Memórias de um Sargento de Milícias Profª. Valéria O AUTOR Manuel Antônio de Almeida nasceu no Rio de Janeiro, em 17 de novembro de 1831. Ingressou na faculdade de medicina aos dezessete anos, mesmo período em que escrevia no Correio Mercantil. Publicou seus primeiros poemas aos dezoito anos. Em 1852, passou a publicar semanalmente, num suplemento humorístico do Correio Mercantil chamado A Pacotilha, as Memórias de um Sargento de Milícias, com o pseudônimo “Um brasileiro”. Em 1854 e 1855, o texto foi publicado em forma de livro. Faleceu no navio “Hermes”, em 1861. No ano de 1863, Memórias de um Sargento de Milícias foi publicado com o nome real de seu autor, Manuel Antônio de Almeida. Personagens principais Leonardo De menino traquinas, sempre pronto para fazer travessuras e vingar-se de quem não o suportava, passa a sargento de milícias, posto de grande responsabilidade, o que caracteriza a trajetória desordenada e contraditória de um personagem que não controla o meio em que se envolve e vai, pelo contrário, deixando-se levar por ele. Leonardo é, indiscutivelmente, a figura central do enredo, apesar de muitas vezes ser ofuscado pela ação de outros personagens. Leonardo-Pataca Tendo conseguido chegar a meirinho, o que lhe garante uma vida de ócio, LeonardoPataca é apresentado como o infeliz que é perseguido sempre pela má sorte na vida pessoal, má sorte que, na verdade, é resultado da pouca inteligência e do excesso de sentimentalismo amoroso. Mas a velhice o acalma e, afinal, encontra a paz ao lado de Chiquinha. A comadre Como parteira, a comadre faz uso da influência e das informações que obtém no exercício de sua profissão para organizar o mundo segundo interesses. Nem sempre é bem-sucedida, mas a sorte a favorece e consegue ver o afilhado bem casado e na posição de sargento de milícias. O compadre De bom coração, apesar do famoso arranjeime, o compadre, o compadre afeiçoa-se a Leonardo, no qual parece identificar-se, pois também fora um menino abandonado que tivera que enfrentar a vida sozinho. Não vive o suficiente para ver o final feliz do afilhado. Vidigal O terror dos malandros e vagabundos, 'o rei absoluto, o árbitro supremo' e o distribuidor dos castigos em uma sociedade em que a polícia ainda não estava organizada, o major é visto de forma simpática, principalmente porque termina sendo uma peça fundamental para que o destino de Leonardo, o herói central, se encerre de forma favorável. Vidinha A 'mulatinha de 18 a 20 anos...de lábios grossos e úmidos' é o primeiro personagem da ficção brasileira que aparece o estereótipo da mulata sensual que enlouquece os homens com sua vida e sem compromissos. Enredo Leonardo, o futuro sargento de milícias, filho de Leonardo-Pataca e de Maria Hortaliça é o resultado das pisadelas, beliscões e outros atos similares praticados pelo casal de imigrantes portugueses durante a travessia do Atlântico rumo ao Rio de Janeiro. Maria-da-Hortaliça sente enjoos logo ao desembarcar e sete meses depois nasce um robusto menino, batizado com o nome do pai. A parteira - a comadre - e o barbeiro - 'de defronte' foram os padrinhos do herói, que passa junto aos pais os primeiros anos da infância. LeonardoPataca, que se tornara meirinho, confirma certo dia as suspeitas de que sua mulher não mantinha a mesma fidelidade que durante a viagem. Em consequência, briga com ela, expulsa de casa o garoto com um enérgico pontapé e sai em busca de consolo. Ao retornar à tarde, em companhia do compadre e padrinho do menino, é informado de que Maria-da-Hortaliça, saudosa da pátria, tinha fugido e embarcado novamente, rumo a Portugal, a convite do capitão de um navio que partira pouco antes. Logo a seguir, Leonardo-Pataca vai viver com uma cigana, que, por sua vez, também o abandona. Enquanto isso, Leonardo, o filho, adotado pelo padrinho, que muito se afeiçoara a ele, vai crescendo e a cada dia se revela mais briguento e travesso, prenunciando futuros envolvimentos com o famoso major Vidigal, que era o terror de todos os malandros e baderneiros da época. O padrinho, com infinita paciência, tenta encaminhar o menino na prática da religião para qual este não revela grandes pendores. Coloca-o na escola e o ensina a ajudar a missa. Se na escola se revela um péssimo aluno e colega, na Igreja da Sé, onde consegue