Contos Póstumos de J. S Álvares
Ana Flavia Salvi
Por simples capricho, um dia resolvi largar a economia e virar escritor, escritor
de literatura fantástica. Passei dias tentando imaginar, construir um conto fantástico,
cheio de eventos sobrenaturais, que prendesse o leitor, que fizesse Poe e Cortázar serem
facilmente esquecidos − quanta pretensão a minha − eles deveriam estar zombando de
mim, rindo em seus túmulos de um quarentão, solteirão, avarento que, por ser tão infeliz
e insignificante no mundo, resolve de uma hora para outra, virar escritor para tentar
deixar uma marca, mas ora pois, não se vira escritor, se é escritor.
Trancado no escritório segurando a pena macia, retirada do mais raro pássaro
que já existiu, balançando de lá para cá, as páginas continuavam em branco, as ideias
não vinham, mas eu não desistiria, viraria noites e noites se fosse preciso. Vez por outra,
era interrompido pelo barulho de meus criados, mesmo trancafiado ali, era possível
escutar o tilintar das panelas e as vozes das senhoras cantando enquanto cozinhavam, eu
saía furioso de meu escritório e gritava, gritava, só assim me acalmava e voltava a me
concentrar, o silêncio reinava, mas não demorava muito para alguém quebrá-lo de novo.
Os dias transcorriam como anos, as horas como dias, os minutos como horas e os
segundos como minutos, tudo era demasiadamente demorado e da minha pena nada
saía. Parei de frequentar os bailes que aconteciam na cidade, não ia mais aos encontros
com meus velhos camaradas da faculdade e agora parando para pensar, por ter virado
escritor, consegui me livrar desses sorrisos falsos que me cercavam, dessa corja que se
achava grande, mas na realidade devia até as calças, até mesmo a santa missa, coisa que
minha mãe fizera eu ir todo domingo desde que me entendo por gente, eu havia
abandonado, não que me importasse, não era fiel, não sou o fiel mais crente em Deus. A
teoria da evolução das espécies de Charles Darwin tem mais lógica que a historia bíblica
de Noé e, sejamos sinceros, vamos dizer comumente que ambas falam a mesma coisa, a
capacidade de sobrevivência do mais forte, do adaptado, do escolhido pela natureza, não
seria então uma releitura? Sabemos também que a historia de Jesus não passa de mais
um conto fantástico criado para colocar medo em crianças e pessoas com índole
duvidosa, afinal, ninguém quer ir para o inferno e ser espetado pelo garfo do capeta por
toda a eternidade, mas em resumo, por virar escritor, deixei a vida na sociedade e me
trancafiei em meu escritório com a ideia fixa de escrever o melhor conto de todos, mas
sendo homem, vez ou outra, me cedia aos desejos da carne e chamava uma de minhas
criadas, oh! elas nunca me negavam fogo, eram uma boa diversão com seus grunhidos e
urros de animais no cio.
Bom, na verdade, não é como se não tivesse escrito nada, já havia escrito
centenas de contos, mas nenhum deles me agradava, faltava algo, uma originalidade,
algo que realmente marcasse e não sabia onde e como encontrar isto. Foi então que
pensei “Fantasmas? Por que não fantasmas?” e as ideias iam me brotando aos montes,
mas finalmente, quando fui escrever, a pena caiu de minha mão e eu desfaleci no chão,
fui acometido por uma grave pneumonia. Por querer tanto escrever, empenhado em
cumprir a minha vocação de me tornar um escritor canônico, por excesso de trabalho,
exaustão, descuidei-me de minha saúde que já era então fragilizada e deixei-me cair
doente, de cama, sendo cuidado dia e noite pelos serviçais, pois nem me banhar
conseguia, a tosse parecia rasgar meu peito e a maldita da febre, mesmo com emplastos,
não baixava.
Os delírios começaram a me vir aos montes, o quarto parecia mexer-se como em
uma daquelas visões que você tem quando usa ópio, a única diferença é que com o ópio
não se tem tonturas e vômitos. As mulheres que cuidavam de mim pareciam dignas,
mas não passavam de um bando de desocupadas, sem marido e roupa para lavar,
querendo ascender socialmente. Quando vinham me visitar, o que era raridade, os
sorrisos eram distorcidos e pareciam dizer “Morra logo!”, “Quero seu dinheiro!” “Velho
soberbo este será teu fim!”. Quando paro para pensar, talvez essa tenha sido a
alucinação mais lúcida que tive de todas. A pior delas veio de um clarão, depois que eu
havia perdido as contas dos dias que agora pareciam passar voando, vi Luzia, toda
vestida de branco, divina como sempre, estava diante de uma porta e com um sorriso
encantador me chamava, estendia sua mão e eu andava em passos apressados para poder
tocá-la. Ela era a mulher que mais havia amado na vida, mesmo tendo sido uma
prostituta, foi então que me toquei “Oh! O céu realmente existe?... Mas prostitutas vão
para o céu?... Talvez sim, afinal, somos todos filhos de um mesmo Deus que perdoou
Maria Madalena”, segurei a mão de Luzia e estávamos atravessando aquela luz, quando
me dei conta: “Eu não quero morrer! Ainda não terminei de escrever meu conto
fantástico”, soltei a sua mão e caí, caí, e caí mais um pouco e então acordei em minha
cama de olhos arregalados.
