicava em seis anos de reclusão celular. A ré cumpriu metade da pena e foi beneficiada pelo livramento condicional, onde observamos no relatório do Diretor Penitenciário, o Sr. Leopoldo Brago, as afirmações constantes de idealizações de gênero apresentando valores como maternidade, passividade, perseverança como atributos femininos, além de impor uma visão vitimizada da condenada e penitente, trazendo à baila mais uma vez o cotidiano laborioso de mulheres: Maria de São Pedro é uma pobre mulher analfabeta, ignorante e rústica. Sempre viveu de trabalhos braçais na roça. Basta referir que até a data em que delinqüiu, nunca tinha ido a cidade de Feira de Santana, sede do Município a que pertence o districto de São Vicente. È de índole pacata, humilde e submissa. Seu filho Francisco Paulo de Jesus que segundo os cálculos da penitente deve contar 12 ou 13 anos de idade, e que ficara em companhia de sua irmã Jeronima de Jesus, se acha presentemente no referido Município de Feira de Santana. Quanto aos projetos que tem a penitente para orientação de sua vida futura, declara a mesma que se obtiver com espera o livramento condicional solicitado do Egrégio Conselho Penitenciário da Bahia, retornará a São Vicente, onde pretende trabalhar para o 157 sustento e a criação do filho. [grifo nosso] Em briga de marido e mulher não se mete a colher! 157 CEDOC – Maria de São Pedro – Doc. 2281 cx. 110, Est. 04, ano 1939. 86 A compreensão social de que as brigas e conflitos domésticos não era uma questão de interferência pública, era bastante difundida na sociedade feirense nas décadas evidenciadas nessa pesquisa. O ditado popular vulgarmente conhecido que dá nome esse sub-título denota de maneira bastante usual o que era refletido nos depoimentos em que os envolvidos eram cônjuges. Talvez aqui esteja um dos principais motivos do pequeno número de processos depositados nos arquivos que caracterizavam tais crimes, uma vez que, os conflitos domésticos ficavam entre as quatro paredes. Partindo deste pressuposto, encontramos o processo crime que envolve o casal Manoel Cypriano da Silva e Julia Elvira da Silva. Julia Elvira da Silva, 35 anos, doméstica, residente na fazenda Abade, no distrito de Ipuaçu no município de Feira de Santana, foi encontrara boiando no rio Cavaco na referida fazenda, trajando uma saia escura e uma camisa branca. A vítima era casada com Manoel Cypriano da Silva, 35, lavrador, analfabeto. Há uma grande incógnita sobre a morte de Julia. Teria sido Cypriano seu esposo o autor do crime? teria Julia cometido Suicídio? teria sido um acidente? Estas respostas ficaram sem ser respondidas, pois, Cypriano que é recolhido como suspeito do crime, comete suicídio em cárcere, enforcando se com uma corda providenciada pelo mesmo e feita com crina de cavalo durante a madrugada do dia 29 de agosto de 1947. Não há resposta sobre a morte de Julia, então qual o motivo de trazermos esses baila? O que nos interessa neste caso é observar as relações de violência nas relações conjugais e os modos de como a sociedade compreende e licencia estas violências. A convivência entre Julia e Cypriano era marcada por espancamento e violência. A testemunha Alcebiades Conceição, casado, 18 anos, roceiro, analfabeto declarou nos autos que estava ele cortando umas sementes de fumo de cabeça baixa, tratando do seu trabalho, quando ouviu um bate boca. Em vista disto, o depoente deixou o seu trabalho por um instante e procurou saber o que se passava: “viu dentro do mato o Sr. Cypriano em companhia de sua mulher Julia discutindo e Cypriano que estava com uma corda um pouco 87 grossa, batia em dona Julia, vendo que era barulho de marido com mulher ele declarante não quis aparecer pois poderia se dar mau e procurou continuar o seu serviço”.158 Outra testemunha ocular, o jovem Antonio Capinam, 15 anos, roceiro, analfabeto, declarou que observou que embaixo de um pé de manga da fazenda do Abade estava o Sr. Cypriano batendo em sua mulher dona Julia de corda, que a corda que o Sr. Cypriano utilizava era uma cilha. Ele, declarante, parando para vê o resultado, observou que dona Julia correu para dentro do mato e o sr. Cypriano correndo atrás para bater mais na ofendida. Notou ainda, que dona Julia não gritava e ele declarante não viu mais nada, pois, no mato fechado, eles desapareceram. Ao analisarmos os depoimentos das testemunhas acima, observamos que os mesmos não se espantam pelo fato de encontrar Cypriano agredindo Julia com uma corda, compreendendo esta ação, como sendo algo legitimo da relação conjugal, demonstrando o processo social e cultural de subjugação das mulheres através da violência doméstica. Por ser uma violência protagonizada por indivíduos que conjugam intimidades, estas cenas de violência não ganham notoriedade pública, requerendo que tais conflitos sejam resolvidos a partir de negociações e códigos particulares de convivência. O percurso de Cypriano da prisão por suspeita de assassinato, até o seu suicídio durou dois dias, domingo e segunda-feira, respectivamente 27 de 28 de agosto de 1947, período em que o mesmo andava muito agitado pelo arraial da Fazenda Abade, apresentando-se nervoso trêmulo e choroso em muitos momentos. Relata-nos a testemunha, Amâncio Caetano da Costa, casado, lavrador com 47 anos, sabendo ler e escrever que encontrou com Cypryano e notou que o mesmo estava muito agitado, que ele declarante, interrogou o mesmo para saber qual o motivo daquela agitação. Durante a conversa Cypriano solicita ao Sr. Amâncio; “eu quero que o Sr. vá até minha casa para dar um conselho a minha mulher que quer me abandonar” 159; Amancio deu 158 159 CEDOC – Manoel Cipriano da Silva – Doc. 1597, Cx. 83, Est. 03 ano 1947. CEDOC – Manoel Cipriano da Silva – Doc. 1597, Cx. 83, Est. 03 ano 1947. 88 como resposta “que não ia porque em briga de mulher e homem outra pessoa não deve se meter, que sai por pior”. A conversa entre Cypriano e Amâncio confirma nossas observações acerca das representações sociais sobre os conflitos e violências sexo-afetivo de caráter conjugal. Mesmo afirmando que não iria interferir no conflito entre Cypriano e Julia, o vizinho Amâncio, sensibilizando-se e “ vendo o estado de Cypriano” numa típica atitude que demonstra as múltiplas relações de solidariedade de gênero, decidiu ir até a casa do referido, porém, em meio do caminho encontrou com o mesmo que lhe informa que a sua mulher, Julia Elvira da Silva, estava na beira do rio em pé com um filho menor de nome Zica. Pela informação recebida, dirigiu-se até o rio onde não encontrou nem a referida Julia, nem o menor Zica, filho dos envolvidos, assim, como não a encontrou na casa da mesma quando a foi procurá-la. Encontrando com o menor Zica , este o informou que a mãe tinha seguindo em direção ao rio, porém, não sabia para onde tinha ido. Como afinal não tinha encontrado Julia para aconselhá-la, ele segue para sua casa de residência “não maldando nada”. Essa ausência de maldade a qual se referiu Amâncio resultou que no dia seguinte, segunda-feira, dia 28 de agosto de 1947, mas uma vez, chegou o acusado Cypriano dizendo que ao declarante que fosse até o rio que Julia estava boiando. Essa indisposição apresentada pelas testemunhas arroladas no processo é um sinalizador da moralidade e da dinâmica sexo-afetiva em Feira Santana. Nos casos já relatados neste capítulo inferimos que em todos os crimes de caráter sexo-afetivo, encontramos como elementos corriqueiros os espancamentos, as brigas, a embriaguez. Esses fatores são de conhecimento do grupo social ao qual vitima ou acusado(a) fazem parte, demonstrando que tal comportamento é legível, licencioso e compreensível entre os populares, o que o torna silencioso e velado. Os conflitos sexo afetivos foram um dos mais recorrentes embates entre homens e mulheres das camadas populares. Vários são os motivos evocados pelos agressores para justificar ou acionar o ato violento, porém, os mais recorrentes foram o ciúme e a embriaguez, aliados a uma concepção 89 internalizada de dominação masculina. Sidney Chalhoub chama a atenção para os significados da violência masculina entre os populares. Para o autor um dos seus prováveis significados é que os estereótipos sobre o ser homem e o ser mulher propalados pela classe dominante eram parcialmente internalizados pelos amantes das classes trabalhadoras. O homem, especialmente, aprendia pelos estereótipos dominantes que as mulheres eram sua propriedade privada, o que tornava mais frustrado ao perceber que a prática de vida não autorizava que ele exercesse aquele poder ilimitado que o ser possuidor tem teoricamente o direito de exercer sobre aquilo que é possuído.160 Na complexa relação de posse e dominação, muitas mulheres em Feira de Santana foram espancadas e violentadas pelos seu maridos e amasios. Assim, no dia 27 de agosto de 1940, no lugar conhecido como “Tranca”, Orlando Costa ou José Viera, pois, o mesmo havia mudado de nome, já que, era um fugitivo penitenciário, 27 anos, carpina, analfabeto, natural de Salvador, empregado na estrada de Rodagem, agrediu com uma faca a Maria da Conceição, 32 anos, empregada do armazém de fumo, analfabeta e parda. Existem duas versões para o fato como de costume nos processos-criminais. Na versão de Orlando, a agressão foi motivada por que ao chegar na casa onde mora a vitima, depois do trabalho, trouxe uma garrafa de gás, estando bastante embriagado, quando notou que sua amasia estava preparando a comida de outro homem, o que o levou a reclamar daquele procedimento. Contudo, que Maria da Conceição não gostou da reclamação, iniciando uma discussão que terminou em luta. que ele derrubando-a, livrando-se de Maria da Conceição precipitouse e apanhando uma pequena faca que achava em cima de uma meza, fez com esta os ferimentos em Maria da Conceição e retirou-se 161 do local em companhia de um chauffer de estrada. Segundo a ofendida, Orlando Costa ou José Viera vinha propondo-a amasiar-se com ela, que recusa a proposta. No dia do crime, mais ou menos às vinte horas, José Viera chegou na casa da ofendida e a encontrou do lado 160 CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle époque. 2ª edição, Campinas, SP, Editora da Unicamp, 2001, p. 228 161 CEDOC – Orlando Costa – Doc. 1234, Cx. 68, Est. 03, ano 1940. 90 de fora e lhe disse que tinha chegado para dormir, porém, a ofendida não aceitando que o mesmo ficasse em sua casa, gerando um conflito. Nesse embate, José Viera pegou-a a força e levou para dentro de casa aos empurrões e agressões e, ali dentro da casa, a esfaqueou: “que conhecendo José Vieira e sabendo a mataria, safou-se de suas mãos e sahiu correndo pela porta a fora caindo na praça denominada Padre Ovidio”.162 As versões apesar de diferentes tem alguns pontos de convergência que nos permite fazer algumas afirmações, uma delas é que de fato existia uma relação sexo-afetiva entre os envolvidos; o fato de ele trazer uma garrafa de gás foi comprovado. Esse gás é o conhecido querosene utilizado para abastecer candeeiros e para acender os fogões a lenha, realidade bastante emblemática da paisagem feirense que misturava o urbano e o rural constantemente, como até no presente momento, é possível encontrar em plenas avenidas movimentadas da cidade, cavalos e carroças convivendo com essa paisagem urbanizada. No final do depoimento de Maria da Conceição ela afirma, que por conhecer o acusado, sabia que o mesmo poderia matá-la. Isso demonstra que já havia de fato um contato íntimo entre ambos, essa afirmação direciona para o fato de Maria da Conceição ter conhecimento sobre o passado do seu amasio que já havia sido preso e condenado por um crime de assassinato de sua ex-amásia de nome Julieta Vanderlê Braga, na cidade do Salvador capital do Estado. Os depoimentos das testemunhas arroladas trazem a confirmacão da cena do crime, como também expressam os ditames sociais no que diz respeito aos conflitos sexo-afetivos, partindo da premissa que tem que serem resolvidos pelas partes privadamente. Assim, a testemunha Constantino José de Santana, 27 anos de idade, solteiro, empregado da casa de Abilio Ribeiro, analfabeto, afirmou que, “passando no lugar denominado Tranca, viu o acusado presente, pegar uma mulher e levar puxando para dentro de uma casa, que ele respondente 162 CEDOC – Orlando Costa – Doc. 1234, Cx. 68, Est. 03, ano 1940. 91 pensou que aquilo era pilheria, porém, logo depois viu a mulher pedindo socorro dizendo que o acusado presente queria matar”.163 A vizinha de Maria da Conceição e sua companheira de infortúnio, Maria Bernardina Moreira, 22 anos de idade, residente no lugar “Tranca”, solteira doméstica, analfabeta relatou: Que ouviu um barulho na casa sua vizinha Maria da Conceição, uma zoada e sahindo para ver o que era, encontrou o barulho entre o acusado e sua visinha, procurando acomodar os dois, o acusado presente que se diz chamar José Vieria, foi contra ela respondente tentando feril-a com a faca com a qual se achava, que neste ocasião Pedro de tal, residente na rua de Aurora, que ahi se achava puxou ela 164 respondente e levou –a para dentro de casa. O fato de a vizinha tentar acomodá-los é um sinalizador que existia uma relação entre ambos e que era conhecida por Maria Bernardina, além de que a atitude da outra testemunha Pedro de tal de tirá-la deixando em casa é uma forma de expressar que não se devia intrometer-se em casos de homem e mulher. Orlando Costa que ora utiliza o nome José Viera foi condenado há um ano de prisão celular, incurso na pena máxima do Art. 303.165 Entre outros fatores motivadores de conflito sexo-afetivo entre homens e mulheres populares estava a questão da subsistência dos lares. Mesmo entre esse grupo social ser bastante usual a simetria na relação de trabalho, uma vez que, as mulheres das camadas populares, mantinham com seus amasios e esposos uma relação real de compartilhamento das despesas, mesmo as declaravam-se como domesticas nos autos dos depoimentos, deixavam escapar as atividades de labor diário. Ainda assim, entre os populares vigorava mesmo que simbolicamente o ideal do homem provedor do lar, ainda que a realidade fosse bem diferente. 163 CEDOC – Orlando Costa – Doc. 1234, Cx. 68, Est. 03, ano 1940. 164 CEDOC – Orlando Costa – Doc. 1234, Cx. 68, Est. 03, ano 1940. 165 Art. 303 – Ofender fisicamente alguém, produzindo-lhe dor ou alguma lesão no corpo, embora sem derramamento de sangue. Pena de prisão celular de três meses a um ano. (GAMA, 1923, 373) 92 Lucia Maria de Jesus, casada, 50 anos, roceira, analfabeta, branca, residente no lugar Lagoa Pirrichi, no distrito de Maria Quitéria neste Município166, reclamou ao seu marido Gregório Lima, pelo fato do mesmo ser um homem preguiçoso, demonstrando ao mesmo suas atitudes. Por este motivo, iniciou-se forte discussão entre ambos na qual Gregório exclamou que se ela estivesse descontente, “pois arrume suas trouxas e fosse embora”167, acirrando ainda mais a discussão ela responde “que só sairia dali aos pedaços e não com vida”. Depois muita discussão, Gregório decidiu confirmar as palavras de Lucia, tomando de uma foice fez na ofendida os ferimentos que apresentou no exame de corpo delito. Gregório de Lima foi denunciado incurso no art. 303 do Código Penal, porém, não chegou a ser julgado, o crime prescreveu, extinguindo a punibilidade. Mesmo destino teve Maria Almeida dos Santos, conhecida como Maria Gorda, casada, 47 anos de idade, vendedora, preta, sabendo assinar o nome168, afirma que teve a infelicidade de casar-se com Candido Evangelista dos Santos, com o qual foi amasiada a mais de dois anos. A ofendida afirma ser constantemente espancada pelo referido esposo, sendo que o mesmo só casou com a ofendida com o interesse em seus bens, pois a mesma possuia uma casa e tinha “um negócio de uma barraca de comida no mercado desta cidade, nada faz somente tomando o meu dinheiro o quando nego em entregar este me espanca de facão, cabo de vassoura e uma faca, quando não ameaça matar”169 Os homens pobres, no uso da violência contra suas amasias e esposas, motivados por fatores socioeconômicos, demonstravam no ato da imposição violenta, uma forma de demarcação simbólica de espaços e trânsitos, no qual não era permitido as mulheres questionarem seus lugares e ações. Dessa forma esta violência é de fato uma atitude de fraqueza, muito mais do que de 166 CEDOC – Gregório de Lima – Doc. 2197, Cx. 105, Est.04, ano 1941 CEDOC – Gregório de Lima – Doc. 2197, Cx. 105, Est.04, ano 1941. 168 CEDOC – Cândido Evangelista dos Santos – Doc 2088, Cx. 99, Est. 04, ano 1946. 169 CEDOC – Cândido Evangelista dos Santos – Doc 2088, Cx. 99, Est. 04, ano 1946. 167 93 força, como afirma Chalhoub, o que é absolutamente necessário enfatizar que neste caso o uso da violência empreendido pelo homem é uma demonstração de impotência. Não raro, em muitos casos os agentes jurídicos utilizavam os recursos da defesa da honra, que já discutimos anteriormente. Para o autor “a realidade concreta dentro da qual se desenrolam as relações de amor entre esses homens e mulheres pobres é, então, desfigurada e distorcida para servir á ideologia da dominação masculina.”170 Filha ingrata... Os conflitos decorrentes no âmbito do privado não estavam restritos aos crimes de caráter sexo-afetivo, outras expressões de conflitos domésticos também ocuparam as páginas amareladas dos processos criminais como as brigas entre membros da mesma família, sendo estes conflitos intermediados com mais freqüência por vizinhos e pessoas próximas, não atendendo assim, a regra do “meter a colher”; isso é denotativo na compreensão do código cultural das relações de violência. O crime envolvendo Maria Justina de Jesus e Maria Conceição, filha e mãe respectivamente, abrem-nos mais uma vez as portas na compreensão do cotidiano popular. Ambas viviam na mesma casa, na Fazenda “genipapo‟, no distrito de Bom Despacho, neste município, eram roceiras e analfabetas. Maria Justina tinha 33 anos era solteira e filha de criação da velha Saloia, como era vulgarmente conhecida a idosa de 80 anos, Maria da Conceição, que a criou desde que a mesma tinha menos de um ano de idade.171 Maria Justina é ré confessa do assassinato da sua mãe de criação através de envenenamento. O caso chega até a justiça devido a uma queixa prestada pela vizinha Maria da Pureza, mãe da jovem Maria Romana, a qual 170 CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle époque. 