2016 1 GLAUCIA DAVINO FERNANDA BELLICIERI (ORG.) Histórias de Roteiristas Entre Encanto e Conhecimento SÃO PAULO - SP 2 Editora Corpo Texto 2016 © 2016. Núcleo Audiovisual (CNPq), da Universidade Presbiteriana Mackenzie e Editora Corpo Texto A responsabilidade pelos artigos, imagens, opiniões, dados, fontes, citações, referências e demais direitos legais são de inteira responsabilidade de seus autores, em todas as sessões.. É permitida a reprodução parcial ou total desta obra, desde que citada a fonte. Capa e Projeto Gráfico Maria Lúcia Nardy Bellicieri Glaucia Davino Editoração Eletronica Fernanda Bellicieri Glaucia Davino Ficha Catalográfica 3 Comissão de Honra Prof. Dr. Benedito Guimarães Aguiar Neto Reitor da Universidade Presbiteriana Mackenzie Prof. Dr. Marco Tullio de Castro Vasconcelos Vice Reitor da Universidade Presbiteriana Mackenzie Prof. Dr. Cleverson Pereira de Almeida Pró-Reitor Acadêmico da Universidade Presbiteriana Mackenzie Prof. Dr. Sérgio Lex Pró-Reitor de Extensão da Universidade Presbiteriana Mackenzie Profa. Dra. Helena Bonito Couto Pereira Pró-Reitor de de Pesquisa e Pós Graduação da Universidade Presbiteriana Mackenzie Comissão Organizadora Concepção do Evento Dra. Glaucia Davino e Ms. Fernanda Bellicieri Coordenação Geral Dra. Glaucia Davino (presidente) e Ms. Fernanda Bellicieri (vice-presidente) Realização Universidade Presbiteriana Mackenzie Centro de Comunicação e Letras Núcleo Audiovisual (Grupo de Pesquisa CNPq) Artemídia Videoclipe (Grupo de Pesquisa CNPq - IA UNESP) Apoio Autores de Cinema Realejo Filmes Red Inav - Red Internacional de Narrativas Audiovisuales Laboratório de Humanidades Digitais [Mackenzie} NPDA [Mackenzie] Organizadores Dra. Angela Schaun Vice líder do Núcleo Audiovisual (CNPq), CCL Mackenzie Dra. Denise Paiero. Coord. curso Jornalismo CCL Mackenzie Ms. Fernanda Bellicieri. Coordenação executiva deste evento e Doutoranda Mackenzie Dra. Isabel Orestes da Silveira. Coordenação de pesquisa e extensão - CCL Dra. Letícia Passos Affini. Docente - UNESP/ PPG TV Digital Dra. Selma Felerico Garrini (docente CCL, coord GTs) Dr. Alexandre Huady Torres Guimarães. Diretor do CCL Dr. André Cioli. Coord. estágios CCL - Mackenzie Ms. Prof. Ms. Flávio Duarte Cavalcanti de Albuquerque - docente CCL, grupo pesquisa NAv Ms. Jose Estevão Favaro. Docente - CCL Mackenzie - Coord. TCC PP Dr. José Maurício Conrado. Coord. Curso Publicidade e Propaganda - CCL 4 Dr. Marcos Nepomuceno Duarte. Comunicação e Ouvidoria Mackenzie Dr. Pelópidas Cypriano de Oliveira. Livre Docente do PPG IA UNESP Ms. Paulo Matias de Figueiredo Jr. - Doutorando Mackenzie e prof. da UFCG, PB Ms. Osvaldo Takaoki Hattori.Coordenação TCC - CCL Comissão Técnico-Científica Dra. Angela Schaun (CCL - Mackenzie) Dra. Glaucia Davino (presidente do Seminário - CCL Mackenzie) Dra. Helena Bonito do Couto Pereira (Pró-reitora de pós-graducação e pesquisa Mackenzie) Dra. Henny Favaro (FAU Mackenzie) Dra. Isabel Orestes da Silveira ( CCL - Mackenzie) Dra. Letícia Passos Affini (PPG TV Digital UNESP) Dra. Maria de Fátima Ferreira Nunes (Universidade Aberta de Lisboa/ CEMRI) Dra. Maria do Céu Marques (Universidade Aberta de Lisboa/ CEMRI) Dra. Marília da Silva Franco (ECA USP) Dra. Mariza Reis (CCL Mackenzie) Dra. Monica Morais de Oliveira (Velame SP) Dra. Regina Giora (PPG EAHC Mackenzie) Dra. Rosana M. B. Schwarz (PUC SP e CCL Mackenzie) Dra. Selma Peleias Felerico Garrini (ESPM e CCL Mackenzie) Dr. Eneus Trindade (ECA - USP) Dr. José da Silva Ribeiro (PPG Universidade Aberta de Lisboa/ CEMRI) Dr. José Maurício Conrado Moreira da Silva (coordenador do curso de Publicidade e Propaganda) Dr. Marcos Nepomuceno Duarte (Comunicação e Ouvidoria Mackenzie) Dr. Pelópidas Cypriano de Oliveira (PPG IA UNESP) Dr. Adolpho Carlos Françoso Queiroz (CCL - Mackenzie) Dr. Alckmar Santos (PPG UFSC e Lab. Humanidades Digital - Mackenzie) Dr. Alexandre Huady Guimarães (diretor CCL Mackenzie) Dr. Celso Figueiredo (CCL _ Mackenzie) Dr. Edson Capoano (CCL - Mackenzie) Dr. Paulo Roberto Araújo (PPG EAHC/ Lab. Humanidades Digital - Mackenzie) Dr. Wilton Azevedo (PPG EAHC/ Lab. Humanidades Digital - Mackenzie) 5 Comissão Executiva Dra. Glaucia Davino (presidente) Dra. Ana Luisa Campos e Souza (docente CCL) Dra. Angela Schaun (CCL Mackenzie) Dra. Denise Paiero (coord. curso Jornalismo CCL Mackenzie) Ms. Fernanda Bellicieri (Vice presidente) Dra. Isabel Orestes da Silveira (Coordenação de pesquisa e extensão - CCL) Dra. Letícia Passos Affini (Docente - UNESP/ PPG TV Digital) Dra. Mariza de Fátima Reis (docente CCL) Dra. Mirtes de Moraes (docente CCL) Dra. Monica Moraes de Oliveira (Sócia proprietaria da produtora Velame) Dra. Rosana M Barbato Schwartz (CCL/ PUC - GERE) Dra. Selma Peleias Felerico Garrini (Coordenação dos Grupos de Trabalho deste evento) Dr. Alexandre Huady Guimarães (Diretor do CCL) Ms. Jose Estevão Favaro (Docente - CCL Mackenzie) Dr. José Maurício Conrado (coordenação do curso de Publicidade e Propaganda - CCL) Dr. Patrício Dugnani (docente CCL) Dr. Pelópidas Cypriano de Oliveira (IA, UNESP/ Artemidia Videoclip) Ms. Osvaldo Takaoki Hattori (coordenação TCC - CCL) Ms. Paulo Matias de Figueiredo Jr. (Doutorando Mackenzie e prof. da UFCG, PB - Coordenador Geral da Rodada de Projetos) 6 SUMÁRIO PREFÁCIO 10 EM BUSCA DO ENCANTAMENTO E DA TRANSCENDÊNCIA 10 APRESENTAÇÃO 12 SESSÃO 1 - ARTIGOS ACADÊMICOS 16 CAPÍTULO 1 - PAPÉIS DO LIVRO NO CINEMA 16 LIVRO QUE ANDA FALA NA TELA: GUATAHA 16 CINEMA E EDUCAÇÃO: A PROFISSÃO DOCENTE NO FILME "ENTRE OS MUROS DA ESCOLA” 25 BATISMOS DE SANGUE 32 DORA PARA LER E ESCREVER 41 A FIGURAÇÃO DO LEITOR EM MEDIANEIRAS: POÉTICA DO DESENCONTRO 49 CAPÍTULO 2 ARTEMÍDIA AMBIENTE 56 A EXPERIÊNCIA AUTORAL TRANSMIDIÁTICA EM PUSSY JANE ALLSTEAM 56 A CRIAÇÃO DE UM VÍDEO-PERFORMANCE – O DEZENLEIO, A VIRTUDE DO PASSADO: UMA PRODUÇÃO DO LABORATÓRIO DE HUMANIDADES DIGITAIS DO MACKENZIE – LHUDI. 63 A PRÓXIMA GERAÇÃO NA ELABORAÇÃO DE ROTEIROS: USO DE ESTÚDIOS VIRTUAIS COM REALIDADE AUMENTADA 77 CAPÍTULO 3 - PROCESSOS E PRÁTICAS DE ROTEIRIZAÇÃO 96 DO FILME À SÉRIE: ESTRATÉGIAS DISCURSIVAS E NARRATIVAS NO PROCESSO DE ROTEIRIZAÇÃO DE “BATES MOTEL” 96 DESENHO DA NOTÍCIA; UMA EXPERIÊNCIA JORNALÍSTICA EM QUADRINHOS. 104 A PROPAGANDA COMO FERRAMENTA DAS RELAÇÕES PÚBLICAS: ANÁLISE DO COMERCIAL “ADOÇÃO – COMER JUNTOS ALIMENTA A FELICIDADE” 110 A RECEPÇÃO SOB DEMANDA DA TELENOVELA AVENIDA BRASIL 123 CAPÍTULO 4 ESPAÇOS DAS SONORIDADES 135 TUDO SE COMUNICA. MEMÓRIA, COMUNICAÇÃO E FORMAS DE SOCIABILIDADE EM MEU TIO – FILME DE JACQUES TATI 135 O RUÍDO COMO PROPOSTA DE LINGUAGEM NO SÉCULO XX 145 ESCREVER O SOM: O ESPAÇO DO SONORO NOS MANUAIS DE ROTEIROS AUDIOVISUAIS 166 EDUARDO E MÔNICA - ADAPTAÇÃO DA MÚSICA DA BANDA LEGIÃO URBANA PARA O AUDIOVISUAL DA EMPRESA VIVO NAS REDES SOCIAIS 177 CAPÍTULO 5 MÃO DUPLA E MÃOS DADAS: ADAPTAÇÕES 193 INTERSECÇÕES ENTRE O ESQUETE HUMORÍSTICO E A SUA ADAPTAÇÃO LITERÁRIA: É MENTIRA, TERTA? 193 CRITÉRIOS DE ADAPTABILIDADE: PROPOSTA DE CRIAÇÃO DE FATORES DE ANÁLISE PARA TRANSIÇÃO DO MEIO ESCRITO PARA O AUDIOVISUAL 205 7 FORA DA ROTA: OS ACRÉSCIMOS DE TRAMA NA ADAPTAÇÃO DE “DIÁRIOS DE MOTOCICLETA” 220 ADAPTAÇÕES NO ROTEIRO: LITERATURA E QUADRINHOS 229 CAPÍTULO 6 PROEZAS LÚDICAS 250 APONTAMENTOS PARA COMPREENDER A NARRATIVA LÍQUIDA DA TV 250 REATUALIZAÇÕES DA HIPÓTESE DO VALE DO ESTRANHO FAMILIAR EM DIÁLOGO COM A PSICANÁLISE 259 PLAY THEMOVIE. O DIÁLOGO ENTRE AS ESTÉTICAS LÚDICA E CINEMATOGRÁFICA 268 THE GHOST WRITER: A CRÍTICA POLÍTICA DE POLANSKI 275 CAPÍTULO 7 NARRATIVA AUDIOVISUAL: LENDO PERMANÊNCIAS E INOVAÇÕES 283 GRAN TORINO, DE CLINT EASTWOOD: SUBVERSÃO (E SOBREVIVÊNCIA) DO MODELO NARRATIVO CLÁSSICO NO CENÁRIO PÓS-INDUSTRIAL 283 O ESPECTADOR DECIFRADOR: REFLEXÕES ACERCA DA PRODUÇÃO DE SENTIDO DO FILME “MATOU A FAMÍLIA E FOI AO CINEMA” (1969) DE JÚLIO BRESSANE. 291 VER E TOCAR: O DILEMA DE TOMÉ NO FILME TIME DE KIM-KI-DUK. 301 CAPÍTULO 8 DOCUMENTÁRIO: CONVENÇÃO E CONTRAVENÇÃO 309 DESIGN DE INFORMAÇÃO JORNALÍSTICA: ENSAIO SOBRE O ESTADÃO LIGHT 309 METANARRATIVA ENTRE A REALIDADE E A FICÇÃO: EFEITOS DE SENTIDO PRESENTES NA CONSTRUÇÃO DE NARRATIVAS EM MOCKUMENTARIES 320 AUTOBIOGRAFIAS DO PRESENTE - ENTRE-LUGARES DE PERFORMANCE E ENUNCIAÇÃO EM DOCUMENTÁRIOS CONTEMPORÂNEOS 329 O CINE-OLHO E SUA PERTINÊNCIA CONTEMPORÂNEA 339 SESSÃO 2 - PAINEL DE GRUPOS DE PESQUISA 347 PAINEL1 - PESQUISADORES E GRUPOS DE PESQUISA DO GERE [NÚCLEO DE ESTUDOS DE GÊNERO, RAÇA E ETNIA] NO VI SEMINÁRIO DE ROTEIRISTAS DA UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE 347 QUESTIONAMENTOS PARA UM SISTEMA DE PODER: PERMANÊNCIAS E CONTINUIDADES 347 PAINEL 2 - "ARTEMÍDIA ATRAENTE" 352 PESQUISADORES E GRUPOS DE PESQUISA DO ARTEMÍDIA VIDEOCLIP NO VI SEMINÁRIO DE ROTEIRISTAS DA UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE 352 TRILHO DO TREM 3D 352 ROTEIRO PARA TRANSMÍDIA ENTREFILMES 359 ROTEIRO PARA FLANAR NO BAIRRO DE PARADA INGLESA 366 SESSÃO 3 - ARTIGOS LIVRES TEMAS PROPOSTOS EM DEBATES 377 DEBATES "REFLEXÕES SOBRE AUDIOVISUAL CONTEMPORÂNEO" 377 ALICE AQUÉM DA FANTASIA: O PAÍS DAS MARAVILHAS NA VIDA REAL. POR LUCIANO VAZ FERREIRA RAMOS 377 CINEMA COMO PERSEGUIÇÃO. POR DIOGO VASCONCELOS BARROS CRONEMBERGER 380 CONSIDERAÇÕES ACERCA DE LIVROS SIMULTÂNEOS AO FILME: 2001: UMA ODISSEIA NO ESPAÇO. POR CAMILA LORICCHIO VEIGA 383 CÚMPLICES DE UMA ALEGORIA: ANÁLISE ESTILÍSTICA DO ROTEIRO DO PRIMEIRO CAPÍTULO DA TELENOVELA DO SBT. POR JOÃO PAULO LOPES DE MEIRA HERGESEL 388 DA TELA PARA O LIVRO. POR GRACIENE SILVA DE SIQUEIRA 391 8 CINEMA, UMA ARTE (SÓ) DO DIRETOR? - EVIDÊNCIAS DE AUTORIA NO ROTEIRO CINEMATOGRÁFICO DEBATE: "MEIOS E FRONTEIRAS DA CONCEPÇÃO AUDIOVISUAL" PROJEÇÃO MAPEADA EM CENA - ESTUDO DE CASO. POR RICARDO BOTINI SALGADO SESSÃO 4 - PALESTRAS MITOLOGIA NO CINEMA CONTEMPORÂNEO: SUPERMAN, BATMAN E STAR WARS SESSÃO 6 RODADA DE PROJETOS REINO VAZIO DESAPARECIDOS NICOLAU, DEU PAU OS RECÉM CHEGADOS QUARTA PAREDE 4º DP SEGUNDA PELE O CORAÇÃO DE LÀZARO VALENÇA E A NATUREZA MORTA LÓTUS UM AMOR IMPOSSÍVEL O SEQUESTRO EVENTOS INTRIGANTES DA ERA DA FERRUGEM DERIVA RAFA EXQUISITA TEORIA PARA O CAOS SELVA DE PEDRA DEZENLEIO, A VIRTUDE DO PASSADO A VIDA REAL DO VLOGUER MAU MAU 9 395 399 399 401 401 412 412 412 413 414 415 416 417 418 419 419 422 427 428 428 430 430 431 431 432 433 PREFÁCIO Em busca do encantamento e da transcendência Por Alexandre Kieling Preciso começar pela ausência. Não exatamente pela não presença, mas pela ponte possível com o real. O acesso ao que está no mundo das ideias, ao que já se passou, que não está mais aqui. O que me traz esse real é a simulação, como pensa Platão. Seja pelo relato diegético, seja pela imitação mimética, o que tenho é um preenchimento da ausência. No primeiro narro, no segundo represento, mas sempre desembarco e ofereço uma realidade mediada pela história contada do que não é mais visível, salvo pelo imaginário que de todo o processo resulta. A missão é ocupar um espaço, uma lacuna de um real que simplesmente partiu. Dele ficou uma encantadora história, feitos e superações. Uma trajetória sem arquétipos, ou estereótipos, porém de uma protagonista que percorreu seu arco narrativo superando toda ordem de obstáculo e antagonismo, sobrevivendo a toda ordem de pontos de virada, até sagrar triunfante seu objetivo, cumprindo sublime o paradigma de Field. Cabe-me prefaciar a presente coletânea em lugar de Angela Schaun, que recentemente nos deixou. Justo ela que sempre foi uma das maiores incentivadoras do Seminário de Roteiristas. Figura que, nas vezes em que degustei sua sagacidade, me lembrou, com sua singeleza, que na manipulação da linguagem precisamos mais que deleite estético ou estilístico, devemos “encantar” o leitor, o ouvinte, o espectador. Lanço-me assim, amparado por essa guia, para arriscar tratar dessa construção de fôlego que é “Entre Encantamento e Conhecimento”. O esforço que reúne ideias de realizadores, professores e pesquisadores do universo narrativo do audiovisual no qual as fronteiras entre imagem e imaginário se embaralham. Ambiente pelo qual as noções de simulação de Platão, Deleuze e Baudrillard se encontram, se atravessam e sugerem novos mundos para além daquele de Demiurgo ou da imitação das ideias. Confronta realidade e virtualidade, materialidade e imaterialidade. O conjunto de sistemas de produção, circulação e consumo dos conteúdos audiovisuais insere o roteiro num turbilhão de demandas que envolvem criação, desejo, necessidade e utilidade, portanto, processos de mercantilização que reenviam às tensões da fase da reprodutividade técnica da arte – ave Benjamin. A multioferta sugere uma relativa alforria do espectador que experimentaria maior autonomia de escolha e consumo. Em paralelo, o que se vê é uma pressão sobre o realizador para aderir a um fluxo de produção e distribuição em nome da gestão de uma marca e seus seguidores e não da apreciação de uma obra pelo seu público. Trata-se de um paradoxo onde se observa uma onda que se mostra avassaladora e que restringe o espaço de respiração criativa e de experimentação, exatamente, em um momento de infinitas possibilidades. Nesse caudal, o encantamento não é a obra ou pela obra, é pelo fluxo e em razão do fluxo seja pela oferta, seja pela circulação de ativos que disso tudo resulta. A essência das coisas, faculdade acessível pela metáfora de Proust, seja pela sua busca pelo tempo perdido, 10 invocando a memória afetiva bem resgatada em Genette, se dilui ou desintegra. O que uma obra pode dizer à atmosfera mais sensível do espectador sobre o mundo das coisas tende a se perder no fluxo. E o encanto pode desencantar, ou enganar. Corre-se o risco de perder a restituição da experiência mais pura do espectador que é se reintegrar com as essências das coisas, passaporte para perenidade de uma obra, pensada por Proust e destacada por Genette. Se concebermos, na perspectiva de Hjelmslev, o texto a partir do princípio de estrutura de conteúdo e expressão, cada qual com sua forma e substância, vamos perceber que embora a forma do conteúdo seja a história, o acontecimento, ação, personagens, a relação espaço e o tempo vem se transformando num commodity – produto de extração natural semelhante em qualquer parte com preços ditados pela oferta e procura internacional. A substância do conteúdo, modo como esses componentes são conceitualizados e tratados de acordo com o código particular do autor, obedecem a estruturas cada vez mais similares. Por sua vez, a forma da expressão, sistema semiótico ao qual pertence o relato, cinema, rádio, televisão, tendem o embaralhamento e a intercontaminação. Enquanto a substância da expressão, a natureza material dos significantes que configuram o discurso narrativo – a voz, a música, os sons (ruídos), a imagem gráfica, fotográfica, videográfica, infográfica, etc. – é cada vez mais comum e igual em todos os textos audiovisuais empurrados pelo fluxo. O mundo inteligível do bem, da beleza, do Ser e da Verdade, sublime e o mundo sensível, com início e fim, de Platão, parecem se fundir. Mimese e diegese relativizam suas fronteiras em nome do fluxo do conteúdo, da tecnologia, do acesso, do consumo. Imagina-se sobrar pouco espaço para o encantamento sugerido por Angela. A presente coletânea ousa mergulhar nesse processo reunindo texto que vasculham as narrativas do cinema, da televisão e dos videojogos. Desconstroem e restauram estruturas narrativas das franquias às series televisivas, da produção alternativa de ficção aos documentários. Nada sobra que o olhar, a inquietação e a paixão dos autores não tenha alcançado. Não há receitas, nem ilusões. Sobram pistas, desejos, possibilidades que nesse esforço reflexivo não economizam encantamento e experimentam uma transcendência. Brasília, abril 2016 11 APRESENTAÇÃO O sexto seminário Histórias de Roteiristas trouxe como tema gerador de reflexões o Encanto e o Conhecimento. O conhecimento existe porque o ser humano se encanta pelo saber, pela sensação de domínio das questões humanas e naturais. Sim, sensação, pois o conhecimento é momentâneo e sempre em transformação. Ao mesmo tempo, apenas o conhecimento, mesmo que passageiro é que pode gerar o encanto. Entrando no campo do lúdico, do criativo, do processo, o roteiro audiovisual é extremamente encantador. Cada vez mais, vemos pessoas, escritores ou não, buscando no roteiro a possibilidade da expressão artística, a autorização para contar histórias em meios audiovisuais. O encanto passa a ser o vislumbre da passagem para a tela. Ao mesmo tempo, vimos, nos seminários, testemunhando o aumento do interesse pelo conhecimento científico desta área do conhecimento. Trabalhos acadêmicos abordando variados vieses do roteiro, da concepção à prática. Apresentamos aqui a programação das atividades realizadas no "6º Seminário Historias de Roteiristas. Entre Encanto e Conhecimento", realizado em setembro de 2015, no Centro de Comunicação e Letras, da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Este livro resulta dos trabalhos elaborados pelos autores que assinam seus artigos ou projetos e da comunhão desses conhecimentos que tanto nos encantam. De caráter acadêmico-profissional, o evento proporcionou a aproximação e troca entre acadêmicos (estudiosos/pesquisadores), profissionais, aspirantes, novos roteiristas e a realização deste livro, através de programação variada, composta pelas Rodadas de Projetos, onde os autores de projetos discutem os apresentam e discutem com um profissional (roteirista experiente) e um professor (acadêmico) tais projetos, pelo Painel de Grupos de Pesquisa (modalidade inaugurada neste evento), por Palestras de intelectuais vinculados às universidades, pelos workshops "Vivências e Experiências" ministrados por profissionais do mercado a apresentação de trabalhos acadêmicos em GTs e Debates entre os autores de artigos livres. Cabe ressaltar nosso orgulho em promover uma ruptura paradigmática, desde a primeira edição, que vemos hoje ser questionada dentre os pesquisadores. Trata-se das limitações das publicações acadêmicas na promovidas por um sistema de pontuação e qualificação dessas publicações, o que acarreta a separação da produção de doutores, mestres e alunos de graduação nas publicações e nas apresentações em congressos. Nossa experiência mostrou que Doutores que participaram de GTs, por exemplo, muito se encantaram com as novidades que alunos da graduação (orientados nas atividades de Iniciação Científica) vêm trazendo. Ou seja, o Seminário Histórias de Roteiristas passou a ser, na conjuntura acadêmica, um espaço verdadeiro de troca e produção de novos conhecimentos. A questão formativa é outro aspecto que valorizamos neste evento. Outro aspecto que cabe ressaltar é o vínculo permanente que mantemos com os profissionais da área, profissionais emergentes e interessados em integrar o universo da criação audiovisual no Brasil. Todos os anos, há a promoção desta aproximação. Não há como separar a academia universitária da natureza da criação, se nós quisermos falar de roteiro e audiovisual. 12 Abaixo, apresentaremos a programação das atividades desenvolvidas nos dois dias de seminário para que fique registrada esta dinâmica, como um legado a todos que continuarão a pesquisar e produzir na área do roteiro audiovisual. Rodadas de Projetos: De caráter profissional e formativo, e uma atividade que inicia com a submissão de propostas de trabalhos audiovisuais, de qualquer formato e plataforma e em qualquer fase de produção. Estes trabalhos são selecionados e enviados a, pelo menos, um roteirista e um docente da área. Durante a rodada de projetos os autores têm que apresentálo e cada um dos trabalhos apresentados é discutido com este roteirista profissional e este docente. [profissional e formativo] Painel de Pesquisadores e Grupos de Pesquisa: De caráter acadêmico, introduzido em 2015, tem como objetivo dar oportunidade para grupos de pesquisa e pesquisadores de compartilharem e exporem suas produções no viés de grupos, ou seja, no viés de pesquisas enredadas sob a coordenação de um docente, líder do grupo. [acadêmico e de troca de conhecimentos] Palestras: De caráter acadêmico e formativo, as palestras são proferidas por pesquisadores especializados nos temas versados. Trazem suas experiências de uma forma ampla, em que tanto pesquisadores mais experientes como estudantes possam descobrir ou esclarecer novos temas, novas abordagens sobre o audiovisual e o roteiro. [acadêmico e formativo] GTs: Os GTs, conhecidos Grupos de Trabalho, compõem as atividades mais tradicionais dos congressos. Nos mesmos moldes tradicionais, é nos GTs que grupos de pesquisadores, com temas afins, apresentam o desenvolvimento de suas pesquisas e discutem ou questionam sobre os assuntos tratados. Neste espaço, de foro mais fechado (temático), é possível aos participantes compararem, compartilharem e, principalmente, se atualizarem a respeito das diversas abordagens e perspectivas da pesquisa na área de interesse. [acadêmico] Debates Livres: Considerando que, além das pesquisas, há estudiosos, críticos e interessados que refletem sobre o tema roteiro tão intensamente quanto os pesquisadores da área e, muitas vezes, com um conhecimento e/ou experiência vastas a respeito dos temas que lhes interessam, os debates livres foram criados para abrir espaço para discussão. Sem as formalidades acadêmicas, pensadores, intelectuais, apaixonados, etc., nós temos a oportunidade de tê-los no Seminário enriquecendo o espírito crítico. Esses artigos, no formato livre, são publicados neste livro, em sessão própria. [diletante, reflexivo, profissional, crítico, formativo] Workshop Vivências e Experiências: De caráter profissional, é um dos momentos chave do seminário. Estes workshops trazem roteiristas profissionais para abordarem assuntos atualíssimos e fazem com que os Seminários sejam, efetivamente "contados pelos roteiristas, suas histórias" Abaixo a programação. Para ver detalhes da programação, navegue pelas informações do site: https://sites.google.com/site/2015historiasroteiristas/ 13 ______________ Programação 2015 17 de setembro de 2015 QUINTA Credenciamento (a partir das 8h00) __________________________________ Manhã 09h00 às 13h00 Rodadas de Projetos Manhã 09h00 às 13h00 Painel de Pesquisadores e Grupos de Pesquisa: GERE [Núcleo de Estudos de Gênero, Raça e Etnia] ______________________________________ Tarde 14h00 às 15h15 Palestra Mitologia no Cinema Contemporâneo: Superman, Batman e Star Wars. Palestrante: Prof. Dr. Carlos Gonçalves [Belas Artes e PUC - SP); mediação: Fernando de Oliveria Moraes (Mackenzie, SP) Tarde 15h30 às 18h00 GTs Grupos de Trabalho Tarde 15h30 às 18h00 Debate [Artigos e Temas Livres ]: "Reflexões sobre audiovisual contemporâneo" _______________________________________ Noite 19h00 às 22h00 Workshop Vivências e Experiências: "Por dentro de um núcleo criativo", com roteiristas do NC-5 __________________________________ 18 de setembro de 2015 SEXTA Credenciamento (a partir das 8h00) ___________________________________ Manhã 09h00 às 13h00 Rodadas de Projetos Manhã 09h00 às 13h00 Painel de Pesquisadores e Grupos de Pesquisa: Artemidia Videoclip _____________________________________ Tarde 14h00 às 15h15 Palestra O processo de produção audiovisual e a experimentação contemporânea. Palestrante: ProfaDra.Cecília Salles (PUC-SP); mediação: Dra. Mariza Reis (Mackenzie, SP) Tarde 15h30 às 18h00 GTs Grupos de Trabalho 14 Tarde 15h30 às 18h00 Debate [Artigos e Temas Livres ]: "Meios e fronteiras da concepção audiovisual" ______________________________ Noite 19h00 às 22h00 Workshop Vivências e Experiências: "Criação de formatos: ficção e não ficção", com roteirista Patrícia Oriolo ______________ 15 SESSÃO 1 - ARTIGOS ACADÊMICOS Capítulo 1 - Papéis do Livro no Cinema Livro que anda fala na tela: Guataha Alai Garcia Diniz(UNIOESTE e UNILA, Brasil), [email protected] Resumo Um país pluriétnico como o Brasil que foi permitindo o corte de árvores nativas; a extinção de pássaros; ao longo dos séculos de colonização também foi perdendo línguas (mais de 700) ; gestos e práticas culturais heterogêneas. Somos analfabetos? A indagação permite sair do campo fechado do arquivo para o do repertório (Taylor, 2013). É quando reconhece que não foi com o livro que aconteceu na América Latina a democratização dos bens culturais, mas com a entrada do audiovisual (Jesus Martin Barbero) e o campo se amplia com os estudos interartes e a criação de roteiros nada mais é que um estopim para a execução de um projeto audiovisual. Com dois exemplos, um poema bilingue em comëntsa, lingua originaria da Colombia e espanhol do oralitor Hugo Jamioy Juagibiov e o documentário Guataha é suficiente para mostrar o que se entende por Poéticas Transterradas e como a descolonização do conhecimento pode funcionar. Palavras Chave: Interculturalidade; Poéticas Transterradas; Guataha Abstract A multiethnic country like Brazil which was allowed the cutting of native trees; extinction of birds; along centuries of colonization lost many languages (over 700); heterogeneous cultural gestures and practices. Are we illiterate? The question allows us to leave the closed encampment of the archive to that of the repertoire (Taylor, 2013). When it is recognized that it wasn't with the book the democratization of cultural assets occurred, but with the onset of moving pictures (Jesus Martin Barbero) and the field is amplified with interart studies and the creation of screenplays is nothing more that the spark for the exectuion of the audiovisual project. With two examples, a bilingual poem in Comëntsa, a language originated in Colombia and in Spanish of the oralitor Jamioy Juagibiov and the documentary Guataha is enough to show what is understood byTransterrada Poetics and how the decolonization of knowledge can occur. Preâmbulo 16 Comigo falam outras vozes, aprendi com o xamã Ava Guarani a sermos múltiplos e a escutar o silêncio. Um ser (de mim) que lhes fala se encontra nas terras baixas do hemisfério sul, meu lugar de enunciação, um espaço secundário, onde ainda há uma das menores taxas de distribuição de renda no mundo e lugar em que se desrespeitam direitos básicos de sobrevivência a parte da população e isso, portanto, me faz duvidar da ciência moderna; de uma única racionalidade universal, vinda da Europa (eurocêntrica): primeira diferença! Quem lhes fala também parte de outras distâncias que minha imagem implica. A de um sujeito feminino, e portanto, fora dos padrões políticos vigentes; o de uma avó (fora também por questões estéticas) e que, por sua vez, é bisneta do português que vira marinheiro só para atravessar o Atlântico e emigrar ao Brasil (fora, portanto, dos padrões da elite). De um lado lusitana, do outro catalão com cabocla de sangue indígena e outras prováveis miscigenações. De mente desassossegada que faz dos temas profissão. Caixeiro viajante, meu pai vendia peças e eu... palavras? Um corpo nômade, bilíngüe por profissão, semelhante à água de rio, migrante paulista, sem mente predatória dos bandeirantes, mas um corpo de deslocamento, diaspórico e hoje habitante de uma Foz, entre o Paraná e o Iguaçu na fronteira trinacional que não é a única. Javyri1 Máquina de ler o mundo? Cria mundos? Ou levanta suspeitas? A literatura é mais do que é, por isso implica complexidade, segundo Otmar Ette. A literatura como produto “torna presente o que é ausente, guiado pelo conhecimento e pela memória”. (Iser, 1996) ou é uma arte verbal, falada ou escrita. E no último século, a literatura passa a abranger também uma área interdisciplinar como a do audiovisual, pois há roteiros que se fazem parte do cinema, situam o texto no limiar entre o verbal, o sonoro e o visual, podendo ser apenas uma senda, vereda que se abandona no set de filmagem e se recupera (ou não) na montagem, ponto final da película e o ponto de partida de um caminho aberto ao mundo da imagem com som ou de silêncio que chega a milhares de espectadores. Tudo começou quando um morto virou vivo. Graças ao poder de uma fotografia do professor Paulo Pontes (UNIOESTE), um antropólogo paraguaio, que participava de um concurso, em Foz, reconheceu a imagem de um líder indígena que fora perseguido pelos latifundíarios em 1992 e que, no Paraguai, era considerado morto. Entretanto, Tupã Guilherme Ñevangaju Rojas, como muitos outros indígenas deslocara-se para a aldeia de parentes Ava Guarani em São Miguel do Iguaçu: Tekoha Ocoí, e vivinho da silva, era o xamã mais respeitado, também pudera, com seus de um século de existência. Em uma região como a da Tríplice Fronteira entre árabes, asiáticos, abrigam bem mais do que duas mil pessoas de diferentes etnias indígenas. Não dá para esquecer. Analfabetismo E então vem a questão, será que somos analfabetos? Em um país que foi castrando ao longo de séculos de colonização, mais de setecentas línguas e que exigia dos indígenas, não só o 1 Cumprimento em Ava Guarani à chegada. 17 abandono da língua nativa; das crenças e de modos de viver e fazer diferentes, ser analfabeto cultural é chegar ao século XXI aceitando continuar sendo monocultural, entre as quase duzentas línguas que sobreviveram ao jugo da colonialidade, muito mais dura do que o machado que ceifou as árvores nativas. Assim, aproveitando a experiência de ter elaborado uma oficina para professores de Educação Básica sobre a questão indígena, comecei perguntando se eram analfabetos. Ao ouvir a resposta negativa em uníssono, apresentei o poema abaixo: Ndás cuantsabobuatm chë ndosertaná ca Ndoñ mondoben jualiamëng LibrëEangá o betiyëng Canÿeng y inÿeng BatEá y bëtscá mondëtatEëmb Bëneten AtEbe bëtstaitá tmojuantEabuaché Canÿe librëEá Tmonjauyan tonday condëtatEëmbo ca Ibetn Shinÿoc jotbeman Chabe cucuatEiñ Coca tsbuanach jtsebuertanayan UayaEac jtsichamuan Ndayá chiñ bnetsabinÿnan Como ninguém entendia nada, nem os caracteres, nem ao menos podia localizar o idioma, deduzi com eles que, em determinadas circunstâncias, todos nós éramos analfabetos. Tratavase da língua cömentza, língua nativa da Colômbia, falada por cerca de quatro a cinco mil pessoas. Ser ou não analfabeto, depende do contexto em que se nasce; das políticas lingüísticas que privilegiam uma língua em detrimento de outras, ou de que as universidades de Letras, em geral, não têm sequer uma língua indígena em seu currículo. É a partir de uma epistemologia da educação que se excluem populações inteiras de uma determinada região. Algo que na Bolívia vem se implementando, justamente, o percurso inverso. O Estado boliviano começa a ensinar em cada região a segunda língua indígena mais falada a todas as crianças do ensino básico. Essa é um modo de incluir e equiparar o que elas trazem de casa. No Brasil, as universidades públicas (salvo raríssimas exceções) não ensinam nem ao menos uma língua indígena aos estudantes. Ao conhecerem uma língua diferente, estão de posse de uma riqueza humana típica daquele local. Guardar esse patrimônio da humanidade é uma questão ecológica e a língua não apenas é preservada como pode ser ensinada a quem não a aprendeu em casa. Por que transformar as crianças indígenas em seres defasados, ao chegarem à escola se, de fato, o que eles possuem é uma riqueza ecológica: são bilingües? Analfabetas 18 Ndás cuantsabobuatm chë ndosertaná ca A quién llaman analfabetas Ndoñ mondoben jualiamëng a los que no saben leer LibrëEangá o betiyëng los libros o la naturaleza; Canÿeng y inÿeng unos y otros BatEá y bëtscá mondëtatEëmb algo y mucho saben. Bëneten Durante el día AtEbe bëtstaitá tmojuantEabuaché a mi abuelo Canÿe librë Eá le entregaron un libro Tmonjauyan tonday le dijeron que no sabía nada; condëtatEëmbo ca Ibetn por las noches Shinÿoc jotbeman se sentaba junto al fogón Chabe cucuat Eiñ Coca en sus manos tsbuanach jtsebuertanayan giraba una hoja de coca UayaEac jtsichamuan y sus labios iban diciendo Ndayá chiñ bnetsabinÿnan lo que en ella miraba*. Vocês hão de concordar que a construção do conhecimento humano depende do contexto e das circunstâncias em que vivemos. Atualmente nos defrontamos com a globalização e as tecnologias de comunicação e essa conexão entre sistema econômico e eletrônico trouxe um desdobramento: a convivência e simultaneidade de mundos culturais com suas diferenças que por estarem incluídas no cotidiano das pessoas de classes sociais e de diferentes etnias reclamam atenção. Isto que parece uma obviedade, mas exige hoje uma reflexão e neste âmbito que a discussão sobre a interculturalidade começa a surgir. Interculturalidade Se os intercâmbios entre povos, culturalmente diversos, sempre foi importante, fossem eles viajantes, pesquisadores da Natureza (matérias primas), antropólogos ( tanto quem pretendia assimilar os sujeitos de outras culturas...como aqueles que não aceitaram essa missão); os comerciantes que desejavam enriquecer... No século XXI adquire outro viés, nome do pluralismo cultural e em diferentes contextos e por agentes diversos, muitas vezes para garantir a hegemonia de uma cultura sobre outras e também a manutenção da assimetria entre os povos. O destaque para a necessidade de uma ordem social e a visão uniforme da globalização tecnológica e da racionalidade universal impedem a abertura a outros modos de 19 ver/ler o mundo, de pensar e de se relacionar com outros seres, sejam eles animais, vegetais, minerais ou cosmológicos. O conceito de interculturalidade não se confunde com o de multiculturalismo. Muitas vezes surge em nome da globalização e para apagar as culturas em confronto. A partir da fronteira entre culturas locais move-se a ética e as relações de poder. Um grande tema em correlação intrínseca com a interculturalidade. Do meu ponto de vista, é possível pensar sobre a interculturalidade, a partir dos rios que passam pela minha aldeia como pelo lago da represa de Itaipu que criou espectros arbóreos ou lama na aldeia Ava Guarani de Santa Rosa do Ocoí em São Miguel do Iguaçu. Substituir a assimetria por formas de cooperação, a fim de discernir e superar o universo monocultural. Como diz Catherine Walsh, a interculturalidade crítica não existe, precisa ser construída a partir da escuta, tradução e negociação entre os sujeitos. Antes de definir o conceito de interculturalidade, vale a pena explicitar que esta não é a única globalização que se conhece. Walter Mignolo aponta pelo menos três. A primeira com as navegações que, uniu a caravela, a pólvora e a cruz. No século XVI foi o foco religioso que estabeleceu a hegemonia do cristianismo por sobre outras crenças no Ocidente. A segunda globalização ocorrida entre os séculos XVIII e XIX teve como foco a razão cartesiana (Penso, logo existo) que do embate com a religião impõe uma universidade laica, a racionalidade e a ciência moderna. Os modelos de racionalidade afirmaram o positivismo que se expandem pelas colônias ultramarinas. Com as independências latino-americanas e os ideais da Revolução francesa alcançam o hemisfério sul. Os conflitos ideológicos (Revoluções) e bélicos ( primeira e segunda guerras mundiais) contribuem para a descrença em um único centro: a Europa. Então no século XXI estaríamos vivendo uma terceira globalização: a do capital global que impõe a informática como configuração intrínseca da vida humana. E pensando na América Latina esse movimento global faz ressurgir o local. Sob a emergência de identidades étnicas, antes silenciadas pela unidade; a construção dos Estados Nação, hoje surgem com destaque as culturas indígenas, quilombolas ou deslocadas por imigrantes árabes, japoneses, chineses, coreanos; americanos ou latino-americanos deslocados de seus países de origem que partem em busca de melhores condições de vida e trabalho. São os boricuas nos EUA; os bolivianos em São Paulo, os guarangos (sinônimo de rude, grosseiro) e que, em determinado momento, se confundiu com imigrantes paraguaios em Buenos Aires, segundo registro literário do então também exilado, Augusto Roa Bastos na obra El trueno entre las hojas (1953). Washington Cucurto, escritor argentino afro-descendente mostra a interculturalidade urbana portenha com um texto literário carregado dessa temática dos imigrantes que vieram em busca de trabalho da República Dominicana, da Bolivia, do Paraguai, agora no início do século XXI e por isso apresenta-se de modo lúdico, provocador e paródico em sua linguagem discursiva. Refiro-me a Cosa de negros; Máquina de hacer paraguayitos e outros. Tal crítica que trabalha com o cânone e destaca na literatura o que há de arquivo, de uma escritura publicada em formato de objeto culturalmente determinado como universal/ocidental. A literatura contemporânea, pós-autônoma traz estas referências incrustadas na realidade. Entretanto, há outras formas de se verificar como a interculturalidade constitui um elemento cultural atual que subsiste em outras práticas culturais (não ocidentais). 