Logo após este delírio, acordei bem, muito bem, como se nunca estivesse ficado
doente, milagrosamente, talvez com uma ajudinha de Luzia, fui curado e agora poderia
finalmente continuar a escrever, levantei-me e fui diretamente ao escritório que
continuava do mesmo jeito que o havia largado, só um pouco empoeirado, não poderia
culpar os meus empregados por isto, cuidar de um doente e manter a casa totalmente em
ordem não é fácil, dessa vez deixaria passar sem punição alguma. Sentei-me em minha
poltrona, ela parecia mais larga, mais espaçada, talvez eu tivesse emagrecido um pouco
por causa da doença. Peguei a pena, não consegui segurar - lá , estava fraco, amarelado,
quase transparente para dizer a verdade, pensei em comer, desci até a cozinha, a casa
estava em silêncio, o fogo da lareira apagado, imaginei o motivo, em um desvio de
atenção, vi pela janela um enterro passar, todos vestidos de preto, os homens
confortavam as mulheres chorando desamparadas pelo morto, o padre ia rezando o terço
à frente, então imaginei “esse deve ser o motivo de tal silêncio, em minha doença
alguém importante deve ter morrido, se a morte não me levou deve ter levado outro para
compensar”.
Vendo o enterro passar, uma idéia me bateu, desisti de comer, já que não estava
mesmo com fome, coloquei os sapatos e saí de casa, segui o cortejo até o cemitério, “Se
quero escrever sobre fantasmas, vou buscar inspiração direto na fonte, e não há lugar
melhor para isso que um cemitério”. Andando junto com o cortejo fúnebre, descobri que
o nome do infeliz Defunto era Gabriel Rodrigues Vistoso. Me surpreendi. O morto era
filho de um grande amigo meu e era um menino jovem, tinha por volta dos seus 19
anos, tinha tanto para viver, mas antes ele do que eu.
Tentei alcançar a família do rapaz para dar meus cumprimentos, quando
chegamos ao cemitério, mas pensei melhor e decidi que não, não estava trajado de
forma adequada para isso, talvez pudesse ofendê-los em sua profunda dor. Resolvi sair
daquele local antes que me vissem tão mal vestido. Naquele momento, notei que as
pessoas não pareciam dar importância em minha descompostura, a dor da perda afeta
mesmo os outros. Antes que pudesse sair dali e me esconder, algo chamou minha
atenção, o coveiro, que estava tão desinteressado no enterro, jazia sentado e concentrado
em cima de um túmulo. Era um velho magro e de macacão, como um coveiro realmente
deveria ser, lia um livro de capa esverdeada de forma tão descontraída que parecia não
se importar com o sofrimento alheio, de certa forma o entendia, depois de anos
trabalhando em bancos, a minha compaixão sumia dos olhos, quando via alguém
falindo, tendo a hipoteca cobrada, eram ossos do oficio. O livro parecia absorvê-lo
totalmente, fiquei ainda mais curioso e cheguei perto, sentei-me ao seu lado de forma
desinteressada, ele pareceu não ligar, queria enxergar o nome da obra, a curiosidade
estava me matando, precisava saber.
Depois de um tempinho, o coveiro fechou o livro, deixou em cima do túmulo e
foi cumprir o seu dever, ele parecia ter adivinhado que eu queria tocar aquele
manuscrito, folheá-lo e descobrir quais prazeres escondia. O livro de capa esverdeada se
chamava Contos Póstumos, fui folheando-o e, nessa primeira observação, percebi que
era cheio de contos de literatura maravilhosa, fantástica, estranha, Todorov ficaria
fascinado com aquilo, e o que mais me surpreendeu foi que os contos não me eram tão
estranhos assim, parecia que eu já os havia ouvido ou lido em algum lugar, mas algo tão
bom deve ter sido muito comentado mesmo. Fui para a última página e... assustei-me...
vi uma foto minha, era eu ali, meu nome estava ali, eu era o escritor daquele livro, como
isso poderia ser? Então olhei mais atentamente e vi escrito “Livro póstumo de J. S.
Álvares, um grande contista que só se tornou grande na morte”.
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