2ª edição, Campinas, SP, Editora da Unicamp, 2001, p. 217 171 CEDOC – Maria Justina de Jesus – Doc. 2691, Cx. 140, Est. 05, ano 1932. 94 Maria Justina confessou em segredo ter provocado a morte da velha que a criou. Nos autos do interrogatório Maria Justina contou com detalhes que no sábado, dezesseis do janeiro de 1932, à tarde, envenenara uma porção de feijão que havia colocado em um prato para servir a sua mãe de criação. O veneno utilizado foi o rosalgal, produto tóxico utilizado como pesticida, comprado pela própria Justina a pedido da sua mãe com o objetivo de acabar com uma praga de formigas na roça que a velha cuidava com a ajuda da acusada. O prato envenenado foi servido a octogenária que comeu normalmente por ser habitual a filha lhe servir seu almoço. No outro dia, o domingo dia 17 de janeiro de 1932 a velha estava morta, sendo enterrada no distrito de Almas no Municipio de Feira de Santana. O principal motivo apresentado por Justina para ter cometido o crime foi uma contenda que teve com a mãe de criação, que acusou de ter favorecido um grupo de ciganos a furtar-lhe uma pulseira de ouro. Fato que a acusada também confessa afirmando “ter concorrido para que os ciganos se apoderassem como de fato se apoderaram da referida pulseira”172 por isso, “ficara ela acusada incandescida com a velhinha, praticando como praticou o seu envenenamento em um prato de feijão, que ela em pessoa dera a velhinha para comer.”173 No decorrer do interrogatório novos indícios surgem como motivador para o crime, o fato de Maria Justina ser a única herdeira da velha Saloia, pode ter motivado a acusada a antecipar a morte da sua criadora, afim de apoderarse dos bens e posses da idosa, uma vez que, a velha Saloia, havia deixado em escritura a casa com o terreno onde moravam e mais uma casa no distrito de Almas para sua filha de criação. Ao final do interrogatório Maria Justina de Jesus, diz-se arrependida do crime praticando. A vizinha que prestou queixa contra Maria Justina, é a mãe de Maria Romana de Jesus, com dezenove anos de idade, solteira, doméstica analfabeta, a qual declara que Maria Justina indo a casa dela testemunha, lhe contara em segredo o facto criminoso, dizendo mais que já dias antes procurava um meio de 172 173 CEDOC – Maria Justina de Jesus – Doc. 2691, Cx. 140, Est. 05, ano 1932 CEDOC – Maria Justina de Jesus – Doc. 2691, Cx. 140, Est. 05, ano 1932 95 envenenar a velhinha saloia e que finalmente no sábado fizera em prática o seu desejo, que ela testemunha temendo que se sucedesse o mesmo consigo ou com outra pessoa qualquer de sua casa, por isso que a acusada depois, da morte da velha Saloia, viera morar 174 com a família dela testemunha. A testemunha questionou Maria Justina sobre o veneno utilizado no crime, afirmando a acusada ainda possuir um pouco em uma latinha. Assim a testemunha pedira que lhe trouxesse o resto e como de fato a acusada, no dia seguinte, fizera, trazendo o resto do veneno. Maria Romana depõe que “diante do sucedido, ella testemunha, não guardou segredo, levando o facto ao conhecimento da mãe dela testemunha que se chama Maria da Pureza de Jesus”. Como a velha Saloia havia sido enterrada, sem suspeitas de assassinato, foi necessário realizar um exame cadavérico para comprovar o envenenamento, e para tal foi feito a exumação do corpo no dia 30 de janeiro de 1932 pelos doutores Carlos Levindo de Moura Pereira e João Rodrigues da Costa Dória. Como o corpo já se encontrava em estado de putrefação, dificultou o exame, mesmo assim, foi recolhido um pedaço do rim, do intestino, do fígado e o estômago, que se encontrava em bom estado de conservação. Os órgãos foram encaminhados ao instituto médico-legal Nina Rodrigues para os exames tóxicos. A conclusão dos exames concluiu que “nas vísceras de Maria da Conceição continha arsênico”175. O promotor público denunciou Maria Justina como incursas nos Art. 294§ 1º176 combinado com o Art. 296177 e o Art. 39§ 2º, 3º, 7º e 9º178. O juiz, Dr. Manoel Ferreira Coelho expede o mandato de prisão preventiva contra Maria 174 CEDOC – Maria Justina de Jesus – Doc. 2691, Cx. 140, Est. 05, ano 1932 CEDOC – Maria Justina de Jesus – Doc. 2691, Cx. 140, Est. 05, ano 1932 176 Art. 294. Matar alguém. (GAMA, 1923, p. 358) 177 Art. 296. É qualificado crime de envenenamento todo atentado contra a vida de alguma pessoa por meio de veneno, qualquer que seja o processo, ou método de sua propinação, e sejam quaes forem seus efeitos definitivos. (GAMA, 1923, p.365) 178 Art. 39. Circunstancias agravantes. §2º ter sido o crime cometido com premeditação, mediando entre a deliberação crimonosa e a execução o espaço, pelo menos, vinte e quatro horas. §3º ter o deliquente cometido o crime por meio de veneno, substancias anesthesicas, incêndio, asphyxia ou inundação. §7º Ter o delinqüente procedido com traição, surpreza ou disfarce. §9º Ter sido o crime cometido contr ascendente, descendente, cônjuge, irmão, mestre, discípulo, tutor, tutelado, amo, domestico, ou de qualquer maneira, legitimo superior ou inferior do agente. (GAMA, 1923, p 54 a 59). 175 96 Justina de Jesus no dia 03 de junho de 1932, sendo a mesma pronunciada pelo crime e incursa nos artigos já mencionados. Em julgamento, a defesa utiliza-se do recurso jurídico já mencionado em outros casos que é amparado pelo Art. 27 §4º que prever que não são criminosos os que se acharem em estado de completa privação de sentidos e de inteligência no ato de cometer o crime. 179 Assim Maria Justina de Jesus é absolvida da acusação pelo Tribunal do Júri no dia 02 de agosto de 1932, como sentencia o Juiz: Em conformidade com as decisões do jury reconhecendo por maioria 180 de trez a dois [ilegível a palavra] Art. 275 §4 do Código Penal em favor da ré Maria Justina de Jesus, absolvo a mesma da acusação que lhe fora intentada e findo o prazo legal do crime da ré para em seu favor alvará de soltura mandando da-lhe baixa sua culpa e pagar os custos pela inculpabilidade. Sala das sessões do Tribunal do Jury da Cidade de Feira de Santana, 181 as 16 h. em 02 de agosto de 1932 Outro conflito desencadeado no espaço privado foi a agressão praticada por Alexandrina de tal em seu padastro Pedro Ferreira, 55 anos, oleiro, analfabeto, amasio de Lucia de tal, mãe de agressora. Pedro é um dos casos raros de homem que procura a polícia para prestar queixa de lesão corporal contra uma mulher. Há que se destacar que o contexto machista da sociedade feirense tão cara a ícones demarcadores de bravura e virilidade com o sertanejo bravo, encontramos um homem subjugado por uma jovem mulher causa espanto e alegria a nós pesquisadores. Alexandrina corriqueiramente estava envolvida em brigas e contendas, seja entre os membros da família, seja entre vizinhos. Das cinco testemunhas que depõem no processo, todas são unânimes em afirmar que Alexandrina era uma mulher “barulhenta e 179 GAMA, 1923, p. 37. Art. O direito de queixa privada prescreve seis mezes contados do dia em que o crime for cometido. Não basta que a queixa seja oferrecida dentro dos seis mezes, a que se refere o Art. 275. É necessário ainda que a pronuncia seja decretada dentro do referido prazo, sob pena de se julgar prescrita a ação. (GAMA, 1923, p 340 e 341) 181 CEDOC – Maria Justina de Jesus – Doc. 2691, Cx. 140, Est. 05, ano 1932 180 97 desordeira, tendo um mau procedimento” 182 . Esses fatos afirmados pelo Sr. Eugênio Eduardo Basílio, 34 anos, residente no lugar Santo Antonio dos Prazeres, oleiro, analfabeto. O depoente Matheus Apostolo Evangelista, 24 anos, pedreiro, sabendo ler e escrever ainda acrescenta que Alexandrina já foi repreendida por ter agredido sua progenitora. Pois bem, vemos que Alexandrina tem um histórico que não lhe permite muito recursos jurídicos pautados em valores que afirmem uma dada essência feminina. A acusada, em nada corresponde aos modelos requeridos e divulgados de comportamento feminino amparados nos conceitos de maternidade, passividade, submissão, entre outros. Pedro Ferreira relatou que no dia 13 de janeiro de 1941, aproximadamente às 20 horas, chegando ele na casa a qual reside, encontrou com Alexandrina, filha da sua amasia, que neste momento estava a mesma proferir palavras indecorosas, xingando muito sua dita amasia. Que ele na posição de homem da casa, reclamou a acusada, pois, “ficava feio aquela descompostura”. Iniciou-se desse encontro um conflito entre ambos, chegando o mesmo a afirma que aquela não era a casa dela, para se proceder daquela maneira. Declarando Pedro Ferreira que “nessa hora, Alexandrina avançou para ele respondente dando-lhe um empurrão o que foi também feito por ele respondente, que Alexandrina logo que recebeu o empurrão deu nele respondente uma facada, fugindo em seguida, não sabendo ele respondente o paradeiro da mesma” Alexandrina é pronunciada e condenada, incursa no art. 303 do código penal. Como a ré fugiu não encontrou no processo seu interrogatório para fazer uma relação com as versões sobre o fato. Porém, o que é importante nesses processos acima relatados sãos as nuances das relações violência presentes no espaço doméstico, colocando em debates a dinâmica familiar dos populares que não correspondia à máxima de “lar doce lar” ou “lar feliz”, comumente relacionados a valores elitistas e modelos erigidos pelos grupos dominantes e julgados com regra geral na sociedade. Em todos os casos relatados, neste 182 CEDOC – Alexandrina de tal – Doc.715, Cx. 43, Est. 2, ano 1941. 98 capitulo encontramos essa desfiguração do modelo familiar harmônico, com padrões estabelecidos e normatizados. Mãe desnaturada... No desenrolar da pesquisa, ao analisarmos as representações femininas nos processos criminais, eleva-se concepções acerca dos comportamentos sociais dos populares numa nítida tentativa de controle e adequação. Focamse basicamente na mulher vitimizada que reage ao acumulo de agressões sofridas e infringe a lei praticando o crime em legitima defesa, ou na mulher que tomada de privação dos sentidos comete o crime, porém, motivado por fatores que a vitimizam e inferiorizam, pois, cabe as mulheres comportamentos que atribuam-na valores ligados a maternidade, fragilidade, delicadeza, entre outros adjetivos sociais de uma dita “essência feminina”. Mas o que dizermos dos crimes de infanticídios? Esses são considerados abomináveis, pois, é quando a mulher nega seu papel sagrado de mãe, sendo algoz de sua própria prole. Assim, no dia 16 de junho de 1933, Ovídio do Nascimento, 22 anos de idade, lavrador, residente no distrito de humildes, analfabeto, caminhando pela Fazendo Boa Vista junto ao Arraial deste distrito, viu os restos mortais de uma criança “que os urubus estavam acabando de comer ficando na sepultura uns trapos de panos alvo que naturalmente teriam envolvido a criança ali mal enterrada.”183 A cena acima descrita é bastante comovente e fez com que se buscassem a responsável por aquele gesto de ausência de valores cristãos. Dessa maneira, chega-se a Maria do Carmo Oliveira, solteira, 19 anos, doméstica, residente no distrito de humildes. Maria do Carmo engravidara de Thomaz Alves Franco a qual tinha uma relação de amigamento, mantendo 183 CEDOC Maria do Carmo Oliveira e Thomaz Alves Franco – Doc. 2731, Cx. 142, est. 05, ano 1933. 99 encontros sexuais semanais com o referido. Os vizinhos assustam-se ao saber que fora Maria do Carmo a autora daquele crime, a mesma era tida como moça honesta, trabalhadora, pois, ajuda dona Theodora a fazer charutos, sendo também cantora da Igreja Matriz do distrito de Humildes184. Maria do Carmo Oliveira confessa o crime e relata com detalhes o corrido em seu interrogatório. No dia 09 de junho de 1932 às trezes horas, deu luz a uma criança do sexo feminino, conservando a dita creança viva uma hora mais ou menos, depois resolveu matal-a apertando a garganta para não chegar ao conhecimento da senhora Theodora quem lhe criou. Depois de matal-a[sic] deixou debaixo da sua cama até o dia de sábado, doze do corrente quando das sete para oito horas da noite aparecendo Thomaz Alvas Franco, pai da dita criança, tomou e levou 185 para enterrar. [sic] [grifo nosso] Maria do Carmo, em nenhum momento do processo, demonstra arrependida do feito, porém, há que destacar que o fato de ser o crime considerado socialmente monstruoso, faz com que os agentes jurídicos, inclusive escrivães demonstrem insensibilidade com a acusada, o que não nos permite afirmar se de fato, Maria foi tão insensível em seu interrogatório. Maria apresenta-nos uma informação importante, que cometeu o infanticídio para que a senhora com a qual morava não descobrisse da gravidez nem do filho. Com base nessa informação podemos inferir sobre um fator recorrente na dinâmica de sobrevivência entre os populares, que devido a condição de classe, viviam como agregados em casas de famílias, trocando o provimento diário por abrigo e alimentação, isso sinaliza para os reajustes familiares de uma sociedade herdeira de uma tradição escravista. Assim, surge um novo questionamento, quais as conseqüências de se ter uma criança nessas condições sociais? Observamos que Maria do Carmo opta pela própria manutenção na casa de Dona Theodora à criar sua filha, subjugando esta ao óbito no momento do nascimento. Observamos que o fato do infanticídio foi racionalmente praticado 184 CEDOC Maria do Carmo Oliveira e Thomaz Alves Franco – Doc. 2731, Cx. 142, est. 05, ano 1933. 185 CEDOC Maria do Carmo Oliveira e Thomaz Alves Franco – Doc. 2731, Cx. 142, est. 05, ano 1933. 100 que a mesma oculta o cadáver da recém nascida por três dias debaixo da cama, até o amasio poder enterrá-lo. Thomaz Alves Franco, o pai da criança e ocultador do seu cadáver também foi interrogado, mas busca inocentar-se da participação do crime, afirmando que sensibilizou-se com a filha morta, pois, a enterrou acreditando que a mesma havia nascido morta. No interrogatório: que no dia doze do corrente as oito horas do dia recebendo recado de Maria do Carmo de Almeida lhe chamando para chegar a casa dela. O que ele fez inocentemente, dizendo ele, Maria que a noite, ele Thomaz voltasse lá o que fez nesta ocasião, recebeu dela um embrulho em pano alvo o que ele espantou-se perguntando o que era aquilo, ela lhe respondeu que era a filha para enterrar. Recebeu com tanto remorso que não sabe a que sexo pertencia e disse ela 186 parturiente que tinha nascido morta. [grifo nosso] O promotor público denuncia o casal incursos nos Art. 298187, Art 21§2º188, Art. 64189 e Art. 39§ 13º190. Os réus são pronunciados e expedido mandado de prisão, porém, ambos fogem do lugar onde residiam, não sendo encontrado o paradeiro dos mesmos. Mulheres que brigam... O convívio de vizinhança entre os populares era marcado por uma maior relação de proximidade, transformando-se estes em integrantes constituintes das relações familiares, interagindo através de trocas de favores, como no compartilhamento de produtos alimentícios, medicinais e demais produtos que 186 CEDOC Maria do Carmo Oliveira e Thomaz Alves Franco – Doc. 2731, Cx. 142, est. 05, ano 1933. 187 Art. 298- matar recém-nascido, isto é,infante, nos sete primeiros dias do seu nascimento, quer empregando meios directos e activos, quer recusando à victima os cuidados necessários à manutenção da vida e a impedir sua morte. (GAMA, 1923, P. 369) 188 Art.21 §2º Os que, antes ou durante a execução, prometterem ao criminoso auxilio para evadir-se, occultar ou destruir os instrumentos do crime, ou apagar os seus vestígios. (GAMA, 1923, P.26) 189 A cumplicidade será punida com as penas da tentativa e a cumplicidade da tentativa com as penas desta, menos a terça parte. Quando, porém, a lei impuzer à tentativa pena especial, será aplicada integralmente essa pena à cumplicidade. (GAMA, 1923, p. 88) 190 Ter sido crime ajustado entre dois ou mais indivíduos. (GAMA, 1923, P.60). 101 iam desde um sabão para lavar roupas, até uma galinha para dividir os ovos ou um porco. Na dinâmica de integração e proximidade entre vizinhos existiram os conflitos desencadeados por contendas, fofocas e pela complexa demarcação de território seja fisicamente, seja simbolicamente. No caso do conflito entre Leonidia Victoria de Lima, 27 anos de idade, casada, analfabeta e Maria José de Almeida, 23 anos de idade, solteira, sabendo ler e escrever, ambas lavradoras, residentes na fazenda Boa Esperança no distrito de Tanquinho, no município de Feira de Santana, demonstra as contentas e rixas costumeiras entre vizinhas. Em depoimento, Leonidia apresenta as causas decorrentes da agressão, apresentando-nos um faceta do cotidiano das mulheres rurais feirenses, como o fato buscar água para abastecimento da casa em fontes, a dinâmica do trabalho nas lavouras, que eram o meio de recurso familiar das mulheres e homens pobres da zona rural. Achava-se ela depoente no caminho da fonte da Fazenda Boa Esperança que dista uma légua desta localidade onde encontrou-se com Maria José de Almeida a quem pediu para não passar dentro se sua roça de lavoura deixando aberta a porteira da mesma afim de evitar prejuízos causados com a entrada de animais que devastavam a sua lavoura já por várias vezes. Neste interin Maria José lhe agredia, após acalorada discussão foram as vias de fato, resultando a depoente sair ferida. Que sua agressora a subjugou-lhe com uma pedra na mão deu-lhe diversas pancadas no rosto, na cabeça, nas 191 costas e costelas. Como de costumeiro nos conflitos de Lesões Corporais, as duas partes envolvidas contam versões diferenciadas, buscando evidentemente construir um discurso de vitimização, muito em consonância com que discutimos no início do capítulo sobre as representações jurídicas de mulheres nos processos, as quais reafirmam posturas pautadas na passividade, demonstrando que os atos agressivos são conseqüências da legitima defesa de sua integridade, que neste caso, evidente é a integridade física. Assim Maria José declara que: Passava por dentro da roça de Leonidia vitória de Lima de quem é desafeta a mais de oito anos e com destino a fonte quando ela volta 191 CEDOC – Maria José de Almeida – Doc. 935, Cx. 54, Est. 02, Ano 1940. 