20 O cinema permite algum manuseio, pelo menos temporário da relação complexa com o outro setor das práticas culturais, avessos ainda à eternidade do guardado: o de repertório. que são as artes do fazer (De Certeau, 1996) que tem por sede o corpo. Comentar esta trajetória nova pra alguém das letras, aos sessenta e quatro anos de idade, permite aproveitar o arsenal das comunicações que pela voz de Jesus Martín Barbero (2001) reconhece que não foi com o livro que a América Latina democratizou os bens culturais, mas com a entrada do audiovisual e este campo se amplia quando de uma disciplina como a da literatura se permite avançar para a interdisciplinaridade, com os estudos interartes, ou da intermidialidade. A criação de roteiros nada mais é que um estopim para a execução de um projeto audiovisual. As letras já não precisam ter a primazia da torre de Babel. Qualquer abordagem para fixar a memória do que se pensa extinguir com o tempo, é um avanço, embora saibamos que é a resistência veiculada pela voz de sujeitos como estes que ainda guardam ayvu (a palavra) e que contestam e lutam pela resistência de uma cultura à onda modernizadora que deseja homogeneizar e tornar igual para assimilar o sujeito e acabar com ainda permanece de rico que é a diferença. Agora a arte verbal conquista um espaço e se torna um colaborador na visão de equipe que o cinema oferece. E não é para atingir as massas, mas para construir a relação com um leitor do século XXI que faz das imagens texto e com o texto assegura o entrelaçamento das artes e das comunicações. Se bem que para isso será preciso descolonizar a mente e não estabelecer hierarquias, mas aceitar o trabalho com a intenção de ser apenas um sujeito a mais para emprestar um jeito de olhar, uma colaboração para tratar um campo do real e do simbólico que se apresenta apenas como fragmento. Genealogia do documentário Guataha – o desvio E de onde saiu o argumento? Da história de vida de um sujeito deslocado como milhares de outros e que foi obrigado a passear (guataha) e perambulou pela fronteira. De uma nesga de história desse sujeito concreto, que estaria desaparecido nos anos 90 no Paraguai (acreditavase que pudesse estar morto pois havia sofrido ameaças dos latifundiários para quem o conheceu no Paraguai como líder Ava Guarani). Guillerme Tupã Ñevangaju Rocha seguia vivo e havia se tornado xamã no Tekoha Ocoí, em São Miguel do Iguaçu e segundo os parentes teria 119 anos de idade. É uma fatia dessa longevidade que se fez um roteiro a que já em contato e colaboração com a diretora e produtora do filme, Clarissa Knoll, foi chamado de Guataha e se transformou em documentário sobre as veredas da arte verbal e corporal dos Ava Guarani do Tekoha Ocoí. Apenas uma ponta que uma equipe interdisciplinar pode oferecer para tratar de um tipo de poética transterrada, além da terra, nesse movimento de deslocamento que se constitui e, portanto, sai do ritmo costumeiro que domina outras culturas. A história da literatura agrupa textos cronologicamente e segundo as premissas e interesses próprios dos historiógrafos. Como descolonizar a mente? Em minha pesquisa a decisão foi a de romper as fronteiras entre artes e comunicações para buscar produtos diversificados. Escritores tornam-se roteiristas e roteiristas escrevem obras literárias. E quando um dos rios que passam pela minha aldeia vira lago da hidroelétrica; os corpos migram; as culturas se deslocam daqui pra lá e a aldeia de Jacutinga submergida na represa vira outra aldeia: Tekoha Ocoí. Quem vai, quem fica? Os animais mesmo quadrúpedes 21 no desespero subiram em árvores e alguns foram salvos. E pensar nessa história recente dos deslocamentos interfronteiriços pode também propiciar um campo abrangente de pesquisa que envolve reflexões sobre práticas culturais que passam pelas corporalidades. As poéticas ameríndias armazenam no corpo “livros” (memorias) dos relatos ancestrais e no caso do canto e do ritual, a leitura passa por escancarar as portas da pesquisa e da imaginação. Com procedimentos não ortodoxos, (indisciplinados) o que combina com o que diz Walter Benjamin de que o método é o desvio. Reconquistar para o pensamento os territórios do indeterminado e do intermediário, da suspensão e da hesitação. Assim como a literatura, diz Gagnebin ao ler Benjamin: “a infância é grávida de futuro de uma temporalidade da espera e da paciência - entre limiares” (Gagnebin,2010,p.18) . Na infância o presente é cheio de imprevisibilidade, de intensidade, da descoberta. Nas Passagens há uma ciência dos limiares de múltiplas variações. A pobreza dos rituais de passagem nos leva a comprimir-nos afetiva e sensorialmente. O conceito de interculturalidade crítica de Catherine Walsh baseia-se na ideia de um sujeito que aprende a ouvir, por isso a interculturalidade não existe, mas se revela como processo que é preciso viver na relação com o outro. E o dinamismo é tentar escutar àqueles que estão resistindo à cultura hegemônica. Assim o próprio documentário tenta propor uma poética com um ritmo que não é o dominante para dar conta dos silêncios que não conseguimos captar. E o passeio (Guataha) também é nosso, dos juruas>os não indígenas (alienígenas) ao tentarmos traduzir em relatos os mitos, a partir de do que ouvimos. E por isso está implícita a possibilidade do equívoco. Tekoha Ocoí abriga hoje os Ava Guarani em uma faixa minúscula de terra (200 hectares) entre o lago e o agronegócio. Os mais de setecentos indígenas que ali moram, até a década de 70, viviam em Jacutinga espaço de mais de 1500 hectares. A aldeia simbólica que desapareceu com a modernização, a represa de Itaipu. Entre fatos históricos como a submersão de Jacutinga e a fixação no Ocoí, ouvem-se o mito da destruição pelo xamã Ava Guarani e se encena o mito da criação do mundo. São seqüências paralelas que ora se fundem, ora se separam no tramado fílmico e a voz xamânica se transforma em “livro vivo” que narra a novas gerações as oralidades do mundo Ava Guarani. Livro que anda Ñevangaju representa um líder que andou... Atravessou fronteiras, países, exatamente por saber que era tudo terra deles. Algo que Casemiro, um dos personagens de Tekoha Ocoí, que atuou no documentário afirmou espontaneamente que foi a Guerra ( contra o Paraguai) que criou e definiu as fronteiras: a tríplice, mas, acrescenta ele: “ para nós não tem fronteira, é tudo a mesma coisa, a América do Sul”. (Guataha, 2014.) Ñevangaju no Paraguai foi cacique, líder político e passou ao campo espiritual em uma trajetória que o seu povo reconhece a partir dos deslocamentos sofridos. A dança é o que se concebe como o modo de seguir resistindo à ameaça do fim que viria em um dilúvio. Ñevangaju narra o mito como há mais de um século foi traduzido por Curt Nimuendaju Unkel, no livro publicado em 1914, em alemão e guarani. No documentário o mito traduz o dilúvio 22 com o toque da modernidade dado que a inundação veio com a represa e a demanda globalizada das grandes plantações de soja. Apesar de inicialmente o roteiro constar de uma viagem do xamã a suas velhas paragens de Acaraymi, no Paraguai, devido à doença que lhe acometeu em janeiro foi impossível que ele viajasse em fevereiro de 2014. Assim, o roteiro realizado com a diretora Clarissa Knoll se transforma e adota a viagem do imaginário: a do mito de criação representada pela atuação da neta do xamã, Delia que estava grávida na época. Reproduz-se o diálogo da mãe com os gêmeos que em uma comunicação intra-uterina conduzem a mãe na busca do paradeiro de Ñanderu. Um roteiro se produz quando se sai do âmbito restrito da escrita (mesmo sem deixá-lo), para alavancar as práticas de oralidade, uma vez que a assimetria existente entre as culturas, além de esquecerem as demais línguas originarias, reúnem condições para alimentar-se de um campo como o da performance, o de uma arte efêmera que abriga a presença e o encontro intercultural, mas pode também atender ao desejo “juruá” de um método e de uma epistemologia. Com a performance, fundar um campo inovador que possa sincronizar o aquie-agora, fecundando o encontro e a recepção a partir de permanente diálogo com diferentes grupos de falantes, a fim de testar os usos da oralidade em guarani; a absorção de outras pautas semânticas relativas ao pensamento dessa cultura em permanente resistência histórica. E como? Assistir ao rito, conhecer a história dos cantos e sua genealogia, que no caso dos Avá Guarani, tem no relato de Nimuendaju – Lendas da Criação... datada de 1914, uma etnografia clássica e que, só em 1987 foi traduzida ao português pela Brasiliense e aqui cabe a narraçao de uma experiência relatada no livro de Kurt Nimuendaju Unkel, o alemão que virou “brasileiro” por ter sido adotado pelos Apapokuva. A pesquisa pressupôs uma abordagem interdisciplinar (“antropología é traducción”- Viveiros de Castro) e observava os detalhes do rito: o uso da voz, o aparato fonador, cordas que vocalizam ( sem palavras) uma melodia, bem como ler o ritual a partir do espaço (opy) com seus acessórios visíveis como o petengua (cachimbo) com as ervas; os colares); o cocar em um corpo e o coro coletivo que responde na performance. Ao ouvir o canto e o jogo intergeracional dos Ava Guarani do Ocoí tem-se a percepção de que se aprende com eles uma corrente perdida e quem sabe, pensar não só um dia por ano, mas na cotidianidade de uma ação intercultural que investigaria sobre o âmbito da tekoha para a saúde integral de qualquer ser humano que aceite a atitude coletiva que marca o pensamento guarani. Jeanne Marie Gagnebin relembra em seu artigo “Entre a vida e a morte” uma passagem de Walter Benjamin sobre os ritos de passagem que na vida moderna vão ficando irreconhecíveis e cada vez mais difíceis de vivenciar. “ Tornamo-nos muito pobres em experiências liminares. ...Nao é apenas dos limiares destas portas fantásticas ...O limiar é uma zona. Mudança, transição, fluxo...o contexto tectônico e cerimonial imediato que deu a palavra seu significado. Morada do sonho!” (Apud Gagnebin, 2010:12) Walter Benjamin foi um dos filósofos que há quase um século alertou sobre um dos problemas da modernidade que é o da pobreza da experiência, a pobreza dos ritos de passagem. 23 O “xamã” humano, assim, não é um tipo sacerdotal — uma espécie ou função —, mas alguém mais semelhante ao filósofo socrático — uma capacidade ou funcionamento. Pois se, como sustentava Sócrates, todo indivíduo capaz de raciocinar é filósofo, amigo potencial do conceito, então todo indivíduo capaz de sonhar é xamã, “amigo da imagem”.(6) A indagação do livro que anda e fala na tela permite sair do campo fechado do arquivo para o de repertório. Único meio provisório de guardar ainda a imagem do xamã Ava Guarani que partiu treze meses após a filmagem. É este o viés dessa história de roteirista a que me permite aprender durante o projeto de GUATAHA (2014). Como ser múltiplo, o xamã é o mediador entre o cosmos, os animais, outros seres e o mundo dos mortos e dos deuses. O xamã Guilherme Tupã Ñevangaju Rocha que, de morto virou vivo durante o deslocamento indígena, hoje para o pensamento tradicional desapareceu no dia 24 de março de 2015, tem acesso a esses outros patamares da vida, desconhecida para o comum dos mortais, um ser múltiplo carrega consigo o pensamento dos Ava Guarani: um Livro que Anda; um livro que, de morto segue vivo e agora continua falando também nas telas, com Guataha (2015). Referências JIMENEZ, A. – Orejada. Caracas: Casa Nacional de las Letras Andrés Bello, 2011. GAGNEBIN, Jean Marie – “Entre a vida e a morte” em Limiares e passagens em Walter Benjamin/ Georg Ette, Sabrina Sedlmayer, Elcio Cornelsen (organizadores). Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010, p. 12-26. MARTIN BARBERO, Jesus – Dos meios às mediações.Comunicação, Cultura e hegemonia. Trad. Ronaldo Polito e Sergio Alcides. RJ: UFRJ, 2001. NIMUENDAJU UNKEL, Curt – A lenda da criação e destruição do mundo como fundamentos da religião dos Apapocúva-Guarani.Trad. Charlotte Emmerich& E. Viveiros de Castro. São Paulo: Hucitec, Edusp, 1987. ROA BASTOS, A. (4ª. Ed) - Yo el supremo. Buenos Aires: Sudamericana, 1997. 24 Cinema e educação: a profissão docente no filme "Entre os muros da escola” Diva Cleide Calles, FE-USP e Faculdade Sumaré, [email protected] Resumo: Examinando a obra cinematográfica Entre os muros da escola, este artigo analisa como o roteiro elaborado a quatro mãos por Laurent Cantet e por François Bégadeau, autor da obra literária homônima e autorreferenciada, põe em marcha um processo experimental de atuação e de produção fílmica, que desafia a fronteira entre ficção e documentário, podendo eventualmente ser considerada “ficção documentada”, dando conta autenticamente da atividade performática da docência, na qual cabe ao professor lidar física e emocionalmente com conflitos, frustrações, êxitos e alegrias inerentes à atuação profissional, bem como enfrentar exclusão e conflitos sociais e étnicos dos discentes. Palavras-chave: cinema; roteiro cinematográfico; profissão docente; conflitos sociais e étnicos Abstract: Examining the cinematographic work Between the walls, this article analyzes how a fourhanded script by Laurent Cantet and François Bégadeau, author of the self-referential novel by the same name, sets in motion an experimental performance and filmic production process, which challenges the boundary between fiction and documentary, and may possibly be considered “documented fiction”, authentically accomplishing the performative activity of teaching, in which the teacher should physically and emotionally handle the inherent conflicts, frustrations, successes, joys and challenges of the professional practice, as well as facing students social exclusion and ethnic conflicts. Keywords: cinema; movie script; teaching profession; social and ethnical conflicts Nesse artigo, são examinadas questões relativas ao processo de laboração do roteiro e do filme Entre os muros da escola (Entre les murs)2, de autoria de François Bégadeau e de Laurent Cantet, também diretor da película. O referido filme se baseia no livro homônimo de François Bégadeau, uma das obras autorreferenciadas analisadas na minha tese de doutorado (CALLES, 2012)3. 2 Ficha técnica Título original: Entre les murs Título no Brasil: Entre os muros da escola País de origem: França Gênero: drama Duração: 128 minutos Ano de lançamento (França): 2007 Direção: Laurent Cantet Roteiro: Laurent Cantet, François Bégaudeau e Robin Campillo, baseado em livro de François Bégaudeau Produção: Caroline Benjo, Carole Scotta, Barbara Letellier e Simon Arnal Fotografia: Pierre Milon, Catherine Pujol e Georgi Lazarevski Site oficial: http://www.entrelesmurs.ca/ Site oficial: www.sonyclassics.com/theclass Distribuição: Sony Pictures Classics/ Imovision 3 Nesta tese, defendida em 2012 na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, são examinadas obras literárias e cinematográficas que lidam com a figura do professor nas diversas identidades que ele possa assumir e representar em diferentes 25 Escritas e protagonizadas por professores, tais obras literárias autorreferenciadas – ego documentos ou escritos sobre si – são consideradas como texto cultural, portadoras de sentidos e representações culturais e sociais sobre o ser professor e o exercício da docência no universo escolar (ALBERTI, 1991). Representam situações escolares e trazem à tona olhares sobre a educação, bem como sobre os educadores, suas angústias e conflitos profissionais e pessoais, ideais, expectativas, o papel que deles se espera na sociedade, o papel que efetivamente realizam, e podem realizar, bem como os discursos socialmente circulantes sobre questões envolvendo a complexa condição do ser professor. Examinar uma obra cinematográfica baseada num livro deve pressupor alguns elementos fundamentais para não se correr o risco de incidir num cotejo improdutivo e dicotômico. Ainda que se valendo de recursos, regras e convenções peculiares, tanto a linguagem do cinema, quanto a da literatura guardam proximidade pelo uso da palavra e por sua natureza narratológica. Por sua vez, o cinema estabelece relações com a literatura, que tem fornecido um universo de temas e de estruturas narrativas à cinematografia. Outro aspecto a ser ressaltado é que a linguagem fílmica, servindo-se de diversos recursos, carrega indícios de realidade possibilitadores da reconstrução desta na percepção ativa e responsiva do espectador, com o qual estabelece um convencimento mais efetivo resultante do movimento presente no filme. Para além de se configurar como entretenimento, diversão, deleite, prestase o cinema como manifestação social, artística, cultural e comportamental, cuja emergência é possibilitada sob determinadas condições de produção e em determinados contextos sociohistóricos. Constitui-se, dessa forma, o cinema como fonte documental histórica, como registro de uma época em seus aspectos mais significativos, dando lugar como alvo de pesquisa a outras fontes e a outros caminhos e discursos (METZ, 2010, p.19). Assim como outros filmes, Entre os muros da escola pode se enquadrar, de acordo com Mary Dalton, no gênero teacher movies (“filmes sobre professores”), obras que permitem verificar a complexidade dos processos e mecanismos sociais nos quais se insere a representação do profissional docente (DALTON, 2007). Em geral, a filmografia sobre escola, educação e profissão docente comporta conceitos, valores, expectativas, comportamentos e representações, pertencentes ao imaginário social, tanto quanto à perspectiva que o público em geral nutre sobre a escola, correspondentes ao imaginário social, resultando, não raro, em profusão de clichês, soluções simplistas às questões abordadas, além de expedientes questionáveis para as complexas questões educacionais. Entre os muros da escola, no entanto, foge sobremaneira a esse padrão pela abordagem distinta da estrutura comumente adotada e formato diferente do predeterminado, ou seja, aquele em que, numa turma problemática, violenta, um professor rigoroso, heroico, está disposto a “fazer a diferença” e mudar o futuro daqueles jovens, e, de certa forma e em certa medida, consegue realizar tal feito, como em obras cinematográficas lançadas em diferentes épocas: To Sir, with love (Ao Mestre com carinho – 1967), Dangerous minds (Mentes perigosas – 1995), Freedom writers’ diary (Escritores da liberdade – 2007), para mencionar apenas alguns (BAUER, 1998). instituições escolares: Blackboard jungle, de Evan Hunter; Sale Prof!, de Nicolas Revol; Entre les murs, de François Bégadeau; Teacher man, de Frank McCourt; e os filmes: Entre les murs (Entre os muros da escola); e Blackboard jungle (Sementes da violência). 26 Pode-se supor que muito das especificidades de Entre os muros da escola se deva ao ecletismo do autor da obra literária, corroteirista e ator na obra cinematográfica em análise. Nascido em Luçon, Vendée, França, em 2.3.1971, François Marie Bégaudeau é filho de professores, formou-se em Artes Modernas da Universidade de Nantes. Polivalente, exerceu diferentes atividades: jogador de futebol, cantor e compositor de rock, roteirista e ator, escritor de ficção, drama e poesia, colunista, crítico literário e cinematográfico, Bégaudeau foi professor de Francês por sete anos em um uma escola pública (lycée) em Dreux, e, em seguida, em uma escola no 19eme arrondissement. Tal experiência serviu de base a Entre les murs (Entre os muros da escola – 2007)4. Bégadeau participou também da elaboração do roteiro cinematográfico de Entre os muros na escola. Com grande liberdade no roteiro e orçamento restrito, a produção do filme, pelo qual o diretor Laurent Cantet recebeu, em 2008, a Palma de Ouro da 61ª edição Festival de Cinema de Cannes, desafiou a fronteira entre ficção e documentário, podendo, de acordo com o próprio diretor e corroteirista, eventualmente ser considerada “ficção documentada”5. Como uma espécie de “diário de bordo”, a narrativa literária, cuja sequência de episódios e personagens não corresponde exatamente aos do filme, trata do cotidiano, numa escola pública do subúrbio parisiense, de uma turma que corresponderia a uma sétima série em nosso sistema escolar. Na obra literária, narrada em primeira pessoa, o autor reconstitui ficcionalmente um ano letivo, computado em 33 semanas de aula, e 136 dias úteis, e esmiúça as múltiplas inter-relações entre o ambiente da escola e os que ali convivem, alunos, professores, pais de alunos e supervisores. A ação ocorre, sobretudo, na sala de aula, mas há cenas na sala dos professores, além dos corredores e do pátio da escola. Em Entre os muros da escola, a narrativa literária contempla mais detalhadamente as sutilezas pretendidas pelo autor, pois cobre uma variedade maior de eventos, além de permitir ao leitor a afluência ao que pensa e sente o narrador. A sequência de episódios do livro difere das cenas da versão fílmica. A ação ocorre, sobretudo, na sala de aula, mas há cenas na sala dos professores, além dos corredores e do pátio da escola. Na versão cinematográfica, incluem-se cenas em outras salas: do diretor, do conselho de classe e do conselho de disciplina. Uma única tomada fora da escola mostra o professor François Marin chegando para o primeiro dia de aula. Os personagens da obra literária não correspondem exatamente aos do filme, e mesmo os nomes são diferentes. Nem todos os personagens faziam parte do roteiro, alguns já estavam preestabelecidos, alguns foram adaptados em função da personalidade de cada um dos atores, outros nasceram dos personagens reais que passaram a ser “encarnados” também 4 François Bégadeau apresenta uma considerável produção literária, além de ensaios, colaboração e organização de obras, seus romances se caracterizam por refletirem elementos autobiográficos, e até preferências musicais, transmutados em ficção, tais como: Jouer juste (“Jogar justo” – 2003); Un démocrate, Mick Jagger 1960-1969 (“Um democrata, Mick Jagger 1960-1969” – 2005); Dans la diagonale (“Na diagonal” – 2006); Fin de l’histoire (“Fim da história” – 2007); Vers la douceur (“Rumo à doçura” – 2009). Além de ensaios, colaborações em obras e organização de obras. 5 Da filmografia de Cantet fazem parte as seguintes obras: Tous à La Manif (1994) e Jeux de Plage (1995) (curtas); Les Sanguinaires (Os sanguinários – 1997); Ressources humaines (Recursos humanos – 1999); L’emploi du temps (O emprego do tempo – 2001); Vers le Sud (Em direção ao Sul – 2005); Entre les murs (Entre os muros da escola – 2008); 7 días en La Habana (Sete dias em Havana – 2012) e Retour à I’thaque (Retorno a Ítaca – 2014). 27 ficcionalmente e alguns foram integrados ao roteiro, como: Wei, o aluno chinês; Esmeralda e Suleyname. Outra particularidade da obra fílmica em análise está em que os papéis são desempenhados por atores não profissionais, funcionários, professores, alunos e seus familiares e mesmo François Bégadeau, assumindo o seu próprio papel de professor, no personagem François Marin. Para tanto, no ano letivo de 2006-2007, cerca de quarenta adolescentes de uma turma equivalente à nossa 7ª série foram selecionados a participar de ateliês ou oficinas de improvisação. Durante 5 semanas, às quartas-feiras à tarde (quando não há atividades discentes nas escolas francesas), as filmagens ocorreram na escola pública Françoise Dolto. Integrada a uma Zona de Educação Prioritária (ZEP), a escola Françoise Dolto, fica na Rue des Pyrenees, no 20ème Arrondissement, um dos bairros periféricos segregados, regiões que formam a área central de Paris, nomeados de acordo com seu número. Os subúrbios são chamados o banlieueus, área fora de Paris, que abrigam centenas de milhares de indivíduos de descendência norte-africana (na maior parte, argelinos e marroquinos)6. A atuação dos jovens alunos-atores se mostrou altamente convincente, conseguindo eles até mesmo o feito de passar a impressão de desempenharem seus papéis ignorando a câmera que os filmava. De acordo com Laurent Cantet, capazes de se concentrar e de se esforçar efetivamente, parece terem encontrado sentido no que faziam. De fato, verifica-se que os jovens atores dão conta de diversos arquétipos escolares: o durão, o palhaço, o vagabundo, o engraçadinho, o respondão, o líder. Laurent Cantet acredita que tal naturalidade advém sobretudo do fato de que ser aluno já é representar, no papel que lhes é atribuído ou no que escolheram e pelo qual cada um se coloca em cena. Para esse processo de configuração de ficção documentada, dos professores, que já haviam lido o roteiro, buscaram-se obter propostas, pontos de vista e questionamentos para eventualmente incorporar novos elementos ao roteiro e à direção do filme. A equipe se familiarizava, aos poucos, com o projeto, improvisava, testava situações, recuperava falas reais e trechos de diálogos para inserir no roteiro, e aprofundava os personagens que surgiam. Daí a reelaboração do roteiro original, uma síntese de improviso e de roteiro escrito. Foram utilizadas três câmeras digitais para filmar e iluminar os rostos, conferindo efeito de maior autenticidade à produção. A primeira câmera focalizando François Marin, que organiza e distribui as interações; a segunda, o aluno a quem Marin dirige a palavra; a terceira, tenta captar, da melhor maneira, as reações de cada um, pois logo se percebeu que não há apenas uma interlocução. Quando o professor se dirige a um aluno, outros também se manifestam ao mesmo tempo, podendo as conversas surgir de qualquer lado da sala, cruzarem-se e 6 28 sobreporem-se com a vivacidade e o ruído característicos do ambiente escolar. A lente do diretor Laurent Cantet se comporta como olhar documental, algumas vezes vindo de uma carteira na fileira anterior àquela onde acontece uma discussão entre alunos, outras partindo do corredor dois andares acima do pátio onde os garotos jogam bola no recreio. O efeito obtido é o de apagamento da intervenção ficcional por meio de cenas passando a impressão de captura de situações que poderiam ocorrer, ou ocorrem, sem a câmera, em aparente ausência do artista, o que também é uma construção. No cenário limitado da sala de aula, uma encenação cuidada e um acumular de emoções nos conduzem ao clímax. O espectador é posto em contato próximo com os alunos, suas personalidades, vozes e posturas, sem que nada de suas vidas fora do ambiente escolar nos seja descerrado, mas sem tampouco os desvincular do seu meio social, o qual se faz presente na linguagem e nas atitudes. A sala de aula condensa uma tensão generalizada entre os alunos, os quais, pelo compartilhamento das mesmas condições na sociedade francesa, podem ser encarados como grupo homogêneo, introjetados nos limites concretos de uma escola. Embora num mesmo contexto social de filhos de imigrantes, ou imigrantes eles mesmos, por conta de diferenças de origem, em dados momentos de confronto verbal, eles reproduzem a retórica colonialista, estabelecendo diferenciações nacionais e culturais. Por vezes, em recusa veemente a qualquer autoridade, o confronto com o professor os leva a uma união circunstancial. Na sala de aula, constata-se o embate de forças internas da classe e dos alunos com a instituição escolar, reiteradas por sequências em que os professores reclamam da perda de autoridade ou reagem a essa perda com autoritarismo. Desse universo, configura-se a complexa inter-relação professor-aluno, tendente muito mais à persuasão, à atividade política ou social, não à coerção. Daí emerge o profissional docente que deseja ser aceito, acatado, respeitado, temido ou apenas suportado, o qual, por esforços constantes, tenta exercer a autoridade moral visando obter a participação efetiva dos discentes. Na verdade, esse professor tenta estabelecer um pacto de interação que lhe permita gerir conflitos, negociar, interagir com os alunos de forma firme, eficaz e cordial, gerir a diversidade, a heterogeneidade social, étnica, cultural dos discentes, algo que não se constrói num momento e assim permanece, uma inquietação constante, de todos os envolvidos no universo escolar, algo que Entre os muros na escola consegue eficazmente manifestar. O filme também lida com a tênue fronteira entre autoridade e autoritarismo, revelando um professor que busca não a autoridade imposta, mas a construída e negociada, ainda que François Marin acabe por aplicar aos alunos sanções questionáveis e nas quais ele mesmo não acredita, ou sobre as quais ele questiona. Professor desajeitado, que comete muitos erros e representa um ser humano falível com suas fraquezas, Marin dá conta de que, talvez mais que outros profissionais, o professor está constantemente sujeito ao erro, pela natureza de seu ofício em constante reelaboração. Trata-se de um profissional diante do enfrentamento do fracasso escolar (nem todos apresentam condições de aprender); dos próprios limites de atuação (não ser eficaz em todas as situações); e das desigualdades sociais e violência, que demandam novas inter-relações no ambiente escolar. 29 Em pleno processo de adaptação ao fenômeno da democratização – ou demografização – do ensino e dos alunos atendidos pela escola, e de adaptação a novas demandas individuais e sociais, este o professor pretende obter adesão a suas proposições, maior interesse pelos conteúdos da disciplina ministrada, tanto quanto a manutenção de uma atmosfera favorável ao aprendizado. Supõe-se que este professor consiga dar voz aos alunos diante da rebeldia destes, ao mesmo tempo em que possa seguir normas e convenções, e exercer controle sobre os alunos. Dentre os desafios inerentes à docência manifestos no filme, está um trabalho emocional, exercido com, sobre e para seres humanos, e que demanda empatia e engajamento afetivo, uma tentativa incessante de superar e contornar adversidades e crises, e encontrar meios de crescer, amadurecer e realizar-se na profissão. Cabe ainda ao professor superar contradições próprias de um sistema educacional dito includente, mas fundamentado numa estrutura não propícia a isso, como conteúdos curriculares inadequados a alunos pertencentes camadas populares, para os quais a escolaridade e a aquisição de saberes é uma aventura singular. Esse professor se constitui ainda com relação às expectativas de famílias de camadas populares, muitas vezes pouco ou nada escolarizadas, ou de imigrantes, ou de outras etnias e culturas, que detêm concepções sobre escola, saberes escolares e ensino ainda não naturalizadas (DUBET, 2003; CHARLOT, 1996 e 2002). Vinculada a esses aspectos, está a representação do bom professor que tem amor à docência, algo, muitas vezes, mais discursiva que efetivamente incorporado à prática profissional pelos próprios professores, que, direta ou indiretamente, tentam se constituir dessa maneira idealizada e discursiva e socialmente construída. Pela linguagem cinematográfica, através de recursos artificiais, tem-se a representação da realidade por meio da imagem, que confere, desse modo, a impressão de pura narrativa, pura história, destituída de indícios a atingir determinados fins, num pretenso “ocultamento” de voz, autoria ou perspectiva. De fato, não há isenção; ao contrário, manifesta-se um campo de luta constante para manter oculto o ponto de vista dessa “fala” cinematográfica, impregnada de sentidos dos autores, dos roteiristas e da visão que o público detém sobre a escola, a educação e o professor, bem como da classe social que produz esse ou aquele produto fílmico. Neste universo do real sendo representado pelo cinema, com toques e elementos da própria realidade, uma vez que a narrativa cinematográfica se consolida por imagens em movimento que descrevem, narram e produzem significados, a escola como microcosmo da sociedade francesa, incluindo questões de miscigenação, desigualdade social, racismo, intolerância e choque cultural, em contraposição a ideais de liberdade, igualdade e fraternidade. Tem-se, assim, um discurso cinematográfico, que se constitui num texto ideológico e cultural no qual de inscrevem produções de sentidos, significados e representações socioculturais. Está também subjacente a inquietação resultante da quase inexequibilidade de tentativas de superação de contradições de um sistema educacional dito includente, mas fundamentado numa estrutura não propícia a isso. Referências Bibliográficas ALBERTI, Verena. “Literatura e autobiografia: a questão do sujeito na narrativa”. Estudos históricos. Rio de Janeiro, vol. 4, n. 7, 1991. p.66-81. 