ser sacristão, vê a melhor oportunidade para grandes travessuras, como o experimenta o mestre-de-cerimônias. Este, um padre de meia idade, virtuoso por fora, mas bastante diferente por dentro, envolve-se com uma cigana, a mesma, aliás, com quem LeonardoPataca vivera depois da fuga de Maria-daHortaliça. O sacristão se vinga das reprimendas que sofre por suas constantes travessuras levando os fiéis a tomarem conhecimento dos fatos, o que faz com que seja expulso e deixe a igreja da Sé. Para desgosto do padrinho e da madrinha, que queriam encaminhá-lo em uma profissão, Leonardo não demonstra qualquer interesse. Prefere a vida livre das brincanagens. Certo dia, em casa de Dona Maria, uma mulher das vizinhanças, conhece a sobrinha desta, Luisinha, sua futura mulher. Até que o casamento se realizasse, porém, muita coisa, iria acontecer. Leonardo-Pataca, depois de vencer o mestre-decerimônias na disputa pela cigana, é abandonado novamente por esta e passa a viver com a filha da parteira, Chiquinha. Daí nascem uma filha e grandes confusões, pois Chiquinha e Leonardo se detestavam e a parteira é chamada continuamente para serenar os ânimos. Por esta época aparece em cena José Manuel, um rival do futuro sargento de milícias em seu amor por Luisinha. Apesar dos esforços da comadre para afastá-lo do caminho, ela não tem sucesso. Além disso, a morte do padrinho e as contínuas brigas com Chiquinha fazem com que Leonardo saia de casa e passe a vagabundear pelos subúrbios da cidade, quando conhece Vidinha, uma mulata sensual, de olhos pretos e lábios úmidos, pela qual se apaixona imediatamente. Como Vidinha tinha outros pretendentes, cria-se grande confusão, o onipresente major Vidigal intervém e Leonardo consegue fugir, deixando-o furioso. Mas a vida continua e, com proteção da comadre, Leonardo entra para as hostes do major Vidigal, não revelando, naturalmente, grande amor por esta nova profissão e passando boa parte de seu tempo na prisão por indisciplina. Sempre com a proteção da comadre, que recorre à ajuda de Maria Regalada, um antigo amor de Vidigal, Leonardo supera todas as adversidades, chegando ao posto de sargento de milícias. Assim, o final feliz se aproximava. José Manuel, o rival de Leonardo no amor por Luisinha, revela-se péssimo marido e, além do mais, morre providencialmente, deixando-a viúva e livre para casar com o sargento de milícias. Passando o tempo indispensável do luto, Leonardo, em uniforme da tropa, recebe Luisinha como mulher, na mesma igreja da Sé que fora palco de suas grandes travessuras como sacristão. Análise das personagens Em Memórias de um sargento de milícias, as personagens são planas, ou seja, elas não mudam seu comportamento no desenrolar da história. Por exemplo a personagem principal, o memorando: Leonardinho, desde criança era travesso. Planejava vinganças, criava situações constrangedoras para quem ele não gostava, mas era amado por poucos como o seu padrinho e a comadre. Isso caracteriza o tipo pícaro, ou malandro nos termos cariocas. E até o final do livro Leonardinho não muda esse jeito pícaro de viver. As personagens se destacam por traços gerais e comuns ao grupo que pertencem.Muitas personagens não têm nome pois são alegorias(representações simbólicas) do tipo de gente da época e da classe sócio-econômica a que pertencem. Neste trecho o narrador descreve a Comadre, e em nenhum momento do livro ele cita o seu nome: Era a comadre uma mulher baixa, excessivamente gorda, bonachona, ingênua ou tola até um certo ponto, e finória até outro; vivia do oficio de parteira, que adotara por curiosidade, e benzia de quebranto; todos a conheciam por muito beata e pela mais desabrida papa-missas da cidade. ORDEM E DESORDEM Duas forças de tensão movem os personagens do romance: ordem e desordem, que se revelarão características profundas da sociedade colonial de então. A figura do major Vidigal representa o polo que, na história, cuida da ordem: “O major Vidigal era o rei absoluto, o árbitro supremo de tudo que dizia respeito a esse ramo de administração; era o juiz que dava e distribuía penas e, ao mesmo tempo, o guarda que dava caça aos criminosos; nas causas da sua justiça não havia testemunhas, nem provas, nem razões, nem processos; ele resumia tudo em si (...)”