102 foi insultada e agredida pela sua contentadora Leonidia Vitória, a quem tomou um cacete e em seguida uma pedra e com o fim de defender-se, então em luta e lançou mão da mesma pedra com esta 192 deu algumas pancadas na cabeça da sua mesma agressora. Como não houve testemunha ocular do fato, as testemunhas arroladas no processo, trazem à baila o comportamento e procedimento das envolvidas, que serão caracterizadas com “meretrizes”, “barulhentas” “mal procedidas”. Como declarou o José Sebastião Barbosa, 34 anos, solteiro, lavrador, “ que não só a ofendida como também a acusada eram casadas e hoje vivem do baixo meretrício”. Continua José Batista de Oliveira, 20 anos, solteiro, lavrador, “ que não só a acusada como a ofendida são mundanas”. Por fim, Manoel de Oliveira, 18 anos de idade, solteiro, lavrador, analfabeto, declara “ que não só a acusada como a ofendida são geniosas e gostam de barulho, vivendo ambas do baixo meretrício e que eram inimigas de longa data”. As informações trazidas pelas testemunhas abrem novos caminhos na análise do cotidiano conflituoso entre as envolvidas, pois, o fato de viverem do “meretrício”, traziam novas tensões que vão além de cuidado e controle da roça, às contendas oriundas de conflitos sexo-econômico, como a disputa por clientes ou territorializações. O fato da conduta das envolvidas influenciou a decisão do Júri que condenou Maria José de Almeida no grau máximo do Art. 303 do Código Penal. É salutar frisarmos que o município de Feira de Santana até meados do século XX, ainda tinha uma população inferior a cem mil habitantes, sendo que, a maioria da população dividia-se nas zonas rurais e distritos, isso demonstra que uma fofoca ou intriga era facilmente disseminada devido a proximidade gerada pelo convívio social em sociedade interiorana, ainda que isso seja contestando pelos veículos midiáticos que propagavam a modernização da cidade, como já discutimos no I Capitulo. Dessa forma, no dia 02 de abril de 1837, chega a delegacia de policia de Feira de Santana, Anna Pereira da Invenção, 37 anos de idade, queixando-se 192 CEDOC – Maria José de Almeida – Doc. 935, Cx. 54, Est. 02, Ano 1940 103 de Maria Alexandrina, conhecida como Isabel, 19 anos de idade, apresentando ferimentos decorrentes de cortes com uma navalha, que foi manipulada por Maria Alexandrina. Mais uma vez o processo crime nos traz as peculiaridades do cotidiano de mulheres pobres na urbe feirense. As envolvidas eram analfabetas, solteiras, domésticas e residentes na Rua General Pedra. Anna Pereira relata que se encontrava na Praça dois de julho quando chegou Maria Alexandrina conhecida por Isabel e lhe “passou uma grande descompostura”. Em decorrência do conflito desencadeado na Praça referida, a ofendida foi a casa do Delegado, onde se queixou de Maria Alexandrina, recebendo conselho do subdelegado lhe “disse que fosse para casa e que ia tomar as providências”. Antes do Delegado “tomar as providências” ela e Maria Alexandrina entram em mais um conflito na casa da vizinha de nome, Eufrozina, onde “Maria Alexandrina, com uma navalha na mão, lhe fez inesperadamente os ferimentos que apresenta, tendo Ella depoentes corrido novamente até a casa do Delegado”. Um fato bastante elucidativo nesse processo sobre o cotidiano dessas mulheres populares é a questão das constantes brigas e discussões em público. Esse comportamento das populares levam-nos a problematizações acerca dos modelos de educação feminina, sempre aparados no recato e delicadeza193, o que não correspondiam aos ditames e costumes das populares. Assim, os motivos para o crime: rixas e desentendimentos que vinham de longa data, sendo corriqueiras as ofensas verbais e as desmoralizações públicas entre ambas. Em interrogatório, Maria Alexandrina relata que Feriu Anna Perreira por ter a mesma lhe insultado bastante, isso já se reproduzindo por muitos dias e que hoje foi obrigada a fazer isto, que Anna Pereira já há cerca de oito mezes que vem procurando intrigas 194 com Ella depoente, sendo Ella obrigada a praticar essa violência. 193 SOUSA, Ione Celeste de. Garotas tricolores, deusas fardadas: as normalista em Feira de Santana, 1925 a 1945. São Paulo: EDUC, 2001. 194 CEDOC – Maria Alexandrina- Doc. 335, Cx. 18, Est. 01 ano 1937. 104 Os relatos de Maria Alexandrina são confirmados pelas testemunhas, que afirmam ser Anna Pereira, uma mulher de mal procedimento e dada a barulhos. A questão do procedimento é bastante aludido nos processos criminais, pois, conduzem a formação de culpa ou absolvição dos denunciados. O fato de um indivíduo, mulher ou homem ser considerado socialmente como tendo um bom ou mal proceder, interfere diretamente na aplicação das penas, que podem variar entre grau mínimo ao máximo. Os denunciados(as) quando condenados que apresentam bom procedimento são incursos nas penas míninas ou leves, sendo também aplicado o seu inverso. Assim a testemunha Isaura Ferreira da Silva, com 41 anos, solteira, residente a Rua General Pedra neste município, relatou: Que há mais de seis mezes ouve a ofendida insultar a denunciada e armada dizer que só se retirará da Feira quando lhe fizesse um serviço (...) assistia sempre discussão entre as ellas, tendo opportunidade certa feita de separar a denunciada com luta iminente com a offendida. Que a denunciada é de bom proceder e a offendida Anna Pereira é muito ruim, tendo já sido presa 195 diversas vezes. Baseado na caracterização social dos sujeitos envolvidos no processo, o advogado de defesa, o Dr. Vicente dos Reis, constrói mas uma peça jurídica, na qual utiliza o comportamento social de Anna Pereira para justificar a legitima defesa de sua cliente. Dessa forma, o experiente advogado, cria uma tipificação de mulher perigosa para Anna Pereira na tentativa se sensibilizar o júri. A suposta victima é a conhecida desordeira Anna Pereira, pensionista por diversas vezes da cadeia Publica desta cidade. Confiada na sua valentia, affeita ao crime, acostumada a ver correr na lâmina de sua faca ou navalha o sangue dos que caiam em seu desagrado, vinha há tempos, insultando e perseguindo a pobre menor Maria Isabel, dizendo, mesmo de público “que só se retiraria da Feira quando lhe fizesse um serviço”, esta certamente, quando assassinasse a dita menor. (...) que é possuidora de um exemplar procedimento afirmam todas as testemunhas. 195 CEDOC – Maria Alexandrina- Doc. 335, Cx. 18, Est. 01 ano 1937. 105 O certo é que a menor Isabel foi colocada pela perversa Anna 196 Pereira, neste dilema – morrer ou matar. Apesar do esforço do advogado, Maria Alexandrina é condenada e incursa nas penas míninas do Art. 303 do Código Penal. A condenação em pena mínina é considerada uma vitória da defesa, uma vez que a prova do crime é cabal, além de ré ser confessa. 196 CEDOC – Maria Alexandrina- Doc. 335, Cx. 18, Est. 01 ano 1937. 106 Capítulo III Os crimes do amor 107 Este capítulo analisa as relações sexo-afetivas entre os populares aparados no conceito de honra, a partir da análise de 53 processos criminais de defloramentos, sedução e estupros em Feira de Santana, nas décadas de 1930 a 1948.197 O caminho percorrido entre o desvirginamento até à queixa revela-nos uma faceta do cotidiano socioeconômico e sexual dos populares que transitavam entre a urbe e o campo feirense. Debruçar-se sobre este cotidiano popular, é vislumbrar as estratégias de sobrevivência e as experiências vividas por homens e mulheres que tornaram público sua intimidade através das interlocuções judiciais, apresentando-nos as concepções históricas sobre honra feminina e suas nuances socioculturais. É importante acrescentar que a honra é um comportamento enquadrado a partir das relações que uma dada sociedade confere aos seus sujeitos, que variam de acordo com as relações sociais e de gênero.198 O próprio Código Penal de 1890 no Título VIII, estabelece os crimes contra a segurança da honra e honestidade das famílias e do ultraje público ao pudor199, que enquadrava os crimes de violência carnal, rapto, lenocínio, adultério ou infidelidade conjugal e ultraje ao pudor público. Nesses crimes tipificados, as mulheres e suas performances sexuais, eram os elementos centrais do enquadramento da lei, associando diretamente ao conceito de honra. A honra feminina ligava-se à masculina, pois, os ditames da normatividade legal eram pensados numa realidade de família paterfocal, no qual o homem, como responsável pela proteção da família, deveria salvaguarda sua honra no controle dos corpos de suas filhas no regulamento 197 Os processos utilizados neste capítulo foram catalogados pelo CEDOC com crimes de DEFLORAMENTO, porém, cabe ressaltar que após a mudança do Código Penal em 1940, a terminologia criminal passa ser SEDUÇÃO, por isso que ao longo do capítulo, utilizaremos o termo exposto na documentação, ou seja, defloramento, porém atentamos o leitor para os ditames legais do Código Penal. 198 RODRIGUES, Andrea Rocha. Honra e sexualidade infanto-juvenil na cidade do Salvador, 1940-1970. (Tese de Doutorado), Salvador, UFBA, 2007, p. 101. 199 GAMA, Affonso Dionysio da. Código Penal Brasileiro (Dec. n. 847, de 11 de Outubro de 1890). São Paulo, Saraiva editora, 1923, p. 325 108 do comportamento das mulheres do lar200. Segundo Fausto, “desvenda-se desse modo o pressuposto de que a honra da mulher é o instrumento mediador da estabilidade de instituições sociais básicas – o casamento e a família”201. Elemento material da honra feminina, a virgindade, esta ligada diretamente, à presença do hímen, considerado um “selo biológico” que atestava a mulher para o casamento, separando-as entre honestas e desonestas202. Sueann Caulfield, fez a análise dos juristas do início do século passado, que se debruçaram sobre os crimes sexuais e definiam que uma mulher solteira virgem era uma prostituta em potencial203. Cabe destacar que a materialidade da honra, a virgindade, já era questionada nas primeiras décadas do século passado, pela inserção do saber médico, que discutia a existência do hímen complacente204. No bojo desse debate, estabelecia-se ao lado da materialidade do hímen, a concepção de honra social, atrelado ao comportamento e aos costumes. Com a mudança do Código Penal em 1940, a redação do título da lei é alterada, substituído por Crimes contra os Costumes205, separando-os dos crimes contra a família, enquadrando os a partir de então como crimes contra a liberdade sexual, sedução e corrupção de menores, rapto, lenocínio ou tráfico de mulheres e ultraje ao pudor. Nesta nova redação da lei, surge também uma nova relação com seu enquadramento social, suprimiu-se a palavra honra e focou-se nos costumes, sendo direcionado ao conceito de pudor. Essas mudanças nas concepções de honra sexual foi fruto de um amplo debate entre 200 CAUFIELD, Sueann. Em defesa da Honra: moralidade e nação no Rio de Janeiro(19181940). Campinhas, SP, Editora da UNICAMP, Centro de Pesquisa em História Social da Cultura, 2000; FERREIRA FILHO, Alberto Heráclito. Salvador das Mulheres: condição feminina e cotidiano popular na Belle Époque Imperfeita, (dissertação de Mestrado), Salvador: UFBA, 1994; RODRIGUES, Andrea Rocha. Honra e sexualidade infanto-juvenil na cidade do Salvador, 1940-1970. (Tese de Doutorado), Salvador, UFBA, 2007. 201 FAUSTO, Boris. Crime e Cotidiano: a criminalidade em São Paulo (1880-1924), São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2º Edição, 2001, p. 196. 202 Martha Abreu. Meninas Perdidas: Os populares e o cotidiano do amor no Rio de Janeiro, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. 203 CAUFIELD, Sueann. Em defesa da Honra: moralidade e nação no Rio de Janeiro(19181940). Campinhas, SP, Editora da UNICAMP, Centro de Pesquisa em História Social da Cultura, 2000, p. 77. 204 CAULFIELD, Op. Cit. 76. 205 Capitulo VI – Código Penal Brasileiro, Decreto Lei n. 2848, de 7 de dezembro de 1940. 109 jurista nos anos de 1920 e 1930, destacando Afrânio Peixoto e Nelson Hungria, que buscavam definir um novo conceito de honra, combatendo a idéias “himenocêntrica”, de valorização social da virgindade, que não correspondiam a uma noção de avanço social e por sua vez demonstravam um atraso nas instituições políticas e sociais brasileiras206. O que estava em foco eram as mudanças a nível de Brasil com a industrialização e a entrada das mulheres no mercado de trabalho institucional, como operárias e, em conseqüência, em outras atividades, emergindo uma “mulher moderna”, que trabalhava e atuava para além do privado e do doméstico. Cabe destacar que essa “mulher moderna” é pensada a partir de um modelo elitista de mulher, pois, entre as mulheres populares, a permanência na rua e no mundo do trabalho, era uma prática corriqueira e constituinte das identidades dessas mulheres dos grupos populares, sendo em diversos aspectos uma resignificação da escravidão passada207. A busca na definição da honra feminina levou os juristas e comentadores do Novo Código a focar-se nos aspectos morais, pois, este apresentava um caráter subjetivo ligando-se aos costumes e comportamentos. Nelson Hungria ao comentar o Novo Código Penal, demonstrou, que era importante adequar o Código à emergência de uma nova sociedade e rever os postulados penais. No tocante aos crimes sexuais, o autor foca no sentido da caracterização da honra feminina, ligada ao conceito de pudor, que transpunha e atuava como uma ação preventiva, pois, a nível individual, exercia um controle subjetivo e psíquico de maneira complexa, causando a inibição em defesa dos critérios ético-sociais atinentes ao que o autor chama de “amor genésico”, e, a nível coletivo, exercia uma injunção de observância das formas de normalidade e reservas impostas, no que respeita a função sexual, a experiência e as necessidades sociais.208 Dessa forma, o pudor funcionava como o policiamento 206 CAUFIELD, Sueann. Em defesa da Honra: moralidade e nação no Rio de Janeiro(19181940). Campinhas, SP, Editora da UNICAMP, Centro de Pesquisa em História Social da Cultura, 2000, p. 163 207 Ver essa discussão da mulher no espaço da rua em: SOARES, Cecília Moreira. A Mulher Negra na Bahia no século XIX, (dissertação de Mestrado), Salvador, UFBA, 1994. 208 HUNGRIA, Nelson; LACERDA, Romão Cortes de. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Companhia Editora Forense, 1948, p 90. 110 dos costumes coletivos e individuais, atuando numa sociedade que apresentava “crises morais” como o fato das “mulheres modernas”. O julgamento não era apenas pela materialidade do fato, mas nas conjunturas morais e pudicas em que se inscreve.209 Nosso ponto de partida para compreender os crimes sexuais em Feira de Santana nos anos de 1930 a 1948 é uma indagação sobre o que levaram tantos pais e mães pobres a procurarem na justiça a reparação do desvirginamento de suas filhas? qual o conceito de honra que vigorava entre os populares? A análise sobre os comportamentos sexo-afetivo entre os populares, nos apontam para organizações particularizadas de família, como as famílias matrifocais210211, ou através de conjugalidade, decorrente de relações de amasiamento, de concubinato, etc. Entre os pais que prestaram queixa, dos cinqüenta e três processos, apenas treze eram casados. É importante localizarmos a noção de honra entre este sujeitos e perceber a circularidade entre o Código Penal, os costumes e as experiências de vida dos sujeitos evidenciados. Vemos pela leitura processual, que a materialidade da honra entre os populares que procuraram a delegacia para queixar-se, estava na virgindade, sendo o hímen este elemento definidor. Pelo alto índice de analfabetismo em Feira de Santana, nas décadas em evidência, acredito que nenhum pai ou mãe tenham lido algum dos Juristas e comentadores dos códigos penais vigentes no período em estudo, seja o Código de 1890, seja o Código de 1940, porém, nas falam nos autos dos processos, demonstram 209 Ver debate em RODRIGUES, Andrea Rocha. Honra e sexualidade infanto-juvenil na cidade do Salvador, 1940-1970. (Tese de Doutorado), Salvador, UFBA, 2007, p. 101. 210 A matrifocalidade é um conceito antropológico, para pensar as relações familiares nas quais a presença e o direcionamento familiar é focado no feminino, ou seja, na figura da mãe. Essa formação familiar é bastante experimentada entre os populares, pois, devidos aos códigos de conjugalidade popular, favorecer um maior trânsito e autonomia entre os sexos, gerando dessa forma relações mais flexíveis comparadas aos modelos elitistas de familiar nuclear burguesa. Assim não raro eram as famílias formadas pro mães solteiras, provendo sua prole com o trabalho feminino. Ver: FERREIRA FILHO, Alberto Heráclito. Salvador das Mulheres: condição feminina e cotidiano popular na Belle Époque Imperfeita, (dissertação de Mestrado), Salvador: UFBA, 1994. 