30 BAUER, Dale M. Indecent Proposals: Teachers in the Movies, National Council of Teachers of English. College English, vol. 60, n. 3 (Mar., 1998). p.301-317. BÉGAUDEAU, François. Entre les murs. Paris: Gallimard, 2007. BÉGAUDEAU, François. Entre os muros da escola (Trad. Marina Ribeiro Leite). São Paulo: Martins Editora, 2009. BERNARDET, Jean-Claude. O que é cinema (Col. Primeiros Passos). São Paulo: Brasiliense, 2000. CALLES, Diva C. O ser professor em obras literárias autorreferenciadas e em filmes: dimensões profissionais e emocionais do trabalho docente. Tese de Doutorado, FEUSP, 2012. CHARLOT, Bernard. A violência na escola: como os sociólogos franceses abordam essa questão. Sociologias, v.4, n.8, jul./dez. 2002. p.432-443. COSTA, Antonio. Compreender o cinema (Trad. Nilson Moulin Louzada). Rio de Janeiro: Globo, 1985. DALTON, Mary M. Teachers in the movies. The Hollywood Curriculum. New York: Peter Lang, 2007. DUBET, François. “A escola e a exclusão” (Trad. Neide Luiza de Rezende). Cadernos de Pesquisa, n. 119, 2003, p.29-45. Entre les murs (Entre os muros da escola) (The class). Roteiro: Laurent Cantet, Robin Campillo, Direção: Laurent Cantet, 2008. Entrevista com Laurent Cantet, Extras do filme Entre os muros da escola (Entre les murs), DVD, 2008. 31 Batismos de Sangue Yuri Garcia Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, [email protected] Resumo: O presente trabalho busca relacionar o livro “Drácula” de Bram Stoker com duas de suas transposições para o cinema e com o personagem histórico Vlad Tepes. Assim, escolhemos “Dracula” (1992) de Francis Ford Coppola e “Dracula Untold” (2014) de Gary Shore devido ao fato de ambas serem grandes produções com um grande alcance de público. Ainda, o primeiro foi consagrado como uma grande obra cinematográfica enquanto o segundo foi uma das incursões mais recentes do personagem no audiovisual direcionado para um âmbito mais mainstream. Em ambos, o vampiro é referenciado como um personagem histórico real conhecido como Vlad Tepes, ou Drácula. Mas até que ponto tal ligação é realmente explorada no livro e nos filmes? E qual o resultado final de dois produtos que misturam uma obra literária com fatos históricos e a própria criatividade de seus diretores? Aqui, tentaremos esclarecer todas essas questões ao explorar melhor alguns aspectos apontados e analisar os dois filmes em questão. Palavras-chave: Drácula; cinema; transposições; vampiro. Abstract: This paper aims to relate Bram Stoker’s book “Dracula” with two of its transpositions to cinema and the historical character Vlad Tepes. Therefore, we chose Francis Ford Coppola’s “Dracula” (1992) and Gary Shore’s “Dracula Untold” due to the fact of both being great productions with great public reach. Still, the first was considered a great cinematographic piece, while the second was one of the most recent incursions of the character in audiovisual directed to a more mainstream range. In both, the vampire is referenced as a true historical character known as Vlad Tepes, or Dracula. But until which point is this connection really explored in the book and in the movies? And which is the final result of two products that mixture a literary piece with historical facts and the directors own creativity? Here, we will try to enlighten these questions and explore a few of the pointed aspects and analyze the two movies in question. Key-words: Dracula; cinema; transpositions; vampire. Introdução Em 1897, o irlandês Bram Stoker publicou a obra “Drácula”. Com o passar dos anos, a obra consegue fazer cada vez mais parte de nossa cultura, trazendo o personagem título como a representação máxima do vampiro. O livro se destacou na literatura gótica na era vitoriana e sua repercussão continua em progressão, podendo ser vista em seus diversos produtos apropriados por diferentes mídias (videogames, séries, filmes, HQs etc) na cultura de massa. 32 Bram Stoker faz uma pesquisa detalhada para o seu livro, que nos fornece uma ambientação total da história. Além de características geográficas com uma precisão incrível para a época, há também uma rica imersão histórica que nos apresenta dados específicos para que inseridos na ficção desenvolvam uma trama bem descritiva. O personagem Drácula teria sido baseado (embora sem nenhuma evidência concreta) em um príncipe de mesmo nome, cujas lendas são famosas pela Europa Oriental. Entretanto, até que ponto a ligação entre o personagem histórico e o personagem literário se configura? Em 1992, Francis Ford Coppola se propôs a trazer para as telas uma adaptação “fiel” do livro de Stoker. De certa forma, é considerado por muitos como uma das transposições mais próximas da original. Todavia, devemos problematizar a “fidelidade” proposta por Coppola à obra literária. Uma das premissas centrais deste filme é a de desenvolver abertamente o personagem título como o personagem histórico e humanizar e romancear o vampiro. Por outro lado, “Dracula Untold” (2014) de Gary Shore trabalha exatamente na ligação que o filme de Coppola propõe, sem se relacionar diretamente em momento algum com a história de Stoker. Para podermos compreender todas as ligações que aqui são destacadas, iremos retornar a outras ligações que possam elucidar melhor a complexa relação entre as três obras. “Drácula”, o livro A obra “Drácula” começa com a história de um aristocrata romeno, cujo nome intitula a obra, recebendo o jovem inglês Jonathan Harker em seu castelo para que consiga efetuar a compra de uma propriedade na Inglaterra. Com o passar da trama, percebemos as reais intenções do conde, que embora se mostre em um corpo um pouco mais velho, possui uma força descomunal e diversos outros poderes que deixam o jovem apavorado. Ao longo da narrativa, o hóspede percebe que, na realidade, seu destino será a morte (ou talvez se tornar um vampiro, pois se encontra apenas implícito o que será feito dele) através de três mulheres “demoníacas” residentes no castelo, que estariam apenas esperando que ele perdesse a utilidade para seu anfitrião. O jovem consegue fugir, mas adoece e começa a achar que sofreu delírios e torna-se um personagem fraco e abatido por duvidar de suas próprias noções de realidade. Enquanto isso, o conde chega à Inglaterra e começa a fazer algumas vítimas, entre elas, Lucy Westenra. O fato de uma doença repentina começar a abatê-la desencadeia em uma união de três amigos (Dr. Jack Seward, Quincy P. Morris e Arthur Holmwood, o noivo de Lucy) para tentar evitar sua morte. Ao se agravar o estado da enferma, o doutor recorre ao seu antigo professor, Van Helsing, que com sua experiência consegue ajudá-los e descobre que na realidade estavam lidando com um vampiro. Com a morte de Lucy, os três amigos unem-se à melhor amiga da falecida, Mina Harker. Em pouco tempo, tomam conhecimento do passado de seu marido e percebem que ele havia sido prisioneiro no castelo do inimigo, conseguindo fugir. Jonathan, ao conversar sobre sua experiência e sobre as investigações envolvendo a morte de Lucy, percebe que não estava delirando e se recupera. Os seis se unem em busca do conde, no entanto, este consegue morder Mina e lhe obrigar a beber seu sangue, processo que fará com que ela se transforme em uma vampira. Perseguindo Drácula de volta ao seu castelo, conseguem matá-lo antes que ele retorne ao seu solo – ato que lhe fortaleceria – e evitar que Mina se transforme. 33 A narração não se dá através de uma pessoa, e sim diversas, abrindo espaço para diferentes perspectivas, em alguns casos, de um mesmo fato. O texto denso e detalhista é formado por diversas anotações de diários, cartas, gravações transcritas, telegramas e recortes de jornais de personagens diferentes, colocados em ordem cronológica nos permitindo diferentes ângulos de análise. “Estratégia que faz com que o leitor aja como detetive, juntando as informações apresentadas e solucionando os mistérios da trama antes que suas personagens a façam.” (RODRIGUES, 2008, p.17) Em 1972, os pesquisadores Raymond McNally e Radu Florescu, ao procurarem um panfleto do século XV para utilizar como material para seu livro “In Search of Dracula”, se depararam com uma descoberta que iria ser objeto de extrema importância nas futuras pesquisas sobre a obra de Stoker, as anotações do autor para o desenvolvimento de “Drácula”. Após uma organização e sistematização das anotações, com indicações e notas de rodapé para facilitar o entendimento feitas por Robert Eighteen-Bisang e Elizabeth Miller, surge “Bram Stoker’s notes for Dracula: a facsimile edition” (2007). O livro aponta para pesquisas de Bram Stoker sobre ventos, tempestades e coisas relacionadas a navegar, para descrever a viagem de Drácula no navio Demeter e um estudo sobre superstições europeias, vampiros e costumes romenos. Um estudo extremamente detalhado, relatando a geografia presente no enredo de uma forma precisa, permitindo que o leitor possa se situar com exatidão nos locais descritos. Entretanto, a ligação com o personagem histórico do mesmo nome aparenta ser mais sutil do que se acredita. “No livro, ele é citado várias vezes, ainda assim sem uma referência direta, apenas menção aos seus feitos e sua história.” (VIEIRA, 2011, p.3) Drácula era de fato um dos nomes de um príncipe valaquiano do século XV, também conhecido Vlad Tepes, Vlad III ou Vlad Berasab. Nascido em 1431 na Transilvânia, é reconhecido por sua crueldade e sadismo, destacando-se como grande guerreiro e torturador do corpo e da mente7 com muitas lendas envolvendo suas batalhas, punições e métodos de tortura. Uma de suas mais célebres práticas consistia em empalar8 seus inimigos e colocá-los expostos para que todos pudessem ver, o que o deixou conhecido como “O Empalador”. O nome Drácula possui dois possíveis significados. O primeiro seria devido ao fato de seu pai, Vlad II, ter pertencido à Ordem do Dragão9, ganhando o nome Dracul. A origem de tal nome remete a palavra “draco” do latim que significa “dragão”. Dessa forma, com o acréscimo de um “a” no final, com o sentido de “filho de”, o nome do famoso príncipe seria na verdade “filho do dragão” ou “filho daquele que foi membro da Ordem do Dragão”. Outro possível significado seria “diabo”, que poderia ter surgido de uma interpretação errônea de camponeses ao verem seu pai portando a bandeira da ordem. Embora a notória fama de cruel, 7 Para mais detalhes históricos sobre o personagem, ver MCNALLY; FLORESCU, 1994. 8 A empalação consistia em inserir uma estaca no ânus, umbigo ou vagina da vítima. Neste método, a pessoa podia ser posta "sentada" sobre a estaca ou com a cabeça para baixo, de modo que a estaca penetrasse nas entranhas da vítima e, com o peso do próprio corpo, fosse lentamente perfurando os órgãos internos. Neste caso, dependendo da resistência física do condenado e do comprimento da estaca, a agonizasse estendia por horas. Disponível em: http://www.spectrumgothic.com.br/ocultismo/inquisicao/torturas.htm Acesso em 07/08/2012. 9 Para mais detalhes ver http://en.wikipedia.org/wiki/Order_of_the_Dragon 34 é considerado até os dias atuais como um grande herói da região por ter travado inúmeras batalhas contra o império turco-otomano. A obra não teria sido baseada nesse personagem. Na realidade, anotações de Stoker apontam que durante o desenvolvimento do livro, o autor pretendia nomear seu personagem como “conde Wampyr”. Entretanto, ao se deparar com “An Account of the Principalities of Wallachia and Moldavia” de William Wilkinson na prateleira de número 0.1097 da biblioteca de Whitby, se interessou pelo nome devido a sua ligação com a palavra demônio. “Dracula” (1992) e “Dracula Untold” (2014) Francis Ford Coppola traz sua concepção do personagem de Stoker no filme “Dracula” de 1992. Com uma tradução do título original para o português nos prometendo fidelidade à obra original, “Drácula de Bram Stoker” é de fato considerado por alguns críticos como a adaptação mais “fiel”. Entretanto, trata-se de uma transposição menos atrelada ao livro do que pensamos. Ao creditar mais importância ao personagem histórico Vlad Tepes para a construção do vilão de Bram Stoker do que realmente deveria, Coppola aproxima seu vampiro totalmente da imagem do “empalador” e se esquece da descrição provida por Stoker. Não podemos cometer a injustiça e nos atermos tanto às diferenças que o diretor cria ao basear seu Drácula em outra imagem. As mãos peludas, unhas compridas, aspecto mais velho vistas no encontro com Jonathan Harker já no início do filme remetem diretamente ao livro. Já no início da película, Coppola cria uma pequena história para explicar coisas que Bram Stoker havia deixado sem explicação: Quem foi Drácula? E como se tornou um vampiro? Sua pequena história inicial já aponta para as duas modificações principais que serão utilizadas ao longo da película. A resposta do diretor: Drácula foi Vlad Tepes. Não somente apresentando o personagem, como também recriando cenas de suas lendárias batalhas contra os turcos e seus empalamentos. Ainda acrescenta ao lendário “empalador”, conhecido como um tirano por uns e como um herói por outros, ser, na realidade, um homem apaixonado. No filme, ao vencer uma batalha em nome da cruz, defendendo o cristianismo, Vlad recebe o pior dos castigos. Os turcos se vingam de seu inimigo atacando o que ele mais ama, sua esposa Elisabeta. Uma flecha atirada ao castelo contém a mensagem falsa de que Drácula havia sido morto em batalha, e abalada com a notícia, sem poder viver sem seu amado, Elisabeta se atira no rio, se suicidando. Chegando vitorioso em seu castelo, Drácula se depara com o corpo morto de sua esposa e um representante da igreja dizendo que ela não irá para o céu, pois se matou. Tomado por uma ira colossal, Vlad renuncia a Deus e crava sua espada no centro da cruz que jorra sangue em uma cena épica que termina com Drácula bebendo sangue de um cálice dourado repetindo a célebre frase do livro de Stoker, “The blood is the life”. A cena retratada por Coppola é brilhante, apresentando imagens fortes com uma trilha sonora que ajuda a criar a ambiência necessária para logo em seguida inserir o título do filme. Entretanto, o diretor peca ao tentar nomear sua obra como uma adaptação fiel do livro de 35 Stoker. Na verdade, as modificações imprimidas são a essência e a grande originalidade de sua transposição fílmica de um produto literário amplamente visto no cinema ao longo dos anos. Podemos creditar a Coppola o mérito de trazer o estilo documental encontrado no livro em diversas partes de seu filme (embora não seja exatamente igual à obra de Stoker que se trata de relatos de diversas pessoas sobre um vilão em comum). Assim como de trazer um destaque maior do que os outros filmes de Drácula haviam dado à visita de Harker ao castelo. É possível fazer uma varredura detalhada dos momentos em que a transposição relata com mais exatidão o conteúdo de sua obra inspiradora, entretanto, é nos momentos em que se distancia que podemos perceber a originalidade encontrada nessa película. Uma das mais importantes mudanças do livro é o retrato do conde Drácula como Vlad Drácula e de Mina Harker como a reencarnação da esposa de Vlad Dracula do século quinze. Não somente isso promove um falso link entre os Dráculas históricos e ficcionais (e mancha a reputação de Vlad Drácula no processo), mas oferece uma explicação específica para o sentimento de Drácula por Mina. Embora, inicialmente, seja Lucy que ele almeja, ataca e vampiriza, é secretamente (exceto para o leitor / expectador) Mina que ele quer e seu ataque em Lucy parece odioso e cruel por isso. No livro muito disso é deixado para a especulação do leitor, mas a adaptação fílmica de Coppola tenta nos oferecer respostas específicas para alguns enigmas de Stoker. (BERESFORD, 2008, p.153)10 Ao longo da narrativa, vemos um Drácula que não procura ser uma grande ameaça à paz dos ingleses e às mulheres indefesas. Dessa vez, temos um vampiro apaixonado que vai até a Inglaterra para encontrar o seu amor reencarnado na pele de Mina Harker. Mina vai de vítima do livro de Stoker, à personagem central no filme de Coppola. Ela é a reencarnação da mulher que motivou Vlad a se voltar para as trevas, assim como o motivo de sua viagem e no final, é quem mata o vampiro e faz com que ele morra como um príncipe e não um monstro. Ao abrir com essa narrativa – e se declarando como um épico romântico – o filme inevitavelmente voltou atenção para o quão longe ele partiu do livro – embora, ao colocar autor e texto juntos em seu título, parecia prometer (finalmente...) a verdadeira história. De fato, para acompanhar o lançamento do filme, um livro intitulado “Drácula de Bram Stoker” foi publicado – escrito não por Stoker, mas pelo experiente escritor de vampiros americano, Fred Saberhagen. (GELDER, 2001, p.90)11 10 “One of the most important changes from the novel is the portrayal of Count Dracula as Vlad Dracula and Mina Harker as a resurrection of Vlad Dracula’s wife from the fifteenth century. Not only does this promote the false link between the historical and fictional Draculas (and taint Vlad Dracula’s reputation in the process), but it offers a specific explanation for Dracula’s longing for Mina. Although it is initially Lucy that he targets, attacks and turns vampiric, it is secretly (except to the reader / viewer) Mina that he longs for and his attack on Lucy appears hateful and cruel because of this. In the novel much of this is left to the reader’s own speculation, but Coppola’s film adaptation attempts to offer us specific answers to some of Stoker’s conundrums.” (BERESFORD, 2008, p.153) 11 “By opening with this narrative – and by declaring itself as a romantic epic – the film inevitably drew attention to just how far it had departed from the novel – even though, by putting author and text together into its title, it seemed to promise (finally...) the real thing. In fact, to accompany the film’s release, a novel titled Bram Stoker’s ‘Dracula’ was published – written not by Stoker, but by the experienced American vampire novelist, Fred Saberhagen.” (GELDER, 2001, p.90) 36 Outra novidade trazida pelo diretor é a inclusão do cinema entre as inúmeras tecnologias citadas pelo livro de Stoker. No romance original, entre uma variedade de meios de comunicação sendo enumerados para colher dados sobre o inimigo, o cinema é sequer mencionado. Coppola, no entanto, mais do que mencioná-lo, o centra como fundamental na trama. Coppola deixa claro que o cinema ‘começou’ por volta da mesma época do romance de Stoker – os irmãos Lumière, na realidade, abriram seu auditório cinematográfico em Londres em 1896, o ano anterior à publicação de “Drácula”. É como se o projeto de filmar o romance de Stoker sobre Drácula também envolva filmar o início do próprio filme – como se o retorno para a fonte vampírica ‘original’ seja meramente os meios pelos quais outra forma de retorno possa ser alcançada, uma forma de representar (ou, reinventar) 12 o momento original do filme, sua formação. (GELDER, 2001, p.89) Outro mérito trazido pelas alterações de “Drácula de Bram Stoker” é a adequação ao público de sua época. Enquanto Stoker trata da sexualidade como algo relacionado à impureza dos vampiros, Coppola imprime um teor sexual na relação entre Mina e Lucy, Lucy e seus pretendentes e Mina e Jonathan e traz Drácula seduzindo Mina que se oferece ao vampiro por vontade própria. Diferente da visão de Stoker, Coppola permite que suas protagonistas femininas se comportem em uma maneira altamente sexual, com seus parceiros homens e ainda, de vez em quando, uma com a outra. As heroínas no romance, portanto, são marcadas como menos “malvadas” que suas equivalentes fílmicas. Significantemente, apesar do fato que ambas as protagonistas de Stoker se tornam comprometidas, suas associações com seus parceiros nunca se tornam sexualizadas (ao menos não enquanto ainda são humanas). (NYSTROM In: BROWNING; PICART, 2009, p.69)13 Então, podemos perceber que o filme de Coppola possui seus méritos em relação à “fidelidade” imprimida à obra original em alguns aspectos. Todavia é em suas diferenças com o livro de Stoker que esse trabalho reconhece os aspectos mais relevantes e de mais importante análise. Pois como diversos fatores estão presentes na composição do produto, vemos nas modificações e em suas motivações a verdadeira originalidade de seu criador. Seguindo a ligação entre Vlad Tepes e o vampiro em que Coppola baseia seu filme, a nossa segunda obra em questão consegue não só evidenciar de forma mais visível, como desenvolve toda sua história em torno de como o personagem histórico tornou-se o vampiro. 12 “Coppola makes it clear that cinema ‘began’ around the same time as Stoker’s novel – the Lumière brothers actually opened their Cinematographic auditorium in London in 1896, the year before Dracula was published. It is as if the project of filming Stoker’s novel about Dracula also involves filming the beginnings of film itself – as if the return to the ‘original’ vampire source is merely the means by which another kind of return can be achieved, a way of representing (or, reinventing) film’s own original moment, its coming-into-being.” (GELDER, 2001, p.89) 13 “Unlike Stoker’s vision, Coppola allows his female leads to behave in a highly sexual manner, both toward their male counterparts and even, at times, each other. The heroines within the novel, therefore, are markedly less “wicked” than their filmic equivalents. Significantly, despite the fact that both of Stoker’s female leads become engaged, their associations with their significant others never become sexualized (at least not while they remain human).” (NYSTROM In: BROWNING; PICART, 2009, p.69) 37 Uma das mais recentes incursões do vampiro no cinema é assinada por Gary Shore e traz Luke Evans como protagonista. “Dracula Untold” (2014) mostra o personagem Vlad Tepish como um herói que faz um pacto com o diabo para proteger sua família e seu povo do exército turco. O filme aponta algumas inovações ao tentar, ao invés de justificar a vilania do personagem, justificar a adoção de sua monstruosidade como um sacrifício heróico para um “bem maior”. Além disso, vale apontar que o filme foi vendido como um grande Blockbuster e como um filme de ação e aventura, o que parece ser uma nova tendência para os vampiros como vimos em Blade (anteriormente), a saga “Underworld” (2003, 2006, 2009, 2012) e outros. O filme é uma produção bem feita, mas peca ao transformar um grande vilão em um desinteressante “bom moço”. Aqui, Drácula deixa de ser o monstro criado por Stoker e sequer consegue ser o vampiro apaixonado de Coppola. O filme de Gary Shore procura retratar o vampiro como não só um herói épico nos campos de batalha, mas como um típico bom moço com grandes valores e condutas exemplares disposto de qualquer sacrifício pela sua família e seu povo. O amor que os vampiros de Stoker, Coppola e Shore trazem são amplamente diferentes. Enquanto no livro vemos um personagem que ama ser um predador, ama sua vilania e fazer suas maldades; temos amores mais simplificados nas obras seguintes. O Drácula do primeiro filme analisado ama sua mulher Elisabeta e sua reencarnação Mina e é motivado por isso, no entanto, o do segundo filme ama a integridade, ser correto e proteger os fracos. O novo Drácula deixou de ser vilão ou um homem eternamente apaixonado, agora, ele se tornou um herói clássico que protege o bem e zela pelos inocentes. Conclusão A palavra adaptação, tão comum quando falamos sobre filmes que são inspirados em histórias provenientes de outras mídias, costuma vir acompanhada sempre pela cobrança de uma “fidelidade ao original”. Para concluirmos, precisamos, antes de qualquer coisa, nos livrar de tal palavra, que implica adaptarmos uma história em uma mídia diferente, e por isso, torna-se tão ligada ao conceito de “fidelidade”. Para isso, utilizaremos a palavra “transposição” que possui possibilidades semânticas mais interessantes e consegue traduzir com mais coerência a passagem de um produto de uma mídia a outra. McLuhan apontava ao longo de seu trabalho que todo meio “novo” utiliza algo de meio anteriores. Jay David Bolter e Richard Grusin no livro “Remediation: Understanding New Media14” (2000) retornam à questão indicada por McLuhan, utilizando o termo “remediação” para descrever o processo indicado acima e em uma seção específica, adentram a idéia de “contar uma história através de outra tecnologia”. 14 O livro possui o subtítulo “Understanding New Media” fazendo clara alusão ao mais famoso livro de McLuhan, “Understanding Media” traduzido para o português como “Os Meios de Comunicação como Extensões do Homem” (2007). No livro “Estendendo McLuhan: da Aldeia à Teia Global” (2011) de Vinícius Andrade Pereira, o autor destaca “[...] um meio porta um outro meio no seu interior, como maneira de se apresentar e se traduzir para um usuário” (p.142) e discute a relação entre ambas as obras no item 7.2 e 7.3.4 do capítulo 7. Pereira refere-se mais à questão gramatical mesmo, entretanto uma parte da obra de Bolter e Grusin é destinada aos conteúdos, tomando como exemplo uma onda de transposições fílmicas de obras de Jane Austin já a partir da década de 90. 38 Podemos perceber então que a transposição está relacionada a uma lógica de remodelação de elementos de uma mídia à outra muito mais complexa, porém já previamente estudada e que não é exclusiva da indústria cinematográfica. Outro ponto importante seria compreender a subjetividade implicada em tal processo. Roger Chartier (1996) com sua ideia de apropriação destaca a pluralidade interpretativa existente em cada indivíduo ao entrar em contato com uma obra. Chartier é um estudioso da história da leitura, escrita e seus suportes textuais e desenvolve esse conceito para nos apresentar a complexidade implicada no processo de leitura e como nos apropriamos de um texto de uma forma singular influenciada por diversos fatores que vão desde a criação e o contexto em que algo foi lido até a própria personalidade do leitor. Ou seja, qualquer fator que possa influenciar, mesmo que de uma forma muito imperceptível, ou ajudar a moldar ou agregar características a alguém, também determinam, junto com a forma como um texto é lido, a interpretação que a obra terá. Embora seu conceito seja aplicado a suportes textuais, o mesmo se faz válido para qualquer outra obra. A importância da ideia de apropriação surge na transposição pela singular questão de que uma obra transposta não é apenas uma versão da anterior, e sim uma versão da perspectiva de alguém que se apropriou dessa obra. Assim podemos perceber que tais versões não são necessariamente o que nós entendemos ou gostamos da obra original, e sim uma leitura baseada no que o autor (diretor, roteirista) optou por mostrar baseado na sua relação com a obra anterior. Dessa forma, atentamos para o fato de que o diretor ou roteirista de um filme foram consumidores antes de se tornarem produtores do filme em questão. Assim, em ambos os filmes percebemos uma complexa relação de apropriação de um livro, uma lenda a respeito da ligação de tal livro com um personagem histórico real e diversos filmes feitos posteriormente. Ainda apontamos para a necessidade de adequação da linguagem do literário para o audiovisual como um fator que nos demonstra que não há uma verdadeira “adaptação” em outra mídia, mas uma nova versão com uma linguagem própria. A imortalidade do vampiro de Stoker o permite transitar em diversas mídias com sua história recontada amplamente e suas características serem remodeladas com enorme freqüência. Drácula permanece para sempre imortal em nosso imaginário e suas diferentes histórias sempre surgem com surpreendentes (ou nem tanto) criações. Referências Bibliográficas BERESFORD, Matthew. From Demons to Dracula: The Creation of the Modern Vampire Myth. Reaktion Books Ltd, 2008. BOLTER, Jay David; GRUSIN, Richard. Remediation: Understanding New Media. The MIT Press, 2000. BROWNING, John Edgar; PICART, Caroline Joan (Kay). Draculas, Vampires, and Other Undead Forms: Essays on Gender, Race, and Culture. Scarecrow Press Inc., 2009. CHARTIER, Roger. Práticas da Leitura. São Paulo: Estação Liberdade, 1996. GELDER, Ken. Reading the Vampire. Routledge, 2001. 39 McLUHAN, Herbert Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem. Cultrix, 2007. MCNALLY, Raymond T.; FLORESCU, Radu. In Search of Dracula: The History of Dracula and Vampires. Houghton Mifflin Company, 1994. PEREIRA, Vinícius Andrade. Estendendo Mcluhan: da Aldeia à Teia Global. Editora Sulina, 2011. RODRIGUES, Andrezza Christina Ferreira. Drácula, Um Vampiro vitoriano: O Discurso Moderno no Romance de Bram Stoker. São Paulo: PUC-SP, 2008. Dissertação (Mestrado – Programa de Pós-Graduação em História Social), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. STOKER, Bram. Bram Stoker’s Notes for Dracula: a facsimile edition. Annotated and transcribed by EIGHTEEN-BISANG, Robert; MILLER, Elizabeth. McFarland & Company, Inc., Publishers, 2007. VIEIRA, Maytê Regina. Drácula de Bram Stoker (1992): Uma adaptação entre Literatura e História. In: SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, 26., 2011, São Paulo. Anais...São Paulo: ANPUH, julho 2011. 40 Dora para ler e escrever João Adalberto Campato Jr15, Faculdade da Alta Paulista (FAP) e da UNIESP, [email protected] Resumo Neste artigo, procura-se refletir, com base na atividade escritora e leitora da personagem Dora, do filme Central do Brasil, sobre alguns aspectos da leitura e da escrita, sobretudo no que diz respeito à produção de sentido, ao seu caráter de interação social e a seu papel emancipador do ser humano. Palavras-chave: Cinema. Central do Brasil. Leitura. Escrita. Abstract In this article, we try to reflect, based on the writer activity and reading the Dora character, Central Station movie, about some aspects of reading and writing, especially with regard to the production of meaning , its character of social interaction and its emancipatory role of the human being. Keywords: Cinema. Central Station . Reading. Writing. Dora é, a um só tempo, a escrevedora e a leitora de cartas de Central do Brasil, produção cinematográfica franco-brasileira de 1998, dirigida por Walter Salles. A personagem de Fernanda Montenegro, por meio de sua atividade profissional, representa, no universo diegético em questão, a escrita e a leitura como procedimentos de interação social, de criação e de negociação de sentidos, de persuasão, de catarse, de recriação da realidade e de tessitura da história de vida das personagens que povoam o drama. Trata-se, para além disso, da representação de uma escrita e de uma língua vivas, que estão em ação num contexto particular, situada num determinado tempo e num dado espaço, funcionando espontaneamente, que vai muito além daquilo que a gramática prescritiva pode oferecer a seus conhecedores. Todas esses aspectos terminam por conferir à leitura e à escrita destacada e messiânica relevância, principalmente num ambiente inóspito e desprovido de maiores esperança, de apostas no futuro. Constitui sequência significativa do filme particularmente seu início, em que Dora, no território um tanto aberto e um tanto fechado da estação ferroviária, no espaço de quase “entre- 15 41 Doutor em Letras. Professor da Faculdade da Alta Paulista (FAP) e da UNIESP. E-mail: [email protected] lugares” da Central do Brasil, exercita, ainda que distante de ditames rigidamente éticos e fazendo concessões à marginalidade, o papel de escrever cartas, de mediar um processo de comunicação entre sujeitos distanciados pelo espaço, pelo tempo, por vivências históricas e, acima de tudo, por experiências afetivas. A esta altura, é preciso deixar assente que Dora, antes de escrever as cartas, é, obrigatoriamente, uma “leitora” das histórias dos clientes. E, em seguida, uma tradutora, uma autora. Semelhantemente, o seu cliente de autor torna-se leitor, na medida em que tem de considerar os reparos e as sugestões da mulher que escreve a seu mando. Em definitivo, já não se trata, como facilmente se nota, de um modelo de comunicação mecanicista, monológico e linear. Por conseguinte, vêm à tona o polifônico, o dialógico e o intertextual. Na função de mediadora, Dora age tal qual um conector entre as pessoas; e, nessa esteira, também, como elemento coesivo entre a própria história do cinema brasileiro. Walter Salles (1988) afirma que, em Central do Brasil, há o desejo de homenagear os realizadores do Cinema Novo, nunca perdendo, no entanto, a oportunidade de dialogar com o jovem cinema brasileiro de então. Ao lado dessa representação da leitura e da escrita como instrumento de interação social e de negociação de subjetividades, também se pode abordar o filme como representação – na totalidade ou em fragmentos - de concepção particular de discurso, de escrita, de leitura e de produção de sentido, para a qual, doravante, vamos chamar a atenção do leitor, e que muito se beneficia dos pressupostos da Análise do Discurso de extração francesa .A contribuição que a Análise do Discurso (AD) – de linha francesa - tem oferecido aos estudos sobre um melhor e mais eficaz entendimento da produção e leitura de textos – sobretudo na questão da produção de sentidos e de sua compreensão - é de relevância pode-se dizer irrecusável. Nesse aspecto particular, as palavras de Eni Orlandi (2001, p.58) devem ser observadas com atenção e como ponto de partida para uma breve reflexão. A reflexão sobre o funcionamento discursivo da compreensão tem[...] um retorno que incide sobre uma questão crucial para a própria análise do discurso: a constituição dos processos de significação. Não é só quem escreve que significa; quem lê também produz sentidos. E o faz, não como algo que se dá abstratamente, mas em condições determinadas, cuja especificidade está em serem sócio-históricas. Se, conforme explicitado acima, a leitura é abordada como produção de sentido, ou melhor, se quem lê é considerado produtor de sentido como quem escreve, tal visão não foi aquela que sempre imperou nessa área. Muito pelo contrário, senão vejamos. Vale salientar, seguindo o percurso teórico de Ingedore Villaça Kock e Vanda Elias (2010, p.10), as concepções de leitura que mantêm o foco ou na figura do autor do texto, ou no texto em si. No primeiro caso, a leitura seria apenas captação passiva daquilo que está muito bem resolvido e acabado na mente do escritor. Já no segundo caso, a leitura é vista como atividade de captação passiva do que está dito no texto. Seja como for, ao leitor resta uma atividade passiva, de meros reconhecimento e de reprodução, sem nunca se cogitar na possibilidade de o leitor, ele também, contribuir para a significação final e global do textos. 