. A estabilidade social representa a ordem, enquanto a instabilidade se refere à desordem. Dessa forma, o barbeiro, completamente adequado à sociedade, ao revelar as origens pouco recomendáveis de sua estabilidade financeira, evoca no seu passado a desordem. Personagens como o major Vidigal, a comadre, dona Maria e o compadre pertencem ao lado da ordem. Mas os personagens desse polo nada têm de retidão, apenas estão em uma situação social mais estável. O pólo da desordem é formado pelo malandro Teotônio, o sacristão da Sé e Vidinha. A acomodação dos personagens, tanto na ordem como na desordem, está sujeita a uma mudança repentina de pólo, ou seja, não existe quem esteja totalmente situado no campo da ordem nem no da desordem. Não há, portanto, uma caracterização maniqueísta dos tipos apresentados. O major Vidigal, por exemplo, um típico mantenedor da ordem, transgride o código moral ao libertar e promover Leonardo em troca dos favores amorosos de Maria Regalada. Espaço O espaço físico apresentado na obra é o meio urbano brasileiro do século XIX. A história se passa no Rio de Janeiro, e descreve seus principais pontos, como igrejas, principais ruas, mas descreve também pontos bem à margem da sociedade, como acampamentos de ciganos e bares. Neste trecho, o autor descreve um acampamento cigano: Moravam ordinariamente um pouco arredados das ruas populares, e viviam em plena liberdade. As mulheres trajavam com certo luxo relativo aos seus haveres: usavam muito de rendas e fitas; davam preferência a tudo quanto era encarnado, e nenhuma delas dispensava pelo menos um cordão de ouro ao pescoço; os homens não tinham outra distinção mais do que alguns traços fisionômicos particulares que os faziam conhecidos. O autor retrata as classes média e baixa existentes na época, contrariando muitos românticos que retratavam a aristocracia. Quase em nenhuma parte, o livro retrata um ambiente aristocrático. No trecho a seguir, sobre o batizado da irmã de Leonardo, pode-se observar como era retratado o meio social: Estavam todos sentados, e o Teotônio em pé no meio da sala olhava para um, e apresentava uma cara de velho; virava-se repentinamente para outro, e apresentava uma cara de tolo a rir-se asnaticamente; e assim por muito tempo mostrando de cada vez um tipo novo. Finalmente, tendo já esgotado toda a sua arte, correu a um canto, colocou-se numa posição que pudesse ser visto por todos ao mesmo tempo, e apresentou a sua última careta. Todos desataram a rir estrondosamente apontando para o major. Foco Narrativo A narrativa é feita em terceira pessoa (mas há passagens do livro em que o foco narrativo passa da terceira pessoa para a primeira pessoa) o que torna mais completa a caracterização das personagens e seu foco secundário vai variando. O autor utiliza diálogos que retratam a linguagem dos personagens. Esse tipo de narrativa faz com que o texto fique mais interessante, pois ficam evidentes as ironias usadas pelo narrador. No trecho que se segue, pode-se observar como o autor aproxima as falas de seus personagens das expressões usadas na época, em uma linguagem extremamente coloquial: — Já… já… senhora intrometida com a vida alheia… já sabe o pai-nosso, e eu o faço rezar todas as noites um pelo seu defunto marido que está a esta hora dando coices no inferno!… O livro é repleto de ironias, como no trecho a seguir: Ser valentão foi em algum tempo ofício no Rio de Janeiro; havia homens que viviam disso: davam pancada por dinheiro, e iam a qualquer parte armar de propósito uma desordem, contanto que se lhes pagasse, fosse qual fosse o resultado. Entre os honestos cidadãos que nisto se ocupavam, havia, na época desta história, um certo Chico-Juca, afamadíssimo e temível. Estilo Manuel Antônio de Almeida utiliza uma linguagem que se aproxima da jornalística, o que torna claros e objetivos os seus textos. Outro aspecto é a utilização de personagens comuns na época, como o barbeiro, a parteira, o major, tornando, assim, a história mais próxima do leitor. Memórias de um sargento de milícias foi escrito em forma de folhetim (os capítulos eram publicados em sequência nos jornais da época, o que prendia o leitor, pois deixava um suspense em relação ao capítulo posterior). Essa característica é utilizada atualmente em novelas, como um resquício do folhetim, com a finalidade de