211 Ver: FERREIRA FILHO, Alberto Heráclito. Salvador das Mulheres: condição feminina e cotidiano popular na Belle Époque Imperfeita, (dissertação de Mestrado), Salvador: UFBA, 1994 111 apropriar-se dos conceitos penais ao acreditarem que a perda do hímen levava consigo a honra feminina e, por conseguinte a honra familiar, condicionando aquele indivíduo à prostituição.212 As falas dos queixosos nos processos são exemplares, como foi o caso de Maria Theodora de Jesus, 44 anos de idade, residente no beco do Bom e Barato, solteira, doméstica, analfabeta, que procurou a delegacia no dia 10 de setembro de 1941, para queixar-se do desvirginamento de sua filha, afirmando que a sua atitude era para “não ficar impune um crime desta ordem e na prostituição a filha, procurou queixar-se pedindo providencias”213 Ainda continuamos a nos indagar, o que levou indivíduos como Maria Theodora, pobres e analfabetos, a requererem na Justiça a confirmação de uma honra feminina que não correspondiam ao cotidiano dos mesmos? Constata-se que Maria Theodora é solteira, mesmo tenho alguns filhos, o que a enquadra como uma mãe solteira que, por sua vez, era um modelo desviante na norma legal de conduta moral, mas confirma a nossa observação sobre as organizações particularizadas de famílias. Boris Fausto analisando os crimes sexuais em São Paulo nas décadas de 1880 a 1924, presume que os valores familiares ligadas à honra e virgindade, permeavam por todos os grupos sociais.214 Ainda, Marta Esteves ao estudar os crimes sexuais no Rio de Janeiro, chama a atenção para as peculiaridades culturais na compreensão da honra entre os populares, a autora observa que os populares ao darem as queixas “necessitavam convencer as autoridades de que possuíam um conceito de honra vinculado à virgindade e ao casamento regular”215 Essa tese defendida por Esteves é a que melhor define o comportamento das populares nas instâncias legais. Não compreendo como uma atitude submissa a ação desses sujeitos de queixar-se, reafirmando o conceito de honra-virgindade. O 212 CAUFIELD, Sueann. Em defesa da Honra: moralidade e nação no Rio de Janeiro(19181940). Campinhas, SP, Editora da UNICAMP, Centro de Pesquisa em História Social da Cultura, 2000, P. 27 213 CEDOC/UEFS - Hermes Sodré – Doc. 2152, Cx. 103, Est.04, Ano 1941. 214 FAUSTO, Boris. Crime e Cotidiano: a criminalidade em São Paulo (1880-1924), São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2º Edição, 2001.u 215 ESTEVES, Martha Abreu. Meninas Perdidas: Os populares e o cotidiano do amor no Rio de Janeiro, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990, p. 118. 112 olhar mais atento demonstra que há empoderamento e lutas de representação, pois, esses indivíduos, mesmo não compreendendo o Código Penal, acredito que jamais o tenham lido, o re-significavam a partir do costume, e, dentro dos princípios da normatividade construíam suas versões. Segundo Esteves, “é exatamente a prática de muitas ofendidas pobres que permite pensar a hipótese de a honra para elas ter significado distinto, apesar da difusão dos valores higiênicos”216. Dessa forma, o que estava em jogo nas delegacias e tribunais eram lutas e resistências por manutenção sócio-econômica. O longo caminho do processo crime até a sentença do Juiz é bastante enviesado, por muitos acertos particulares, arquivamentos, fugas, casamentos, etc. No ato da queixa, busca-se a prova material, que é a constatação do desvirginamento através do exame de corpo de delito, que se constitui numa prova jurídica e num álibi que pode favorecer a acusação, como também a defesa. O exame funciona com a averiguação física da queixosa, desvelando sua intimidade, onde os médicos peritos respondem ao questionário composto de cinco quesitos, os quais: PRIMEIRO – se houve defloramento; SEGUNDO qual o meio empregado; TERCEIRO - se houve copula; QUARTO - se houve violência para fins libidinosos e QUINTO - qual o meio empregado, se força física, se outros meios que privasse a mulher da possibilidade de resistir e defender-se.217 Assim, cabia aos peritos a confirmação do fato, dando-lhe a prova. A conclusão do exame definia se o defloramento foi recente ou antigo, se a vítima estava grávida, ou se, por exemplo, a vítima adquiriu alguma doença sexualmente transmissível. O fato da brevidade ou não do defloramento, corroborava ou contradizia a queixosa, pois, o fato de constatar um defloramento antigo ou “cicatrizado” era um denunciador de que a vítima vivia em “prostituição”. Confirmada a prova cabal do crime, segui-se o processo, porém, outro fator preponderante para configuração do crime de estupro ou defloramento é a 216 ESTEVES, Martha Abreu. Meninas Perdidas: Os populares e o cotidiano do amor no Rio de Janeiro, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990, p. 118. 217 Fonte: CEDOC/UEFS – Processos Criminais de Defloramentos e Estupros 113 comprovação da menoridade. Cabe destacar que em Feira de Santana em meados do século XX, que influía uma ampla ausência de documentação comprobatória, sendo requeridas as certidões de batismo ou mesmo os exames de verificação de idade que se assemelhavam ao exame de corpo de delito. A prova da idade era um fator crucial para caracterização do crime, sendo este um dos principais motivos de arquivamento. Nas declarações prestadas pelas queixosas/queixosos e as vítimas, vemos emergir discursos que buscam estabelecer uma representação feminina na qual a ofendida é posta à baila e relacionada aos ditames sociais requeridos para identificação de uma menina honrada. Assim, evocam-se parâmetros de passividade, fragilidade, inocência e recato218. Dessa forma, as representações que circulam nos processos, tendem a requerer uma mulher como uma figura passiva, sem desejos ou impulsos219. O oposto é identificado como mundanas, meretrizes. Para tal identificação são trazidos à tona elementos do cotidiano das ofendidas e dos denunciados, ligados ao comportamento social e integração familiar, portanto, são perguntas fundamentais nos processos de crimes sexuais, qual o procedimentos dos envolvidos? Pois, a construção social da honra requeria comportamentos tanto femininos quanto masculino, porque ao homem era cobrado o trabalho e a providência do lar, mesmo assim, o que fica de fato em questão era o comportamento feminino. No que se referem às mulheres essas perguntas são direcionadas para os elementos envolvendo a interação entre o público e o privado, como se a menina sai sozinha a rua, ou se sai à noite, se freqüenta festas, se já teve outros namorados ou noivos. No caso dos homens essas perguntas são direcionadas às relações públicas, como se trabalha ou se é dado à embriaguez. A caracterização das masculinidades e feminilidades apreendidas pelos discursos nos apresentam posições de dominação simbólica na qual se estabelece uma relação binária de homem sedutor, viril versus mulher 218 ESTEVES, Martha Abreu. Meninas Perdidas: Os populares e o cotidiano do amor no Rio de Janeiro, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. 219 FAUSTO, Boris. Crime e Cotidiano: a criminalidade em São Paulo (1880-1924), São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2º Edição, 2001, p. 204. 114 seduzida, consumível. Em todo o processo há uma tentativa de reafirmar a deserotização feminina, reivindicando mulheres, que não controlassem seus corpos e desejos. Não raro, foram os casos em que a mulher entra como vítima e sai como autora do delito, pois, o comportamento desregular frente essa deserotização, faz com as ofendidas passem de seduzidas à sedutoras. Os envolvidos... Os dados quantitativos oriundos da análise dos processos nos dão suporte para estabelecer o perfil social dos sujeitos que transitaram nessa esfera jurídica dos processos de crimes sexuais, observando desta forma, as profissões, as idades, a cor, o estado civil, a instrução, o local de moradia. Esses dados nos levaram a constatações peculiares da sociedade feirense, entrelaçadas nas redes socioculturais dos nossos sujeitos. Uma breve amostragem acerca da autoria das queixas de crimes sexuais, prestadas em Feira de Santana de Santana, nas décadas de 19301948, constatamos uma maior presença masculina no ato da queixa, que visava a “reparação da honra perdida”, através do desvirginamento. Apesar deste dado caminhar em consonância com a legislação da época que determina que a queixa deveria ser prestada pelo chefe da família, que historicamente é centrada na figura masculina do pai. O que nos chama atenção neste fato, é que em estudos sobre a mesma temática, realizados por outros historiadores, entre eles, Ferreira Filho, Sanches, Esteves, encontraram uma realidade oposta, na qual a autoria das queixas era majoritariamente feminina, demonstrando as nuances dos arranjos familiares populares 220. 220 ESTEVES, Martha Abreu. Meninas Perdidas: Os populares e o cotidiano do amor no Rio de Janeiro, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990; FERREIRA FILHO, Alberto Heráclito. 115 Destacamos que estes estudos focaram os centros urbanos da cidade de Salvador e Rio de Janeiro. Entre os feirenses, o percentual masculino nas queixas representa 54,7%, entre os pais, responsáveis e patrões. Este dado pode sinalizar para o fato de que o município de Feira de Santana, ainda na década de 1940, contasse com uma população largamente situada na Zona Rural, o que interferia nas redes de sociabilidades e na dinâmica cultural dos relacionamentos sexo-afetivos, em que a permanência de famílias biparentais eram mais relevantes, mesmo entre os populares, sabendo que essas famílias não eram constituídas por casamentos eclesiásticos ou civis, mas sim por relações de amasiamentos e concubinatos, como demonstrados no II capitulo. TABELA 8 - AUTORIA DA QUEIXA Queixoso Pai Mãe Avó Responsável Patrão Vizinho Tia A vítima Ignorado Total Quantidade 19 16 03 06 03 01 01 02 01 53 Porcentagem 35, 84% 30,18% 5,66% 11,32% 5, 66% 1,88% 1,88% 3,77% 1,88% 100% Fonte: CEDOC/UEFS – Processos Criminais de defloramentos e estupros. (1930 – 1948) Apesar de a porcentagem masculina ser maior, não podemos deixar de problematizar, o relativo número de queixas prestadas pelas mães. Nestes processos, verifica-se a ausência do pai no ambiente familiar, o que nos permite inferir sobre a constituição familiar dos populares que não seguiam as ditames da regra da biparentalidade, destacando as queixas prestadas por mães solteiras. Destacando ainda que entre as dezesseis mães que prestaram queixa, três são viúvas. Alberto Heraclito Ferreira Filho ao discutir o tema, Salvador das Mulheres: condição feminina e cotidiano popular na Belle Époque Imperfeita, (dissertação de Mestrado), Salvador: UFBA, 1994; SANCHES, Maria Aparecida Prazeres. Fogões, Pratos e Panelas: poderes, práticas e relações de trabalho doméstico. Salvador 1900/1950. (dissertação de Mestrado), Salvador, UFBA, 1998. 116 demonstra que entre os populares havia certo reajustamento familiar, porém, mesmo nas famílias matrifocais, o pai, figura masculina, representava uma referência com bastante força. O autor chega a afirmar que a “sociedade baiana, no tocante aos populares, tão feminina na sua expressão prática e cotidiana e tão masculina em seus valores, regras e propósitos”221. As nossas “meninas desonradas” tinham, na maioria dos casos, idades entre 10 a 19 anos, sendo o quesito da idade uma das peças chaves num processo de estupro e defloramento, pois, a própria lei sinalizava para fator da idade como preponderante na caracterização do crime. No Código Penal de 1890, estabelecia que “nos crimes contra a honra da mulher, o consentimento desta, sendo menor, não exime da pena o autor do delito” 222. A idade interferia no desenrolar do processo e julgamento, pois, o defloramento numa menor de 14 anos, considerava-se crime com presunção de violência, o que facilitava para a ofendida a sua “reparação” com o casamento, ou a condenação do réu. Cabe destacar que a falta de comprovação da idade da ofendida, devido à precariedade nos registros civis e a própria condição de analfabetismos e pobreza dos nossos sujeitos, era preponderante para o arquivamento dos processos. Como fica evidente na fala do Promotor Público ao solicitar o arquivamento de um processo de defloramento: À certidão de baptismo foi negativa. De tudo, pois, o elemento único existente nos autos comprovador de sua idade é o exame médico, o qual conclue achar-se a idade comprehendida entre 18 e 20 anos. Ora, em face dessa conclusão e na impossibilidade de apresentação de outra prova a respeito, requer a Promotoria o archivamento deste papeis, tendo em attenção os dispositivos dos arts. 217º e 2º do 223 actual código Penal. [sic] 221 FERREIRA FILHO, Alberto Heráclito. Salvador das Mulheres: condição feminina e cotidiano popular na Belle Époque Imperfeita, (dissertação de Mestrado), Salvador: UFBA, 1994, p. 69. 222 GAMA, Affonso Dionysio. Código Penal Brasileiro – (Dec. N. 847, de 11 de outubro de 1890), Livraria Academica, Saraiva Editores, São Paulo, 1923. P. 326. 223 CEDOC – Doc.1647, Cx.85, Est. 03, ano 1941 – Pedido de arquivamento de processo pelo Promotor Lauro de Azevedo em 16 de janeiro de 1942. 117 TABELA 9. QUANTO A COR/IDADE/ESTADO CIVIL DAS VÍTIMAS Cor Branca Parda Preta Morena/mulata Ignorada Qt. 04 32 09 01 07 % Idade 7,54% 10 a 19 60,37% 20 a 29 16,98% 1,88% 13,20% Qt. 47 06 % Estado civil 88,67% Solteira 11,32% Qt. 53 % 100% Total 53 100% 53 100% 53 100% Total Total Fonte: CEDOC/UEFS – Processos Crimes de defloramento e Estupros 1930-194 TABELA 10. QUANTO A COR/IDADE/ESTADO CIVIL DOS RÉUS Cor Branco Pardo Preto Moreno/mulato Ignorado Qt. 04 12 01 02 34 % 7,54% 22,64% 1,88% 3,77% 64,15% Total 53 100% Idade 10 a 19 20 a 29 30 a 39 40 a 49 Acima de 50 Ignorada Total Qt. 08 21 11 03 02 08 53 % 15,09% 39,62% 20,75% 5,66% 3,77% 15,09% 100% Estado civil Solteiro Casado Viúvo Ignorado Qt. 33 13 01 06 % 62,26% 24,52% 1,88% 11,32% Total 53 100% Fonte: CEDOC/UEFS – Processos Crimes de defloramento e Estupros 1930-1948 A análise sobre as profissões dos réus comprova o que buscamos discutir ao longo dos capítulos anteriores, que retrata a dinâmica rural de Feira de Santana de meados do século XX, uma vez que 35,8% dos acusados declararam ser lavradores ou roceiros, um amplo percentual, porém 64, 2% dos envolvidos declararam ocupações que sinalizavam para o um dado crescimento da paisagem urbana feirense no tocante a ocupação popular. A questão da ocupação ou profissão dos acusado era um fator bastante requerido nos processos, pois, assim como exigia-se das mulheres um comportamento casto, ao homem exigia-se um comportamento ligado ao trabalho e a disciplina. 118 TABELA 9 - PROFISSÃO/OCUPAÇÃO DO RÉU Profissão/ocupação Lavrador/roceiro Operário Chauffeur/motorista Ferreiro Pedreiro Comerciante/negociante Profissões liberais Policial Militar Barbeiro Eletricista Funcionário Público Alfaiate Ignorada Padeiro Total Quantidade 19 02 03 02 03 09 03 01 02 01 01 01 05 01 53 Porcentagem 35,8% 3,7% 5,6% 3,7% 5,6% 16,9% 5,6% 1,8% 3,7% 1,8% 1,8% 1,8% 9,4% 1,8% 100% Fonte: CEDOC/UEFS – Processos Crimes de Defloramentos e Estupros (1930 – 1948) Quando observamos as profissões declaradas pelas vítimas, constamos uma complexa definição de ocupação feminina em Feira de Santana, (79,26%) das ofendidas declaravam como domésticas e (16, 98%) como lavradoras. Essas identificações, principalmente a de doméstica requer uma problematização, pois, a declaração de doméstica podia definir a ocupação como “empregada doméstica” ou a afirmação de que cuidava do próprio lar. Maria Aparecida Sanches, em estudo sobre as relações de trabalho e cotidiano das empregadas domésticas em Salvador, chama a atenção para essa definição de domestica, afirmando “o hábito de se considerar como de doméstica toda e qualquer mulher que não tivesse outra profissão definida, como no caso de operárias e modistas, poderiam levar a uma distorção nas informações, levando-nos a considerar como empregadas domésticas mulheres que não exerciam a profissão e quem eram na verdade donas-decasa”224. 224 SANCHES, Maria Aparecida Prazeres. Fogões, Pratos e Panelas: poderes, práticas e relações de trabalho doméstico. Salvador 1900/1950. (dissertação de Mestrado), Salvador, UFBA, 1998. P. 12. 119 Essas diferenciações são percebidas pela análise leitura dos autos, na qual observamos nossas protagonistas se relacionado economicamente, como costureiras, vendedoras e prostitutas, ainda que, nas suas declarações sobre sua ocupação destacava ser doméstica. Isso pode inferir sobre as relações entre público/privado, pois, a leitura social da mulher honesta vincula-se esta ao meio doméstico e privado, sendo, portanto um sinalizador das preocupações femininas em caracterizar-se como honestas, demonstrando pertencimento a um lar. Cabe destacar que o nível de violência nos relatos dos crimes são mais evidente entre as mulheres que ocupavam a profissão de empregadas domésticas, uma vez que, viviam longe da vigilância da família que, grande parte morava na zona rural. Dessa forma, a prática da sedução e violência é mais constante entre este grupo social, sendo estas meninas desvirginadas por seus patrões ou agregados da casa225. Somente em 01 (hum) caso envolvendo conflito sexual entre patrões/agregados e empregadas a sentença foi favorável a vitima. Isso nos remete a célebre expressão de Viveiros de Castro, no qual demonstra que para os agentes judiciais eram complicado acreditar em “uma criada de condição humilde e baixa que se diz iludida pela promessa de casamento que lhe fez seu amo, homem rico ou de elevada posição social”226. As ocupações também ligam-se ao local de ocorrência dos crime, apresentando as nuances e as pistas da qual Chalhoub chama atenção que o historiador das camadas populares deve estar atento227. TABELA 10 - PROFISSÃO/OCUPAÇÃO DA VÍTIMA Profissão/ocupação Doméstica Lavradora/roceira Estudante Ignorada Total Quantidade 42 09 01 01 53 Porcentagem 79,26% 16,98% 1,88% 1,88% 100% Fonte: CEDOC/UEFS – Processos Criminais de Defloramentos e Estupros. (1930 – 1948) 225 Op. Cit. CASTRO, Viveiros. Os Delitos Contra a Honra da Mulher. Rio de Janeiro: Freitas Bastos e Cia, 1936, p. 57. 227 CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle époque. 2ª edição, Campinas, SP, Editora da Unicamp, 2001. 