42 Com relação à escrita, ainda permanecendo na visão tradicional que nos é relatada por Kock e Elias (2009, p.31-36), o processo não se modifica substancialmente, porquanto há a escrita com foco na língua (para produzir um texto, basta ter conhecimento do código, que o leitor, igualmente, deve conhecer; ademais, não há espaços para implicaturas, já que a linguagem é transparente), e existe escrita com foco no escritor (sem levar em conta a figura do leitor ou a interação que envolve o processo de escrita). A visão rapidamente esboçado nos dois últimos parágrafos guarda, sem espaço para dúvidas, uma concepção problemática e incompleta de leitura e de escrita. Em virtude dessa constatação, as atividades verbais não podem passar sem a consideração e sem a influência de alguns aspectos trazidos à luz pelas ciências da linguagem, entre elas a Análise do Discurso. Antes de tudo, faz-se necessário postular que, para elaborar e interpretar textos com bons níveis de eficácia, devemos ter, além da natural competência linguística e da competência enciclopédica, a “competência comunicativa”, tal como a entende Dominique Maingueneau (2003, p.45), ou seja, carece possuir “aptidão para produzir e interpretar os enunciados de maneira adequada às múltiplas situações de nossa existência”. O domínio da competência comunicativa, por sua vez, passa necessariamente pelo domínio das leis do discurso (leis de cooperação, das implicaturas, as leis de polidez, as leis de preservação das faces, a lei da pertinência, a lei da informatividade e da exaustividade, as leis da modalidade, entre outras) e dos gêneros do discurso (competência genérica). Para fins de balanço, é lícito afirmar, então, que a competência linguística, a competência enciclopédia e a competência comunicativa atuam na atividade verbal, “em sua dupla dimensão de produção e de interpretação dos enunciados: domínio da língua, conhecimento do mundo, aptidão para se inscrever no mundo por intermédio da língua” (MAINGUENEAU, 2013, P.46). Reportando as observações até aqui exaradas a um domínio mais concreto é prático, torna-se fundamental levar em consideração os seguintes aspectos. Importante fator que se coloca a quem queira abordar a escrita e a leitura à luz dos contributos da Análise do Discurso é o da própria natureza do discurso em si. Nesse sentido, as formulações de Helena Nagamine Brandão (2013, p..19-20) são essenciais e devem ser levadas em conta: • O discurso vai além do patamar puramente gramatical, linguístico. O nível discursivo de análise chega aos aspectos extralinguísticos que condicionam sua produção; • O discurso diz respeito a enunciados concretos, a falas/escritas, que, de fato, foram enunciadas (diferentemente das frases presentes nos livros de gramática); • Os estudos do ângulo da Análise do Discurso procuram descrever o funcionamento da língua no seu emprego concreto e efetivo, examinando como ocorre a produção de sentidos entre sujeitos situados social e historicamente; • No âmbito do discurso, o falante/ouvinte, escritor/leitor devem ter conhecimentos linguísticos, dominando as regras da língua, e também conhecimentos extralinguísticos, indispensáveis para produzir discursos condizentes aos variados contextos de comunicação. 43 É bom de salientar que as propostas acima caracterizam a análise do discurso de linha francesa, mormente na direção de que dão extrema atenção aos aspectos externos à língua. No juízo de Brandão (2013, p.21), além do contexto imediato da situação de comunicação, compreendem os elementos históricos, sociais, culturais, ideológicos, que cercam a produção de um discurso e nele se refletem. Considera-se o espaço que esse discurso ocupa em relação a outros discursos produzidos e que circulam na comunidade. Nesse quadro, não é custoso concluir que a produção de sentidos por meio de textos verbais, bem com a extração de sentidos de textos, significa, por exemplo, para a escola, para os alunos e para os professores, um conceito de ensino-aprendizagem bastante amplo, que vai desde o conhecimento da língua portuguesa (gramática, estilística, pragmática, retórica, análise da conversação), da capacidade de ler o mundo social, histórico e cultural; da habilidade de delinear o perfil de quem nos lê e escuta; da capacidade de encontrar intertextualidade; da ciência de saber que, dependendo dos objetivos e do local de recepção do texto, este deverá possuir determinada configuração e, como não poderia deixar de faltar, de saber produzir e interpretar o mais variado número de gêneros textuais ou discursivos. Com base no que atrás ficou exposto até o presente instante, torna-se bastante funcional o conceito de discurso fornecido por Elisa Guimarães (2009, p.89), que põe acento no caráter de evento comunicativo do discurso, de efeito de sentido construído no processo de interlocução: Entidade histórica (ideológica) que se elabora socialmente, através de sua materialidade específica, que é a língua manifestada no texto. É próprio do discurso privilegiar a natureza funcional e interativa e não o aspecto formal e estrutural da língua. Prosseguindo nessa direção, e capitaneados, ainda, por Brandão (2013), e por Maingueneau (2013), a Análise do Discurso leciona alguns tópicos que são de consequência fulcral para as atividades de produção e leitura de textos. Vejamos alguns deles. • Os sentidos se formam na interação entre autor, texto, leitor. O sentido, portanto, é dialógico, resultante de uma interação. A importância do que o autor “quis dizer” deve ser relativizada. • O sentido não preexiste à interação que foi mencionada acima. Isso é muito relevante para atividades de interpretação de textos, em que o professor solicita ao aluno que depreenda “o” sentido do texto. Os sentidos, na verdade, se fazem a cada leitura. Como aponta Orlandi (2001, p.60), eles são produzidos, nunca surgem do nada. • As palavras são plurissignificativas. • O conceito de heterogeneidade • A linguagem não é transparente, mas opaca • A importância das condições de produção do discurso, quer dizer, do contexto sóciohistórico-ideológico que envolve os interlocutores; 44 • A questão do ethos, isto é, da imagem construída pelo discurso. Por sinal, conforme ressalta Elisa Guimarães (2009, p.90), há uma rica construção de imagens baseadas no processo de interação: “o locutor não constrói o seu discurso divorciado da imagem que convoca do seu alocutário. O locutor não apenas modela seus discurso, mas também dá corpo à imagem do outro a quem o discurso se destina e, além disso, configura-se a si mesmo ao plasmar sua própria imagem no interior do discurso que produz”. • O conceito de formulação ideológica e discursiva • Sujeito do discurso marcado pela historicidade • O discurso é uma forma de ação sobre o outro • O discurso precisa ser considerado no interior de outro discurso. Para pôr término a essas reflexões teóricas panorâmicas e meramente introdutórias, gostaríamos, tão somente, de tentar equacionar uma dúvida que deve ter se formado ao longo destas páginas, qual seja, a da distinção – possível ou não - entre discurso e texto. Há pesquisadores da área que não veem nenhuma necessidade em labutar em semelhante distinção. Porém, não é isso que realmente se verifica com a maioria dos cientistas da linguagem, entre os quais nos incluímos. Por conseguinte, com vistas a tentar uma distinção nesse sentido, seguiremos o norte indicado por José Luiz Fiorin (2012). Para o linguista paulista, ainda que os dois elementos sejam do domínio da enunciação e embora sejam “todos organizados de sentido”, eles acabam por se diferenciar em seu modo de existência semiótica. Isso porque o discurso é da ordem da imanência, ao passo que o texto é do domínio da manifestação. Mais ainda: o discurso pertence ao plano do conteúdo; já o texto é do plano da expressão. Disso tudo resulta algo de inegável importância para as pesquisas que lidam como ambos os conceitos e mesmo para os professores que trabalham com uma perspectiva discursiva em suas aulas de produção e leitura de textos: “O mesmo discurso pode concretizar-se em textos muito diversos” (FIORIN, 2012, p.148), ou, em outras palavras, um mesmo discurso pode ter várias realizações textuais. A título de lembrança, no princípio do filme, em meio à movimentação frenética da Central do Brasil, o expectador se vê às voltas com numerosas cenas em que Dora, sentada a uma mesa simples, atende a vários utilizadores da ferroviária, que, por serem analfabetos ou não serem dotados ainda de competência comunicativa suficiente para escrever uma carta pessoal e, posteriormente, enviá-la, recorrem aos serviços pagos da escrevedora. Trata-se de situação em que é que a língua é flagrada em sua ação real, em seu funcionamento interativo, vivo e dependente dos fatos contextuais. As pessoas, então, ditam as histórias a Dora, que, por sua vez, as completa, reinventa, julga ou mesmo as anula, dando-lhes, neste derradeiro caso, o destino da lata de lixo. Por vezes, Dora é ditatorial nas decisões; por vezes, ela negocia o sentido das correspondências com seus donos e donas, que, quase sempre, são vencidos pelo discurso persuasivo da escrevedora, que 45 transmite um ethos de pessoa honesta, séria e detentora da cultura letrada. Todo esse conjunto de ações sinalizam para o fato de que a língua está longe de ser uma realidade transparente; é, pelo contrário, um fenômeno opaco. Dito isso, torna-se conveniente retornar à senda que gostaríamos de percorrer brevemente e que sinaliza para a representação de uma concepção particular de escrita e de leitura, e, no final das contas, de discurso, que se pode bem exemplificar tomando como parâmetro o premiado filme Central do Brasil. Tal concepção é aquela que aborda o sentido dos textos como fruto de processo de leitura, que é originário da interação entre autor, texto e leitor. Nesse aspecto, o significado não está previamente inscrito no texto, mas se constrói por meio de um programa interativo, de negociação de subjetividades. Trata-se, pois, de abandonar o modelo psicolinguístico de leitura em favor de um modelo de feição construtivista. O sentido das leituras não seria, portanto, fixo nem estável, e tampouco seria independente das condições temporais, históricas e sociais em que se processa a leitura, numa visão nitidamente logocêntrica. Seria ele trazido à luz no momento da leitura mesma, de acordo com as participações do autor e do leitor e com as pistas ou os rastros deixados pelos textos, como a legitimar as várias possíveis isotopias. Dora, ao escutar o relato dos clientes, recebe um texto verbal, na modalidade oral, que precisa ser registrado graficamente no papel, com um mínimo de coerência possível. Num primeiro estágio, na qualidade de leitora do texto, ela adota uma postura francamente ativa, que permanece distante de procedimento de simples decodificação, que se acreditou, ao longo de considerável tempo, ser típica ou mesmo ideal do leitor. Dora, de acordo com as circunstâncias e com as variáveis, produz, da mesma forma, sentidos, investindo suas subjetividades nos textos alheios, preenchendo-lhes as lacunas visíveis e invisíveis, negociando significados, tornando-se, ao fim e ao cabo, real co-autora de tais textos, dessas correspondências, cujo conteúdo reveste com vocábulos, que, na maior parte dos casos, não pertencem ao repertório léxico dos clientes. Da mesma forma, ela adquire papel fundamental na gestão do continuum que atravessa as relações entre a língua escrita e a língua falada. Veja-se, para o caso das negociações semânticas, o diálogo instaurado entre Dora e um rapaz que se valeu de seus serviços para escrever à mulher com quem tiveram um noite de sexo, e a quem se refere como “meu tesão”: Rapaz: Meu tesão. Dora: Meu Tesão? Rapaz: Sentir o seu corpo junto do meu, carnes se unindo naquela cama de motel, nosso suor se misturando. Eu ainda me sinto, me sinto... Dora: Embriagado. Rapaz: Isso, Embriagado! Dora tem a arguta sensibilidade de que, ao redigir as centenas de histórias de vida que elabora na Central do Brasil, não escreve à luz de situações abstratas, como se respondesse a exercícios de uma gramática normativa, mas que, pelo contrário, necessita adequar os relatos verbais às condições de produção e de recepção dos textos escritos. Daí que, imaginando tanto 46 quanto possível, o perfil do destinatário dessa ou daquela missiva, sugere que um vocábulo seja alterado ou que uma expressão seja acrescentada por amor a polidez, a lei de cooperação, ou para evitar ambiguidades, polissemias e outros equívocos futuros. Nada é transparente, nada é evidente e divorciado do contexto. A despeito de flertar, aqui e ali, com a pequena marginalidade carioca e de momentos de falta de caráter (ficava, por exemplo, com o dinheiro das muitas cartas que terminava por não enviar aos destinatários), Dora, tanto quanto possível, se redime disso, em larga escala, como profissional da linguagem e como ser humano, fazendo a “travessia” roseana do menino Josué – representado pelo ator Vinícius de Oliveira -, conduzindo-o, tal qual numa telemaquia - à família distante, restituindo-o às primeiras origens, que darão à criança – quase em pane identitário - uma identidade, agora que já não tem mãe, atropelada que esta fora nas imediações da Central do Brasil. Identidade tal, frise-se, que o menino poderá assimilar e negar, ressemantizando-a a seu gosto, com base em novos contatos e em vivências humanas recalibradas. Dora teve - bem feitas as contas - hombridade o bastante para, depois de ler e depois de escrever o texto/discurso da vida do pequeno, despossuído e desamparado Josué, representálo como numa imensa peça teatral, com laivos de tragédia, de comédia, de melodrama, e em que de narradora passou a fazer as vezes de personagem protagonista, agindo e agindo mais ainda, como justamente demanda o texto dramático, até mesmo na sua etimologia, em que se demanda, no fundamental, por ação. Referências ARROJO, Rosemary (Org.). O signo desconstruído: implicações para tradução, a leitura e o ensino. 2.ed. Campinas: Pontes, 2003. BRANDÃO, Helena N. Enunciação e construção de sentido. In: FIGARO, Roseli (Org.). Comunicação e análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2013. P.19-43. BRANDÃO, Helena Nagamine. Introdução à análise do discurso. 3.ed. CaMPINAS: unicamp, 2012. CAMPATO JR., João Adalberto. A comunicação persuasiva: teoria e prática. São José do Rio Preto: HN, 2015. FIORIN, José Luiz. 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Rio de Janeiro: Objetiva, 1988. 48 A figuração do leitor em Medianeiras: poética do desencontro Jean Pierre Chauvin (USP), [email protected] “Super-homem deve optar entre dois males: deter o tornado que ameaça centrifugar uma cidade inteira ou impedir que um cego mendicante tropece e caia na sarjeta” (Alan Pauls).16 Resumo: Medianeiras retrata a visão crítica de dois habitantes de Buenos Aires, acometidos por sérias dúvidas quanto à cidade, o apartamento onde moram e a possibilidade de reencontrar o amor. A despeito dos diálogos sensíveis e inteligentes, o filme retrata um ambiente em que não parece haver espaço para livros e leitores. Palavras-Chave: Medianeiras, Cinema Argentino, Leitura. Abstract: Medianeiras movie portrays a critical view of two Buenos Aires's inhabitants which are affected by serious doubts about their city, the apartment where they live and the possibility of finding love. Despite the sensitive and intelligent dialogues, the film depicts an environment on where is no space for books and readers. Keywords: Medianeiras, Argentine Cinema, Lecture. Recepção É perfeitamente compreensível que o filme Medianeras: Buenos Aires na Era do Amor Virtual (2011)17 tenha caído da melhor forma no gosto de diferentes públicos, por ocasião de seu lançamento. A história já havia conquistado diversos prêmios seis anos antes, quando Gustavo Taretto divulgara seu curta-metragem homônimo, com duração de pouco mais de 28 minutos.18 Combinando a temática do amor a discussões pertinentes sobre o espaço urbano de Buenos Aires, uma “cidade que dá as costas ao rio”, ambos os protagonistas (Martín e Mariana) padecem com a paisagem, questionam as respectivas condições de moradia e enfrentam os dias a driblar a melancolia, em meio a “edifícios que se sucedem sem nenhuma lógica, como nossas vidas”. Sintoma de sua qualidade fílmica e relevância temática, em quatro anos o longa-metragem passou a integrar os acervos relacionados ao cinema das lojas de São Paulo, classificado como 16 A história do pranto, 2008, p. 7. 17 Intitulado simplesmente Medianeras, na versão argentina. 18 Na versão em longa-metragem (2011), o filme dura uma hora e meia. O curta (2005) foi protagonizado por Moro Aghilleri e Javier Drolas. 49 um título do chamado gênero cult, disponibilizado em diferentes suportes físicos (DVD e BluRay). Nesse caso, a disseminação em larga escala assegurou um lugar de destaque a essa comédia romântica, dirigida pelo experiente Gustavo Taretto e protagonizada pelo argentino Javier Drolas e a espanhola Pilar López de Ayala: dois jovens e talentosos atores. À época de seu lançamento na versão estendida, em junho de 2011, diversas sinopses e resenhas se sucederam, favorecidas pelos mecanismos do mundo ciber. No Brasil não foi diferente: numerosos comentários chegavam ao público, por meio de matérias, entrevistas e vídeos promocionais, em que diretor e atores eram ouvidos. Dentre os artigos divulgados em jornais brasileiros, deve-se mencionar aquele de Neusa Barbosa (julho de 2011), do site UOL Cinema, em que ela reproduziu breves comentários, do ator que interpreta Martín, a respeito das similaridades entre Buenos Aires e São Paulo, ambas percebidas como cidades “melancólicas”. A opinião de Javier Drolas leva-nos a retomar as palavras iniciais com que sua personagem descreve a capital argentina, tendo em vista as efetivas similaridades – tanto do ponto de vista urbanístico, quanto sobre a vida isolada que os paulistanos levamos, dissolvidos em meio à massa de indivíduos apressados, ciosos por imitar a arquitetura, a moda, o cinema e a música de outras megalópoles. A jornalista Fabiana Seragusa (setembro de 2011) trouxe uma entrevista reveladora com Gustavo Taretto, na Folha de S. Paulo. Na opinião do diretor e roteirista argentino, Medianeras retrataria a “Solidão urbana. A solidão que sentimos quando estamos rodeados de desconhecidos. A das cidades em que as pessoas se sentem mais seguras entre quatro paredes. A solidão do delivery. A solidão da mensagem de texto e do e-mail”. Em artigo publicado no Jornal O Globo, Gisele Teixeira fez comentários pertinentes em relação ao filme, com ênfase nos conflitos emocionais e na vida solitária que os protagonistas enfrentam (outubro de 2011). Àquela altura, o filme também rendeu um encontro entre o diretor e a filósofa brasileira Márcia Tiburi, durante evento organizado pela 2001 Vídeo – conhecida e badalada locadora de filmes de São Paulo. Roteiro Em sua condução, Medianeras alterna cenas muito divertidas, especialmente aquelas em que Martin relata as questionáveis conquistas esportivas (nos jogos de videogame, é claro) que foi capaz de empreender sem deixar a kitchenete, ao abrigo das pessoas e das ruas. Tudo isso em constante companhia do tédio e da síndrome de pânico: dois sintomas nada desprezíveis que refletem sua dificuldade em fazer e manter contato com as pessoas, sem o amparo do apartamento onde mora ou o anteparo dos meios eletrônicos de comunicação. Comparativamente, os episódios mais dramáticos e tensos são aqueles vivenciados por Mariana – a jovem que trabalha como vitrinista em lojas da cidade. Menos tímida e mais exposta ao turbilhão das ruas, que o seu vizinho Martín, ela protagoniza as cenas mais densas 50 do filme: a fuga de um jantar em andamento; a conversa fiada de um homem que a aborda na piscina; a sensibilidade aflorada enquanto escuta o novo vizinho tocar piano. No que diz respeito à estrutura e argumento do filme, estamos diante de um curioso paradoxo: o enredo se articula justamente em torno dos desencontros (consigo mesmos, mas também coletivos) e das expectativas dos telespectadores a respeito do (futuro) casal. Apesar de morarem bem perto – de uma medianeira a outra – e cruzarem seus caminhos em diversas ocasiões, Mariana e Martín só vão se reunir nos instantes finais do filme: ocasião em que ela enxergará nele (aquele sujeito de óculos, acompanhado do cão deixado pela exnamorada, vestido com indumentária peculiar, à espera do semáforo passar do vermelhointerdição ao verde-esperança) o amor que ela procurava, sem sucesso, nos homens com que se relacionara. Quando encontra o amor, a chance de felicidade transforma Mariana em uma mulher radiante. A seu ver, Martín (cujo nome ainda ignora) seria a versão portenha e não ficcional do personagem Wally – a célebre figura do livro de entrenimento publicado pelo ilustrador britânico Martin Handford em 1987. Esse dado é particularmente relevante, mesmo porque Mariana não parece ser uma leitora contumaz de palavra impressa. Note-se que as coincidências entre Martín (um webdesigner e autêntico geek que se protege do mundo em “quarenta e poucos metros quadrados”) e Wally (o personagem adulto escondido no livro, em tese voltado para crianças) ultrapassam o âmbito da ficção juvenil, ilustrada na forma de livro. Além de coincidirem na estereotipia física (uso de óculos, gorro e blusa listrada), ambos se irmanam na identidade: Martin, vale relembrar, é o primeiro nome do autor de Onde está Wally?. Em termos mais amplos, o filme parece sugerir que a busca pelo amor envolve superar as frustrações afetivas e persistir em seu encalço, ainda que a passagem implacável do tempo e a incompatibilidade com determinadas pessoas tendam a nos desanimar e nos levem a supor que o problema maior esteja em nós. Poderíamos afirmar que Martín se encaixa no tipo nerd (ou em sua variação geek, de acordo com as terminologias mais recentes): ele coleciona brinquedos, joga videogame e tira seu sustento profissional como webdesigner. Por sua vez, Mariana divide os dias entre o tédio sem fim de seu pseudo duplex (“separado por cinco degraus”) com a rotina de vestir manequins e organizá-las em vitrines de lojas. Como se vê, ambos tiram seu sustento da habilidade em cuidar e enfeitar a vida (sites e vitrines) dos outros, o que evidencia o fato de estarem habituados a lidar com elementos predominantemente estéticos. Não por acaso, o mundo virtual está nas mãos de um sujeito que sofre de pânico; já o mundo das ruas está sob a atenção de uma mulher que trabalha solitariamente nos bastidores de uma loja de roupas. Ambos se especializaram em dar trato profissional à fachada de seus clientes, em suma. A notória dificuldade de relacionamento, demonstrada tanto por Martín quanto por Mariana, reflete-se em sua reduzida comunicação interpessoal e se confirma no emprego da linguagem 51 virtual. Em uma cena mais ou menos localizada na metade do filme, eles trocam uma série de mensagens por intermédio de um programa de chat. Martín se autodemonima como um usuário “mega-avaiable”, num dos momentos altos, em humor e drama, do filme. Coerente com sua concepção, talvez mais infantil que a de Mariana, ele transmite seu número de telefone, sugerindo um pacto a ser cumprido em um horário pré-determinado. Por sua vez, Mariana vivencia mais as ruas que o seu vizinho. O fato de decorar vitrines obrigaa a percorrer diversos bairros da cidade, alternando suas tarefas em postos de trabalho. A exemplo de Martín, ela é uma personagem decididamente ambígua, pois o fato de se mostrar fechada para balanço, em termos afetivos, não a impede de conhecer e se relacionar com algumas pessoas, como resultado de encontros espontâneos. Mas, de maneira similar a Martín (que se envolve com uma mulher confusa que cuida de cachorros), o resultado de seus breves enlaces costuma ser frustrante, se não desastroso. Por outro lado, há importantes diferenças em sua forma de viver. Se Martín passa a maior parte do tempo em sua kitchenete, escura e iluminada apenas pela tela de seu microcomputador, Mariana convive com alguma luz que chega pelas esprimidas janelas de seu apartamento: um lugar que beira o impessoal, praticamente sem quadros nas paredes, repleto de espaços vazios devido à pequena quantidade de móveis e demais objetos. A personalidade de ambos parece adequar-se ao ambiente em que sobrevivem: de coloração melancólica e pouco favorável a receber visitas. Martín ocupou ao máximo seus quarenta e poucos metros (substituir a cadeira de trabalho é seu primeiro grande feito), que funcionam como seu refúgio. Mariana não investiu tudo o que poderia em seu pseudo “duplex”: lugar de intervalo. É que, para ambos, a vida em potencial está do lado de fora. Quando falta luz na quadra em que moram, ambos terão seu primeiro encontro, habilmente escondido pelo diretor, pois à luz de velas. Dentre os objetos que manuseiam, Mariana possui uma xícara – com o seu nome gravado. Martín vive a refrear o desejo de abrir a embalagem de um boneco japonês. É emblemático que, em dado momento, ela despedace a louça, atirando-a na parede (Fragmentação de sua personalidade? Desejo de refazer a sua vida? Indignação com a existência que leva?). É relevante que Martín rompa a embalagem que o separa de seu brinquedo, justamente depois de abrir uma medianeira em sua apertada e lúgubre morada, a exemplo de sua vizinha. A abertura de pequenas janelas nas paredes laterais – até certo ponto inúteis – dos prédios em que habitam (prática bastante comum em Buenos Aires, para além do roteiro de Taretto) revela não só a convergência de caminhos, mas em especial a necessidade de luz, arejamento, sol. Falta novidade, falta coragem. Muito mais importante que o emprego sob demanda e instável orçamento mensal, é o amor que trará as respostas, dará maior estabilidade e sentido à existência vazia. Sob esse aspecto, a medianeira passa a ser mais que uma janela de onde se vê as coisas sob outra luz. Ela acumula, também, o papel de um portal em comunicação direta com a alma de ambos os protagonistas. Em entrevista concedida durante o Festival de Gramado, Javier Drolas 52 observou que “as personagens são obrigadas a sair, a encontrar-se com a vida” (TIEFENTHALER, 2011). A seu turno, a atriz Pilar López de Ayala ressaltou, em certa ocasião, que o fato se a história se passar em Buenos Aires não implica que não pudesse acontecer em Madri ou em qualquer outra cidade do planeta, pois o filme envolve temáticas universais. Livro Martin e Mariana manifestam outro traço em comum: o hábito de não cultivarem a palavra impressa. Para alguém habituado a enxergar no objeto livro uma das formas mais imperiosas de se instruir ou divertir, a cena em que Mariana termina o relacionamento com seu exnamorado pode soar estranha, especialmente em razão de seu posicionamento crítico perante o território em que vive. Na cena, Mariana está na cozinha, observando o parceiro. Enquanto ela está em pé, preparando algo para comer, ele lê concentradamente um livro, devidamente acomodado em uma poltrona. Nesse momento, ela conclui que eles não tinham nada a ver.19 Eis um episódio que permitiria algum questionamento, tanto sobre Medianeras, quanto sobre a representação do livro em demais filmes, seriados e novelas em nosso tempo. De fato, apesar de sua inegável preponderância cultural, o objeto livro não costuma protagonizar cenas de diversos títulos e suportes, afora quando cumpre o papel acessório de sintetizar determinado período histórico, como símbolo de determinada mentalidade ou hábito de outro tempo. É o que se vê, por exemplo, nos filmes baseados no romance epistolar e Chordelos de Laclos (As ligações perigosas) e no romance doméstico de Jane Austen (Orgulho e preconceito). Somos tentados a perguntar: 1. Será possível que o fato de haver leitores (e não-leitores) em uma relação afetiva potencialize incompatibilidades e precipite o término de um relacionamento? 2. Por que razão o hábito de ler costuma ser representado, mormente em nossos dias, como algo que só fazemos por motivos puramente pragmáticos (consulta a manuais, dicionários, contratos e afins) ou acessórios (leitura contra o tédio ou como gesto paliativo, quando não há mais nada para fazer)? Alguns responderão que isso se deve às aceleradas voltas do mundo pós-moderno, que nos distanciou das outras pessoas, blindou-nos emocionalmente e nos mostrou que a concepção utilitária do mundo impede que nutramos cutivos de outra sorte, especialmente aqueles que dizem respeito ao aprimoramento de nossas faculdades emocionais e mentais. Outros poderão argumentar que o cinema apenas reproduz aquilo que a maior parte das pessoas vivencia. Ou seja, substituímos a leitura linear e constante pelo acesso a micro-textos (frequentemente lidos diagonalmente), vídeos, músicas convertidas para centenas de arquivos 19 Fruto de uma provável ironia do diretor e roteirista Gustavo Taretto, quem interpreta o exnamorado de Mariana é o talentoso romancista argentino Alan Pauls – autor do sensível livro A história do pranto, publicado no Brasil em 2008. 53 mp3 e intermináveis imagens divulgadas por milhares de conhecidos nas redes sociais. Muitos deles, incapaz(es) de dar a mínima atenção aos demais, mas sequiosos das máximas opiniões alheias – expressas sob a forma de validação virtual. Para alguém acostumado a ler, e que acredita nas várias potencialidades (e algumas liberdades) propiciadas pelos livros – que estimula a memória, o conhecimento e a imaginação – o fato de ler não deveria constituir em diferença incontornável ou razão irreconciliável para o desentendimento entre uns e outros. Sob a ótica de um professor que se defronta há muitos anos com a tarefa de despertar o gosto pela leitura em seus alunos, a questão é ainda mais delicada e, portanto, demanda contínua reflexão. Como negar a relevância do livro, como objeto cultural e veículo mediador das muitas formas de entretenimento e aprendizado? Reflexão É oportuno levar em conta as palavras de Gustavo Taretto a respeito de seu filme, diversas vezes premiado, nacional e internacionalmente: “Medianeras não é um filme trágico, porque é contado pelo lado do humor. O ponto de vista é de esperança, porque os personagens se negam a resignar-se ao mundo virtual” (Folha de S. Paulo, 2011). Porventura haja uma saída positiva. Talvez o roteirista (que também dirigiu o filme) buscasse mostrar que a falta de contato com a música e a literatura sejam razões para o tédio, a melancolia e a solidão em que sobrevivem os personagens. É sintomático que, além de não terem o hábito de ler, ambos costumem ouvir músicas estrangeiras, cantadas em Inglês. Podem ser detalhes de somenos importância, mas sugerem voltar ao filme ainda outra vez. Medianeras também mostra o que acontece na existência miúda de muitos de nós, telespectadores. Sob esse aspecto, Buenos Aires pode representar qualquer cidade urbanizada e plena de indivíduos vazios de nosso planeta, tão só pragmático, padronizado culturalmente e mega individualista. Sob uma aparente historieta de amor com final feliz, mal se escondem algumas das principais questões contemporâneas a que nem sempre prestamos a devida atenção – nem mesmo quando apresentadas a nós mesmos, na grande tela do cinema. Talvez o maior achado de Medianeras seja favorecer a abordagem de questões aparentemente banais, comuns aos seres humanos em geral, de modo sublime e delicado. Sob esse aspecto, o filme ultrapassa em muito a categoria de programa de entretenimento, pois nos coloca diante de duas personagens cativantes que, a exemplo de nós, lutam por dar sentido à existência. Em meio ao asfalto, a despeito das relações fugazes e impessoais e apesar de si mesmos. Bibliografia BARBOSA, Neusa. Ator de "Medianeras" acha São Paulo "melancólica, como Buenos Aires". [07.08.2011]. Disponível em: http://cinema.uol.com.br/noticias/redacao/2011/08/07/javier- 54 drolas-ator-de-medianeras-acha-sao-paulo-mais-melancolica-como-buenos-aires.htm – Acesso em 10 de outubro de 2015. ENTREVISTA a Pilar López de Ayala: "Medianeras" (Casa America)[15.11.2011]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=dmKpymf8BXY – Acesso em 04.04.2016. HANDFORD, Martin. Onde está Wally? Trad. Valter Lellis Siqueira. São Paulo: Martins Fontes Editora, 1995. MEDIANERAS [Argentina]. (Cortometraje). Direção e Roteito: Gustavo Toretto. Produção: Simón Franco, 2005. 