colocar o telespectador em suspense. Essa forma de provocar o suspense no leitor pode ser observada neste trecho, que é o final de um capítulo: Um grito de espanto, acompanhado de uma gargalhada estrondosa dos granadeiros, interrompeu o major. Descoberta a cara do morto, reconheceu-se ser ele o nosso amigo Leonardo!.... Em alguns trechos, o narrador é onisciente, ou seja, ele sabe todos os pensamentos dos personagens. Exemplo são as passagens em que o narrador "entra" no pensamento do personagem: Pois enganava-se redondamente quem tal julgasse: pensava em coisa muito mais agradável; pensava em Luizinha. Pensando nela não podia, é verdade, absterse de ver surgir diante dos olhos o terrível José Manuel. A obra é muito importante por ser de transição do Romantismo para o Realismo e por ser uma crônica de costumes. Além disso, é usada metalinguagem (explicar sobre o próprio processo narrativo), técnica do leitor incluso (conversa com o leitor) e digressão (interromper a narrativa para que o narrador faça um comentário sobre assunto paralelo). Verossimilhança Ao contrário de outras obras românticas, o autor mostra uma visão bem próxima à realidade. Os problemas sociais, as atitudes dos personagens e uma visão menos idealizada da realidade caracterizam a obra como precursora no Realismo. Personagens como Major Vidigal, por exemplo, realmente existiram. No trecho que se segue, temos um exemplo da ironia e da crítica aos costumes da época, em que um padre tem relações amorosas com uma cigana: No mesmo instante viu aparecer o granadeiro trazendo pelo braço o Rev. Mestre-de-Cerimônias em ceroulas curtas e largas, de meias pretas, sapatos de fivela, e solidéu à cabeça. Apesar dos aparos em que se achavam, todos desataram a rir: só ele e a cigana choravam de envergonhados. Movimento Literário A obra Memórias de um sargento de milícias é uma obra romântica, que, consequentemente, apresenta algumas características típicas do movimento. A obra, porém, é um romance urbano, que desenvolveu temas ligados à vida social. A história, porém, apresenta os exageros sentimentais comuns à maioria das obras românticas. Fazendo o uso da ironia, o autor deixa perceber que sua intenção era divertir o leitor com os problemas sociais de sua época. O livro abandona a linguagem metafórica e a mulher e o amor não são idealizados, como em outras obras pertencentes ao Romantismo. Em algumas partes o autor chega mesmo a ironizar o Romantismo. Por exemplo: tratava-se de uma cigana; o Leonardo a vira pouco tempo depois da fuga da Maria, e das cinzas ainda quentes de um amor mal pago nascera outro que também não foi a este respeito melhor aquinhoado; mas o homem era romântico, como se diz hoje, e babão, como se dizia naquele tempo. O final feliz de Luisinha e Leonardo, porém, é uma característica tipicamente romântica. Pode-se ver como amor transforma a vida de Luisinha: Desde o dia em que Leonardo fizera a sua declaração amorosa, uma mudança notável se começou a operar em Luisinha, a cada hora se tornava mais sensível a diferença tanto do seu físico como do seu moral. Seus contornos começavam a arredondar-se; seus braços, até ali finos e sempre caídos, engrossavam-se e tornavam-se mais ágeis; suas faces magras e pálidas, enchiam-se e tomavam essa cor que só sabe ter o rosto da mulher em certa época da vida; a cabeça, que trazia habitualmente baixa, erguia-se agora graciosamente; os olhos, até aqui amortecidos, começavam a despedir lampejos brilhantes; falava, movia-se, agitava-se. A ordem de suas idéias alterava-se também; o seu mundo interior, até então acanhado, estreito, escuro, despovoado, começava a alargar os horizontes, a iluminar-se, a povoar-se de milhões de imagens, ora amenas, ora melancólicas, sempre porém belas. Conclusão Estamos diante de um novo gênero nacional, que se constrói em torno da figura do malandro, personagem que tem influências popularescas, como Pedro Malasarte; mas é urbano e relaciona- se socialmente com as esferas da ordem e da desordem, já citadas. É mais apropriado, por isso, classificar essa obra como um “romance malandro”, de cunho satírico e com elementos de fábula. Esse gênero frutificará em vários romances posteriores, como Macunaíma, de Mário de Andrade, e Serafim Ponte Grande, de Oswald de Andrade. FIM Profª. Valéria