226 120 Na formação social dos processos e caracterização dos envolvidos no processo de crime sexual, vê-se revelarem-se os padrões de moralidade pública impostos aos sexos. Na caracterização do crime de defloramento, é condição sine qua non para que haja a sedução e a conseqüente promessa do casamento. Dos cinqüenta e três processos, somente em seis processos, a vitima não menciona que o acusado prometeu casar-se, mas em dois desses seis aparece a relação de provimento, como o fato de as vítimas afirmarem que os acusados “Prometia tomar conta dela”228 ou que “não a deixaria atoa”229, ou que “providenciaria uma casa para a mesma ofendida” 230. Nessa caracterização da sedução, a existência de algum vínculo afetivo entre os envolvidos era fundamental para a mulher provar sua “inocência” no fato, descrevendo uma relação de namoro ou noivado, na qual o acusado, freqüente regularmente a casa da ofendida, firmando um compromisso com a família da mesma. Martha Esteves, estudando crimes sexuais no Rio de Janeiro nos primeiros anos do século XX, destaca que os relacionamentos entre os populares não seguiam as regras descritas pelo antropólogo Thales de Azevedo231, que se pautou nas relações sexo-afetiva da elite, que era ritualizada em seqüências de passagens, até chegar o casamento. Entre os populares, esses contatos eram motivados pela própria interação cotidiana do trabalho, da vizinhança e ressaltando as questões ligadas à dinâmica de sobrevivência material e tais contatos, não pressupunham um ritual elitista de cortejamento. Em Feira de Santana, observamos a mesma realidade, as relações eram estabelecidas em curto espaço de tempo e sem que houvesse a prática do ritual do namoro descrito por Azevedo. Entre os envolvidos verificouse que 66,03%, das vitimas declarou que eram namoradas ou noivas dos seus ofensores. Porém quando observadas as declarações dos acusados esses 228 CEDOC/UEFS – Brasilino Almeida – Doc. 2255, Cx. 109, Est. 04, Ano 1940. CEDOC/UEFS – José Caetano Cerqueira – Doc. 1642, Cx. 85, Est. 03, Ano 1941. 230 CEDOC/UEFS – Geremias Almeida Mattos – Doc. 1662, Cx. 85, Est. 03, Ano 1940 231 AZEVEDO, Thales de. As regras do namoro à antiga: aproximações sócio-culturais. São Paulo: Ática, 1986. 229 121 índices reduz-se para 24,52%, porém todos são os envolvidos são unânimes em negar a autoria do defloramento ou estupro. TABELA 11 - RELAÇÃO DO RÉU COM A VÍTIMA Relação Namorado Noivo Vizinho Cunhado Irmão Pai Tio Conhecido Padrasto Patrão Total Quantidade 31 04 03 02 02 01 01 05 01 03 53 Porcentagem 58,49% 7,54% 5,66% 3,77% 3,77% 1,88% 1,88% 9,43% 1,88% 5,66% 100% Fonte: CEDOC/UEFS – Processos Criminais de Defloramento e Estupros 1930-1948 A análise das sentenças jurídicas dos processos de crimes sexuais, demonstra as dificuldades que as ofendidas tinham em provar seu desvirginamento. No ato de tornar público que já havia sido “detratada em sua honra”, as defloradas precisavam além da prova cabal do desvirginamento, a prova moral, que a configurasse com as representações de mulher honesta vigentes na época. Os padrões exigidos para uma mulher honesta, amparados em concepções elitistas, requeriam que as mulheres mantivessem ligadas aos ditames do privado. Assim, o comportamento das meninas pobres, que necessitavam trabalhar desde cedo nas casas de família, armazéns e outras ocupações, as tornavam suscetíveis e vulneráveis a vivenciarem os “prazeres da carne”. A deficiência nos registros de nascimentos era outro fator que dificultava o processo, pois, a prova da idade era crucial para a definição do crime de sedução e estupro. Pela quantidade de processos arquivados, 56,60%, concluímos que era difícil e complexo uma mulher provar que foi desonrada, uma vez que, era ainda mais complexo a prova de sua honra. 122 TABELA 12 - QUANTO A SENTENÇA Sentença Arquivado Absolvido Condenado Improcedente Pronunciado Julgamento não conta Morto Outros Total Quantidade 30 02 08 04 03 02 02 02 53 Porcentagem 56,60% 3,77% 15,09% 7,54% 5,66% 3,77% 3,77% 3,77% 100% Fonte: CEDOC/UEFS – Processos de Criminais de Defloramento e Estupros 1930-1948 O sistema jurídico, apesar de longe da realidade cotidiana dos populares, com seus cânones e vocabulários próprios aos que transitam em seu meio, por diversos momentos, foi o palco principal para o desenrolar de histórias que envolviam mulheres e homens populares que em nada conheciam dos enquadramentos jurídicos. Uma vez que, entre os 62,26% das ofendidas eram analfabetas. GRAU DE INSTRUÇÃO DA VÍTIMA Grau de instrução Ler e escreve Analfabeta Total Quantidade 20 33 53 Porcentagem 37, 73% 62, 26% 100% Fonte: CEDOC/UEFS – Processos de Criminais de Defloramento e Estupros 1930-1948 No sistema jurídicos, esses processos ganhavam vida, trazendo a tona, vozes multifacetadas, sejam entoadas pelos protagonistas e seus coadjunvantes, ou seja pelos “manipuladores técnicos” com bem frisou Correa, analisando o papel dos representantes jurídicos no desenvolvimento processual. Desta forma, na justiça, constroem-se verdades e ocultam-se fatos, elevam-se valores que dão significado à sociedade que é representada, sendo assim, processo funciona como uma representação da sociedade, pois, traz a 123 tona as mentalidades, comportamentos, valores, códigos legais e consuetudinários que são legitimados pelos grupos que a compõem. Em diversos momentos do desenvolvimento processual observamos as interferências sócio-juridicas, quando seus agentes ( delegados, advogados, promotores, juízes) utilizam estratégias de buscar nos costumes, mecanismos de agravar ou atenuar os atos criminosos, fazendo muitas vezes com que o processo ganhe novos rumos, e em alguns momentos os papeis sejam invertidos, levando a vítima e tornar-se ré. Da análise dos discursos produzidos nestas instâncias, apropriamos o cotidiano social, dessa forma, encontramos mulheres e homens negociando na complexa relação da economia sexual e afetiva, envolta em valores como, honra, recato, virilidade, fragilidade, entre outros, que permeavam as normas sociais em Feira de Santana de meados do século XX. As histórias... Em meios às mudanças do Código Penal, as transformações urbanísticas e modernizantes pelas quais o município de Feira de Santana vivenciavam em meados do século XX, chegou à delegacia de policia, Judith Reis, solteira, 40 anos de idade, analfabeta, queixando-se do negociante Ernesto dos Santos, conhecido como “Baio”, viúvo, 52 anos de idade, pelo mesmo ter sido o autor do defloramento da sua filha Maria da Glória, menor, 11 anos, doméstica, analfabeta, preta, residente na Avenida Araujo Pinho, no lugar conhecido como Olhos D‟água232 Judith passa a relatar minuciosamente o percurso entre Maria 232 CEDOC/UEFS – Ernesto M. dos Santos – Doc.2209, Cx.106, Est.04, ano 1945. 124 da Gloria e “Baio” até o fato delituoso. Conta-nos que tendo “Baio” pedido a sua filha no mês de junho de 1945 para ajudá-lo a contar ovos, com qual o mesmo negociava nos dias de segunda-feira, dia em que ocorria a feira –livre no centro da cidade, dia também de maior fluxo na cidade. Por esta ajuda, o velho “Baio” prometeu dar uma gratificação. Devido às precárias condições de sobrevivência, morando numa casa de cômodos no lugar conhecido como Olhos D‟água e por passar por dificuldades, mandou que sua filha Maria da Gloria fosse ajudar, por um espaço de tempo de dois meses. Aqui cabe uma análise sobre a condição social dessas meninas pobres, pois, desde cedo tinham que trabalhar, seja por vontade própria, seja induzidas pelas mães, para ajudar no provimento da casa. Neste ponto, vemos que o trânsito das meninas pobres pelo universo público do trabalho, obrigavam-nas a ficarem fora de casa e saírem à noite, estabelecendo assim, suas experiências de classe, revelando seu cotidiano e seus costumes. Todas as noites, Maria voltava para casa acompanhada por “Baio”, variando entre as dezenove e vinte horas, recebendo assim a gratificação do acusado de três ou quatro cruzeiros por semana. Contudo, Maria deixou de prestar o serviço para “Baio”, pois, decidiu ir para a cidade de Cachoeira visitar sua madrinha. Enquanto a jovem estava em companhia da madrinha na referida cidade, “Baio” saiu dizendo que “tinha feito coisa feia com a menor” 233, que mandou trazer a filha de Cachoeira e na presença da madrinha interrogoua que confessou não ser mais virgem e que foi “Baio” “que fez aquilo com ela”.234 Nosso primeiro impulso como feministas, é construir uma grande revolta contra Ernesto Melo dos Santos, porém, como historiadores, precisamos estar atentos as especificidades dos processos e antes de qualquer posicionamento passional, buscarmos evidenciar os discursos e as representações sobre os comportamentos populares. 233 234 CEDOC – Ernesto Melo dos Santos – Doc. 2209, Cx. 106, Est. 04, ano 1945. CEDOC – Ernesto Melo dos Santos – Doc. 2209, Cx. 106, Est. 04, ano 1945. 125 Assim, no dia 09 de outubro de 1945, quatro dias após a queixa prestada por Judith, Ernesto Melo dos Santos, o “Baio”, apresenta-se para interrogatório. “Baia” confessa que manteve relações sexuais com a menor, porém, afirma que esta não era mais virgem, frase usual entre os acusados de defloramento. No interrogatório, o acusado traz elementos constituintes do cotidiano da queixosa e suas filhas, visando depreciá-los a fim de construir uma visão moralista de que Maria não era uma mulher honesta. Assim declarou Baio que a menor Maria da Gloria não era mais virgem, o que deu a ele o “direito” de praticar com a mesma relações sexuais, pois, a virgindade como já discutimos correspondia a um “selo moral”; na sua ausência, esta menina não podia ser considerada honrada. Baio ainda diz que mantinha contato antigo a com a família da ofendida sendo que Judith já havia sido sua inquilina, conhecendo, portanto, o seu comportamento, que é identificado como uma “mulher de vida livre” pelo próprio interrogado, afirmando ainda que Judith “vive amasiada com um tal José, que sua companheira de casa de nome Maria da Aleluia, viu José pela madrugada com a menor nos braços”235. O direcionamento do discurso de “Baio” vai no sentido de desmoralizar o modo de vida da queixosa, demonstrando que vida que possuía, não podia transmitir valores morais e boas condutas as sua filha menor. Na leitura documental, fica implícito que “Baio” manteve uma relação um pouco mais aprofundada com sua empregada do depósito de ovos que possuía na Rua Marechal Deodoro, pois, este a acompanhava as noites depois do serviço na volta para casa, além de interferir na vida pessoal da mesma, pois, foi “Baio” que levou Maria da Gloria para a cidade de Cachoeira, deixando-a na casa dos seus padrinhos, buscando evitar um conflito entre a menor e sua amasia de nome Matilde, “querendo bater” na menor. “Baio” relata que descobriu que a menor não era mais virgem quando pôs a mesma em interrogatório e esta “lhe declarou que Felisberto de Tal, empregado do caminhão de Renato Rios lhe 235 CEDOC – Ernesto Melo dos Santos – Doc. 2209, Cx. 106, Est. 04, ano 1945. 126 havia pegado pelas penas diversas noites na própria casa da mãe dela onde tinha relações com a irmã mais velha e também com ela Maria da Gloria” 236. Ao passo que novos sujeitos aparecem no processo sendo arroladas como testemunhas, surgem novas conotações sobre o cotidiano dos envolvidos sendo o processo direcionado muito mais para a criminalização da conduta de Judith e Maria da Gloria do que para o fato do seu defloramento ou sedução. Assim as vítimas, tornam-se “rés” do processo, sendo o principal alvo dos manipuladores técnicos com exceção do Promotor Fernando Alves Dias, que categoriza Ernesto dos Santos, como um homem “desalmado”. Contudo, as declarações das testemunhas apresenta Judith como uma “mulher de vida fácil”. Desta maneira Américo de Ferreira da Silva, solteiro, lavrador de 38 anos de idade, sabendo ler e escrever, assim relata: Que já foi amasio de Judith e esta é mulher de vida livre, que quando com ella morava na Fonte do Mato, na casa tinha apenas um cômodo, no qual Judith dormia com as filhas. Que a irmã de Maria da Glória, Clotildes, conhecida como Coló, há mais de quadro anos vive 237 de meretrício. Cabe destacar que Américo por ter sido amásio de Judith, pode ter utilizado seu depoimento como uma espécie de vingança pelo fim do relacionamento. A testemunha chega a afirmar que “não acha que Baio foi o autor do estupro”, deixando a culpa sobre a mãe que não deu exemplo a sua filha, levando-a para o mesmo caminho do meretrício. Outra testemunha, Sinizio Santos Costa, vaqueiro, solteiro, 42 anos, também traz à baila o cotidiano de Judith, demonstrando que mesma era alcoólatra e identificando-a como uma mulher de vida fácil, assim relata: Baio em conversa disse a ele depoente que tinha tido relações sexuais com a menor Maria da Gloria entretanto ela não era mais virgem, que ele depoente respondeu para Baio, eu não quero ouvir esta conversa; disse isto porque Baio a mãe da menor por nome Judith e um tal de José que é amasio de Judith vivem constantemente embriagados onde moram em uma travessa dos 236 237 CEDOC – Ernesto Melo dos Santos – Doc. 2209, Cx. 106, Est. 04, ano 1945. CEDOC – Ernesto Melo dos Santos – Doc. 2209, Cx. 106, Est. 04, ano 1945. 127 Olhos D‟água. Conhecendo Judith de pouco tempo, sabe ser esta 238 uma mulher de vida fácil A testemunha Paulino Chaves da Costa, casado, com 50 anos, serventuário da justiça, modificou trouxe outra abordagem ao processo, disse que quando passava pela Rua Marechal Deodoro, “à tardinha”, quando encontrou-se com “Baio” debaixo de uma árvore, na qual o mesmo fazia “arrumações de galinhas”, dizendo-lhe o acusado: “seu Paulino venha cá, bem o senhor me aconselhou para eu largar Matildes, aquela cachaceira, o Sr. Vae saber agora que ela me arranjou, anda espalhando por ai que eu fiz mal a uma menina que trabalhava aqui comigo”. Após esta conversa entre os dois, “Baio” trouxe para a presença da testemunha a queixosa Judith a qual o depoente refere-se como sendo “uma mulherzinha baixinha de cor branca”, onde passou “Baio” a fazer perguntas a referida mulher e esta afirmando que o acusado nada devia a sua filha. Não é possível afirmar, mas este testemunho foi manipulado entre o acusado e a própria testemunha, pois, Judith na pretoria, nega ter conversado com o mesmo Paulino e que nunca estivera nesta situação descrita. No entanto, está não é a única contradição presente neste longo processo. A situação de Judith e sua filha Maria da Gloria não era a das melhores pelo que foi exposto pelas testemunhas no inquérito, porém, devido a prova cabal do desvirginamento e da menoridade da vítima, o Promotor Público Fernando Alves Dias denuncia Ernesto Melo dos Santos, como incursos no Art. 213239 combinado com o Art. 224240. O denunciado constitui com seu advogado o Dr. Edelvino Campello D‟Araujo, que utilizando das falas tendenciosas das testemunhas, faz sua peça jurídica, buscando reafirmar a ausência da honra e honestidade da família de Judith, caracterizando mesma como prostituta e por sua vez, a verdadeira responsável pelo fato delituoso, pois, falhara na instrução das suas filhas. Cabe destacar que em nenhum momento do processo aparece 238 CEDOC – Ernesto Melo dos Santos – Doc. 2209, Cx. 106, Est. 04, ano 1945 Constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça. Código Penal Brasileiro – Dec.2848 de 07 de dezembro de 1940. 240 Presume-se a violência, se a vitima: Não é maior de 14 anos; É alienada ou débil mental, e o agente conhecia esta circunstância; não pode, por qualquer outra causa, oferecer resistência. Código Penal Brasileiro – Dec.2848 de 07 de dezembro de 1940. 239 128 a figura do pai da vitima, nem mesmo menciona que esta o possua. Assim solicitou o Advogado no dia 15 de setembro de 1945 a inimputabilidade do crime: A inimputabilidade do acusado é manifesta. Judith Reis, mãe da menor Maria da Gloria, vivendo do meretrício, arrastou suas duas filhas Clotildes e Maria da gloria à prostituição, mercadejando com seus corpos de criança. Convivendo em promiscuidade, num miserável cubículo, a mãe, à vista das filhas menores, entregava-se aos amantes de cada noite, ou de cada hora. As filhas tinham na vida dissoluta da genitora e miserável exemplo, que cedo frutificou... Primeiro, Clotildes, menina ainda; depois, Maria da Gloria. O acusado teve, em verdade, relações sexuais com Maria da Gloria. Ela, porém, já conhecera antes outros amantes. Confessou-o a própria mãe à Testemunha Paulino Chaves da Costa. E apontando como autor do desvirginamento de Maria da Gloria um certo Felisberto. O acusado foi assim um dos amantes passageiros de Maria da Gloria, não é responsável em absoluto pela sua desdita. Oportunamente, demonstrar-se-á de forma completa e cabal a 241 irresponsabilidade penal do acusado. O direcionamento da criminalização de Judith e conseqüente absolvição de “Baio” foi o caminho percorrido pela defesa. Esse direcionamento é seguido no processo mesmo com a substituição do advogado Edelvino Campello D‟Araujo, pelo advogado cachoeirano Jorge Watt, que afirma: Neste processo tudo é falsidade é mentira. Judith Reis, é a maior responsável por tudo, pois, desviada de uma vida humilde e recatada, preferiu o baixo meretrício, arrastando criminosamente as suas duas únicas filhas menores a perdição, tirando no caso, num mesmo lar... Resultado econômico... Mãe e filhas prostitutas num mesmo lar... 241 242 242 CEDOC – Ernesto Melo dos Santos – Doc. 2209, Cx. 106, Est. 04, ano 1945 CEDOC – Ernesto Melo dos Santos – Doc. 2209, Cx. 106, Est. 04, ano 1945 129 Parece-nos que o advogado tinha razão, neste processo “tudo é mentira é falsidade”, a única coisa é o desvirginamento. Porém quem mentia e falseava os fatos? As contradições começam a surgir durante a pretoria. Judith é novamente convocada a depor e já expõe diferentemente a forma pela qual soube do ocorrido do crime. Na delegacia a mesma afirmou que soube do fato, por ter “Baio” dito pela cidade que “tinha feito coisa feia com a menor”. No entanto, em Juízo, Judith declara que soube do fato, sendo declarado pela madrinha da menor de nome Felipa, pois, Maria da Glória passando um tempo com a madrinha, esta a pôs em confissão e descobriu o desvirginamento. Judith ainda defende-se afirmando: que não é prostituta, que não tem vida livre e desregrada. Que mora a há mais de quatro anos com ella depoente um homem de nome 243 José Mendes Salvador e nenhum outro entra em sua casa. A protagonista do processo aparece com sua voz na pretoria no dia 07 de junho de 1946, quando é realizado o primeiro depoimento da vítima e, posteriormente no dia 28 de maio de 1947, para um novo depoimento solicitado pela defesa. Maria da Gloria trará duas versões para crime a desvirginou. No primeiro depoimento a referida ofendida afirma que o autor do seu estupro foi Ernesto Melo dos Santos, vulgo Baio, que o fez atrás da fábrica de algodão no dia 30 de agosto de 1945, quando esta voltava para casa à noite, mais ou menos às vinte horas, na companhia do mesmo, pois trabalhava para o acusado contado ovos. Assim relatou Maria da Gloria: o acusado conduzindo a vitima sozinho para a casa da mãe desta e no caminho pegou a força e conseguiu beijando-lhe ate a boca, e praticar o crime do seu desvirginamento. O acusado conseguiu da mãe da vítima conduzi-la de dia para a casa dele e na volta, igualmente à noite, teve relações ainda a força com a depoente, que alguns depois ela depoente contou o facto a sua madrinha Felipa, que contou a sua progenitora. Que ela continua a viver com sua mãe 244 recatadamente e nunca mais teve relações com ninguém 243 244 CEDOC – Ernesto Melo dos Santos – Doc. 2209, Cx. 106, Est. 04, ano 1945 CEDOC – Ernesto Melo dos Santos – Doc. 2209, Cx. 106, Est. 04, ano 1945. 