28 minutos. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=kDj9yoBJ0k8&ebc=ANyPxKo6xrleeAiDYH9I4tUQf6Yc_r_ai Re6aWTd0Ax6r8wWf7z6MmAlz-4x7wnVCwRU9zh1JKQ_e90Ix47o770vTqY2LABpmg – Acesso em 04.04.2016. MEDIANERAS [Argentina]. Direção e Roteiro: Gustavo Taretto. Produção: Natacha Cervi; Hernán Musaluppi, 2011. DVD. 93 minutos. PAULS, Alan. A história do pranto. Trad. Josely Vianna Baptista. São Paulo: Cosac Naify, 2008. SERAGUSA, Fabiana. “Medianeras" mostra solidão do delivery e do SMS, diz diretor. [12.09.2011]. Disponível em: http://guia.folha.uol.com.br/cinema/973114-medianerasmostra-solidao-do-delivery-e-do-sms-diz-diretor.shtml – Acesso em 10 de outubro de 2015. TARETTO, Gustavo; TIBURI, Márcia. Debate-papo' On/Off – Relacionamentos na Era Virtual, promovido pela 2001 Vídeo. Disponivel em https://www.youtube.com/watch?v=u94e7TKfjo&ebc=ANyPxKqt4OSgg1MW5RyHDF9casl2DEOoWO9abaxBd_jLDSwsix8XpmfmnvuYgFy3 jbPlw2s1Ggq6e6bSDjakQgt5GTwDIhUVvg – Acesso em 04.04.2016. TEIXEIRA, Gisele. Medianeras: conflito e solidão [18.10.2011]. Disponível em: http://noblat.oglobo.globo.com/cronicas/noticia/2011/10/medianeras-conflito-solidao411830.html – Acesso em 10 de outubro de 2015. TIEFENTHALER, Paulo. [Festival de Gramado] Entrevista com Javier Drolas, de Medianeras [10.08.2011]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=W64KW8P9_yc – Acesso em 04.04.2016. 55 Capítulo 2 Artemídia Ambiente A experiência autoral transmidiática em Pussy Jane Allsteam Fernanda Nardy Bellicieri, Universidade Presbiteriana Mackenzie, [email protected] Resumo: O presente artigo tem como objetivo analisar um trabalho autoral de construção de personagem em seu processo de transcrição do texto literário para a cena hipermidiática em formato websérie. Para além das questões estéticas e de linguagem próprias aos diferentes meios, e que inevitavelmente gravitam quando da constituição das narrativas, o foco de discussão está na análise de como o modo procedimental de pensar os diferentes meios interfere diretamente na concepção da personagem e em sua evolução na narrativa, sobretudo no caso do formato webserie. O intuito não é uma análise que seja extrapolada a qualquer tipo de personagem ou autor, mas mostrar através de um estudo de caso, em todas as suas variáveis reguladoras ,como a partir de uma experiência autoral, autor e personagem fundem-se e se complementam-se na questão da autoria auxiliados pelo estriamento transmidiático. Palavras-chave: personagem; transmídia; autoria; narrativa. Abstract: This article aims to analyze an authorial character work construction on its transcription process: from literary text to hypermedia format. In addition to the discussion about aesthetic and specific media languages issues, that inevitably gravitate when concerning narrative constitution, the focus is in the analysis of how the procedural way of thinking in different medias affect the character's the design and its evolution in the narrative, especially in an webserie format. The intent is not create an analysis that can be extrapolated as a rule to any character or author, but to show through a specific case study, in all its regulatory variables, such as from an authorial experience, author and character merge and complement themselves in transmedia creation process. Keywords: character; transmedia; authorship; narrative. Pussy Jane Allsteam: uma experiência narrativa em processo A personagem Pussy Jane teve seu início em formato literário seriado, surgiu-me em uma série de contos e crônicas derivados da mesma temática central: o papel da mulher na atualidade, seus dilemas em relação a posicionamento, questionamentos sobre sua função social e expectativas, reais ou forjadas. Pussy Jane é uma personagem que, claro, empresta muito de sua autora (creio que todos os personagens o façam) mas que, enquanto personagem, possui 56 sua autonomia, que lhe é conferida algoritmicamente: uma vez que um personagem possua estrutura bem definida, por mais que tenha pedido emprestado da experiência do autor, distancia-se dele em termos de lógica estrutural. É aparentemente o mesmo processo que se tem na relação entre ator e fisicalidade e lógica de um personagem, com a diferença de que, enquanto autor, tem-se uma cumplicidade autoral de partida com a personagem; enquanto autores, acompanhamos e fomos cúmplices de seu nascimento. O ator adota, o autor pari. Nesse sentido a experiência do autor-intérprete parece ser única, contaminada de uma propriedade que é corpo, lógica, gênese; é poder criar o algoritmo e tecer-lhe as variáveis, afinal o autor tem controle sobre história da personagem e contextos a que este será exposto. Ainda que a autonomia do personagem seja conquistada, é a autonomia através do autor. Figura 1: imagem de capa do canal de youtube da personagem Pussy Jane Allsteam Fonte: produção autoral de arquivo pessoal. Uma relação: em princípio inofensiva, de descrever teses sobre o mundo e percepções que, de repente, percebi, autora, já não eram mais parte ou assinadas por mim; eram de uma outra personalidade que, sim, possuía pontos de intersecção, mas nascia-me de uma lógica diferente, de uma pressa outra, um tempo atemporal. Uma companhia: que me trazia lembranças da infância misturadas a uma infância que não tinha tido, lembranças de circunstâncias não vividas, mas tão vívidas que eram (e não mais) minhas, me pertenciam e não pertenciam, não me definiam mas me definiam por espaço cedido, por compaixão e profundo respeito à alteridade. Meus impulsos autorais, percebia, eram correlatos e muito parecidos à apropriação que fazia, enquanto corpo físico, do outro, do personagem; era correlato a meu processo de construção de outros, enquanto atriz. A corporificação dada via texto, enquanto autora de personagens, era a mesma corporificação dada enquanto corpo físico e emocional, quando enquanto atriz. O personagem, enquanto autor de mim, autora, era o mesmo que tomava-me no corpo próprio enquanto atriz. Desse processo de escrita, nunca linear, surgiu a personagem Pussy Jane Allsteam sob formato texto. Transitava Pussy Jane via diferentes contextos, sob formato de contos e crônicas. A não linearidade era uma necessidade da personagem (a ela não bastaria uma só história) e 57 também uma necessidade da autora, de conhecer aquele outro que lhe conhecia tão bem, que emprestava características de si. Era necessidade de ambas, Pussy Jane e Fernanda, conviverem por muito mais do que um conto, ou dois. Assim surgiu o livro "Contos de F... ", uma coletânea de histórias, ou de resultados das diferentes variáveis narrativas a que expunha Pussy Jane Allsteam. Mas o livro, após concluído, não foi suficiente para que me desvencilhasse da personagem; surgiu a necessidade de sua presença física: Pussy Jane não deveria ser apenas papel. Meu algoritmo enquanto atriz, achava o verbo insuficiente. Acredito que caminhamos rumo a uma oralidade nova, de um tipo diferente - mutação que será certamente muito difícil de assumir. Em direção a uma oralidade que, graças ao audiovisual, aos meios eletrônicos, não exige mais a presença física, mas permanece muito ligada à visualidade. Não diria que a escrita, a literária em particular, tenha desde já perdido seu estatuto. Mas pergunto-me que função ela ainda desempenhará em vinte anos. Pode ser uma função puramente utilitária? A ideia da literatura como algo venerável, contendo autoridadee valor estético, merecendo uma atenção particular, vai se esmaecer, sem dúvida[...] (ZUMTHOR, Paul, 1995, pg 111). Foi dessa necessidade de tornar a personagem mais presente que apostei em sua versão audiovisual seriada, formato websérie, por motivo de praticidade autoral e, invariavelmente, maior tempo de exposição à autoria; além de o formato seriado ser adequado ao modo de experimentar a personagem que havia desenvolvido enquanto texto, desenhando-a não linearmente, através de diferentes crônicas literárias em "Contos de F…”. Uma outra questão aqui, que se liga diretamente à motivação da criação da websérie, é o fator financeiro e a possibilidade real e muito palpável de desenvolvimento da série na mídia internet. O custo de produção é muito baixo se comparado a qualquer outra mídia e formato e, em termos de alcance de público, as possibilidades nunca foram maiores. Sob os aspectos viabilidade de produção, custo de veiculação e alcance de público, fatores que, dependendo do formato em questão, tornam-se muitas vezes excludentes (por exemplo, teatro de rua pode ser feito a baixo custo, mas em termos de público, não existe qualquer tratativa de recorte de nicho e o alcance restringe-se ao tempo real da performance); sob diversos aspectos de viabilidade, nunca houve modo mais interessante de se produzir ou possibilidade de autoria encontrar eco, quanto quando do advento da internet como ferramenta de produção, divulgação, exibição e interatividade entre autor e público; e entre autor-ator e público, no caso da personagem desenvolvida. A websérie é hospedada em site próprio e está em sua terceira temporada (treze episódios por temporada), contando tanto com episódios audiovisuais quanto com crônicas. O que mudou em relação à autoria quando do foco apenas no texto? Muita coisa: Pussy Jane agora possui um corpo físico, o próprio corpo físico da autora que lhe havia emprestado a estrutura dos sentidos necessária à percepção e a sua constituição algorítmica. A escrita passou a ser muito mais fluida e o estilo do texto, muito mais autoral. O texto da personagem tornou-se corpo próprio, com características mais delineadas de uma sua lógica, que descobri, bem diferente da minha. Enquanto atriz, de mesmo modo, o texto improvisado passou a surgir com mais frequência, inclusive durante as gravações. Frases e falas que talvez, enquanto 58 somente autora, jamais surgiriam. O texto, muitas vezes se resolve quando da ação, em cena, da personagem. A essa cumplicidade alia-se também o fator pós-produção: as edições de imagem são feitas pela autora-atriz. Existe, portanto, um controle do caos narrativo levado às últimas consequências: até o último instante (que inexiste) existe a possibilidade de mudança ou alteração da história; o processo autoral nunca termina e é reiterado a cada etapa de concepção do produto final. A repetição do processo, a cada novo episódio (escrita do texto, produção, gravação, revisão de material, edição, divulgação) nunca é, em si, uma repetição, mas uma reiteração do potencial narrativo dos algoritmos de autor e personagem, dentro de uma narrativa muito maior: a construção de personagens pelo autor e a construção do autor pelo personagem. Sobre as questões de autoria e alteridade na concepção narrativa e consequentemente na evolução e trajetória da personagem, algo interessante a pontuar: o colaborativo, apesar da insistência narcísica do autoral, tem se tornado bastante forte. Desde as vozes polifônicas dos outros em mim (autora) e minhas percepções sobre os outros, que logo mais se tornam não mais minhas enquanto autora, mas enquanto performer, e logo mais nem isso (minhas percepções contaminam-se integralmente de Pussy Jane, que já não mais se pode medir em porcentagens de Fernanda, outros, outros na Fernanda e Fernanda sobre os outros); até a influência da audiência de terceiros e suas opiniões e sugestões sobre temas (o que é parte integrante da polifonia constante), bem como a intervenção direta de outros artistas/produtores de linguagem no trabalho (desenho, música), reiteram o dado performático da questão da autoria compartilhada, viva. Esse compartilhar, sob muitos aspectos, é altamente desejável na performance, sobretudo pelo objetivo de espelhamento/estranhamento que se propõe explícito em intencionalidade e intenção do corpus ou instituição Performance enquanto arte ou não arte, de acordo com o sujeito de linguagem exposto, disposto, ele também, compartilhado. Dessa raiz autoral compartilhada, Pussy tornou-se também desenho e, a partir do desenho e da possibilidade de, através da linguagem gráfica, acionar outros aspectos ficcionais que a falta do domínio da técnica impunha-me, pude configurar novos personagens, mais lúdicos e fantásticos, com que a linguagem audiovisual, registro videográfico, não seria capaz de arcar. Assim, a partir de uma habilidade técnica que não tenho (escrita através do desenho) mediante a colaboração autoral de Maria Lúcia Nardy Belicieri, foi-me aberto um novo leque de possibilidades narrativas enquanto autora (novos contextos e personagens foram adicionados) e também enquanto performer/personagem (ampliou-se o universo de relacionamentos e ações da personagem e, consequentemente, a diversidade de procedimentos narrativos à disposição autora), num processo de colaboração contínua e constante atualização. Esse deve ser também um princípio da narrativa performática: a atualização, o alcance da esfera potencial. Não que isso fosse improvável no universo analógico; a literatura sempre foi espaço incondicional de possibilidades, afinal o papel em branco é o melhor suporte da linguagem, seja em sentido estrito ou figurado. No entanto, a questão analógica da mera possibilidade, em ambiente digital, alcança nível paradigmático de potencialidade linguística operável, acionada tecnicamente e algoritmicamente processual. A atualização é a regra. A página em 59 branco é absolutamente configurável enquanto suporte e não suporte, enquanto dado perene e transitório. O "o que se queira" linguístico é o movimento do jogo. E isso, inevitavelmente transforma o autor e o sentido da autoria, reforma o performer, inverte papéis, reverte visões, transmuta sentidos; e, acima de tudo, corporifica, no sentido de trazer ao tempo atual, da sempre potencialidade, a concepção criativa. Da quarta parede ao algoritmo Na experiência autoral, em Pussy Jane, inicialmente essa necessidade de corporificação e exercício da dobra performática deu-se através da escrita de uma peça, idealizada e com direção de Hânia Pilan_, parceira de muitos outros trabalhos, com papel fundamental no desvelamento dessa relação corpo-texto que tenho estabelecido. Pussy Jane em sua versão montagem teatral já nasce contaminada pela lógica não linear da montagem anterior "A via: Passageiros” e menos ritualística do que estetizada em cena. O dado ritualístico havia sido exaustivamente operado na concepção do corpo-texto; em se tratando de presença cênica, a ação da personagem seria controlada. A estrutura da montagem (ainda não relizada) baseava-se em, a exemplo do que ocorreu na experiência de "A via: Passageiros", uma seleção de textos literários sobre a personagem (questões-chave à sua concepção: infância, relacionamentos afetivos, lida com a feminilidade) adaptados à cena tradicional (performer - público, sem interação direta), com utilização de multimídia. A partir da experiência de "A via: Passageiros", e do contato com a não linearidade enquanto estrutura narrativa e cênica_, tanto autora-personagem, quanto diretora, Hânia Pilan, optamos pela escrita de um roteiro que assumisse a multimídia enquanto mais do que cenário: personagem, memória, sensação, universo interno e externo de Pussy, que seria, por sua vez, ”interpretada”_ por mim, autora, em tempo real. A escrita do roteiro da peça foi baseada na relação direta entre Pussy e a projeção imagética de suas memórias, pensamentos, seus universos dentro-fora. A linguagem projetiva constitui parte integrante e fundamental da narrativa. Assim, a peça seria um monólogo. Desta vez, por opção fundamentada já na escolha consciente e assunção de que o trabalho era menos teatro do que performance, diferentemente do que havia sido feito em "A via: passageiros", em que o monólogo foi uma questão secundariamente estética e, sobretudo, uma resultante da dificuldade operacional (não havia atores disponíveis para abraçar a ideia). Talvez seja essa a mágica do exercício de linguagem e, sobretudo, da linguagem performática: a operacionalização do ruído, do desvio. Ainda que à época da primeira performance teatral o eu, autor, ainda não estivesse ciente de que estava enveredando para o universo performático, as oportunidades, talvez trazidas de forma casual, acabaram operando a fim de se tornarem método, mesmo que por alguns instantes, mesmo que dali a pouco outro algo se descobrisse ou outro ruído transformasse-se em insight. "Practice-led-research, research-ledpractice" de forma muito clara e muito mais ancorada na percepção e no dado autoral do presente - de usar o que e o como se tem disponíveis para produzir linguagem, agora. E foi esse estágio de elaboração da montagem que, enquanto experiência de organização do roteiro e subsequentes leituras (e apesar de ainda não ter sido realizada) acabou sendo 60 responsável pela, novamente, necessidade (mais que ideia) de uma nova dobra da relação autor-personagem: transformar Pussy em audiovisual ancorado em ambiente hipermidiático, um palco absolutamente perfeito ao dado da não linearidade e da atualização do sujeito de ação (tanto de Pussy personagem, quanto da autora e das possíveis e prováveis transubstanciações e transferências entre ambas e tantas) que o roteiro da montagem da performance teatral mais que sugeria, apontava veementemente como único caminho narrativo. Nesse sentido, organizei, enquanto autora, um novo palco para Pussy Jane: a internet, com seus modos procedimentais adequados à não-linearidade e à atemporalidade que já caracterizavam-me a escrita da narrativa da personagem. A ideia não foi adaptar os textos inicialmente escritos enquanto literários (como havia sido feito na proposta de montagem da peça) mas produzir roteiros audiovisuais curtos, próprios à estética do ambiente digital: enciclopédico, atemporal, não linear, ágil e participativo. Para organizar o processo, tomei por base as questões-chave constituintes da gênese da personagem e de minha própria, em certo sentido: o gênero feminino, problemas de relacionamento afetivo, lida consigo e com os outros em si, auto-estima em infinito processo de construção; iniciando a produção de roteiros que abordassem, em situações curtas e cotidianas, tais questões. Aqui, no entanto, diferentemente de quando se pensa na liberdade de elaboração em palco teatro, ou qualquer outra modalidade presencial (levando em conta é claro, apenas os aspectos topológicos e midiáticos), o corpo-texto já estava contaminado, em sua concepção, pelas implicações midiáticas, ou o palco utilizado; e os roteiros foram escritos em função da compleição deste palco (a tela), sendo, em termos de autoria, muito menos ritualístico e mais contaminados ou limitados pela estética do possível, em termos técnicos: o audiovisual em ambiente digital. Assim, os roteiros dos vídeos eram curtos, não mais de cinco minutos, especificamente pensados para adaptação à plataforma mobile, portanto, com uma narrativa com foco na personagem e utilização de enquadramentos mais fechados, restritos a plano médio e primeiro plano. Os vídeos foram produzidos no sentido de reiterar, sintetizadamente, a personagem enquanto corpo de suas (minhas) questões existenciais recorrentes, em uma narrativa constituída episódica, em temporadas e, por questões operacionais, sempre em nível potencial, sem início meio ou fim. Os episódios foram estruturados não linearmente, sendo sempre de arcos curtos, com os conflitos-chave resolvidos dentro do tempo do próprio episódio. O vídeo foi a ferramenta de linguagem de partida para configuração do trabalho. No entanto, como não poderia deixar de ser e ainda que eu não suspeitasse quando do desenho inicial do projeto de Pussy Jane em hipermídia (novamente a insistente alquimia desveladora do trabalho performático guiado pela experimentação), retornou-me a necessidade de produzir crônicas ilustradas da personagem. A ideia da produção textual para rede veio como forma de aprofundamento do caráter existencial e onisciente que a personagem acumulava, tanto em sua versão literária, quanto no projeto de montagem cênica. Os episódios audiovisuais, em seu tempo restrito, limitados à técnica adaptada ao mobile e aos recursos disponíveis, diluíam, da personagem, sua característica reflexiva, levando-lhe também a profundidade nas questões abordadas (ainda que seu tom de introspecção fosse sempre satírico e irônico). Assim, a 61 websérie, em palco internet, passou a constituir-se enquanto seriado de vídeos e crônicas, criados para reiteração do sujeito de expressão: tanto a autora quanto, inevitavelmente, Pussy Jane, que se constituía, em seu percurso iniciado literário até seu endereço online, mais que papel e verbo imaginário, dígito corporificado, imagem e voz polifônica, de personagem e personificação, de persona e sujeito autoral. Pussy Jane se constituía enquanto narrativa prismática. O fator tecnologia operou explicitamente para a criação de um palco muito adequado à característica polifônico-prismática da personagem em sua função tradutora da subjetividade autoral de um sujeito de ação. Referências Bibliográficas AZEVEDO, Wilton. Ambiência da escritura expandida. Revista do Programa de Pós- graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo - v.6 - n.1 - p. 102 -112. 2010 BRECHT, Bertold. Escritos sobre teatro.Buenos Aires: Nueva Vision, 1973. BRIGGS, Asa e BURKE, Peter. Uma História Social da Mídia: de Gutemberg à Internet; Maria Carmelita Pádua Dias; revisão técnica Paulo Vaz. - Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004. GIANETTI. Cláudia. Estética digital: sintopia da arte, a ciência e a tecnologia. Trad. de Maria Angélica Melendi. Belo Horizonte: C/Arte. 2006. GOSCIOLLA, Vicente. Roteiro para Novas Mídias. São Paulo: Senac. 2003. LANDOW, George. Ciberspace, <http://www.ciberartsweb.org>. hipertext & Critical Theory. Disponível em MANOVICH, Lev. The language of New Media. Massachusetts: The MIT Press, 2001. MURRAY, Janet H. Hamlet no holodeck: o futuro da narrativa no ciberespaço. São Paulo: Itaú Cultural: Unesp, 2003. ZUMTHOR, Paul. Escritura e nomadismo: entrevistas e ensaios: Ateliê editorial. São Paulo: 2005 62 A Criação de Um Vídeo-Performance – O DeZenLeio, A Virtude do Passado: Uma Produção do Laboratório de Humanidades Digitais do Mackenzie – LHUDI. Doutoranda Maria Lúcia Wochler Pelaes, E-mail: [email protected]; Mestranda Liliane Alfonso, E-mail: [email protected]; Realização: Laboratório de Humanidades DigitaisLHUDI, E-mail: [email protected]; Orientador do Projeto e Coord. do LHUDI: Profº. Dr. Wilton Azevedo, E-mail: [email protected]; Outros colaboradores deste artigo e integrantes do LHUDI20 Resumo: O vídeo-performance DeZenLeio configura-se como uma obra audiovisual e performática, de características poéticas, criada em ambiência digital através do uso de dispositivos tecnológicos, a partir de um roteiro de curta metragem que tem como referente indicial os registros fotográficos capturados na Casa de Saúde Francisco Matarazzo, antiga Maternidade São Paulo. Esse vídeo é uma realização do Laboratório de Humanidades Digitais LHUDI- da Universidade Presbiteriana Mackenzie, o qual encontra a sua relevância na utilização de infraestrutura tecnológica, na capacitação teórica-reflexiva e na produção em equipe dentro do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação, Arte e História da Cultura. O LHUDI consolida-se a partir de uma proposta interdisciplinar que objetiva a ampliação de um código digital como um meio eficaz de produção de conhecimento pela intermediação de dispositivos tecnológicos, criando um impacto social, enquanto incubador de projetos e inovação de processos. Palavras chave: Laboratório Digital, Poética Digital, Interdisciplinaridade; Humanidades, Vídeoperformance. Abstract: The DeZenLeio video performance appears as an audio-visual and performative work, poetic features, created in digital ambience through the use of technological devices, from a short film script whose relative indexical photographic records taken from the house Health Francisco Matarazzo, former Maternity São Paulo. This video is a realization of the Digital Humanities Lab -LHUDI- Mackenzie University, which finds its relevance in the use of technology infrastructure, the theoretical-reflective capacity and production team within the Graduate Program in Stricto Sensu Education, Arts and History of Culture. The LHUDI is funded from an interdisciplinary approach that aims at expanding a digital code as an effective means of knowledge production for the intermediation of technological devices, creating a social impact as incubator projects and innovation processes. 20 Wilton Luiz de Azevedo (São Paulo- SP 1958). Designer gráfico, ilustrador, desenhista, programador visual e professor. Graduado em Comunicação pela Escola Superior de Propaganda e Marketing - ESPM em 1980. Mestre e doutor em Linguagem, Comunicação e Semiótica pela PUC/SP. Pós- doutor pela Universidade de Paris, Laboratoire de Paragraphe, Paris – França. Autor dos livros O Que É Design, pela Editora Brasiliense, e Os Signos do Design, pela Global Editora. Em 1998 organizou, editou e foi responsável pelo design gráfico do CD-ROM Interpoesia: poesia hipermídia interativa, com poesias de sua autoria e Philadelfo Menezes (1960 2000). Atualmente é professor do programa de pós-graduação em Educação, Arte e História da Cultura da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Mestranda Renata Barboza Carvalho, E-mail: [email protected], Mestranda Simone Mina, E-mail: [email protected], Mestrando William Jordão do Prado, E-mail: [email protected], Doutoranda Rita de Cassia Castilho Varlesi de Azevedo, E-mail: [email protected], Doutoranda Fernanda Nardy Bellicieri, Email:[email protected], Profª Dra. Maria Amélia Eliseo, E-mail:[email protected], Profª Dra. Keller Duarte, Email:[email protected]. 63 Key words: Digital Laboratory, Digital Poetics, Interdisciplinary, Humanities, Videoperformance. 1 Introdução O nosso projeto é baseado num conteúdo estético que tem como fundamento um vídeoperformance, onde o tempo é uma referência indicial. Um dos objetivos deste estudo consiste na criação de uma escritura que para a história de um código pode ser interpretada como erro, mas que para nós não o é. Esse ruído, essa ruptura produz poesia dentro da ambiência digital, onde o espaço e o tempo são discursos literários e poéticos. Esse ser em trânsito, errático e rizomático, encontra no ente a qualidade do seu ser: uma identidade transitória que se comporta a partir de diferentes referências e que transita num sistema de redes identificando imagens que se desdobram em outras, na articulação de pensamentos em teias. A semiótica de Peirce (1977, p. 220) propõe a ideia de uma tríade epistemológica, através da qual o pensamento do ser humano é divido em: indução, dedução e abdução. Este último desconsidera, segundo Azevedo (2009, p. 102-103), a cisão entre “[...] erro e acerto, estranhamento e mesmice, abstrato e figurativo” (AZEVEDO, 2009, p. 103). Desta forma, a cultura digital gera autonomia, através do pensamento abdutivo, enquanto um processo caótico, errático e que insurge em um tempo e um espaço sígnicos. O DeZenLeio: A Virtude do Passado, título do nosso estudo (cf. figura 01), pode ser compreendido como o desmanche de um rolo num fio randômico; ‘desleiar’ é desaparecer de forma rizomática, ao sabor do acaso. Figura 01: Imagem do Projeto Fonte: Autor da imagem- Profº. Dr. Wilton Azevedo. De Zen Leio – LHUDI. Os elementos presentes nas imagens propostas geram uma narrativa estética não para que os fatos aconteçam, mas para que sejam um índice criativo. Nessa trajetória de ruptura e 64 inovação há a constituição de signos caógicos, de tal forma que uma tela de computador bidimensional produz imagens tridimensionais. Cada linguagem tem uma gramatologia própria. Dois algarismos que fundamentam a linguagem binária do computador possibilitam infinitas ressignificações. E cada significado gera uma nova leitura, dentro dos sistemas que são códigos que fomentam a construção de conteúdos não lineares e, portanto, interdisciplinares. No campo do referente indicial deste estudo, as fotos da estrutura arquitetônica da Maternidade São Paulo, “[...] as impressões visuais que restaram na memória coletiva da instituição, provocaram a tentativa de recuperar descritivamente o real, o referente, pois o signo não é neutro nem inocente [...]” (CHALHUB, 2001, p. 13), mas as digressões da composição poética permitiram a invenção de um novo “estado da arte” onde as percepções do fruidor criam uma nova representação do não-ser. Essa “parataxe” é um sintaxe não linear dos códigos, tal que a linguagem poética presente na ambiência digital torna-se um escritura expandida nesse espaço sígnico. A poesia digital apresenta uma linguagem poética não-linear e que é capaz de produzir uma nova noção de ritmo, de narrativa e de discurso, de tal forma que: “O pensamento por imagem não é ilógico, mas alógico. Tem a forma de mosaico, sem relevo com vários níveis de uma sintaxe” (DEBRAY, 1993, p. 319). Há um processo de desmaterialização da imagem poética dentro da ambiência digital. Um “[...] efeito de realidade que é a aptidão da imagem para não parecer como tal. [...] Uma entidade virtual é efetivamente percebida por um sujeito, mas sem realidade física correspondente” (DEBRAY, 1993, p. 274- 278). Desta forma, a poesia digital, frente à diversidade que caracteriza a ambiência digital, torna-se uma escritura expandida, pois marca um processo que se manifesta em diferentes direções e que contempla um saber poético intersígnico, cujo o espaço torna-se cada vez mais interativo e mutável, configurando-se como um fenômeno semiótico enquanto um instrumento de produção da cultura digital. 2 O Laboratório: breves considerações O Laboratório de Humanidades Digitais -LHUDI apresenta-se como uma plataforma de estudo interdisciplinar que utiliza os meios digitais, a partir da aplicação de softwares de última geração, que podem ser caracterizados como dispositivos que disponibilizam diferentes recursos para a realização de projetos na área de formação Stricto sensu, composta pelos cursos de mestrado e doutorado na área de Educação, Arte e História da Cultura. O laboratório é uma metadisciplina que se faz através da intermediação de dispositivos tecnológicos, criando um impacto social, enquanto incubador de projetos e inovação de processos, como apontado na figura 02. 