130 No segundo depoimento, quase um ano depois do primeiro, este solicitado pelo advogado de defesa Jorge Watt, Maria da Glória, traz uma nova versão paar o crime, confirmando agora a versão de Ernesto Melo dos Santos, vulgo Baio. Vejamos o que depôs a menor: Que quem fez mal ou deflorou a depoente foi um rapaz por nome Felisberto morador do sertão, mas não sabe a localidade. Que foi ouvida pela primeira vez por este juízo e declarou que foi Ernesto Melo dos Santos o seu estuprador, isto fez porque foi obrigada a depor contra Ernesto pela sua Madrinha de nome Felipa dos Santos, que mora em Cachoeira. Que a madrinha pegou-a atraz de uma porta certo dia e obrigou-a a dizer que o seu desvirginador fora Ernesto Melo, ordenando –lhe depois,que a mesma declarasse isso em juízo, que fez isto a sua madrinha Felipa porque Ernesto gostava muito dela depoente. Que o referido Felisberto deflorou a declarante já faz anos, tendo se dado o fato nas imediações da estrada de ferro desta cidade, que o dito Felisberto também gostava muito da depoente e um dia a convidou para passear fazendo-lhe promessas e conseguindo desvirginá-la. Depois que teve contacto carnal com Ernesto Melo, três vezes que teve relações com Ernesto nos dias anteriores ao que Felipa obrigoua a falar contra o mesmo Ernesto. Que depois que teve relações com Felisberto, continuou com sua vida sossegada, convivendo em companhia de sua mãe; que atualmente esta convivendo com uma senhora casada, a quem auxilia nos trabalhos domésticos de nome Maria miúda, residente as 245 margens da linha de ferro. Também em novo depoimento Judith Reis nega ter sido Ernesto Melo dos santos o autor do desvirginamento de sua filha. Aqui requer voltar a mesma indagação anteriormente proposta, quem estava mentindo ou falseando? Não é possível afirmamos de se houve alguma negociação entre as partes envolvidas seja vitima e acusado, ou se de fato esta última versão seja a que de fato ocorreu, porém o que no interessa são as representações sociais evocadas em todos os discursos impetrados durante a o sumário de culpa. Observamos que em grande parte do processo o cotidiano da vítima e de sua mãe ganhou mais destaque do que a confirmação do próprio defloramento. 245 CEDOC – Ernesto Melo dos Santos – Doc. 2209, Cx. 106, Est. 04, ano 1945. 131 Podemos com isso analisar as imagens e representações sobre as mulheres pobres em Feira de Santana, mulheres trabalhadoras que provinham seus lares do trabalho coletivo entre os membros da família, sem uma rígida separação sexista, entre homens provedores e mulheres dotadas ou homens públicos e mulheres privadas, como bem discutiu Michelle Perrot. Afirmadas como enganadoras, prostitutas, interesseiras, Judith e Maria da Gloria, silenciaram-se no processo certamente amordaçadas por alguns cruzeiros ou outras formas menos prazerosas de calar-se. Dessa forma, no dia 07 de agosto de 1948, o Juiz Alibert Baptista julga improcedente a denuncia e absolvendo o denunciado. Porém, o Promotor Público pede a apelação do crime ao Egrégio Tribunal que decide por condenar o réu a quatro anos de reclusão na sanção das penas do artigo 213 no dia 13 de dezembro de 1948, mesmo com a condenação, não há relato da prisão do condenado, fato que também foi observado durante todo o processo não se pediu a prisão preventiva do acusado, tendo o mesmo até solicitado ao Procurador do Estado o Dr. Cosme de Farias, um Habeas Corpus preventivo. Ao final, Ernesto Melo dos Santos casa-se com Maria da Gloria Reis, extinguindo a punibilidade do seu crime, tendo os cônjuges 50 anos de diferença de idade entre ambos.246 Afinal, quem desvirginou a vítima? Fato corriqueiro nos processos de crimes sexuais são as contradições entre o discurso da vítima e do acusado no que se refere à autoria do desvirginamento. Falas como, “prometeu casar-se”, “já a encontrei deflorada”, “ não quer reparar o mal que fez”, de tão usuais, passam a ser peças integrantes dos processos de delito sexual. Mas afinal, se todos os homens negam a veementemente a autoria do crime, quem deflorava essas meninas? Se Feira de Santana fosse localizada na região Norte do país, poderiam os sujeitos envolvidos acusarem o “boto” que seduziam as mulheres, deflorando-as. Mitos 246 CEDOC – Ernesto Melo dos Santos – Doc. 2209, Cx. 106, Est. 04, ano 1945. 132 a parte, esse conflito entre “defloradores e defloradas”, traz a baila outros debates que recai na perspectiva de compreensão dos valores e costumes requeridos para os sexos. Desta maneira, Eduardo Pedreira Barboza, 55 anos de idade, residente no lugar Pedra do Descanço, casado, roceiro analfabeto, procurou a delegacia de Policia no dia 19 de setembro de 1940 para queixar-se de Jair de Souza, como sendo o autor do desvirginamento de sua filha menor de dezoito anos, Julia Assunção Barboza, afirmando “que sabe que a família do acusado se opõem ao casamento”, por isso busca na instancia policial “providencias, para sua filha não fique no abandono.”247 Julia da Assunção Barboza acusou que o autor do seu defloramento foi Jair Souza, que “há seguramente dois anos era noivo dela respondente, prometendo marcar o dia do seu casamento que há cinco meses passados, conseguiu com sua promessa de casamento, desvirginar ela respondente”248. Nesta declaração de Julia, aparecem alguns dos elementos básicos do crime de defloramento e sedução, pois, a mesma relatar ter tido uma longa relação com acusado, aparecendo o quesito da promessa de casamento, fato preponderante para o crime de sedução seguido da menoridade da vítima. Julia relata que após o desvirginamento, Jair deixou de freqüentar sua casa, sendo que espalhou-se o boato no lugar onde reside de que “não era mais moça”, decidindo assim, confessar aos seu pai que resolveu pedir providencias. Antes de Jair do Vale Souza, depor no processo, são arroladas cinco testemunhas que afirmam ter Julia Barbosa, “bom proceder”, “nunca tendo ouvida detratar de sua honra” até o presente fato. Jair Souza constitui como seu advogado o famoso Dr. Vicente dos Reis, só aparecendo para depor após a denuncia do Promotor Público que o denunciou com incurso nas penas da lei do art. 267 combinado com art. 276. No sumário de Culpa, ouvido o denunciado este expõe que não foi o autor do defloramento de Julia Barbosa, 247 248 CEDOC – Jair do Valle Souza – Doc 2200, cx 105, Est. 04, ano 1940. CEDOC – Jair do Valle Souza – Doc 2200, cx 105, Est. 04, ano 1940. 133 negando inclusive que nunca teve relações sexuais com a mesma e que não era seu noivo, apenas namorado por um curto período. Assim relata: Que deixou o namoro de Julia da Assunção Barboza porque chegou ao seu conhecimento que Julia, foi encontrada uma noite das vinte quatro para uma hora no caminho de sua casa em companhia de Arlindo de tal, musico da 25 de março, residente na Rua da Misericórdia. – Que lhe disseram isso Julio Luco dos Pães, residente 249 na Rua da Misericórdia e outros. Visando direcionar o processo para o comportamento de Julia Barbosa, Jair e seu advogado, buscam elementos do cotidiano da referida vítima para demonstrar a ausência dos elementos básicos que definem uma mulher honesta e recatada. Dessa forma o procedimento da ofendida que foi largamente defendido pelas testemunhas, será o alvo do controle jurídico. No traçar do cotidiano de Julia, descobrimos que a mesma foi charuteira, trabalhando para o João dos Santos, 36 anos, negociante, que nesse período em que trabalhou como charuteira, saia do trabalho às seis horas ou mais tarde da noite, voltando sozinha para sua casa, percurso escuro pela carência na iluminação pública em Feira de Santana em meados do século passado. O fato de trabalhar fora de casa como charuteira ou em serviços domésticos, fazia de Julia, uma mulher pública, por isso avesso de uma mulher recatada. Dessa forma o Dr. Vicente do Reis, não poupa palavras para depreciar este cotidiano de Julia, expondo-a como sendo de procedimento duvidoso, o que segundo o bacharel, justiçava a implicância da família do denunciado para com Julia Barbosa. O acusado disse, e plenamente provado já esta nos autos; que efetivamente tivera um ligeiro namoro com Julia Barbosa , cujo namoro fora terminado desde 1939, devido o irregular procedimento desta SENHORA , que fora vista em logar bastante ermo tarde da noite com Arlindo Almeida, maior, solteiro, artista, residente nesta cidade. Procedimento bastante irregular, porque não se pode admitir que uma menor, se porventura o fosse, freqüentando, sosinha festas públicas, distantes de sua residência meia légua mais ou menos e a meia noite para uma hora da madrugada ficasse a procura de um homem 249 CEDOC – Jair do Valle Souza – Doc 2200, cx 105, Est. 04, ano 1940 134 qualquer para acompanhá-la ate sua casa, passando por logares ermos, sem iluminação como se sabe é a estrada da Pedra do 250 Descanço, nesta cidade. O processo é concluído com a Impronuncia do denunciado, pois, não foi provada a menoridade de Julia Barbosa, que apresenta uma certidão de nascimento lavrada no dia 25 de setembro de 1940, cinco meses após a prática do crime imputado ao acusado, sendo no exame de verificação de idade, como no relato das testemunhas, teria Julia Barbosa a idade compreendida entre 21 a 23 anos, fazendo desaparecer a figura penal do defloramento, seguindo o art. 267 do Código Penal. Tendo comparecido da delegacia de Policia no dia 07 de agosto de 1941, Pedro Ferreira Barbosa, com 61 anos de idade, casado, funcionário municipal, residente a Rua São José, tutor da órfã Edith dos Santos, para queixar-se de Naphitalino Vieira, com 44 anos, casado, fotografo, residente a Rua Salles Barboza, pelo mesmo ter desvirginado a referida menor de 16 anos que vivia sob sua proteção a mais de oito anos.251 O caso chegou ao conhecido de Pedro Barbosa, pois, a dita menor entrou em conflito com a amásia de Naphitalino, de nome Petronilha Alves, que tentou espancar Edith, sendo impedidas pelo cunhado de Pedro Barbosa de nome Mauricio, que relatou a Pedro que havia acontecido e o motivo do conflito, descobrindo assim o desvirginamento de sua tutelada. Aqui já tem um sinalizador que juridicamente depõe contra Edith dos Santos, pois, o acusado era amasiado com outra mulher e em conseqüência não tinha assumido com a mesma e com a sua família um compromisso de namorado ou noivado, inviabilizando a sedução através do pedido de casamento. Ouvida no inquérito, Edith dos Santos, com 16 anos, solteira e doméstica, afirma que foi Naphitalino o autor do seu desvirginamento, porém, não menciona a sedução pelo casamento e sim indica uma situação de violência na conjunção carnal. Assim declara: 250 251 CEDOC – Jair do Valle Souza – Doc 2200, cx 105, Est. 04, ano 1940. CEDOC – Naphtalino Vieira – Doc. 1404, cx. 75, Est. 03, ano 1941. 135 Que ano passado, a data não se recorda, passando na casa, onde Nahphitalino[sic] tira retratos, na rua Senhor dos Passos, Nhaphitalino[sic] que se achava na porta da casa, chamou ela respondente e levou-a para um quarto da casa e ai, segurando ela respondente pelos braços, deitou-a na cama e a desvirginou e depois disse a ela que não dissesse isto a ninguém. Que Nafitalino[sic] de quando em vez dava dinheiro a ela respondente para que se 252 calasse. Apesar da descrição do ato do crime apresentado por Edith, a mesma demonstra-se passiva no processo de sujeição sexual, observa-se que aparecem alguns elementos que sinalizavam uma relação consensual. O fato do acusado a ter chamado e levado para um quarto da loja de fotografias sem demonstrar uso da força é uma peça desse quebra cabeças que são os processos criminais. Outro fator que depõe para uma relação consensual é a presença do dinheiro, pois, a própria Edith afirma que “de quando em vez dava dinheiro a ela respondente para que se calasse”. Quando ouvido em interrogatório durante o Inquérito Naphitalino nega a autoria do defloramento, trazendo em seu interrogatório nuances fundamentais da compreensão das relações sexo-afetiva entre os populares, pois, Naphitalino era casado, mas não vivia com a esposa, vivendo maritalmente com Petronilha através do amasiamento. Como já destacado, o acusado era residente na Rua Salles Barboza, conhecido no período como zona de meretrício, o que pode sinalizar que esta relação com Petronilha, poderia ter ocorrido fruto de encontros proporcionados pela economia sexual. O que chama a atenção nesse interrogatório é o teor de desdém que Naphitalino refere-se a Edith o que pode ser compreendido como um recurso jurídico de estabelecer representações sociais, pois, dessa forma seria mais fácil convencer os manipuladores jurídicos da sua inocência no caso. Vale lembrar Viveiros de Castro, quando estabelece a dificuldade das mulheres pobres justificarem seus defloramentos por homens de condições sociais mais 252 CEDOC – Naphtalino Vieira – Doc. 1404, cx. 75, Est. 03, ano 1941. 136 abastadas, pois, estas passam de seduzidas a sedutoras.253 Dessa forma declara Naphitalino: Que não foi ele o autor do desvirginamento dessa moça e que isto é uma calunia assacada contra a sua pessoa pela sua própria amasia Petronilha Alves Motta, que levada pelo ciúme absurdo que tem dele respondente, chegou ao ponto de o caluniar dessa forma, que ele respondente é pai de família, tem filhas moças e sempre procurou cumprir com os seus deveres, fazendo se respeitar como é publico e notório nesta terra e assim seria incapaz de praticar uma ação desta ordem, principalmente com pessoas de inferior qualidade a sua como é Edith Santos e assim repete que isto é uma calunia que lhe levanta 254 sua própria amasia Petronilha Alves Mota levada pelo ciúme. Naphitalino ainda apresenta uma carta supostamente escrita por Edith dos Santos sem estar datada, a carta é uma confissão da pretensa inocência de Naphitalino no crime. Senhor Nafitalino Vieira Tenho a lhe dizer que fui chamada a delegacia e estava nervoza e com tanto medo de mi botarem de casa para fora que cheguei a desmaia por isto digo aqui que o senhor não me deve nada quem me deve já morreu e o nome delle so direi se for forçada pode mostrar 255 esta as autoridades. Edith em outro depoimento nega ter sido a autora da carta. A comparação das assinaturas da ofendida nos depoimentos na carta, observase uma perceptível diferença nas letras, apesar de parecida de alguma maneira. A situação de Edith piora quando depõe a amasia de Naphitalino Vieira, Petrolina Alves Motta, 34 anos de idade, residente à Rua Salles Barboza, solteira, doméstica,, que declara que desconfiou que Edith Santos estava mantendo uma relação de “namoro” com seu amasio. Mas quando “entendeu-se com este, o qual negou que tivesse qualquer namoro com Edith”. Mesmo com a negação de Naphitalino, a depoente passou a observar o trânsito de Edith na loja do acusado, chegando a vê-la entrando algumas vezes 253 CASTRO, Viveiros. Os Delitos Contra a Honra da Mulher. Rio de Janeiro: Freitas Bastos e Cia, 1936. 254 CEDOC – Naphtalino Vieira – Doc. 1404, cx. 75, Est. 03, ano 1941. 255 CEDOC – Naphtalino Vieira – Doc. 1404, cx. 75, Est. 03, ano 1941. 137 na loja de fotografias. Um certo dia quando Edith passava pela frente de sua casa na Rua Salles Barbosa, esse é outro fato peculiar da sociedade feirense, as meninas consideradas “honestas” não passavam sozinhas pelas ruas tidas como zona de meretricio, assim, Petronilha enraivecida xingou a menor Edith, que respondeu “que ela estava enganada consigo”. Neste momento de conflito encontrou com Mauricio Falcão, descobrindo a relação de parentesco do mesmo, com Pedro Barbosa que era tutor da órfã Edith, aconselhando: “que dissesse a Edith que se ela era moça evitasse freqüentar a fotografia de Naphitalino e se não era, teria que se entender com ela”.256 A performance de Petronilha no processo sugere uma visão bem estigmatizada da mulher popular, que brigava na rua, xingava, falava alto, na linguagem da imprensa da época dizia-se que “promovia arruaças”. Nenhuma da envolvidas no processo demonstram passividade, estas mulheres estão longe do modelo de recato e delicadeza postulados ao seu sexo. Naphitalino é denunciado pelo Promotor Público com incurso nas penas da Lei do art. 267, combinado com a art. 276 do Código Penal, porém, com não é provada a menoridade da ofendida, o processo é arquivado. No entanto, é interessante vermos a conclusão do promotor, o mesmo que foi autor da denuncia. Se menor de dezoito anos, força é de convir, que as próprias declarações de Edith, pelas quais se vê a facilidade com que se entregou ao denunciado, ainda mais não procurando queixar-se senão depois que um terceiro descobrio[sic] o facto[sic] – tirariam a seriedade de uma acusação , de que tivesse sido seduzida pelo 257 denunciado. Da mesma forma, procurou a delegacia de polícia no dia 04 de setembro de 1941, Maria Theodora de Jesus, com 30 anos de idade, doméstica, residente ao “Beco do Bom e Barato” para queixar-se de Hermes Sodré, solteiro, com 20 anos de idade, lavrador, analfabeto, “por ter o mesmo, com promessa de casamento, iludido a filha menor de dezessete anos de nome 256 257 CEDOC – Naphtalino Vieira – Doc. 1404, cx. 75, Est. 03, ano 1941. CEDOC – Naphtalino Vieira – Doc. 1404, cx. 75, Est. 03, ano 1941. 