65 Figura 02: De Zen Leio no LHUDI Fonte: Foto da Doutoranda Maria Lúcia Wochler Pelaes. Desenvolvimento do Projeto. O Laboratório de Humanidades Digitais pode ser caracterizado segundo algumas de suas funções: Espaço: Exploração de dados georeferenciados nas humanidades; Mundos Virtuais: Recriação e exploração de ambientes humanos presentes e passados; Edição e Preservação Digital: Edições críticas eletrônicas e preservação do patrimônio; Visualização: Construção de interpretações visuais de dados das humanidades; Ferramentas: Apresentação e discussão de softwares aplicados às humanidades. A importância das novas tecnologias se consolida pela possibilidade da digitalização estar a serviço da manutenção dos acervos da história, produzindo uma nova cultura, a cultura digital. O signo fundamental da computação baseia-se na linguagem binária e permite o desenvolvimento de novas metodologias digitais, sendo capaz de gerar novas leituras e novas literaturas. A Web é um espaço coletivo e público. Envolve uma formulação comunitária. Acaba por se constituir numa comunidade eletiva, mesmo que virtual. Para Deleuze (1985), somos deserto e estamos povoados por tribos, por multidões... que se deslocam como nômades dentro de nós. De algum modo, há uma poética dos afetos, do virtual que nos habita e nos consome, numa inadequação da razão. A escritura digital cria um modelo de alfabeto digital, através da criação de signos específicos da ambiência. A linguagem, desta forma, acontece como um dispositivo ideológico, tal qual a máquina fotográfica, enquanto possibilidade de articulação sígnica. Quanto à linguagem digital, ela baseia-se numa relação que transcende à dualidade do sujeito e objeto ou de um emissor e um suposto receptor. Mas caminha baseada numa alteridade de signos e de sujeitos, em enunciados definidos por suas tonalidades dialógicas. “As tonalidades dialógicas preenchem um enunciado e devemos levá-las em conta se quisermos compreender até o fim o estilo do enunciado” (BAKHTIN, 2000, p. 317). Para Bakhtin (2000, p. 333), o teor do objeto do sentido garante a expressividade do enunciado, de tal forma que se diferenciam duas instâncias de comunicação, numa complexa 66 dependência entre dois autores: aquele que cria a obra e o sujeito que a recria na condição de espectador, que pratica o ato de cognição e juízo. “O acontecimento na vida do texto, seu ser autêntico, sempre sucede na fronteira de duas consciências, de dois sujeitos” (BAKHTIN, 2000, p. 333). Para Bakhtin (2000, p. 333), o estenograma do pensamento humano, isto é, o discurso realizado por códigos na composição de signos, é tecido na relação texto- contexto, de tal forma que sua singularidade filia-se à subjetividade das consciências envolvidas com o ato de seleção de cada signo. Desta forma, o signo é um fenômeno que encontra a sua origem seminal na palavra grega sinie que significa sinal. Da mesma forma a imagem encontra a sua origem nos códigos advindos da tecnologia, palavra que contém a techne e a logos, conceito e matéria. A técnica que presume a apropriação do conceito e, desta forma, da matéria. A técnica que fundamenta a linguagem digital é a tecnologia da informação e que tem como um relevante objetivo a criação de um memorial humano, em ambiência digital. A urgência da memória nos alude à questão da angústia do precário, relativa à condição humana, quanto a sua finitude. Para Debray (1993) os aparatos tecnológicos surgem para eternizar o humano, na angústia do precário. O nascimento da imagem está envolvido com a morte. Mas se a imagem arcaica jorra dos túmulos é por recusar o nada e para prolongar a vida. As artes plásticas representam um terror domesticado. Por conseguinte, quanto mais apagada da vida social estiver a morte, menos viva será a imagem e menos vital nossa necessidade de imagem (DEBRAY, 1993, p. 20). A imagem e o registro de eventos passados e atuais, funcionam como uma garantia para a eternidade das memórias, das histórias e das culturas, de tal forma que a consciência sobre a não eternidade é pré-histórica. A própria memória é história e ao mesmo tempo cultura. Le Golf (1999, p. 423), refere-se à memória “como propriedade de conservar certas informações”, ligada às funções psíquicas, através das quais o homem pode “atualizar impressões ou informações passadas”. Desta forma, o acervo digital atua como aparato de memória, moderno, uma ciência auxiliar da história, uma nova epigrafia (LE GOLF, 1999, p.431). Le Golf (1999) comenta a grande importância da memória funerária, como as estelas sacerdotais ou reais egípcias, nas quais existe a presença de uma “narrativa histórica” que funciona como um arquivo mnemônico dos acontecimentos significativos da época, assim como a importância dos documentos arquivados nos mais diferentes suportes (osso, estofo, pele, papiro, pergaminho, papel, entre outros). E com isso a criação de “instituições de memória”, como arquivos, bibliotecas e museus, permitindo registros da “memória real”, onde estão narrados feitos que estabelecem “a fronteira onde a memória se torna história” (LE GOLF, 1999, p.432-434). A transformação ocorrida nos processos de “memória artificial”, para Le Golf, consiste na passagem da oralidade à escrita e o aparecimento de “processos mnemotécnicos”, permitindo a memorização palavra por palavra, que segundo Goody (apud LE GOLF, 1999), trata-se de uma operação efetuada numa certa ordem e que permite “descontextualizar” e 67 “recontextualizar” um dado verbal, segundo uma “recodificação linguística” (LE GOLF, 1999, p.435-436). As relações digitais baseiam-se em códigos específicos, criando um outro nível de relação conceitual, onde a relação emissor-receptor desaparece, gerando um indivíduo passivo, reativo e interativo que estabelece-se através da comunicação digital, por meio da alteridade nos veículos digitais. Segundo Certeau ( 1994), o cotidiano, a partir do século XVIII, teve relevante mudança nos hábitos de leitura como razão fundadora do conceito teleológico e, portanto, um discurso baseado nessa unidade referencial. Em tais meios, a leitura das imagens e textos cria uma relação de subversão. Segundo Cavallo e Chartier (2002), a leitura silenciosa é a arqueologia fundadora da subversão, do erotismo e da devoção dos atos cotidianos da leitura, feita num tempo interior, sob o comando do pensamento que projeta as imagens livres e constrói seus cenários imaginéticos, convertendo a escritura dos aparelhos escriturísticos da oralidade em fala interior. “Ainda mais importante, a leitura privada oferecia meios para expressar pensamentos políticos subversivos” (CAVALLO; CHARTIER, 2002, p. 169). A leitura das escrituras digitais provoca igualmente esse silêncio, esse pensar particular num tempo interior, mas que se projeta nas dimensões e correlações de rede. São negociações de sentidos e trajetórias percorridas na ambiência, propondo um novo paradigma conceitual de leitura e escritura poéticas. Documentar o novo mudou a perspectiva através do share, do compartilhamento de experiências e seus relatos como uma nova concepção análoga ao “avatar”, dentro de um sistema mediador de realidades possíveis. Realidades que parecem imitar a vida. Simulacro ou mímese? Essa realidade virtual, frente às concepções de mímese e verossimilhança, dentro da poética de Aristóteles, permitem crer que, segundo Aristóteles: O poeta é definido mais como aquele que compõe histórias (mitos), do que como versificador, já que se identifica como poeta pela representação de ações, que podem até, verossimilmente, provir de eventos reais. Seu campo de ação cobre todo o domínio do persuasivo, ou seja, daquilo que o espectador aceita crer (COSTA, 2006, p. 23). Temos uma nova identidade terrena, que a partir de um novo criptograma, comunica-se em ambientes digitais como o Face e o WhatsApp. Há uma ambição cronotópica, dentro de um tempo e de um espaço absolutamente virtuais, mas que são referentes de realidade. A cultura digital permite a formação de estruturas metodológicas que ora são “[...] multidisciplinares, ora possibilitam a interdisciplinaridade e, finalmente, encontram a transdisciplinaridade em seus processos” (ALVARENGA et al., 2005). Desta forma, pode-se afirmar que a produção no laboratório digital é por princípio interdisciplinar, pois a concepção de disciplina desaparece. 68 As humanidades digitais apresentam um dado nível de relações humanas que presumem uma representação, uma simulação e uma imersão nos códigos e demandas contemporâneas. O labirinto digital muda o percurso do outro de passivo e reativo para interativo, possibilitando uma nova identidade. Esta questão é ainda mais contundente quando se leva em conta as novas formas de subjetividade e identidade que são cultivadas pela cibercultura. O cibernauta se apresenta como um ser multifacetado e rodeado por ambiguidades criadas pelos seus vários modos de se deixar ver e construir identidades nos diferentes ambientes da rede. São multiplicidades com as quais a pessoa encena e brinca no palco ubíquo das subjetividades (SANTAELLA, 2013, p. 85- 86, apud CAMARGO, 2015, p. 3). O homem contemporâneo tem sua identidade digital a partir de uma plataforma de discussão onde as relações de causa e efeito são questionadas, pois as características da vida de cada indivíduo não são fatores determinantes da sua “poesis”. O acervo, dentro do conceito de humanidades digitais, é um registro civilizatório que acontece através da experiência coletiva da produção de textos digitais e poéticos, através de trabalhos artísticos on line. A concepção de site nos conduz à reflexão de que a credibilidade de um código está diretamente ligada a sua perenidade e durabilidade dos seus conteúdos. Por esta razão, indagamos se ainda não dispomos de meios para garantir a sua perenidade? Os próprios códigos digitais revogam inúmeros paradigmas fundados numa forma de cognição e de conhecimento lineares, transgredindo as formas e criando relações de pensamento e linguagem que atuam numa dinâmica transversal e em rede, presumindo conexões e mais conexões que apontam para um infinito de possibilidades. Há uma integração e ao mesmo tempo uma polarização entre o público e o privado, o cronológico e a flexibilidade dos tempos cronológico e biológico, de tal forma que as relações do indivíduo com o mundo e consigo mesmo criaram um fenômeno contemporâneo e interdisciplinar passível de estudos nas mais diferentes dimensões. Essas relações são dinâmicas e constituem um telos, uma finalidade. A digitalização de textos e arquivos baseia-se num código que apresenta uma nova sintaxe, uma “parasintaxe”, baseada numa semântica pragmática e na ausência do sujeito. Propõe um raciocínio semiótico sobre os códigos fundado num esquema diacrônico. A ideia central é a alteridade resultante da inter-relação do eu e do outro, revendo os modelos paradigmáticos de conhecimento: fragmentados, isolados, hierárquicos e piramidais (MORIN, 2001). A ambiência digital tem uma grande potencialidade no processo educativo, pois pode colocar em evidência a multidimensionalidade e a complexidade humanas, através da hominização que considera a unidualidade, a complexidade cultural, a unidade (singularidade) e a diversidade, dentro da complexidade dialógica humana (MORIN, 2001). 3 O fazer poético da poesia digital (Interpoesia – O início da escritura expandida – AZEVEDO, 2009- anotações) 69 A poética é subversiva, porque subverte o olhar, as formas, os sons, as imagens... ousando criar algo novo, provocando uma estética interativa que objetiva mudar o percurso do outro. O que é poético é a expansão dos signos. Fazer poesia digital é construir ambientes – ambiência- que em mudança constante, subvertem as fórmulas e criam e se recriam a partir de novas e inovadoras referências. Deste conceito nasceu a Poesia Hipermídia Interativa, possibilitando uma produção poética no meio digital, que provocou sucessivas mudanças que envolvem uma nova leitura cognitiva, mudando a natureza de sua sintaxe, para uma parasintaxe. Há, desta forma, uma salto na cognição comunicativa e interativa, de analógica para digital, propondo narrativas e registros produzidos pela tecnologia, que podem ser verbais, sonoros, imaginéticos e em forma de escritura expandida, permitindo a disseminação do conhecimento poético. Hoje usamos o termo navegar no sistema hipermidiático, pois podemos adentrar num labirinto narrativo, para executar a ação do clicar. “Trata-se de uma nova etapa em que códigos matriciais isolados (verbal, visual e sonoro), passem, a partir de softwares atuais, a explorar novas formas de se fazer perceber como linguagem” (AZEVEDO, 2009, p. 13). A miscigenação de linguagens, num processo de simbiose, tornou os meios digitais um lugar possível para a manifestação de uma nova cultura de ambiência. Há uma possibilidade de flutuação e um viajar num “espaço de sentido” que “[...] muda o referencial de arbitrariedade deste ‘vir a ser’ histórico como forma de registro” (MANGUEL, 1997, apud AZEVEDO, 2009, p. 16- 34). “Os acessos são paratáticos, não-lineares e temporalizados pelo movimento do nosso olhar, dentro de uma nova relação matricial” (AZEVEDO, 2009, p. 42). A poesia digital estabelece uma nova relação entre os códigos através de registros sonoros, verbais, visuais e performáticos, proporcionando o desdobramento de imagens e palavras nãolineares e interdisciplinares, desmaterializando o fazer poético, que estabelece índices semióticos resultantes da articulação da linguagem em meios de ambiência numa interdependência mútua entre leitor, poeta e poesia. A migração virtual por uma escritura em trânsito cria uma projeção histórica para as linguagens dos suportes digitais através de conteúdos simbólicos em telas imaginéticas. “O corpo-imagem não apenas lê, mas se apropria em forma de imersão, explorando estes espaços” (LOFFER, 1994, apud AZEVEDO, 2009, p. 51). 4 O projeto da Maternidade São Paulo: a trajetória do trabalho. 4.1 Processo de criação dos registros fotográficos da Maternidade São Paulo. Criada a partir de um ensaio fotográfico realizado pela mestranda Liliane Alfonso, a obra de características poéticas, transita na história da Casa de Saúde Francisco Matarazzo, onde era a sede da Maternidade São Paulo, para apresentar um conteúdo estético, baseado nas imagens produzidas e na composição de uma obra artística, que tem como pano de fundo o registro de 70 um acervo histórico que foi extinto em sua função. Tal registro fotográfico foi desenvolvido no segundo semestre de 2014, no período em que foi realizada uma exposição no antigo Hospital Matarazzo, Made By Feita por Brasileiros, quando um numeroso público compareceu ao espaço. Segundo Alfonso (2015), em “Relatos de Experiência Vivida na Casa Matarazzo”: “Enquanto andava pelo local entrei em um corredor escuro, levemente assustador e olhei para dentro de uma pequena sala vazia, sem pessoas e sem obras, com uma janela quebrada que permitia a entrada de luz”. Como podemos constatar nas figuras 03 e 04. Figura 03: Foto da estrutura arquitetônica da antiga Maternidade São Paulo. Fonte: Foto da Mestranda Liliane Alfonso. E assim, Alfonso (2015) relata: Fiquei tão encantada por aquela janela velha que levei algum tempo para conseguir sair do espaço e senti a necessidade de fazer um registro fotográfico. Após esta imagem, não foi possível concentrar-me na exposição. A estrutura do antigo hospital consumiu toda a minha atenção, admiração e curiosidade. Observando as marcas deixadas pelo tempo, era inevitável imaginar as histórias que aquele lugar carregava. Enquanto caminhava pelo antigo hospital Matarazzo não conclui o objetivo de conhecer a exposição, porém surgiu um propósito maior em estar naquele lugar (ALFONSO, 2015). Figura 04: Foto da estrutura arquitetônica da antiga Maternidade São Paulo. Fonte: Foto da Mestranda Liliane Alfonso. “Depois de alguns dias, escolhi umas das fotos e publiquei em uma rede social. Era a foto de uma escadaria, que não podíamos transitar 71 por seus degraus, pois estava protegida por um delicado fio e cercada por água” (ALFONSO, 2015). Como pode ser verificado na figura 05. Figura 05: Foto da estrutura Maternidade Fonte: Foto da Mestranda Liliane Alfonso. arquitetônica São da antiga Paulo. As fotos resultantes desse registro fotográfico (vide figura 06) permitiram a construção de um vídeo de modo que fosse possível transitar entre as imagens. Figura 06: Foto da estrutura arquitetônica da antiga Maternidade São Paulo. Fonte: Foto da Mestranda Liliane Alfonso. Em 2015 recebemos o apoio de novos integrantes ao Laboratório de Humanidades Digitais (LHUDI), dando-se o início de um novo projeto, que tinha como objetivo a criação estética e artística através da poética digital, realizada através da produção de um trabalho que tinha como referência inicial os registros fotográficos e a arquitetura do espaço Matarazzo. Deste modo, foi dada a continuidade na implantação e estruturação do laboratório de humanidade digitais, surgindo assim a obra DeZenLeio. 4.2 Poesia digital: uma narrativa poética inspirada nas imagens da Maternidade São Paulo. A obra DeZenLeio apresenta-se como um vídeo-performance, criado a partir dos registros fotográficos da antiga Maternidade São Paulo, numa trama poética tecida com imagens 72 animadas em ambiência digital, acrescidas de uma prosa de autoria do Wilton Azevedo, professor do Laboratório de Humanidades Digitais e coordenador do projeto. Essa experiência poética nasceu das inquietações de Wilton Azevedo, como resultado de uma das suas produções artísticas dentro de uma narrativa poética- digital, que é apresentada no vídeo-performance, como segue na figura 07. Figura 07: Fonte: Foto Alan Azevedo -2015. Imagem do DeZenLeio. Para Azevedo (2009, p. 105): “A poesia digital [...] retoma a ritualização da linguagem [...]”. De tal forma que “[...] a enunciação não está no discurso, a narrativa não conta histórias. O que é poético é a expansão dos signos. Fazer poesia digital é construir ambientes- ambiência- em mutação constante”. Para o autor, essa ação consolida-se como uma experiência que transcende à rima verbal e à imagem, caracterizando-se como um objeto poético que apresenta um ritmo sonoro e plástico, que poderá ser harmônico ou não, dentro da ambiência digital. Participação em Seminários, Congressos e Eventos Artísticos-acadêmicos Obra no YouTube O vídeo-performance é disponibilizado no YouTube através do endereço eletrônico https://www.youtube.com/watch?v=aaXAd0zoodc&feature=share. O objetivo foi a socialização da obra na Web para internautas extra-pares e interessados em produções de arte digital. Virada Cultural No sábado, dia 20 de junho de 2015, às 18h, o LHUDI (Laboratório de Humanidades Digitais), a convite da Visualfarm, apresentou no Anhangabaú durante a Virada Cultural de 2015, a obra De Zen Leio, como é possível verificar nas figuras 08 e 09. 73 Figuras 08 e 09: Imagens do DeZenLeio projetadas nas paredes dos prédios do Anhangabaú. Fonte: Fotos de Simone Mina. Aula Magna Mackenzie 2015.2 No dia 18 de agosto de 2015 foi apresentada a obra DeZenLeio na Aula Inaugural do PPGEAHC, às 14h, no auditório do Centro Histórico e Cultural do Mackenzie. No evento houve a apresentação especial dos membros do Laboratório de Humanidades Digitais, coordenado pelo Prof. Dr. Wilton de Azevedo (vide figura10). Figura 10: Wilton Azevedo Fonte: Foto de Rita Varlesi. em apresentação da obra DeZenLeio. VI Seminário dos Roteiristas 2015: “Entre Encanto e Conhecimento”. Nos dias 17 e 18 de setembro de 2015 ocorrereu a participação do LHUDI e a apresentação da obra DeZenLeio no Seminário dos Roteiristas de 2015, o qual é uma iniciativa do Centro de Comunicação e Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Encontro Internacional de Arte e Tecnologia -14. Arte. Nos dias de 07 a 11 de outubro, em Aveiro – Portugal, se dará a participação do LHUDI e apresentação da obra DeZenLeio no 14. Art- Encontro Internacional de Arte e Tecnologia. Entre outros eventos. 6 Considerações Finais 74 Verificou-se que a ambiência digital caracteriza um “onde”, no qual a fronteira é questionada como tal, constituindo um espaço de tensão e flexibilidade que possibilita a criação de um projeto que objetiva o apagamento da linha divisória entre os diversos arquivamentos e as diversas línguas e culturas. Desta forma, através da linguagem digital, abrimos esse campo de diálogo ilimitado entre pessoas, culturas e processos, viajando através dos diversos tempos e espaços possíveis, em busca de linguagens poéticas que aparentemente ressurgem através de códigos construídos na bidimensionalidade escultórica de nossas telas. Desta forma, pode-se concluir que a poética digital é, em sua essência, poesia em trânsito, porque subverte o olhar e o entorno espacial, imagético e sonoro, criando novas formas de interação, resultantes das trajetórias dos sujeitos que as experimenta. Assim, construir espaços na linguagem virtual, experimentando as narrativas da poesia digital, permite ao poeta dialogar com o contemporâneo. O processo de produção do laboratório digital proporciona uma imersão em diferentes áreas, através de uma plataforma interdisciplinar, que visa a relação interativa dos pesquisadorescolaboradores que constituem uma equipe multidisciplinar , que atua num processo de construção novas formas de conhecimento no ambiente virtual, através de uma abordagem metodológica interdisciplinar e transdisciplinar consolidada a partir da criação e execução de projetos. Conclui-se, portanto, que esse estudo, atrelado às produções realizadas no LHUDI, propõe um novo olhar sobre a ambiência digital no que tange a sua exploração, enquanto plataforma tecnológica relevante para a criação digital poética, assim como para o registro de acervos históricos e recriação de ambientes humanos presentes e passados, de tal forma que a sua importância reside na compreensão e difusão da ambiência digital. BIBLIOGRAFIA ALFONSO, Liliane. Relatos de Experiência Vivida na Casa Matarazzo. São Paulo: 2015. ALVARENGA et al., Algusta T. de. Histórico: fundamentos filosóficos e teórico-metodológicos da interdisciplinaridade. São Paulo: FEUSP, 2005. AZEVEDO, Wilton. Interpoesia: o início da escritura expandida. 2009. Tese (Pós-Doutorado). Universidade de Paris, Laboratoire de Paragraphe, Paris – França. BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000. CAMARGO, Eduardo. A persona estendida e a internet das coisas. Publicado em: 28 fev. 2015. 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São Paulo: Perspectiva, 1977. 76 A próxima geração na elaboração de roteiros: uso de estúdios virtuais com Realidade Aumentada Rafael Guimarães Pedroso, UNESP/Bauru, [email protected] Ivan Abdo Aguilar, UNESP/Bauru, [email protected] Antonio Carlos Sementille, UNESP/Bauru, [email protected] Resumo Atualmente, a Realidade Aumentada tem sido empregada na produção de filmes que utilizam, em cena, objetos virtuais e efeitos especiais criados por meio de computação gráfica, permitindo a visualização em tempo real desses elementos que não estão presentes fisicamente, ao lado dos atores reais. Mas esta técnica pode ser utilizada também na fase de pré-produção e elaboração de roteiros. O emprego da Realidade Aumentada apresenta vantagens em diferentes etapas do processo de criação do roteiro como, por exemplo, na estruturação de cenas. Os principais benefícios dessa técnica estão relacionados com a possibilidade de visualização prévia dos elementos virtuais. Este trabalho apresenta experimentos feitos com o ARSTUDIO, um sistema de estúdio virtual desenvolvido na UNESP/Bauru que permite a criação de cenas com Realidade Aumentada, integrando ambiente e atores reais com objetos virtuais tridimensionais. Palavras-Chave: Roteiro; Estúdio Virtual; Realidade Aumentada; Produção Audiovisual Abstract Today, Augmented Reality has been employed in the production of films that use, on set, virtual objects and special effects created by computer graphics, allowing for real-time visualization of these elements that are not physically present, alongside real actors. But this technique can also be used in the pre-production and script preparation phase. The use of Augmented Reality has advantages in different stages of the script creation process, for example, scene structuring. The main benefits of this technique are related to the ability to preview the virtual elements. This paper presents experiments done with ARSTUDIO, a virtual studio system developed at UNESP/Bauru that enables the creation of scenes with Augmented Reality, integrating environment and live action with three-dimensional virtual objects. Keywords: Script; Virtual Studio; Augmented Reality; Audiovisual Production 1 Introdução Elementos gráficos virtuais gerados por computador são cada vez mais utilizados na produção audiovisual tanto para o cinema, como para a televisão e também a web. As técnicas de produção de imagens virtuais são largamente utilizadas na criação de conteúdos criativos, para a obtenção de fotorrealismo e também para diminuição dos custos de produção. 77 A utilização dos elementos virtuais pode ainda flexibilizar a produção e tornar viável a obtenção de imagens de objetos e seres difíceis de serem produzidos fisicamente e capturados por uma câmera no mundo real. A produção e inserção desses elementos virtuais envolve técnicas das áreas de Computação Gráfica, Visão Computacional, Processamento de Imagens, Realidade Aumentada e Realidade Virtual. Mesmo com grande potencial para viabilizar e tirar ideias do papel e ainda diminuir custo das produções, essas técnicas envolvem o uso de tecnologias e conceitos ainda em formação e, também, modificam a cadeia de produção audiovisual. Tradicionalmente, essa cadeia é organizada de forma que os efeitos especiais e objetos virtuais são inseridos somente na fase de pós-produção, depois da captação de imagens dentro e fora do estúdio. Durante a fase on-set a equipe precisa se orientar por meio de sinais, marcações no estúdio ou no cenário e por movimentos coreografados. Dessa forma, erros cometidos durante o processo de produção podem comprometer o trabalho como, por exemplo, a impossibilidade de integrar objetos e seres virtuais com atores reais, devido a problemas como ângulo e posição da câmera, enquadramento, ou mesmo posição dos atores em cena. Nesse contexto, a evolução das técnicas de Computação Gráfica e Realidade Aumentada tem tornado possível que os elementos virtuais possam estar presentes nas fases anteriores à pósprodução, permitindo a renderização de imagens virtuais em tempo real, com retorno para a equipe de produção. Assim essas técnicas podem estar presentes em todas as etapas da produção, sendo empregadas na gravação e também na pré-produção. A utilização dessas técnicas durante o planejamento do projeto é importante para evitar-se erros nas gravações, além de oferecer possibilidades criativas para o autor da obra, na fase de elaboração do roteiro. Como será discutido mais à frente, as técnicas de Realidade Aumentada em estúdio virtual constituem também uma poderosa ferramenta para pré-visualização de cena durante o planejamento. Considerando este contexto, o presente trabalho apresenta os resultados do emprego de um estúdio virtual com recursos de Realidade Aumentada durante a fase de planejamento/pré-produção de conteúdos audio-visuais. Nesta fase, em que o roteiro e o Storyboard estão sendo criados, é possível rapidamente ensaiar e visualizar idéias com atores, cenários, objetos de cena e objetos interativos, tanto reais quanto virtuais. Nesta etapa, não há a necessidade da definição ou utilização dos modelos de elevado nível de detalhe, normalmente exigidos na produção final. Por ser a fase de criar, testar e analisar idéias, objetos simples podem ser utilizados como uma ajuda visual do posicionamento e tamanho, o qual poderá ser substituido em outras fases por outros objetos virtuais mais detalhados ou um por um objeto real. Neste trabalho foi utilizado o ARSTUDIO, um software de estúdio virtual em desenvolvimento na Unesp-Bauru, o qual permite a produção de cenas com Realidade Aumentada. 2 Estúdios Virtuais e Realidade Aumentada Os desafios da inserção de elementos virtuais estão relacionados com a síntese desses elementos e com o fotorrealismo nos efeitos gerados. Assim, a forma como esta tecnologia 78 pode ser empregada evoluiu: o entusiasmo inicial de se substituir completamente o cenário real pelo cenário virtual, tem cedido lugar à uma abordagem mais prática (e realista), de se adicionar objetos virtuais ao ambiente real, permitindo que apenas aqueles elementos que não são facilmente reproduzidos no mundo real sejam sintetizados virtualmente (THOMAS, 2006, p.5). Normalmente, a inserção de elementos virtuais em uma cena é realizado por meio do emprego da técnica do chroma-key, usando-se elementos cenográficos parcialmente ou totalmente produzidos por computador. Essa técnica utiliza um fundo monocromático que é trocado por meio da substituição da cor, normalmente azul ou verde, por uma nova imagem (ou vídeos) de fundo. O controle rígido das condições de iluminação para o uso do chroma-key tornaram necessário o aprimoramento desse sistema. Nesse contexto, os estúdios virtuais surgiram como extensões do cenário virtual tradicional, utilizando muitas vezes equipamentos complexos e de alto custo. O emprego das tecnologias de Computação Gráfica e Realidade Aumentada pode dinamizar a técnica de estúdio virtual ao permitir a combinação de elementos virtuais gerados por computador com o ambiente real, em tempo real. Realidade Aumentada, é um sistema que suplementa o mundo real com objetos virtuais gerados por computador, parecendo coexistir no mesmo espaço e apresentando as seguintes propriedades: combinar objetos reais e virtuais no ambiente real; executar interativamente em tempo real; alinhar objetos reais e virtuais entre si; aplicar-se a todos os sentidos, incluindo audição, tato e força e olfato (AZUMA, 2001, p.1). Portanto, com as técnicas de Realidade Aumentada, é possível a renderização em tempo real de cenas virtuais tridimensionais alinhadas corretamente com o ponto de vista de uma câmera posicionada no mundo real. O ARSTUDIO é um software de estúdio virtual que permite a geração de cenas com Realidade Aumentada, técnicas de chroma-key, bem como a adição de som. O projeto é desenvolvido na Unesp-Bauru e participam dele pesquisadores do Programa de Pós-graduação em Mídia e Tecnologia (PPGMiT/FAAC) e do Programa de Pós-graduação em Ciência da Computação (PPGCC/FC). O software, também, faz uso de equipamentos convencionais e de baixo custo. Emprega marcadores fiduciais (padrões impressos que servem de referência para o rastreamento tridimensional) em cena para a inserção de elementos virtuais. 3 Produção Audiovisual Existem três fases principais que precisam ser executadas no processo de filmagem para a maioria de produções audiovisuais convencionais: as fases de pré-produção, produção e pós-produção. Cada uma dessas etapas é responsável por aspectos distintos no processo de produção, tendo equipes específicas para cada etapa (HUGHES, 2012, p.88; MILLERSON, OWENS, 2009, p.51). Essas etapas são: 79 A. Pré-produção: Uma fase dinâmica onde ocorre o planejamento, preparação e ensaio de todo processo de produção. (HUGHES, 2012, p.89-91; BARNWELL, 2008, p.51; SCHENK, LONG, 2011, p.13; MILLERSON, OWENS, 2009, p.51); B. Produção: Fase onde a filmagem do conteúdo ocorre. Nesta etapa é necessário haver a direção dos atores sobre suas atuações, realizar todas as filmagens descritas e programadas na fase de pré-produção, bem como refilmar as cenas quando for necessário. (HUGHES, 2012, p.91-92; MILLERSON, OWENS, 2009, p.51); C. Pós-produção: Etapa final do processo de produção. Depois que todos os materiais do programa (vídeo, áudio e gráficos) foram compilados, onde todo os trabalhos das fases anteriores se juntam. (HUGHES, 2012, p.92-93; BARNWELL, 2008, p.169; SCHENK, LONG, 2011, p.345; MILLERSON, OWENS, 2009, p.9). Dependendo da natureza e escopo do projeto, precisa ser decidido o caminho e a agenda, em detalhe, para que a produção siga desde a idéia inicial até o produto acabado (VAUGHAN, 2012, p.22; HUGHES et al., 2013, p.16). Previamente na indústria, nas produções convencionais, a visualização do conteúdo 3D não era presente em toda cadeia de produção mas sim, somente, na fase de pós-produção onde o conteúdo virtual era visível após todas as gravações das cenas estarem terminadas e editadas. No cenário real, os atores, o diretor e os operadores de câmera só tinham indicações visuais simples, como marcações no chão onde os personagens ou objetos virtuais deveriam aparecer (GRAU, 2005, p.5). No ambiente de animação e efeitos por computador, o usuário tem mais controle do que cineastas tradicionais que estão constantemente lutando contra luz, equipamentos e aspectos naturais durante a filmagem. (ABLAN, 2002, p.110). Estúdios virtuais permitem uma técnica de composição em que as pessoas que assistem à este "sinal composto" conseguem visualizar outros personagens e objetos físicos combinados com um ambiente virtual (GIBBS et al. 1998, p.18). Esses sistemas atuam na composição de vídeo real capturado através de filmagens de cenas reais com imagens sintéticas de objetos 3D que são renderizados em tempo real e sincronizados com o movimento da câmera através de um computador (GÜNSEL et al., 1997, p.769). Além disso, um estúdio virtual torna possível a visualização de efeitos em tempo real ao invés de visualizálos somente na pós-produção. Segundo Millerson e Owens (2009, p.219), embora no início o custo da criação desses sistemas é significativo, a economia de não ter que mudar, fisicamente, entre tipos diferentes de cenários pode compensar pelo custo. O estúdio virtual é uma ferramenta importante para estúdios, proporcionando oportunidades criativas, bem como a redução de custos. (BLONDÉ et al., 1996, p.18). 4 Etapas da produção do roteiro A literatura especializada normalmente divide o processo de elaboração do roteiro em 5, 6 ou 7 fases. Segundo Comparato (2000, p.22-29), ele pode ser dividido em seis fases consecutivas: 80 A) Ideia, se refere ao acontecimento que provoca necessidade de relatar; B) Storyline, diz respeito a concretização do conflito básico essencial; C) Sinopse, Criação dos Personagens e do Argumento. A Sinopse apresenta personagens e local, ainda sem caracterizá-los. Na Criação dos Personagens é criado um perfil com todas as informações físicas e psicológicas dos principais personagens. O Argumento é a história na íntegra, construída a partir da sinopse e do perfil dos personagens; D) Estrutura (ação dramática): Conhecida como escaleta, nessa etapa é feita a divisão em cenas. Nesta fase os mecanismos de pré-visualização podem ser usados largamente. E) Primeiro roteiro (tempo dramático): Nesta fase é elaborado o tempo dramático, pensando a duração das cenas e ritmo da narrativa; F) Roteiro final (unidade dramática): Nesta fase o roteiro deve estar concluído com a descrição dos ambientes, descrição das ações, diálogos e indicações para os atores, e transição para próxima cena. 5 Estruturação de cena A cena é uma unidade de conflito na história que envolve o personagem principal tentando alcançar o seu objetivo, enfrentando obstáculos. Isto leva a conflitos de emoções e a necessidade do personagem principal tomar decisões e ações. A ação leva a história para a próxima cena (GLEBAS, 2009, p.72). Na fase de estruturação da cena é realizada uma reescrita visual do roteiro, onde todas as ações e todas as qualidades devem ser estruturadas para serem descritas em forma de imagens. Ocorre uma ampliação da narrativa, até então verbal, acrescentando movimentos e ações necessários para o entendimento ou para a descrição dos fatos e elementos e de suas características. Ao estruturar a cena, o autor, antes de determinar o conteúdo, deve criar o contexto, reunindo o que acontece na cena, o propósito da cena e como ela move a história adiante. O próximo passo é achar os componentes ou elementos e qual a forma visual para melhor representá-los. Ao criar o contexto, o autor determina um propósito dramático e pode construí-lo ação por ação, estabelendo o conteúdo (FIELD, 2001, p.119). Além da ação dos atores, é necessário o planejamento quanto ao posicionamento e movimentos de câmera, enquadramento, situação de iluminação, disposição e qualidade da luz, além de cores, cenários e todos os elementos relacionados à arte (direção de arte). No caso de filmes com efeitos especiais e objetos virtuais, deve ser pensada a interação dos atores com esses elementos, além do posicionamento e enquadramento dos mesmos. Quando a gravação ocorrer fora do estúdio, utilizando locações, a preocupação deve ser que elas devem ser adaptadas para serem utilizadas como set de filmagens. Nem sempre a câmera poderá ocupar a posição para o melhor quadro, nem sempre é possível fazer a composição no quadro com todos os elementos desejados do cenário. 