138 Maria Soares, desvirginando-a e nega-se a reparar o crime que praticou e para não ficar impune um crime desta ordem e na prostituição a filha dela declarante, procurou esta delegacia para queixar-se, pedindo uma providencia”.258 A maneira moralista com Maria Theodora, refere-se ao desvirginamento de sua filha, demonstra-nos como entre os populares os discursos moralizantes referentes aos costumes estavam bastantes difundidos, observamos que a queixosa, associa o fato do desvirginamento, como uma impossibilidade adquirir um relacionamento conjugal, o que nas analises sobre a conjugalidade popular, constata-se que a maioria das relações são estabelecidas a partir de amasiamentos, sem a efetivação de um casamento seja civil ou eclesiástico. No próprio ato da queixa, a mãe da ofendida relata que soube do desvirginamento quando a filha fugiu para morar com David Dantas, este a submeteu a interrogatório e esta contou-lhe que havia sido desvirginada por Hermes Sodré. Quando ouvido no inquérito Hermes Sodré nega a autoria do defloramento, o que era uma prática costumeira entre os homens a negação do crime. Além de negar o crime, Hermes, busca depreciar o cotidiano de Maria Soares, afirmando que a mesma não tinha um comportamento adequado, pois, vivia sempre a passeios e desacompanhadas de pessoas da sua família, sendo uma menina muito falada no lugar onde mora, devido a ter tido vários namorados, inclusive relata o fato da fuga da ofendida para morar com David Dantas.259 A situação da menor Maria Soares, solteira, roceira, analfabeta não foi muito boa durante o seu inquérito. Foram arroladas cinco testemunhas, todas homens, é bom destacar. As testemunhas confirmaram o depoimento do acusado Hermes Sodré, trazendo à baila o cotidiano da ofendida, sendo considerada uma menina de “péssimo procedimento”, onde já ouvia detratar da honra desde antes do caso de Hermes Sodré. A testemunha Manoel Cundes Ferreira, com 20 anos de idade, solteiro, lavrador, declarou: 258 259 CEDOC – Hermes Sobré – Doc. 2152, Cx. 103, Est. 04 – ano. 1941. CEDOC – Hermes Sobré – Doc. 2152, Cx. 103, Est. 04 – ano. 1941. 139 que Maria Soares tinha diversos namorados, porém ele respondente não sabe o nome e sabe que a mesma não procede bem, pois, antes de surgir este fato de que é acusado Hermes Sodré, Maria Soares, sem o consentimento de seus pais ou creadores , abandonou a casa onde mora e fugiu com David de tal, residente na Vila de Maria 260 Quitéria O tão citado David Dantas, também aparece para ser ouvido no inquérito, onde relata que Maria Soares ofereceu-se para morar com o mesmo, tendo levado-a com ele para a casa, onde a mesma declarou que não era mais virgem, o que o levou a verificar se era verdade. Nos processos de defloramento, uma maneira atenuada de o homem declara que praticou cópula sexual com ofendida em questão, é declarar que verificou que será mesmo virgem a sua namorada. Na maioria dos casos a verificação, na versão masculina, confirma que a menina já era desvirginada. David Dantas relata que confirmou que a menor já havia sido desvirginada, colocando-a em confissão, lhe contou que o autor foi Hermes Sodré. Esse jogo de pingue-pongue com a virgindade e o desvirginamento de Maria Soares, leva-nos mais uma vez a compreender a relação social que se estabelecia um hímen associado à honra feminina e conseqüentemente a honra das instituições casamento e família, tão caras a uma sociedade que divulga-se moderna e civilizada. Assim, o Promotor Lauro de Azevedo pede o arquivamento do processo, negando proceder a denuncia. Declarou que: A attitude da offendida, fujindo de casa e passando a morar em companhia de outro homem, para somente depois vir acusar o individuo como autor do seu desvirginamento, facto relatado por ella própria e atestado pelas testemunhas ouvidas neste inquérito, tiraria a seriedade de uma acusação contra Hemes Sodré e impossibilitando 261 a Promotoria de tomar qualquer iniciativa no caso. Dos cinqüenta e três casos estudados, apenas em 03, ocorrem a confissão do acusado de ter praticado o defloramento, resultando em 260 261 CEDOC – Hermes Sobré – Doc. 2152, Cx. 103, Est. 04 – ano. 1941 CEDOC – Hermes Sobré – Doc. 2152, Cx. 103, Est. 04 – ano. 1941 140 condenação, que é suspensa devido a realização do casamento entre as partes. O perigo mora em casa... Uma das perguntas fundamentais nos processo de crimes sexuais era a questão de que se as ofendidas costumavam sair de casa sozinhas. Essa pergunta deixa de ter efeito quando os ofensores moram na mesma casa das ofendidas. Assim analisamos os casos de estupros e defloramento produzidos por membros da mesma família ou aparentados, apresentando uma faceta das relações familiares entre os populares, na questão da moradia, sendo comum a divisão de cômodos, na dinâmica interna das famílias e erotização dos incestos, que punham em questão os ditames desta instituição. Dos 06 processos evidenciados, encontramos envolvido 01 pai, 01 padrasto, 01 irmão de criação, 02 cunhados e 01 tio emprestado. Vamos às histórias. O casal Lauro Ferreira da Silva, 25 anos de idade e Verônica de Oliveira Freitas com 20 anos, residiam à Rua Pedra do Descanço na cidade de Feira De Santana. Como costumeiro entre os populares, o referido casal alugava cômodos da própria casa, com o objetivo de ajudar nas despesas da família. Assim, chegou a residência dos mesmos um casal com uma menina, este casal era Felix Pires e Etelvina e menor era Elita Honorata, irmã de Etelvina. O referido do casal, vindo do lugar Serra Azul na cidade de Orobó, acomoda-se na casa de Lauro e Verônica. O objetivo de Felix Pires em vir para Feira de Santana era a busca por emprego, sabendo o mesmo, que estava escalando homens para trabalharem na Estrada de Rodagem Rio-Bahia. O objetivo do emprego foi alcançado e Felix empregou na Estrada de Rodagem, porém ficou por pouco tempo, se empregando na Fábrica de Beneficiamento de Algodão 262. 262 CEDOC – Felix Pires – Doc. 1416 Cx. 76 Est. 03, ano 1941. 141 Passavam-se mais de três meses que Felix Pires e sua amasia chegaram a Feira de Santana, Verônica e Etelvina já haviam construído uma certa relação de amizade pelo convívio diário na mesma casa, criando hábitos comuns. Assim, no dia 25 de agosto de 1941, uma segunda-feira, dia da tradicional e conhecida feira livre no centro da cidade, as duas saíram para o mercado para fazer as compras semanais, deixando em sua residência a menor Elita Honorata acompanhada do cunhado Felix Pires. Assim relata que: mais tarde voltando ele depoente para a casa, encontrou a casa fechada e a menor Elita trancada sosinha[sic], que Elita estava toda ensangüentada e perguntando-lhe o que havia acontecido, Elita lhe disse que Felix Pires, amasio da irmã dela, lhe havia pegado a pulso e a desvirginado e no dia imediato Felix Pires receando provavelmente alguma coisa, retirou-se com a amasia e desta cidade 263 deixando a menor ofendida em casa dela depoente O caso chegou ao conhecido das autoridades policiais através da queixa prestada por Lauro Ferreira da Silva, que levou a referida menor até a delegacia para as devidas providências legais. O exame de Corpo de Delito constatou o estupro e demonstrou que foi realizado mediante o uso da força e violência física. A menor Elita Honorata, não é ouvida no processo, acredito que pela idade presumível entre 10 a 12 anos constatados pelo exame de verificação de idade, afirmando que a menor ainda era impúbere. A vitima é silenciada e ocultada no processo que desnudou sua intimidade. Não se sabe o qual destino levou a menor, se ficou com casal que lhe socorreu, se voltou para a casa do pais, nada se sabe sobre seu paradeiro, assim como não se sabe o paradeiro do seu agressor que fugiu com sua irmã, deixando-a abandonada em Feira de Santana. A sentença do processo foi a condenação do réu no grau máximo nas penas do Art. 268 combinado com Art. 272 e 330 do Código Penal. Caso semelhante ocorreu com a menor Maria da Cruz com 10 anos de idade, filha de Maria Alice de Jesus, 29 anos de idade, roceira, residentes no 263 CEDOC – Felix Pires - Doc .1416 Cx. 76 Est. 03, ano 1941. 142 lugar chamado rosário no Município de Feira de Santana. Maria Alice procura a delegacia no dia 05 de outubro de 1939 para queixar-se contra Manoel Martins, amasio de sua irmã Elvira, mora parede meia com sua casa 264. Mais uma vez observamos a questão da moradia envolvendo crimes sexuais entre familiares, devido a precárias condições de sobrevivência, muitas mulheres e homens pobres faziam suas casas, ou “quartinhos” de maneira coletiva, dividindo-se cômodos, como é o caso entre Maria Alice e sua irmã Elvira que fizeram as casas juntas uma a outra, aproveitando-se das mesmas paredes. Assim as relações de intimidade e privacidade ficam comprometidas pela proximidade e interferência no cotidiano de ambas. Maria Alice acusa Manoel Martins do estupro de sua filha, que aproveitando-se de a mesma esta sozinha em casa, chamou-a para “torrar uns amendoins” na casa do acusado, praticando o fato criminoso. A própria ofendida em auto de declarações relatou que: Manoel mandou ela torrar uns aminuis[sic], deu a ela uns e mais R$ 200, em dinheiro e mandou ela apagar a luz e fexar[sic] a porta que ela respondente fez o que Manoel Martins mandou e voltando para junto dele, Manoel Martins levou-a para a cama, tirou as calçolas dela respondente, deitou-a na cama e fez isto, que saio muito sangue, que Manoel limpou com um pano – Manoel fez isto com ela duas vezes, 265 uma na casa e outra no caminho da roça. Notamos que no depoimento da menor aparecem elementos que indicam um suposta relação de sujeição sexual, motivadas pelas condições de pobreza em que vivia a menor. Isso fica evidenciado na presença do dinheiro e dos amendoins “negociados”. O interrogatório de Manoel Martins, com 36 anos, solteiro, lavrador, sabendo ler e escrever dá novos sinais sobre essa relação. O acusado que morando num quarto de parede meia com a casa da menor Maria afirma que: chegando da feira, que um dos dias desta semana e não achando-se em casa a companheira dele, chegando a menor Maria para torrar uns amindois[sic], para ele tomar com café, que a menor Maria foi torrar os amendois[sic] e pediu a ele para dar um pouco do 264 265 CEDOC – Manoel Martins – Doc. 1104, Cx. 58, Est. 02, Ano 1939. CEDOC – Manoel Martins – Doc. 1104, Cx. 58, Est. 02, Ano 1939. 143 amendois[sic], que elle respondente disse que dava os amendois[sic], mas ela tinha que pagar, que Maria disse a elle que só podia pagar assim, e tirando o cordão da calçola e deixou cahir[sic] a mesma e chamou ele respondente que encostando Maria no fogão começou a 266 brincar com ella. Observamos alguns pontos em comum nos discursos em torno do desvirginamento da menor. Fica provado que foi Manoel Martins o autor do crime, segundo, houve de fato uma sujeição sexual, pois, quando o acusado afirma que daria o amendoim a menor, porém esta “teria que pagar”, nos sinaliza para uma barganha sexual, tanto que o mesmo acusado declara que “ encostando Maria no fogão começou a brincar com ela”. Perguntado no interrogatório que tipo de brincadeira o acusado referia-se este disse: “que botou Maria de costas para elle e serviu-se da mesma nas cochas”267. Ainda afirmou que “limpou uma coisa que correu pelas pernas de Maria com um pano, porém não reparou se era sangue e estava no escuro”268. A declaração de Manoel confessando o crime chamou a atenção dos manipuladores técnicos do processo, que chegam a ser solicitado um exame de sanidade mental do acusado, que constata que o mesmo não possui nenhum agravo mental, sendo, portanto, de inteiramente responsável pelos seus atos. Manoel é condenado nas penas máximas do artigo 268 combinado com artigo 272 do Código Penal, sendo recolhido à penitenciaria no dia 10 de outubro de 1939. Morar na mesma casa facilitava os contatos sexuais? Essa pergunta é facilmente respondida quando analisamos esses casos de defloramento e estupros entre familiares e aparentados. Dessa maneira procurou a delegacia no dia 29 de maio de 1944, Romana Ramos, 35 anos de idade, casada, residente no lugar chapada do Distrito de Almas do Município de Feira de Santana, queixando-se de Marcelino de Santana, seu filho de criação, com 20 anos de idade, lavrador, analfabeto, por ter desvirginado sua filha menor de 14 anos, Davina Ramos. Marcelino chegou até a casa de Romana Ramos no ano 266 CEDOC – Manoel Martins – Doc. 1104, Cx. 58, Est. 02, Ano 1939. CEDOC – Manoel Martins – Doc. 1104, Cx. 58, Est. 02, Ano 1939. 268 CEDOC – Manoel Martins – Doc. 1104, Cx. 58, Est. 02, Ano 1939. 267 144 de 1932, com menos de 08 anos de idade, sendo uma das vítimas da forte seca que amargurava o sertão, sendo criado pela queixosa como um filho269. Marcelino e Davina cresceram na mesma casa, porém, no dia 24 de dezembro, véspera do natal, estando os dois sozinhos em casa, ocorreu o desvirginamento de Davina. Segundo a ofendida: Que no dia vinte e quatro de dezembro do ano próximo findo estando em casa a tarde sozinha, isto é, com Marcelino, conversaram sobre namoro, quando Marcelino começou com proposta de casamento e fez com que eu fosse para o quarto com ele, como não tivesse ninguém em casa, ele mi enganou bastante, resolvi attender-lhe dando-se ahi o defloramento, não declarando aos meus paes porque elle alimentava sempre a idéia de casar-se , nenhuma desconfiança 270 havia porque Marcelino morava na mesma casa. Este fato poderia ficar silenciado por muito tempo, longe da desconfiança de qualquer membro da família, no entanto, Davina, engravidou e sendo colocada em confissão pela mãe da ofendida, descobriu que o pai da criança e autor do defloramento era Marcelino, que a este tempo já havia fugido do lugar onde moravam.271 As três testemunhas arroladas declaram, diferentemente do Romana declarou, que Marcelino e Davina eram namorados a mais de um ano, sendo do conhecimento dos vizinhos este fato, pois, seria impossível, esta relação ser de conhecimento dos vizinhos e Romana nunca ter ouvido tratar sobre o mesmo. Talvez o fato de Romana Ramos suprimir este fato, pode ser com o objetivo de imprimir um conceito de maternidade ligada ao zelo e cuidado com os filhos e lares, pois, seria inadmissível uma mãe que acobertasse um amasiamento de sua filha menor, procurar na justiça a reparação da “honra”. A denuncia do Promotor é julgada improcedente pelo Juiz Alibert do Amaral Baptista, pela ausência de provas, sendo apelada a sentença pelo Ministério Público que através do seu representante legal faz um discurso bastante emotivo, associando o crime sexual como sendo uma atitude de 269 CEDOC – Marcelino de Santana – Doc. 2297, Cx. 112, Est. 04, Ano 1944. CEDOC – Marcelino de Santana - Doc. 2297, Cx. 112, Est. 04, Ano 1944. 271 CEDOC – Marcelino de Santana - Doc. 2297, Cx. 112, Est. 04, Ano 1944. 270 145 ingratidão de Marcelino contra a referida Romana, a qual foi responsável pela sua criação e manutenção. Não é possível que os crimes contra os costumes fiquem impunes. O acusado e foragido Marcelino retribuiu a acolhida de maneira ingrata. Na seca de 32, trinta e dois, quando toda zona estava cruciada pelo sol escaldante, e no solo comburido apenas verdejava o mandacaru, Marcelino bateu á porta de Romana Ramos, mãe da vitima. Salvouse. Matou a fome e a sede. Mais tarde, deu o pago: seduziu a filhinha as sua bemfeitora. Não queremos fazer retórica, porém ressaltar que o denunciado vivia na casa da vitima, como faz certo a prova testemunhal. Concluindo, requeremos a reforma da sentença do Exmo. Sr. Dr. Juiz de Direito da 1ª vara, por ser de irrestrita 272 JUSTIÇA. Com essa apelação do Promotor Fernando Alves Dias, Marcelino é condenado pelo Egrégio Tribunal a 03 anos de reclusão, incurso nas penas da lei do art. 213 combinado com o art. 224 do código penal, sendo preso no dia 31 de janeiro de 1948. Porém, fica pouco tempo recluso, pois a punibilidade extinta mediante o casamento com a ofendida no dia 15 de junho de 1948.273 Procurar a delegacia para denunciar um crime de defloramento já era uma situação muito confortável para os envolvidos nas ofensas, pois, tinham suas vidas expostas, suas intimidades reveladas. Imaginemos o que seria ir até uma delegacia e queixar-se do próprio marido que deflorou a própria filha? Uma situação ainda mais complexa e muito mais invasiva. Este foi o dilema vivido por Luzia Maria de Jesus, 48 anos de idade, residente a Vila de Gameleira, lavadeira, analfabeta, casada, que procurou as autoridades policias no dia 01 de agosto de 1939 para queixar-se do marido Mathias Marques da Cruz, por ser o autor do desvirginamento de sua a filha Candó Marques da Cruz. 274 Luzia relata que seu marido aproximadamente a mais de 01 ano, porém, continuava a conviver na mesma casa, sem que dormissem na mesma cama, sendo que Mathias dormia no chão em frente ao quarto da sua filha. Ela começou a desconfiar da filha candó, pois, “vinha crescendo a barriga e os 272 CEDOC – Marcelino de Santana - Doc. 2297, Cx. 112, Est. 04, Ano 1944. CEDOC – Marcelino de Santana - Doc. 2297, Cx. 112, Est. 04, Ano 1944. 274 CEDOC – Mathias marques da Cruz – Doc. 671, Cx. 40, Est. 02, Ano 1939. 