6 Pré-visualização de cena e Storyboard Existe um ditado que diz que uma imagem vale mais do que mil palavras, portanto, é importante escolher quais palavras a sua imagem irá dizer ao público. Na produção de 81 conteúdo essas imagens normalmente começam através do Storyboard na fase de préprodução e planejamento. 6.1 Storyboard Filmes começam com o roteiro, uma história escrita. A ação e o diálogo do personagem é descrita no roteiro como se estivesse acontecendo no presente. A partir dele o planejamento pode começar visualmente, que é onde o storyboard começa. Storyboarding não é apenas uma tradução do roteiro, o plano verbal, em uma série de imagens visuais, é abordagem para interpretar e contar visualmente a história. Hitchcock sabia disso e há rumores dele ter falado uma vez que quando o storyboard estivesse pronto, 95% do filme estava concluído, o resto era a execução do plano (ABLAN, 2002, p.25; GLEBAS, 2009, p.47). O Storyboard é uma ferramenta para visualmente apresentar, em uma sequência de desenhos, o roteiro do projeto. Esses desenhos são conceituais, que podem variar desde ilustrações profissionais ricas em detalhes até simples esboços de idéias. O importante é que a comunicação, por meio desses desenhos, seja efetiva, que as equipes possam entender a idéia sendo transmitida e o que fazer, tecnicamente, naquela cena a ser filmada. Permitindo assim que a equipe organize e planeje toda a ação antes que as filmagens sejam realizadas na etapa de produção (HART, 2007, p.1; BARNWELL, 2008, p.88). Storyboards bem elaborados servem não só como um guia para o artista, mas também permite que o diretor, atores, diretores de fotografia e efeitos especiais, editores, etc. se preparem adequadamente. Dessa forma ajudando, por exemplo, o editor a reunir as filmagens, organizando corretamente a continuidade da história e cenas na ordem planejada. Auxilia à equipe de iluminação a determinar a iluminação mais adequada para cada filmagem, os atores podem ensaiar suas atuações nas cenas e o diretor pode trabalhar no posicionamento dos objetos em cenas e no enquadramento. Também servem para ajudar a decidir quais serão as dimensões de cada quadro, composição de cena, tipo de câmera e lente a ser usado, como a câmera pode se mover em uma cena específica, entre outras utilizações (ABLAN, 2002, p.26-27; BARNWELL, 2008, p.88-89). Existem diversos tipos de storyboards que são utilizados na hora de planejar a história e a escolha de qual tipo aplicar depende das necessidades artísticas, financeiras e do meio a ser transmitido a história final (GLEBAS, 2009, p.48). Por exemplo, em audiovisuais de live action, onde existe uma mistura entre personagens ou objetos reais e virtuais, não é preciso apresentar as emoções dos personagens, já que os atores terão suas próprias interpretações na fase de produção. Storyboards também são utilizados no planejamento de filmes com efeitos especiais. Muitas vezes, estas cenas serão composições entre cenas de atores e objetos reais com os efeitos especiais gerados por computador (GLEBAS, 2009, p.48). 6.2 Pré-visualização A pré-visualização 3D posibilita uma visualização de objetos virtuais, no ato da filmagem, para o diretor e os operadores de câmera. Um objeto 3D é inserido no cenário virtual para dar uma 82 prévia da composição final da cena. Esses objetos virtuais podem ser cenários, personagens, objetos de cena, entre outros (GRAU et al., 2004, p.9). A pré-visualização é uma ferramenta visual que ocorre antes da criação de objetos complexos, traz economia e retorno rápido, posibilita a exploração de idéias, comunicação e coloaboração e orienta as próximas etapas de produção (OKUN, ZWERMAN, 2010, p.54). A pré-visualização tornou-se parte de muitas grandes produções na América do Norte e Europa, principalmente aqueles com cenas de efeitos visuais pesados. A pré-visualização auxilia na criação de seus filmes, desde o planejamento à produção (WONG, 2012, p.18). Existem diversos sub-tipos de pré-visualizações como o Pitchvis, D-Vis, Technical Previs, On-Set Previs e Postvis (OKUN, ZWERMAN, 2010, p.54-55): A) Pitchvis ilustra o potencial de um projeto de aprovado. São sequências conceituais, para serem refinadas ou substituídas durante a pré-produção. (OKUN, ZWERMAN, 2010, p.54) B) D-Vis (Visualização do Design) utiliza uma estrutura virtual na pré-produção que permite a colaboração inicial do projeto entre os cineastas. Antes das filmagens serem desenvolvidas, D-Vis proporciona uma estrutura virtual precisa de design no âmbito do qual as necessidades de produção podem ser testadas e as locações podem ser selecionados. (OKUN, ZWERMAN, 2010, p.55) C) A Pré-visualização Técnica (Technical Previs) gera informações precisas sobre a câmera, iluminação, o design e o layout de cena para ajudar a definir os requisitos de produção. (OKUN, ZWERMAN, 2010, p.54) D) A Pré-visualização On-Set (On-Set Previs) cria em tempo real, visualizações, no local de filmagem, para auxiliar o diretor, diretor de fotografia, supervisor de efeitos visuais, e a equipe a rapidamente avaliar as imagens capturadas. Isso inclui o uso de técnicas de composição de filmagem ao vivo com elementos virtuais para um retorno imediato de como seria aquela cena na fase de pós-produção. (OKUN, ZWERMAN, 2010, p.55) E) Postvis combina elementos digitais e filmagens da produção para validar a seleção de metragem de filme e fornece marcadores de posição de frame para o editorial. Edições incorporando sequências de Postvis são frequentemente mostradas para um público teste para obter opiniões, e aos produtores e a equipe de efeitos visuais para o planejamento e orçamento. (OKUN, ZWERMAN, 2010, p.55) Vale ressaltar que a pré-visualização estudada e utilizada no presente trabalho é uma combinação entre três tipos de pré-visualizações, o D-Vis, a Prévisualização Técnica e a Prévisualização On-Set. Essa combinação acontece pelo fato do ambiente oferecer uma área em que possam ser testados, manipulados e alterados elementos reais e virtuais em cena que após selecionados podem ser utilizados em outras fases da produção e pré-visualização como no modo D-Vis. Proporcionar um ambiente para manipulação, coleta de dados e definição das características referentes ao posicionamento da câmera, enquadramento, iluminação, etc., como no modo de pré-visualização técnica. E, finalmente, por possuir características de 83 composição de cenas filmadas com elementos virtuais em 2D ou 3D em tempo real como no modo de pré-visualização On-Set. 7 Estruturação de cenas com ARSTUDIO O objetivo dos experimentos relatados a seguir é demonstrar uma proposta de utilização do ARSTUDIO no planejamento de cenas, como ferramenta de pré-visualização, analisando os requisitos necessários e a eficiência da ferramenta para a obtenção de determinados efeitos. Para a inserção dos objetos em cena, foram utilizados marcadores fiduciais planos, fixados em paredes ou superficies, e marcador cúbico, para a manipulação pelo ator. A imagem do marcador, quando capturada pela câmera, é reconhecida pelo sistema do ARSTUDIO que é capaz de posicionar o objeto virtual alinhado correntamente com o ambiente. O marcador cúbico tem como particularidade a capacidade exibir sempre uma de suas faces intependente de seu posicionamento, permitindo o reconhecimento pelo sistema mesmo que o ator rotacione o cubo. A figura 1 ilustra os marcadores. Figura 1: Marcador Fonte: Elaborada pelos próprios autores plano e marcador cúbico 7.1 Ambiente de Filmagem O ambiente utilizado para os experimentos é apresentado na figura 2. Nesta figura também está demonstrada a visão do operador do estúdio virtual, ARSTUDIO, bem como o set de filmagem e na televisão é oferecida um retorno ao ator para que o mesmo possa ter uma referência visual do cenário e objetos virtuais. 84 Figura 2: Ambiente Fonte: Elaborada pelos próprios autores de Filmagem 7.2 Experimento 1 Nesse experimento (figuras 3 e 4) é apresentado uma proposta de cena com ator real e efeitos especiais. O fundo verde é substituído pelo cenário virtual e o objeto virtual inserido por meio de marcador. 85 Figura 3: Storyboard do Experimento Fonte: Elaborada pelos próprios autores 86 1 - Imagem gerada pelo ARSTUDIO Figura 4: Storyboard do Experimento 1 - Imagem original capturada pela câmera Fonte: Elaborada pelos próprios autores Nesse caso, foi utilizada, como cenário, uma imagem próxima da que será criada na pósprodução, servindo como ideia prévia da ambientação da cena. O objeto virtual (dragão) tem geometria e acabamento simplificado (um menor número de vertices e planos em sua malha polygonal) para o uso nesta fase de planejamento. Foi utilizado um marcador fiducial na parede do estúdio para inserir o objeto na cena, utilizando o ARSTUDIO para posicionar, rotacionar e definir a escala do objeto 3D. Foi utilizado também um marcador cúbico para a manipulação do objeto virtual pelo ator em que toda movimentação e rotação feita pelo ator sobre o marcador se reflete no objeto virtual inserido. 87 Os marcadores também serviram como referência visual para o ator quanto a posição do objeto na cena, sabendo ele para onde olhar, como se movimentar e gesticular. 7.3 Experimento 2 No segundo experimento (figuras 5 e 6) é apresentado uma cena com ator real, objeto com marcador tangível e efeitos especiais. O fundo verde é substituído pelo cenário virtual e o objeto virtual inserido por meio de marcador associado a interface tangível, que nesse caso é um objeto com dimensão próxima do objeto virtual a ser inserido. Figura 5: Storyboard do Experimento Fonte: Elaborada pelos próprios autores 88 2 - Imagem gerada pelo ARSTUDIO Figura 6: Storyboard do Experimento 2 - Imagem original capturada pela câmera Fonte: Elaborada pelos próprios autores Nesse caso o ator é beneficiado por ter um retorno tátil do objeto que está manipulando. As ações que o ator realiza sobre a interface tangível são processadas e exibidas em tempo real. 7.4 Experimento 3 No terceiro experimento (figuras 7 e 8) é apresentado uma cena com ator real, objetos de cena reais e virtuais, utilizando um cenário real de uma locação. 89 Figura Fonte: 90 7: Storyboard do Experimento 3 Elaborada pelos - Imagem gerada próprios pelo ARSTUDIO autores Figura 8: Storyboard do Experimento 3 - Imagem original capturada pela câmera Fonte: Elaborada pelos próprios autores 91 Os objetos virtuais foram posicionados sobre a mesa e na parede (objetos reais). O sistema do ARSTUDIO pode ser utilizado também fora do estúdio para o planejamento da cena em uma locação. O benefício para a produção é que durante a fase de pesquisa de locação, é possível realizar ensaios e pré-visualização da cena mesmo sem a presença de todos os objetos reais ou mesmo inserindo objetos virtuais no cenário da locação, que podem ser facilmente trocar por outros objetos. 7.5 Experimento 4 O quarto experimento (figuras 9 e 10) ilustra o uso de atores reais com personagens virtuais, bem como a realização de ensaios sem estar presente na locação, utilizando-se uma imagem estática. É possível ver nas imagens a mudança de posição e rotação do personagem virtual conforme ocorre a progressão da história. Uma vantagem do uso de personagens virtuais é poder testar as cenas sem a presença de todo elenco durante a fase de planejamento. Com relação ao cenário, a equipe pode utilizar um conjunto de imagens da locação. Tendo essas imagens prévias, é possível executar o planejamento da cena em estúdio. Figura 9: Storyboard do Experimento 4 - Imagem gerada pelo ARSTUDIO Fonte: Elaborada pelos próprios autores 92 Figura 10: Storyboard do Experimento 4 Imagem original capturada pela câmera. Fonte: Elaborada pelos próprios autores 93 8 Conclusão Estúdios virtuais com Realidade Aumentada permitem que objetos virtuais sejam inseridos em fases anteriores à pós-produção onde tradicionalmente eles são colocados. Assim, com ferramentas como o ARSTUDIO, é possível que esses elementos sejam renderizados em tempo, estando eles presentes não na fase on-set, mas também durante a pré-produção. A utilização dessas técnicas durante o planejamento da obra traz vantagens para a produção como evitar erros durante as gravações, gerando assim economia de custos. Além disso, pode ser aplicada como ferramenta de pré-visualização, dando flexibilidade para elaborar, alterar e ajustar o Stotyboard. Dessa forma constitui-se como ferramenta prática para testes e exploração de ideias criativas. 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ACM, 2012. p.20. 95 Capítulo 3 - Processos e práticas de roteirização Do filme à série: estratégias discursivas e narrativas no processo de roteirização de “Bates Motel” Bruno Jareta de Oliveira (UNESP) - [email protected]; Octavio Nascimento Neto (UNESP) - [email protected]; Elissa Schpallir Silva (UNESP) – [email protected] Resumo Os seriados televisivos têm potencial de criar fortes vínculos com um público por permitir a criação de paralelos dramáticos mais férteis, e estudar como estes universos ficcionais são criados é essencial para roteiristas e pesquisadores de linguagem audiovisual. É meta desta pesquisa entender de que maneira a série Bates Motel (que estreou em 2013) consegue, através de estratégias discursivas e narrativas, funcionar como um prelúdio contemporâneo de Psicose (consagrado suspense de Alfred Hitchcock de 1960) e derivar um seriado com mais de três temporadas a partir de um filme com duração de 109 minutos. Será utilizado o percurso gerativo de sentido da semiótica discursiva para compreender as estruturas de ambas e identificar os recursos utilizados pelos roteiristas para atingir esses objetivos. O estudo pretende trazer contribuições para pesquisadores e produtores deste tipo de narrativa audiovisual. Palavras Chave: série, televisão, adaptação, roteiro. Abstract Television series have the potential to create strong bonds with audiences by allowing the creation of more fertile dramatic arches. The study of how these fictional universes are created is essential for writers and researchers of audiovisual language. It is goal of this research to understand how the TV series “Bates Motel” (which premiered in 2013), through discursive and narrative strategies, can function as a contemporary prelude to Alfred Hitchcock's “Psycho” (1960 movie), deriving three seasons from a 109 minutes movie. It will use the generative trajectory of discursive semiotics to understand both structures and identify the resources used by writers to achieve these goals. The study aims to bring contributions for researchers and producers of this type of audiovisual narrative. Key Words: series, television, adaptation, screenplay. Introdução Nos últimos anos, as ficções seriadas televisivas – um movimento que se inicia com as norteamericanas, mas que já se espalhou para outros mercados – têm adquirido novos aspectos, adotando novas formas de storytelling e conquistando o interesse de público, crítica e pesquisadores. Em oposição aos formatos episódico e seriado característicos das séries que existiam até então, as produções das últimas duas décadas são marcadas por sua 96 complexidade narrativa (Mittel, 2012, p.30), em que se unem elementos desses dois formatos e inserem-se recursos como multiprotagonismo, diversificação e prolongamento de arcos narrativos, continuidade das histórias - sem que haja necessariamente um fechamento da trama a cada episódio – e hibridismo de gêneros (ibidem, p. 36). Além da complexificação narrativa, também se destacam transformações do ponto de vista estilístico e estético, sendo cada vez mais frequentes séries com propostas que demandam grandes investimentos de produção, principalmente nas áreas de direção de arte, direção de fotografia e pós produção. Para Silva (2014), o lugar de destaque ocupado pelas séries nas últimas décadas se deve a três condições centrais: sua forma – com desenvolvimento de novos modelos narrativos e permanência e reconfiguração dos clássicos -; o contexto tecnológico que impulsiona a circulação dos conteúdos, facilitando o acesso – com destaque para os serviços de streaming como Netflix e HBO Go -; e o consumo desses programas, que envolve uma cultura de fãs engajados. Para Mario Carlón (2014), algumas séries de TV têm superado a oferta cinematográfica de Hollywood em termos de valores criativos. Para o autor, elas são um dos principais produtos da televisão mundial e, “nos últimos anos, alcançaram notável reconhecimento acadêmico. São séries tão bem sucedidas que discutem, hoje, o lugar histórico do filme de Hollywood como provedor de ficções globais” (CARLÓN, 2014, p. 21-22). Segundo Mittel (2012, p. 33), muitos dos programas televisivos que seguem esse modelo são obras de produtores, diretores e roteiristas de carreira cinematográfica, como David Lynch, Aaron Sorkin, J. J. Abrams, entre outros. Para o autor, a televisão tem um apelo e possibilidades específicas, que permitem ao realizador um aprofundamento de tramas e personagens mais amplo que no cinema: O apelo da televisão vem em parte de sua fama como um meio repleto de produtores e no qual escritores e realizadores têm mais controle sobre sua obra do que no modelo do cinema centrado na figura do diretor. (…) Muitos desses escritores aceitam os grandes desafios e possibilidades criativas nos formatos seriados longos, já que o aprofundamento na caracterização das personagens, a continuidade do enredo e as variações a cada episódio não são possíveis num filme de duas horas de duração. Enquanto a inovação na narração fílmica aparece como um modelo raro nos últimos anos, encontrada em filmes na linha quebra-cabeça como Amnésia e Adaptação, (...) muitos programas televisivos narrativamente complexos figuram entre os mais bem-sucedidos do meio, dando a entender que o mercado destinado à complexidade é mais valorizado na televisão do que no cinema. (MITTEL, 2012, p. 33) Essa possibilidade de complexificação e aprofundamento em relação às obras cinematográficas pode ser verificada num fenômeno que tem se tornado cada vez mais frequente: a tendência em aproveitar na televisão universos narrativos fílmicos. Exemplos recentes são as séries Scream (MTV), baseada na franquia de filmes “Pânico”, de Wes Craven, Um Drink no Inferno (El Rey Network e Netflix), adaptação do filme de mesmo nome, dirigido por Robert Rodriguez, e Bates Motel (A&E), cuja narrativa foi criada como prelúdio do filme Psicose, de Alfred Hitchcock. Em consonância com as propostas e reflexões realizadas pelo Grupo de Estudos Audiovisuais (GEA) da Universidade Estadual Paulista (UNESP) e com a finalidade de contribuir com roteiristas e pesquisadores de narrativas seriadas, este trabalho pretende lançar um olhar 97 sobre a questão da transposição dos universos fílmicos para a televisão. Tomamos por objeto a série Bates Motel, por trazer em sua proposta particularidades que suscitam problemas de pesquisa instigantes: trata-se de uma série contemporânea, que se passa nos dias atuais, e que ainda assim é prelúdio de um filme da década de 60. Este trabalho explora seu processo de roteirização, buscando compreender como criar tramas que preencham os episódios a partir do filme, mantendo com ele coesão apesar da inversão cronológica. Serão apresentadas na próxima seção as duas obras relacionadas ao problema de pesquisa deste trabalho, Psicose e Bates Motel, para, em seguida, analisar de acordo com o percurso gerativo de sentido da semiótica de linha discursiva as estruturas narrativa e discursiva de ambas, visando compreender as estratégias utilizadas pelos roteiristas para atingir os objetivos anteriormente explicados. O filme e a série Adaptado das páginas do romance Psicose (com primeira edição em 1959) do escritor estadunidense Robert Bloch, o filme Psicose - produzido e dirigido por Alfred Hitchcock, escrito por Joseph Stefano e estrelado por Anthony Perkins, Vera Miles, John Gavin e Janet Leigh tornou-se um marco na história do cinema. A obra cinematográfica passou a ser a maior articulação na tradução da obra literária de Bloch e foi indicado à cinco categorias do Oscar. Sobre o sucesso do filme: Não havia otimismo ou golpe publicitário cuidadosamente orquestrado que tivesse preparado os envolvidos — e muito menos Hitchcock — para o incêndio que o filme estava espalhando. Ninguém previra a intensidade com que Psicose iria penetrar no subconsciente dos americanos. Desmaios. Saídas no meio da sessão. Espectadores que voltavam várias vezes. Boicotes. Cartas e telefonemas furiosos. Conversas sobre proibir sua exibição aconteciam nos púlpitos das igrejas e nos consultórios dos psiquiatras. Nunca um diretor havia tocado nas emoções do público como se elas fossem os pedais de um órgão. Os espectadores americanos foram os primeiros a reconhecer o monstro que Hitchcock tinha criado. (REBELLO, 2013, arquivo digital). Através de artifícios específicos da linguagem audiovisual, como a câmera posicionada em noventa graus e a estratégia da realização de ações fora da tela de exibição, o filme manteve o mistério principal que se fundamenta a narrativa: Norma Bates está morta e é Norman quem se realiza as ações fingindo ser a mãe. Para compor a obra literária Robert Bloch inspirou-se no caso real do assassino de Wisconsin, Ed Gein. Do mesmo modo que Gein, Norman Bates é um assassino solitário que vive em uma localidade rural isolada e tem um relacionamento conturbado com sua mãe. A história é iniciada com Marion Crane, uma jovem que rouba o dinheiro de seu patrão para fugir, encontrar seu noivo e começar uma vida juntos. No caminho, não planejado graças a um desvio da rodovia e uma forte chuva, acaba parando no Bates Motel, onde é atendida por Norman. Nesse quarto de motel Marion é assassinada no chuveiro por uma figura que parece ser Norma Bates, mãe de Norman, mas esse personagem nunca é mostrado nitidamente nas cenas. Enquanto familiares e policiais buscam desvendar o sumiço de Marion, o público tenta entender o mistério e motivos que rondam as ações de Norma Bates. Apenas na cena final é mostrado que Norman se passava pela mãe. O rapaz possui um transtorno dissociativo de 98 identidade, revelando como sua segunda personalidade a mãe já falecida. Quando essa segunda personalidade está no comando de suas ações ele age sendo protetor, controlador e afastando as mulheres que se aproximam de Norman. Desenvolvida por Carlton Cuse, Kerry Ehrin e Anthony Cipriano, produzida pela Universal Television e exibida pela A&E, Bates Motel é uma série de televisão americana que estreou em 2013. A obra narra a vida de Norman Bates desde sua adolescência, e para isso os criadores se basearam no personagem do filme Psicose. As três primeiras temporadas foram sucesso de público e crítica, fatores que garantiram mais duas temporadas encomendadas pela emissora e que posicionaram a série entre as com mais investimentos publicitários na TV a cabo americana.21 Enquanto o filme se sustenta no mistério de que a mãe está morta e Norman que se passa por ela, na série o público já sabe, graças à obra de Hitchcock, que Norma irá morrer e que Norman será não somente um assassino serial, mas também o assassino de sua própria mãe. A narrativa principal da série se torna o relacionamento entre mãe e filho, que resultará nas condições apresentadas no filme. A trajetória de Bates Motel descreve os acontecimentos anteriores aos do filme Psicose, e o produtores apostam em cativar os espectadores ao apresentar cada avanço na doença de Norman e através das ações inescrupulosas que Norma comete para conseguir encobrir essa condição do filho. Apesar de se inspirar nos personagens de Psicose e trilhar os acontecimentos anteriores aos de Marion chegando no motel, Bates Motel tem a história ambientada nos dias atuais e não na década de 30 ou 40 - época na qual teria vivido o jovem Norman Bates do filme. A trama apresenta ainda novas histórias conectadas a vida dos personagens centrais e que, apesar de não estarem apontadas no filme, também não são negadas. São exemplos desses novos elementos narrativos o tráfico de drogas na cidade e outros membros da família Bates. Estratégias narrativas e discursivas A linguagem audiovisual é uma manifestação textual organizada em um sistema de linguagem, e, portanto, os seriados e filmes podem ser compreendidos e analisados a partir dos arcabouço téorico-metodológico da semiótica de linha discursiva. Visando elucidar as questões relacionadas ao problema de pesquisa proposto, serão explicados a seguir os pressupostos teóricos relacionados à sintaxe narrativa e a semântica discursiva do percurso gerativo de sentido. Para compreender o plano do conteúdo de qualquer manifestação, a semiótica desenvolveu um modelo de análise da significação: o percurso gerativo de sentido. Segundo Fiorin (2005, p. 20), ele “é uma sucessão de patamares, cada um dos quais suscetível de receber uma descrição adequada, que mostra como se produz e se interpreta o sentido, num processo que vai do mais simples ao mais complexo”. Segundo o autor, o percurso é composto por três níveis, o fundamental, o narrativo e o discursivo, e em cada um há um componente sintáxico e um componente semântico. Para compreender como os roteiristas de Bates Motel criam 21 Informação disponível em: <http://variety.com/2015/tv/news/bates-motel-renewed-season-4-ae-1201517941/>. Acesso em: 18 out. 2015. 99 tramas a partir de Psicose e de que maneira a inversão cronológica não afeta a coesão da série, interessará para este estudo elucidar a sintaxe narrativa e a semântica discursiva. Fiorin (2005, p. 27) explica que ocorre uma narrativa mínima quando há uma transformação de estados, ou seja, quando há um estado inicial, uma transformação e um estado final. Há, portanto, dois tipos de enunciados elementares na sintaxe discursiva: o enunciado de estado e o enunciado de fazer. Para entedê-los é preciso estabelecer a relação entre sujeitos e objetos. De acordo com Barros (2005), é a relação observada no próprio texto que define os actantes sujeitos e objetos: “o sujeito é o actante que se relaciona transitivamente com o objeto, o objeto aquele que mantém laços com o sujeito” (BARROS, 2005, p. 17). Para exemplificar, pode-se aferir que em Psicose, a personagem Marion, ao desejar recomeçar a vida com mais recursos, é um sujeito que busca o objeto “recomeçar a vida”. Há dois tipos de relações entre sujeito e objeto: a junção e a transformação, e essas duas relações que estabelecem a distinção entre enunciado de estado e enunciado fazer (BARROS, 2005). Quando há uma transformação (enunciado de estado seguido por um de fazer que o modifica a outro de estado, diferente do primeiro) é composto um programa narrativo, e a sucessão de programas compõe um percurso narrativo, ou, quando esse percurso segue a trajetória de um sujeito, há um percurso do sujeito (BARROS, 2005). Ao retomar o primeiro componente do problema de pesquisa - de que maneira Bates Motel cria tramas a partir de Psicose - é possível identificar, observando a sintaxe narrativa de ambas as obras audiovisuais, que os roteiristas do série selecionaram elementos específicos do filme para construir percursos narrativos que culminassem neste elemento, uma vez que os acontecimentos do filme são posteriores ao da história acompanhada na TV. O elemento “taxidermia” é um deles. O público sabe, pelo filme, o interesse que Norman Bates tem pela técnica de encher de palha o corpo de um animar morto para preservar sua aparência. Um dos cômodos do motel é enfeitado com diversos animais empalhados. Esta questão não é explorada além disso no filme. Na primeira temporada da série, Norman, mais jovem, tem o interesse pela taxidermia despertado ao conhecer o pai taxidermista de uma de suas amigas. O público, dessa vez, acompanha o processo de aprendizado de Norman, e conhece a relação que este hobbie passa a ter com as inquietações do personagem. Outro exemplo que ilustra o recurso de roteirização é o “desvio da rodovia”. A série explora um curto diálogo relacionado a esta questão no filme. Na obra cinematográfica, Norman justifica a recém chegada hóspede Marion que o motel está com todos os quartos disponíveis graças a um desvio na rodovia feito no passado, tirando o estabelecimento da rota principal dos viajantes. Em Bates Motel, já no primeiro episódio da primeira temporada, tem início o embate de Norma contra as instituições e figuras públicas da cidade que convocam a população, através de um cartaz, para uma reunião na qual será discutida a intenção de construir um desvio na rodovia. No decorrer das temporadas o público acompanha a evolução desses acontecimentos, apesar de já saber que, no futuro, a rodovia será construída de qualquer forma - informação verificada no filme. Os dois exemplos citados, “taxidermia” e “desvio da rodovia”, são elementos simples na narrativa acompanhada no filme de 1960, porém são fontes para que percursos narrativos específicos sejam desenvolvidos. Esta estratégia não só conecta os universos ficcionais, como 100 permite que extensos acontecimentos sejam exibidos na série. Desta forma, os episódios passam a ser preenchidos com extensas histórias adequadas à estrutura segmentada e complexa de uma série pensada para ser exibida na televisão e que possuem vínculo com o filme (um dos objetivos da proposta de Bates Motel). Este modo de conceber percursos narrativos associado a outros percursos criados exclusivamente para a série e que não possuem ligação direta com o filme compõe a estrutura narrativa criada pelos roteiristas e pode ser representada de acordo com a figura 1. Figura 1: representação dos percursos narrativos da série que partem de elementos do filme. Fonte: elaborado pelos autores. Para responder à outra questão do problema de pesquisa - como manter a coesão invertendo a cronologia dos fatos - serão retomadas as explicações relacionadas ao percurso gerativo de sentido. Desta vez, o que auxiliará a análise é a compreensão da semântica discursiva. É no nível discursivo que as formas mais abstratas estabelecidas no nível narrativo ganham concretude (FIORIN, 2005). Para exemplificar, enquanto no nível narrativo há um sujeito em disjunção do objeto, no discursivo é estabelecido que, no filme, Marlon não está satisfeita com as conquistas de sua vida. A mesma disposição narrativa é verificada na série, quando Norma não garante que o motel permaneça na rota dos viajantes que passam pela cidade. Em ambos os casos é no nível discursivo que são dadas concretudes diferentes a uma mesma configuração da sintaxe narrativa: sujeito em disjunção do objeto. E nesta etapa da significação, portanto, que são estabelecidos os temas e figuras de um texto, componentes da semântica discursiva: tematização consiste em formular valores de modo abstrato e organizá-los em percursos; figurativização em estabelecer quais conteúdos mais “concretos” recobrem os percursos temá cos (BARROS, 2005). Na observação das estruturas discursivas das duas obras audiovisuais, é possível verificar que esses dois procedimentos 101 semânticos são responsáveis por fazer com que não fique incoerente um prelúdio que se passa cronologicamente depois. As figuras estabelecidas na série são contemporâneas e muitas seriam impossíveis na décadas de 30 ou 40. Norman, por exemplo, possui um smartphone e o usa com frequência. Outro exemplo é o cadastro de hóspedes na recepção do motel: na série ele é feito em um computador, enquanto no filme é feito em um caderno de registros. É possível notar que, apesar das muitas figuras da série pertencerem aos dias atuais, a coerência é mantida graças à tematização, que permanece entre as duas obras. Temas como “psicopatia”, “ciúmes entre mãe e filho”, “interesse pela morte”, “mistérios”, “roubos” e “crimes”, são recorrentes nas duas obras, apesar de estarem concretizados num processo distinto de figurativização. Outras estratégias também podem ser notadas em diversos recursos audiovisuais. A arquitetura do motel e da casa ao lado, onde reside a família Bates, se assemelha nas duas obras. Outro exemplo é o figurino designado aos personagens, que mantém traços visuais entre uma representação e outra. A trilha sonora da série, apesar de não ser a mesma do filme, explora arranjos e instrumentos semelhantes à clássica trilha composta para o filme de Hitchcock, sobretudo nos momentos de suspense. Os enquadramentos e ângulos de câmera escolhidos para a série também indicam uma inspiração no filme (figura 2). Os próprios diálogos construídos no processo de roteirização buscam reforçar esse vínculo entre as duas obras. No filme, por exemplo, Norman diz à Marion: “Todos nós enlouquecemos as vezes”; na terceira temporada da série o público vê Norma dizendo exatamente a mesma frase ao filho, após um momento de descontrole do jovem. Figura 2: enquadramento e ângulo de câmera da série (à direita), inspirados nos do filme (à esqueda). Fonte: print screen do filme Psicose e da série Bates Motel Todas estas estratégias garantem que, apesar de agora ter smartphone, o Norman da série é o mesmo do filme, só que mais jovem. A potencial estranheza que algo que acontece antes e se passa depois pode gerar é suprimida pela combinação dessas estratégias associadas a uma estrutura e evolução dos percursos narrativos que, estes sim, possuem um ordenamento linear. Enquanto a inspiração para o roteiro é do filme à série, e linearidade narrativa é da série ao filme. Considerações finais 102 A análise das obras Psicose e Bates Motel apontam que, ao explorar elementos pontuais do filme, é dada aos roteiristas uma ampla gama de possibilidades narrativas para a série. Aproveitar momentos ou aspectos objetivos da obra de Hitchcock na criação e desdobramentos de novos e extensos percursos narrativos na série não só garante o vínculo com a filme, como permite que a história seja contada de maneira segmentada, complexa e com os mistérios e suspenses trabalhados de acordo com as condições da experiência e fruição televisiva. Esta tática abre também a possibilidade para a inserção de novos gêneros e personagens na trama. A partir da observação do corpus também é possível compreender os procedimentos adotados pelos roteiristas e produtores para desenvolver uma história ambientada nos dias atuais e que tenha acontecido antes de outra história ambientada, dessa vez, há mais de meio século. As estratégias discursivas de tematização - que permanece entre as duas obras - e a de figurativização - que atualiza a ambientação -, associadas a outras estratégias audiovisuais como cenografia, figurino, trilha sonora e diálogos - sobrepõem a incoesão temporal da proposta. A tematização permanecendo a mesma também aumenta as chances da série não desagradar público e crítica, uma vez que respeita as ideias e atmosferas sustentadas pelo filme. Os procedimentos observados e analisados neste trabalho são potenciais técnicas de roteirização para novas obras a partir de obras já existentes, e corroboram com a tendência observada no mercado audiovisual em aproveitar universos ficcional com fãs já estabelecidos, oferecendo a eles o que todo fã sempre buscará: mais conteúdo daquele universo ficcional. Referências bibliogáficas BARROS, D.L.P. Teoria semiótica do texto. São Paulo: Ática, 2005. CARLÓN, M. Repensando os debates anglo-saxões e latino-americanos sobre o “fim da televisão”. 