273 146 remédios que ela declarante dava, desconfiando de moléstia, não produziam efeito”.275 Essa desconfiança se concretizou no dia 17 de julho de 1939, quando sua filha Candó “deu a luz a uma criança do sexo masculino e não podendo Candó esconder mais o facto, confessou a ella declarante que o pai daquela criança defloramento”. era Mathias Marques, seu pai foi o autor do 276 A ofendida relatou que o próprio pai manteve relações sexuais com ela, mediante o uso da violência, segundo a ofendida: Que deve esta criança e o pai é o seu próprio pai que é o autor do seu defloramento. Que o pai dela Mathias Marques deixou de dormir no quarto com sua progenitora, para dormir n aporta de seu quarto no chão, uma noite entrou no quarto della respondente, e a fazendo-a descer da cama pegou-a no chão e ali a deflorou com promessa de 277 espancamento se gritasse. Mathias Marques nega a autorias do defloramento da filha e diz-se vítima de calúnia. O acusado, busca construir sua inocência na afirmação de um comportamento “indecente” de sua filha, afirmando que “Candó todas as noite, sahia de casa não sabendo elle respondente para que, entretanto não pode acusar ninguém”278. Ao fazer essa declaração da própria filha, Mathias expõe-se no sentido de falhar como pai e condutor da família, o que é fortemente questionado pelo delegado, pois, sendo ele um pai, como deixava a filhar ter tal comportamento e mesmo estando grávida, por que não procurou as autoridades para queixar-se. As falas de Mathias são permeadas de contradição, o mesmo ainda afirma que é casado a vinte anos com sua mulher e que nunca abandonou a sua cama, exceto uns dias, quando esta estava atacada por percevejos, o que lhe obrigou a dormir no chão. Estes casos evidenciados nos chamam atenção para o convívio familiar entre os populares, não quer dizer com isso que esta seja uma prática apenas 275 CEDOC – Mathias marques da Cruz – Doc. 671, Cx. 40, Est. 02, Ano 1939. CEDOC – Mathias marques da Cruz – Doc. 671, Cx. 40, Est. 02, Ano 1939. 277 CEDOC – Mathias marques da Cruz – Doc. 671, Cx. 40, Est. 02, Ano 1939. 278 CEDOC – Mathias marques da Cruz – Doc. 671, Cx. 40, Est. 02, Ano 1939. 276 147 desse grupo social, porém entre membros da elite, casos como estes eram abafados com viagens, casamentos arranjados e outras estratégias de manutenção do status quo social. O processo de Mathias fica inacabado, não sabemos o motivo de não ter havido a denuncia do ministério público, talvez o fato da idade da ofendida com 21 anos de idade que a tornava maior legalmente, não enquadrando o fato como estupro nem defloramento seguindo a lei em vigor. O procedo é arquivo no ano de 1965, após a prescrição do crime. Assim, como em muitos outros casos envolvendo as mulheres pobres em Feira de Santana, ficamos sem saber o paradeiro das nossas protagonistas. O último processo evidenciado sobre crimes sexuais no ambiente familiar envolve uma família composta por uma viúva com cinco filhos que casa-se com um também viúvo com dois filhos, juntos tem mais dois filhos juntos, ou seja, uma família grande como costumeiro entre os populares da zona rural, sendo que esta conta de filhos não é exata, pois, encontramos três referências aos filhos do casal, uma que descrevia a agrupamento de quinze filhos, outro de dez e este que citamos de nove filhos. A quantidade não interessa, o importante é perceber as interações e os conflitos se deram nessa família formada pela união de José Leão dos Santos, 40 anos idade, lavrador, casado, analfabeto e Maria Ferreira da Silva, 30 anos idade, doméstica, casada, analfabeta.279 José Leão dos Santos é preso em flagrante no dia 19 de agosto de 1948, após espancar violentamente sua, produzindo nela feridos com uma estaca verde, que arrancara da cerca da sua casa. O espancamento de Maria Ferreira da Silva é o cume de história de fato que se inicia com a descoberta do desvirginamento de sua filha Maria de Lourdes da Silva, menor de 13 anos de idade pelo padrasto José Leão dos Santos. Como costumeiro na zona rural os pais levam seus filhos para a roça com eles para auxiliar nos trabalhos diários de manutenção dos cultivos. Dessa 279 CEDOC – José Leão dos Santos – Doc. 36, Cx 02, Est 02, Ano 1948. 148 forma agiu José Leão, levando Maria de Lourdes e mais três irmãos menores para a roça consigo. Segundo a ofendida: Que chegando lá[na roça], à sombra de um pé de pinha o seu padrasto mandou dois irmão ir colher feijão e o outro mandou plantar melancia, que ficando a sós, o seu padrasto lhe puxara pela cintura, 280 jogando-a no chão, fazendo o que bem quis. O fato do desvirginamento foi testemunhado pelo irmão da menor ofendida de nome Vital, que confidenciou o que testemunhou para a mãe do referido, esta procurou seu ex-cunhado Pascoal Brandão e tio dos seus cinco filhos do primeiro casamento e contou o caso, que imediatamente pegou a menina ofendida e retirou da casa de José Leão para procurar as autoridades policias. Antes de a queixa ser prestada, José protagoniza a cena de espancamento da mulher e é preso em flagrante. Na delegacia as histórias começam a ser cruzadas e vem a tona o espetáculo de códigos e valores cotidianos que norteavam as relações entre o sexos nesse contexto social. José Leão confessou que manteve intimidades sexuais com a menor, pela descrição que faz dos fatos, com extrema naturalidade, demonstra que o acusado considerava aquela atitude normal e constituinte do seu sexo. Assim declara: que de fato teve relação algumas vezes com a menina Maria de Lourdes, filha de sua mulher, atualmente com a idade aproximada de 12 a 14 anos, que Maria de Lourdes já é púbere, tendo o interrogado relações com ela cerca de mais de um ano,mesmo antes do inicio do seu ciclo menstrual, que não deflorou Maria de Lourdes, praticando com a mesma apenas atos de libidinagem, acreditando que ela seja ainda virgem, que mesmo na ultima vez em que esteve com a referida menor “andou tateando”, “atarando e não achou jeito”, que nunca usou de violência para com a menina e nem jamais lhe pagou 281 cousa alguma pela satisfação de seus desejos sexuais José Leão diz que a briga com sua esposa não foi por causa da descoberta do defloramento da menor, pois, “de fato a ultima vez, o fato foi descoberto pelo menino vital, e irmão da ofendida, que não se aborreceu tanto 280 281 CEDOC – José Leão dos Santos – Doc. 36, Cx 02, Est 02, Ano 1948. CEDOC – José Leão dos Santos – Doc. 36, Cx 02, Est 02, Ano 1948. 149 com sua esposa pelo caso do defloramento da menina, mas sim pela maneira leviana e infiel com que procedeu282”. Mesmo depois de declarar abertamente que mantinha relações sexuais com a filha da sua mulher com quem era casado há 04 anos, José Leão, reivindica da mesma um comportamento atrelado a submissão e aprisionamento ao lar. A briga iniciou-se quando o acusado chegou em casa e não encontrou a mulher na mesma, descobrindo que a mesma tinha ido a casa de um viszinho de nome Josué Tavares da Silva, com 41 anos, solteiro, lavrador, pegar uma farinha emprestada, segundo José Leão, “ Josué nunca teve farinha para emprestar para ninguém, não possuindo si quer um pé de mandioca”. Ao chegar na casa de Josué encontrou a casa fechada tendo por isso invadido a casa tendo a oportunidade de ver sua mulher Maria dos Santos saindo correndo pelo fundo da casa, que seguiu sua mulher até sua casa onde fez os ferimentos com uma estaca. É interessante a relação de gênero presente neste caso em especial, pois, o acusado agrediu sexualmente a menor Maria de Loudes, agrediu fisicamente o menor Vital, por que contou para a mãe que viu o padrasto tendo relações com a irmã e agrediu a mulher Maria Ferreira, pois, considerou seu comportamento “leviano e infiel”. Vemos que José Leão, revestido do poder masculino que a sociedade que configurava, impõe-se sobre sua família, a ponto de estabelecer um código de violência licenciosa283. José Leão fica recluso na cadeia Publica menos de dois meses, tendo livramento no dia 08 de outubro de 1948, após, novo depoimento da menor Maria de Lourdes que inocenta o padrasto, afirmando que: Declarou a Policia ter sido o seu padrasto José Leão da Silva o autor do seu desvirginamento forçada e insinuada pelos seus tios irmãos 284 de sua mãe, Alberto Justino e Eduardo Ferreira da Silva 282 283 CEDOC – José Leão dos Santos – Doc. 36, Cx 02, Est 02, Ano 1948. BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. 5ª Edição, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. 284 CEDOC – José Leão dos Santos – Doc. 36, Cx 02, Est 02, Ano 1948. 150 Diversos fatores podem sinalizar para as motivações que levaram a menor de Maria de Lourdes, a inocentar seu padrasto em novo depoimento. No entanto, um dos fatores que podem ter sido o agravante era a questão do provimento do lar, que pode ter ficado comprometido com a prisão de José Leão, uma vez que era uma família com mais de dez filhos para manter. Assim, José Leão é posto em liberdade, porém essa liberdade lhe dura menos que um ano, pois, o referido faleceu no dia 13 de agosto de 1949 285, deixando assim Maria Ferreira da Silva novamente viúva e desta vez com mais quatro filhos para criar e manter. 285 CEDOC – José Leão dos Santos – Doc. 36, Cx 02, Est 02, Ano 1948. 151 CONSIDERAÇÕES FINAIS O famoso Promotor Público da Comarca de Feira De Santana no dia 22 de novembro de 1941 ao solicitar o arquivamento do processo de defloramento de Maria José Bispo, empregada, 15 anos de idade, solteira, moradora no lugar conhecido como Campo Limpo, natural de Maria Quitéria, analfabeta, preta, filha de Evarista Ferreira, que acusou Manoel Basílio, solteiro, com 36 anos, chauffer, residente a Rua Voluntários da Pátria, nº 17, sabendo ler e escrever, de ser o autor do seu defloramento na casa de seu patrão Leocadio, escreveu uma frase que me chamou bastante atenção, assim declarou: “Impõe-se portanto o silêncio destes papeis”286 . De fato o Promotor nunca imaginou que as histórias daqueles indivíduos romperiam o anonimato e transporia o silêncio do arquivamento, pelas mãos de um historiador que vasculha entre as estantes e caixas empilhadas em um arquivo. O silêncio imposto foi rompido, essa é nossa função como historiadores das camadas populares, dá voz e visibilidade aos sujeitos invisibilizados e silenciados pelo processo histórico. A sensação de conclusão é inquietante, pois, coloca-nos de frente as incompletudes do trabalho cientifico da pesquisa histórica. Foram muitas páginas escritas e muitas histórias problematizadas no sentido de compreender as relações sexo-afetiva e o controle social em Feira de Santana. Estou convencido das inumaras possibilidades de pesquisas e problematizações que a documentação evidenciada permite, atreladas a leitura da categoria gênero. Na escolha do objeto de pesquisa, buscávamos revelar uma faceta da sociedade feirense, compreendendo as identidades, estereótipos e principalmente as experiências dos sujeitos apreendidos em seu cotidiano e nas suas interações culturais. 286 CEDOC/UEFS – Doc. 2264, Cx. 109, Est. 04, Ano 1941. 152 Nos processos criminais encontrei, mulheres e homens que me revelaram as aspectos característicos da sociedade feirense de meados do século XX, como referente grande número de analfabetos, a predominância das relações rurais entre os populares, a importância crucial que exercia feira livre no centro da cidade, movimentando-a todas as segundas-feiras, estabelecendo um diálogo entre o urbano e o rural, o centro e a periferia. Os valores e códigos de condutas tão foram expostos pela documentação, seja através das falas dos envolvidos, seja na interlocução com os manipuladores técnicos, que utilizavam os processos como palco para encenar os modelos normativos de controle das camadas populares. Este estudo sobre as mulheres em Feira de Santana foi motivado pela paixão ao tema e pela nossa posição política e inquietante de compreender as relações de gênero e as desigualdades entre os sexos. De tal maneira inquietante, concluo este trabalho com plena consciência de que o tema é relevante e este é um apenas um passo no olhar ao passado silenciado, invisibilizado e oculto. 153 FONTES I - PROCESSOS CRIMINAIS Centro de Pesquisa e Documentação CEDOC/UEFS. RELAÇÃO DOS PROCESSOS: Lesões Corporais e Homicídios CEDOC – Alexandre dos Santos – Doc.1253, Cx.69, Est.03, ano 1939. CEDOC – Alexandrina de tal – Doc.715, Cx. 43, Est. 2, ano 1941. CEDOC – Cândido E. dos Santos – Doc 2088, Cx. 99, Est. 04, ano 1946. CEDOC – Elias F. da Silva – Doc. 2355, Cx. 116, Est. 04, ano 1940. CEDOC - Francisca Soares de Jesus – Doc. 2418, Cx. 120, Est. 04, ano 1948. CEDOC- Gabina Amélia - Doc 807, Cx. 48, Est. 02, ano 1948 CEDOC – Gilberto Ferreira - Doc 827; Cx 49; E 02; ano 1947. CEDOC – Gregório de Lima – Doc. 2197, Cx. 105, Est.04, ano 1941 CEDOC – Joana Estrela. Doc 1583, Cx 83, E 03, ano 1942. CEDOC – João Calmon de Brito - Doc. 2001, cx 95 Est. 04 – ano 1948 CEDOC – José Anastácio dos Santos – Doc. 207, cx. 10, Est. 01, ano 1947. CEDOC - Josefa Ferreira – Doc. 373; Cx 20; Est. 01; ano 1942. CEDOC - Josefa Ferreira – Doc. 373; Cx 20; Est. 01; ano 1942. CEDOC – Manoel Cipriano da Silva – Doc. 1597, Cx. 83, Est. 03 ano 1947. CEDOC – Manoel das Candeias Sena. Doc 536; Cx 31; E 02; ano 1940 CEDOC – Maria Alexandrina- Doc. 335, Cx. 18, Est. 01 ano 1937. CEDOC – Maria de São Pedro – Doc. 2281 cx. 110, Est. 04, ano 1939. CEDOC – Maria José de Almeida – Doc. 935, Cx. 54, Est. 02, Ano 1940 CEDOC – Maria Justina de Jesus – Doc. 2691, Cx. 140, Est. 05, ano 1932. CEDOC – Orlando Costa – Doc. 1234, Cx. 68, Est. 03, ano 1940. CEDOC – Renato de tal – Doc. 2206, Cx. 106, Est. 04, ano 1941 CEDOC – Walter Lacerda – Doc. 1765, Cx. 91, Est. 04, Ano 1946 Infanticídio CEDOC - Maria do Carmo Oliveira e Thomaz Alves Franco – Doc. 2731, Cx. 142, est. 05, ano 1933. Defloramentos e Estupros CEDOC - Doc. 671, Cx. 40, Est. 02 CEDOC – Doc.2209, Cx.106, Est.04 CEDOC – Doc 1182, Cx 63, Est 03 CEDOC – Doc 1240, Cx 08, Est 03 CEDOC – Doc 1404, Cx75, Est 03 CEDOC – Doc 1582, Cx 83, Est 03 154 CEDOC – Doc 1636, Cx 84, Est 03 CEDOC – Doc 1642, Cx 85, Est 03 CEDOC – Doc 1647, Cx 35, Est 03 CEDOC – Doc 1648, Cx 85, Est 03 CEDOC – Doc 1662, Cx 85, Est 03 CEDOC – Doc 1672, Cx 86, Est 03 CEDOC – Doc 1700, Cx 87, Est 03 CEDOC – Doc 1743, Cx 90, Est 03 CEDOC – Doc 187, Cx 09, Est 01 CEDOC – Doc 2007, Cx 96, Est 04 CEDOC – Doc 205, Cx 10, Est. 01 CEDOC – Doc 2200, cx 105, Est. 04 CEDOC – Doc 2432, Cx 121, Est 05 CEDOC – Doc 2445, Cx 123, Est 05 CEDOC – Doc 2489, Cx 127, Est 05 CEDOC – Doc 2575, Cx 133, Est 05 CEDOC – Doc 558, Cx 32, Est 02 CEDOC - Doc 619, Cx 36 Est. 02 CEDOC – Doc 671, Cx 40, Est 02 CEDOC – Doc 758, Cx 45, Est 02 CEDOC – Doc 789, Cx 47, Est 04 CEDOC – Doc 931, Cx 54, Est 02 CEDOC – Doc 932, Cx 54, Est 02 CEDOC – Doc. 1104, Cx. 58, Est. 02 CEDOC – Doc. 1404, cx. 75, Est. 03 CEDOC – Doc. 1416 Cx. 76 Est. 03 CEDOC – Doc. 1642, Cx. 85, Est. 03 CEDOC – Doc. 1662, Cx. 85, Est. 03 CEDOC – Doc. 2152, Cx. 103, Est. 04 CEDOC – Doc. 2255, Cx. 109, Est. 04 CEDOC – Doc. 2264, Cx. 109, Est. 04 CEDOC – Doc. 2297, Cx. 112, Est. 04 CEDOC – Doc. 36, Cx 02, Est 02 CEDOC – Doc.1647, Cx.85, Est. 03 II- Jornal Folha do Norte Biblioteca Setorial Monsenhor Renato Galvão / Centro de Estudos Feirenses/ Museu Casa do Sertão / UEFS. Jornal Folha do Norte - 1930 Jornal Folha do Norte - 1931 Jornal Folha do Norte - 1932 Jornal Folha do Norte - 1933 Jornal Folha do Norte - 1934 Jornal Folha do Norte - 1930 Jornal Folha do Norte - 1935 155 Jornal Folha do Norte - 1936 Jornal Folha do Norte - 1937 Jornal Folha do Norte - 1938 Jornal Folha do Norte - 1939 Jornal Folha do Norte - 1940 Jornal Folha do Norte - 1941 Jornal Folha do Norte - 1942 Jornal Folha do Norte - 1943 Jornal Folha do Norte - 1944 Jornal Folha do Norte - 1945 Jornal Folha do Norte – 1946 Jornal Folha do Norte - 1947 Jornal Folha do Norte - 1948 III. CÓDIGO DE POSTURAS MUNICIPAIS Arquivo Público Municipal de Feira de Santana - Decreto-Lei Nº 01 de 29 de Dezembro de 1937. IV. LITERATURA Código Penal Brasileiro. Dec. 847 de 11 de outubro de 1890. Código Penal Brasileiro. Dec. 2.848 de 07 de dezembro de 1940. CASTRO, Viveiros de. Os Delitos Contra a Honra da Mulher. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1936. 156 REFERÊNCIAS: ALMEIDA, Oscar Damião de. 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Autor: Luiz Alberto da Silva Lima Centro de Pesquisa e Documentação (CEDOC – DCHF / UEFS) Nº do Doc: Caixa: Estante Subsérie: P. de inicio:_________________ Nº de Folhas P. de finalização:_____________ AGRESSOR(A):_______________________________________________________ Estado Civil:____________________Profissão/Ocupação:_____________________ Idade: __________Sexo:___________Escolaridade:___________ Cor:__________ Naturalidade:______________________ Endereço Residencial: _______________ Filiação:_______________________________________________________________ NOME DA VÍTIMA:__________________________________________________________ Estado Civil:__________________ Idade:_____________ Sexo:_________________ Profissão/ Ocupação:___________________ Vínculo c/ o agressor(a):____________ Endereço residencial:____________________________________________________ Naturalidade:______________ Cor:_________Escolaridade:___________________ Filiação _______________________________________________________________ Artigo de enquadramento do crime (Tipo Penal):____________________________ Local de Ocorrência: ___________________________________________________ Data do crime: ______________ Dia: _____________Horário:__________________ Motivos explicitado nos autos:_____________________________________________ Instrumentos utilizados para a consumação do fato delituoso:__________________ Autoria da queixa_______________________________________________________ Sentença_______________________________________________________________ Quantidades de testemunhas arroladas _____________________________________ Juiz____________________________ Promotor_____________________________ 163 Anexo 2. 164 Anexo 3 Doc. 305, Cx 16, Est, 01, Ano 1933. 165 Anexo 4 Doc. 1583, Cx. 83, Est. 03, Ano 1942. 166