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Prof. Dr. Ricardo Bruscagin Morelatto. Universidade Mackenzie. [email protected]; Carolina Lopes Rodrigues. Universidade Mackenzie. [email protected] Resumo: Partindo do pressuposto da possibilidade de tradução de uma notícia jornalística para a linguagem dos quadrinhos, “Desenho da Notícia” é um blog que pretende realizar esta comunicação intertextual entre duas formas distintas de comunicação. Desde 2011 realiza um trabalho conjunto resultado do esforço da jornalista e roteirista Carolina Lopes e do designer Ricardo Morelatto para a veiculação de quadrinhos em mídia digital com conteúdo jornalístico educativo. Através da roteirização de algumas notícias e fatos históricos pontuais desenvolveu até o ano de 2014 mais de uma dúzia de quadrinhos digitais utilizando como tema fatos culturais e sociais como também notícias do cotidiano e efemérides. Recebeu no ano de 2012 o prêmio “Top Blog” na categoria jornalismo e forneceu conteúdo para importantes órgão de comunicação como o jornal “Estado de São Paulo” e outros veículos digitais parceiros. Atualmente realiza uma compilação dos conteúdos desenvolvidos para publicação em mídia impressa e registro da produção realizada ao longo destes anos. Como esforço de pesquisa se constitui em importante tentativa na consolidação de um discurso e na formatação de uma metodologia para a criação de narrativas em quadrinhos com conteúdo informativo educacional. Palavras chave: Quadrinhos; Jornalismo; Intertextualidade. Abstract: From the assumption of the journalistic news translation into the comics language, “Desenho da Notícia” is a blog which intends to accomplish such a intertextual communication between these two forms of expression. Since 2011 develops a work that results from the effort of journalist and screenwriter Carolina Lopes and designer Ricardo Morelatto for the publication of journalistic content comics in digital media. Through the routing of some news and historical events it has developed up to 2014 over a dozen digital comics using as themes, cultural and social facts as well as daily news. It has received in 2012 the “Top Blog Award” in the Journalism category and it has provided content to major medias such as “O Estado de São Paulo” and other digital medias partners. Nowadays it compiles contents that are developed for publication in press media and also registers its production over the years. As an effort in research it constitutes an attempt in consolidating a speech as well as stablishing a methodology towards the creation of a comics narrative with educational informative content. Key words: Comics; Journalism; Intertextuality. 1-Introdução: Pensando na possibilidade de tradução de uma notícia jornalística para a linguagem dos quadrinhos, em 2010 foi criado o blog denominado “Desenho da Notícia” (http://www.desenhodanoticia.com.br) que publicou alguns exercícios criativos neste sentido. 104 A princípio elencou uma série de tópicos temáticos que tinha por finalidade a publicação periódica de assuntos cotidianos e pautas jornalísticas, bem como datas comemorativas e algumas narrativas pontuais, sempre em quadrinhos. Este esforço nasceu da uma parceria entre os autores do projeto, com algumas especialidades distintas; O design gráfico e a ilustração em uma ponta e o jornalismo, desenvolvimento de roteiros e análise do discurso em outra. Utilizando como texto base a notícia em si, foi se desenvolvendo um método de roteirização, para possibilitar a tradução em quadros ilustrados que se aproximavam muito das narrativas sequenciais das fotonovelas e histórias em quadrinhos tradicionais. Assim foi tomando forma um exercício de tradução intertextual que deu origem à ideia que norteou toda a produção desenvolvida para o formato estabelecido, em uma publicação digital. A seleção de notícias e textos propícios para este desenvolvimento narrativo se constituiu em um esforço preliminar para a sucessão das etapas que serão descritas a seguir. A base textual se constituiu em um elemento de grande importância para a posterior tradução visual pretendida e a fidelidade da narrativa híbrida proposta. 2- Desenvolvimento; O texto. Uma vez traduzida a notícia em tópicos sequenciais, que de certa forma, conduziram o “timing” da narrativa proposta em um roteiro peculiar, foi obrigatório seguir este “tempo narrativo” proposto pelo “roteiro da notícia”, para seguiu o caminho das histórias em quadrinhos digitais, com as possibilidades de editoração digital conversando com as estruturas narrativas criadas e projetadas. A necessidade de um roteiro que sintetizasse a notícia e ao mesmo tempo propiciasse o desenvolvimento narrativo visual, foi configurando uma metodologia de trabalho, que de certa forma ajudou na agilização da publicação, uma vez que o ambiente virtual e as características de um blog, obrigam postagem constantes e intermitentes. Desta forma, o elenco de “pautas jornalísticas” foi sendo determinado pelas redes sociais e a própria recorrência da notícia em si nas mídias sociais, como o jornal, revistas semanais, televisão e redes virtuais. Uma atualização dos assuntos a serem explorados, foi tema constante das reuniões criativas para o site e para o encaminhamento do trabalho produtivo dos roteiros. Ao mesmo tempo a pesquisa e reunião de imagens representativas para as histórias, exigiu a colaboração de outras pessoas simpáticas ao projeto, pautadas por uma direção de arte que norteou um trabalho coletivo para a produção das narrativas. O viés da pesquisa para a seleção de textos e sua reescrita em um formato determinado pelo campo visual da tela, foi configurando um sistema de trabalho que permitiu a incorporação de outras temáticas, sempre pautadas pela mídia jornalística e destacadas pela edição do blog. É o caso de “Guerra ao Terror” que relembra os atentados de 11 de setembro de 2001, dez anos depois. O roteiro incorpora dados e referências históricas que conferem um caráter mais educacional à narrativa. Também possibilita o registro destas referências para outros estudos e abordagens, pelos mais variados níveis e sistemas de ensino. O mesmo acontece em “Duelo 105 de Bambas” que reconta o duelo poético entre Noel Rosa e Wilson Batista, registrando trechos das canções. Figura 1: Fragmento de imagem. HTTP://desenhodanoticia.com.br Em continuidade, as temáticas jornalísticas selecionadas foram dando lugar a uma espécie de influência editorial que conduziria a uma abordagem mais ideológica, como os quadrinhos chineses e as cartilhas educativas em quadrinhos, desenvolvidas por vários órgãos governamentais que em certos momentos, orientam a opinião pública a conclusões preliminares e “educam” na forma do “status quo” o direcionamento da mensagem. Em um movimento de desconstrução deste processo, a criação das narrativas proposta permite uma síntese de um conjunto de notícias em uma história aberta. A notícia se tornando visual e propagando ideologias e novos discursos. Assim, histórias como “A Luta Continua” foram produzidas a partir da associação de pequenas notícias pontuais e totalmente descontextualizadas que resultaram em uma espécie de síntese ideológica para uma abordagem jornalística. Outras narrativas como “Paixão pela lua” surgiram da necessidade de um resgate histórico de fatos pontuais que influenciaram todo o destino da humanidade e que de certa forma, permaneceram encobertos pela sucessão de fatos e notícias, que proliferaram nas diversas mídias sociais e acobertaram as decorrências destes atos. Desta forma o caráter educativo de tal iniciativa, se constituiu em um elemento 106 norteador do projeto e alimentou de forma significativa, a orientação ideológica da produção desenvolvida. 2.1- A imagem: Cada uma das imagens exigiu uma pesquisa iconográfica específica, relacionada aos cenários, contextos temporais, personagens, enquadramentos e estudos de luz e sombra para o ambiente virtual, entre outros aspectos. Para cada temática uma série de arquivos visuais e pastas foram criados para uma espécie de referência visual para o desenho da história. Em algumas delas, como “Guerra ao terror” e “Duelo de bambas” a fidelidade as referências visuais pesquisadas, exigiram uma estilização ou “limpeza do desenho” dos referentes, para uma leitura rápida no meio proposto (internet) e a perfeita compreensão do discurso narrativo. Também foi necessário um estudo para uma nova diagramação da história em um ambiente virtual. A barra de rolagem exigiu uma composição vertical, diferente das páginas impressas. A própria inclinação do texto deveria pender para baixo, declinando para o desfecho da história. Figura 2: Fragmento de imagem. HTTP://desenhodanoticia.com.br 107 Vários exemplos criativos em “quadrinhos digitais” puderam ser absorvidos como referência. Alguns deles verdadeiros desbravadores na exploração criativa desta linguagem. Os infográficos e quadrinhos animados realizados pelo jornal “Folha de São Paulo” em mídia online, são um exemplo claro disto. Outras fontes de inspiração vieram dos mais diversos ambientes digitais. Desde produtores independentes de conteúdo, até os grandes portais que possibilitaram uma visibilidade maior de produções de vanguarda com estas características, foram essenciais. A criação de conteúdo digital, seja pela sua forma mais simplória de inserções nas redes sociais, até as mais elaboradas programações que configuram os sites, blogs, fotoblogs, aplicativos, etc, se tornou relativamente acessível a uma grande parte da comunidade digital, através de publicadores e construtores de sites e imagens disponíveis no mercado. Estas facilidades tornaram possível tanto a publicação de conteúdos banais como receitas e “dicas de moda”, como também experimentações com os códigos, sugeridas muito antes do advento da revolução digital, pelos poetas concretistas, pela geração beat e pelos artistas do underground virtual, sem espaço nas mídias de massa. Pode-se especular que hoje vivemos um “boom” na proliferação e publicação de conteúdo digital na rede. 3- Conclusão: O site “Desenho da notícia” pretende assim, se constituir em um ensaio para a ampliação dos horizontes narrativos digitais, quando propõe um encadeamento original para as tramas, que se organizam em uma espécie de construção peculiar, que altera os sentidos originais da organização textual para uma nova exploração de seus significados (alguns exemplos como “Guerra ao Terror” e “A Luta Continua” permitem a leitura da história de traz para frente). 108 A contribuição dos recursos visuais atuais, para uma possível retomada dos hábitos de leitura de toda uma geração e um interesse maior pelos fatos cotidianos noticiados, se faz urgente enquanto procura de novas alternativas as mídias de massa como a televisão, as revistas e a própria internet, enquanto formadoras de opinião. O “jornalismo em quadrinhos” proposto pelo projeto pretende se configurar como objeto inovador enquanto prática editorial e também, ampliar seu alcance lançando a possibilidade de aproximação entre discursos extremamente complexos (como a notícia e as histórias em quadrinhos). Pilares comunicantes, capazes de formular uma nova forma e fonte de informação para as novas gerações, tão carentes de hábitos de leitura, compreensão e interpretação. Extremamente ligadas aos novos meios digitais e capazes de visualizar fatos importantes de seu cotidiano, em formatos híbridos. Bibliografia: COLLIER, John. Antropologia Visual: a fotografia como método de pesquisa. São Paulo: EPU, Editora da Universidade de São Paulo, 1973. EISNER, Will. Quadrinhos e Arte Sequencial. São Paulo. Martins Fontes. 2009. Trad. Luís Carlos Borges FERRARA, Lucrécia D’aléssio. A Estratégia dos Signos. São Paulo: Perspectiva, 1986. IBRI, Ivo Assad. Kósmos Noëtós: a arquitetura metafísica de Charles S. Peirce. São Paulo: Perspectiva, 1992 JAKOBSON, Roman. Linguística e Comunicação. São Paulo. Cultrix, 1991. Trad. Izidoro Blikstein e José Paulo Paes. MALTA, Márcio. Henfil: o humor subversivo. São Paulo: Expressão popular, 2008. PIGNATARI, Décio. Semiótica e Literatura. São Paulo. Cultrix. 1987 PLAZA, Julio. Tradução Intersemiótica. São Paulo: Perspectiva, 1987 PRIGOGINE. Ilya. STENGERS, Isabelle. A Nova Aliança: Metamorfose da Ciência. Brasília: Universidade de Brasília. 1991. Trad. Miguel Faria e Maria Joaquina Machado Trincheira. SCHELL, Jesse. A Arte de Game Design: o livro original. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011. TODOROV, Tzvetan. As Estruturas Narrativas. São Paulo: Perspectiva, 1979. 109 A propaganda como ferramenta das relações públicas: Análise do comercial “Adoção – comer juntos alimenta a felicidade” Laís Maria Fermino de Souza – Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – Unesp [email protected]; Letícia Passos Affini – Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – Unesp [email protected]. Resumo O presente estudo analisa a peça publicitária realizada pela Coca-Cola, “Adoção – Comer Juntos Alimenta a Felicidade”. Busca-se responder à questão: como a proposta institucional da marca, estabelecida na matriz verbal, é adaptada para o audiovisual, linguagem híbrida (verbal, visual e sonora)? Selecionou-se, como método, o estudo de caso Robert K. Yin e, como fundamentação teórica, as matrizes da linguagem-pensamento, por Lúcia Santaella. Os autores Marcel Martin, Leighton Cage e Michael Rabinger foram os escolhidos para os elementos específicos da linguagem audiovisual. Destacam-se no posicionamento institucional da marca os valores de integridade, diversidade, modernidade, simplicidade e responsabilidade. O comercial aborda o tema da adoção de uma criança negra por um casal heterossexual branco; enquanto os pais tentam achar as palavras corretas para discutir a questão, a criança faz um discurso assertivo à cerca da situação. Palavras-chave: Audiovisual. Propaganda. Marca. Coca-Cola. Abstract This study analyses Coca-Cola’s advertising piece, "Adoption - Eating Together feeds Happiness". It seeks to answer the question: how is the institutional proposal of the brand, established in the verbal matrix, adapted to the audiovisual, hybrid language (verbal, visual and sonorous)? Robert K. Yin’s case study was chosen as a method, and Lucia Santaella’s matrices of language and of thought as theoretical ground. The authors Marcel Martin, Leighton Cage and Michael Rabinger were selected to deepen the proposed study by offering specific elements of the audiovisual language. Corporate values such as integrity, diversity, modernity, simplicity and responsibility stand out in the institutional positioning of the brand. The commercial addresses the issue of adoption of a black child by a white heterosexual couple; whilst the parents try to search for the right words to discuss the matter, the child delivers an assertive speech about the situation. Keywords: Audiovisual. Advertising. Brand. Coca-Cola. Introdução As TICs (Tecnologias da Informação e Comunicação) transformam o atual cenário comunicacional. No ciberespaço, podemos encontrar pessoas com interesses em comum, nos articularmos, produzirmos conhecimentos e estreitarmos caminhos. A comunicação tem um 110 papel fundamental na democratização da informação das comunidades eletrônicas que se agrupam por afinidades (TERRA, 2005). As matrizes verbal, visual e sonora fundem-se e geram diversas possibilidades ao comunicador, que detém canais interconectados para aperfeiçoar a relação com os públicos alvos. Carolina Terra discute a importâncias das atividades das relações públicas como gestora desse processo comunicacional integrado na web: As relações públicas, por seu caráter estratégico, ajudam a organização a construir relacionamentos de confiança e compreensão em longo prazo com seus públicos. No caso de uma ação direcionada ao contexto virtual, a possibilidade de interação é imediata, acarretando transformações consideráveis nas relações organização-públicos. A comunidade-alvo é que balizará todo o planejamento de comunicação do profissional de relações públicas para este meio específico (TERRA, 2005, p. 5). Observa-se a mudança de comportamento do consumidor, o qual deixa o seu estado passivo e transforma-se em produtor de conteúdo e formador de opinião. Por consequência, o setor mercadológico é afetado e precisa adaptar-se ao novo contexto. Essa nova atribuição dada aos indivíduos tem total influência sobre a reputação dos serviços ou produtos consumidos. É possível avaliar, trocar informações, opinar e criticar de forma rápida, em tempo real e fácil, qualquer quesito que envolva a organização. Além disso, as manifestações na rede movem cidadãos ativos e conscientes, pois dialogar e abrir canais de interação não é tido como um privilégio, mas como um direito. Entretanto, no universo web, o usuário pode agir de forma antiética e veicular conteúdos de caráter duvidoso ou falso. Desse modo, as empresas necessitam monitorar constantemente seus canais de interação com o público. O uso das TIC’s, assim como todas as ferramentas dela decorrentes, mudou o panorama das organizações. “É um processo sustentado por um contexto que privilegia a multidirecionalidade e desvincula a mensagem da forma e de sua relação com o tempo e o espaço” (GUIMARÃES, 2011, p. 20 apud FERRARI, 2009). Portanto, as TIC’s se inseriram no planejamento de comunicação e tornaram-se parte estratégica das empresas. Antes da comunicação digital as organizações não viam necessidade de mostrarem-se abertas ou transparentes ao público, mas hoje se veem encurraladas por um cenário competitivo, pressionadas pelos profissionais de comunicação e mídia, pelas leis que regem suas atividades e pelos próprios consumidores, que exigem dados transparentes, explicações e afirmações de qualidade nos produtos e serviços que adquirem. A Internet funciona, nos dias de hoje, como uma vitrine virtual de exposição institucional. Em face disso, é quase impossível não encontrarmos as grandes corporações na Web. A competitividade e a necessidade de exposição e relacionamento com os públicos faz com que as organizações criem seus websites ou os chamados sites institucionais, que podem se expandir e ter unidades de e-commerce, relacionamento com o cliente, ambientes de relacionamento com investidores, imprensa etc. (TERRA, 2005, p. 2). Nesse sentido, as organizações que não se adequam a esse novo tipo de consumidor estão mais propensas às crises institucionais, falta de credibilidade, queda nos investimentos ou, em último caso, encerramento das atividades. Não é suficiente abrir espaço para o diálogo e manter uma comunicação direta, é preciso alinhar os discursos. Cada público envolvido com a organização preza por um tipo de informação e se identifica com uma linguagem, ou formato. 111 Primordialmente, a organização deve se portar como única, considerando que existe uma identidade construída, uma imagem a ser mantida e uma reputação a ser zelada. Trilhando este mesmo caminho, verifica-se que: A globalização e a revolução tecnológica da informação e das comunicações estão exigindo cada vez mais que as organizações concebam e planejem estrategicamente o relacionamento com seus públicos e a opinião pública. No âmbito de uma sociedade complexa como a de hoje, reserva-se à comunicação um papel de crescente importância. Ela já atingiu um estágio avançado nas organizações de ponta, que procuram trilhar o caminho da pós-modernidade. Isto pode ser percebido nos investimentos feitos nessa área, na produção sofisticada de peças institucionais e no desenvolvimento de programas estratégicos tanto no âmbito interno quanto no externo (KUNSCH, 2009, p.10). As organizações buscam fortalecer sua imagem perante os seus públicos de interesse e investir em Comunicação Institucional, especialmente as que atuam em setores vulneráveis, como a Coca-Cola, empresa de grande porte e que está em 11º lugar no ranking das organizações mais valiosas do mundo em 201522. A Coca-Cola possui alta visibilidade e percepção de suas ações institucionais por parte da comunidade, investidores, colaboradores e mídia. Sendo assim, campanhas publicitárias e outras ações devem ser planejadas e desenvolvidas de forma a divulgar informações e conceitos que atendam e satisfaçam seus públicos, transmitindo de forma única e constante a identidade da empresa. Para que todas as produções, vídeos, notas e qualquer mensagem oriunda da Comunicação Institucional sejam recebidos e identificados pelo público como pertencentes a uma organização específica, existem elementos que devem ser característicos dessa mesma organização e posicionados nas peças para que o consumidor seja capaz de associar o que está vendo com a marca. Na Coca-Cola, por exemplo, a utilização de cores específicas (vermelho e branco), uma fonte padrão (denominada Loki Cola e desenvolvida especialmente para a marca) e a forma como o conteúdo das propagandas é elaborado (com trilha sonora característica, imagem do produto Coca-Cola constantemente presente, enredo de conteúdo arrojado e a transmissão de ideais positivos, que culminam na proposta de felicidade difundida pela marca) são preocupações constantes. Desse modo, não apenas a Coca-Cola, mas diversas outras organizações, empenham-se em construir estrategicamente um conjunto de elementos gráficos e estéticos que se refletem no discurso que a empresa deseja transmitir aos indivíduos para, assim, persuadi-los e conquistá-los de forma assertiva. Metodologia A presente pesquisa utiliza o método do Estudo de Caso. Segundo Yin (2005) este método favorece uma visão sincrética sobre os acontecimentos contemporâneos, destacando-se seu caráter de investigação empírica. Especificamente neste trabalho, o objeto de estudo é a peça audiovisual “Adoção – Comer Juntos Alimenta a Felicidade”. Será realizada uma leitura interpretativa da estrutura audiovisual da propaganda e se buscará responder a questão: Como a proposta institucional da marca, estabelecida na matriz verbal, é adaptada para o 22 Pesquisa realizada pela consultoria Brand Finance (http://exame.abril.com.br/marketing/noticias/as-50-marcas-mais-valiosasdo-mundo-em-2015-apple-e-1a) 112 audiovisual, linguagem híbrida (verbal, visual e sonora)? Para tanto, serão utilizados os estudos das matrizes da linguagem e pensamento, desenvolvidos por Lúcia Santaella, que auxiliam o entendimento da relação entre os valores e princípios da marca Coca-Cola para com os mecanismos que permitem construir o enunciado – este último entendido como um todo significante. Para Santaella, linguagem e pensamento são dois termos indissociáveis e define o pensamento como “Qualquer coisa que esteja à mente, seja ela de uma natureza similar a frases verbais, a imagens, a diagramas de relações de quaisquer espécies, a reações ou a sentimentos, isso deve ser considerado como pensamento” (SANTAELLA, 2005, p. 55). Já a linguagem manifestase nas criações humanas e estão em permanente crescimento e mutação. As categorias de primeiridade, secundidade e terceiridade, de Charles S. Peirce, fundamentam as matrizes da linguagem e pensamento elaboradas por Lúcia. A autora verificou em sua pesquisa que as linguagens não se manifestam isoladamente, mas mesclam-se entre si. A linguagem, portanto, pode ser denominada híbrida, por compor as chamadas matrizes primordiais: a verbal está manifestada no discurso, a visual no que se vê e a sonora nos sons que se ouvem. Por exemplo: a matriz verbal pode combinar com a sonora, a sonora com a visual, ou todas trabalharem juntas. Essa mescla de matrizes expande os signos existentes e as significações a eles atribuídas; o estudo das mesmas proporcionou uma correlação com as categorias de signo de Pierce e verifica-se que a matriz sonora corresponde à primeiridade, a visual à secundidade e a verbal à terceiridade. De forma sintética, podemos definir que a semiótica na área da Comunicação Institucional tem como intuito a utilização de elementos, mensagens e conteúdos que, juntos, criam e desenvolvem um significado para o público ou, mais particularmente, uma representação única para cada pessoa. O conceito de linguagem híbrida e a utilização das matrizes verbal, visual e sonora tornam as peças de comunicações mais atraentes para os públicos. Além da estética agradável, o conteúdo propagado por um comercial, por exemplo, permite que a organização difunda seu posicionamento institucional de forma assertiva para o público. Ao englobar signos e significações que são associados à integridade, modernidade e responsabilidade, os indivíduos são conquistados pelas marcas e tornam-se difusores de suas diretrizes. História da empresa Segundo o site da Coca-Cola (https://www.cocacolabrasil.com.br/coca-cola-brasil/historia-damarca/), a organização está presente em mais de 200 países. A empresa está comprometida com mercados locais, prestando atenção ao que as pessoas de diferentes culturas e históricos gostam de beber, e onde e como elas bebem. A organização acredita que exista para trazer benefícios e refrescar todas as pessoas que toca e quer que as pessoas sempre escolham uma das marcas da The Coca-Cola Company, e tenham uma experiência boa e satisfatória.Para buscar identificação com o público e mostrar suas diretrizes, a empresa elencou em seu site os princípios e valores que a regem. São eles: Inovação: 113 Buscar, imaginar, criar, divertir: esse é o caminho para a inovação. Desejamos buscar o inesperado, estimular um ambiente onde vale a pena correr os riscos de inovar e de compartilhar ideias. Liderança: Como líderes, precisamos ter a coragem de construir um futuro melhor, meta que será alcançada fazendo a diferença como empresa global, com decisões e inspiração certas e influenciando aqueles com quem nos relacionamos. Responsabilidade: Devemos ter vocação para agir e honrar nossos compromissos. Integridade: Ser íntegro significa ser verdadeiro: dizer o que pensamos, fazer o que dizemos e agir corretamente. Paixão: Comprometidos de corpo e alma, devemos criar oportunidades, ter sede de fazer sempre mais e realizar. Colaboração: Acreditamos na força da participação e, por isso, promovemos o talento coletivo. Valorizamos a diversidade, estamos conectados globalmente e dividimos os méritos pelos sucessos. Diversidade: Queremos ter uma força de trabalho tão diversa quanto os mercados que atendemos, e criamos oportunidades para alcançar esse objetivo. Qualidade: Consideramos que não há limites para atingir a excelência nas nossas atividades. Devemos deixar tudo sempre melhor do que estava e estabelecer os mais altos padrões para os nossos produtos, nosso pessoal e nosso desempenho. Dessa forma, esse estudo visa analisar o comercial “Adoção – Comer Juntos Alimenta a Felicidade”, a partir da questão: como a proposta institucional da marca, estabelecida na matriz verbal, é adaptada para o audiovisual, linguagem híbrida (verbal, visual e sonora)? Ou seja, como o discurso e a postura institucional da Coca-Cola, que tem dentre seus princípios e valores os ideais de responsabilidade, integridade, diversidade e paixão, são transmitidos para uma peça audiovisual e se estes conceitos são manifestados de forma explícita aos consumidores e públicos envoltos à organização? A aplicação da semiótica na análise da publicidade 114 A publicidade atual carrega muito mais do que a simples funcionalidade do produto, partindo para diferentes formas de atingir o público alvo da mensagem. Para Bastos (2012), na sociedade do hiperconsumo, a marca cada vez mais estabelece uma relação emocional com a sociedade; a partir dessa nova estrutura, a marca deixa de lado a chamada função indicial e começa a estabelecer relações que instituem simpatia e afetividade. Podemos dizer, então, que as marcas contemporâneas constroem sentidos. Segundo Lipovetsky (2007), esses sentidos estão relacionados não mais a produtos ou serviços, mas, por exemplo, à qualidade de vida e ao bem-estar, prazeres e sensações aos quais o indivíduo hipermoderno se vê na busca constante. Assim, “(...) a marca hipermoderna se desvencilhou de seu produto e sai da indicialidade, instância de segundidade semiótica e passa a operar no nível da primeiridade, na ordem das sensações” (BASTOS, 2012, p. 3). O objetivo é estabelecer uma relação de conivência, jogar com o público, fazê-lo compartilhar um sistema de valores, criar uma proximidade emocional ou um laço de cumplicidade (LIPOVETSKY, 2007, p.182). Esse contexto se adequa aos estudos de Semprini (2006) a respeito da natureza semiótica da marca na medida em que o autor reconhece que essa natureza reside justamente na capacidade da marca de construir e veicular sentidos. Esses sentidos, segundo Semprini (2006), podem ser organizados em narrativas explícitas da publicidade tradicional, como também podem ser percebidos em outras manifestações da marca, as quais funcionam como atos discursivos. E é justamente neste ponto que se encontra seu caráter enunciativo e semiótico. É exatamente nestes atos discursivos que reside a verdadeira natureza da marca, aquela que se constitui lenta e progressivamente ao longo do tempo, por uma acumulação coerente e pertinente de escolhas e de ações. Uma campanha de comunicação que é repetida com frequência em um espaço de tempo limitado e que utiliza recursos espetaculares, de forte impacto, goza, inevitavelmente, de uma maior visibilidade, mas ela pode, também, desaparecer sem nada construir, se ela não se articular de forma coerente com as manifestações discursivas fundamentais de uma marca (SEMPRINI, 2006, p.106). Desse modo, marca pode ser entendida como discurso, elaborado por uma organização a partir de uma intencionalidade já estabelecida anteriormente. Porém, de acordo com Charaudeau (2007), esse discurso depende não só da organização, mas também da capacidade interpretativa e de aspectos cognitivos do sujeito receptor. O poder semiótico da marca baseia-se justamente na capacidade da mesma de selecionar elementos no interior do fluxo de significados que atravessa o espaço social. Para Semprini (2006) é essencial que uma organização saiba organizar estes significados em uma narrativa pertinente e atraente e, ainda, saber propô-los a seus interlocutores. Resultados Matriz Visual Para desconstruir a propaganda e buscar seu significado enunciativo, utilizou-se fundamentação teórica nos autores Marcel Martin, Leighton Cage e Michael Rabinger, o que permitiu a criação de dez categorias para a realização da análise da peça audiovisual. Os 115 resultados da matriz visual foram divididos em duas partes: elementos fílmicos específicos e não-específicos. Elementos fílmicos específicos: Enquadramento: A primeira categoria analisada foi o enquadramento: “É a maneira como o conteúdo é apresentado, é a composição visual como parte da forma, não é um mero enfeite, é um elemento essencial na comunicação[...] É uma força organizadora importante quando usada para dramatizar relatividade e relacionamento e para projetar ideias” (RABIGER, 2007, p.51). Na análise do enquadramento do comercial, constatou-se a presença de profundidade de campo, a não tensão da cena, sendo esta fácil de acompanhar e visualizar. Também elencou-se que o enquadramento é proporcional, equilibrado, e que a imagem é harmônica, características que não confundem e não esforçam a vista e mente do telespectador. Plano: “O tamanho do plano (e consequentemente seu nome e seu lugar na nomenclatura técnica) é determinado pela distância entre a câmera e o objeto e pela duração focal da cena utilizada. [...] A maior parte dos tipos de plano não tem outra finalidade senão a comodidade da percepção e a clareza da narrativa” (MARTIN, 1990, p.37). Na análise do comercial, constatou-se a utilização de dois planos, o plano próximo e o close. Os mesmos são os únicos planos que aparecem nos oito cortes que existem na propaganda, dando a ela efeito de simplicidade. Eles estão respectivamente representados nas imagens abaixo: Campo e contracampo: Gage define o contracampo como uma tomada feita com a câmera orientada em direção oposta à posição da tomada anterior, ou seja, o campo. Os contracampos feitos, por exemplo, num ambiente com móveis, portas ou janelas de um lado e uma estante de livros no outro, geralmente dão ao espectador uma noção exata da colocação de cada personagem em cena. 116 Na análise do comercial, constatou-se o eixo de ação triangular, com foco no diálogo dos pais e da criança. O foco da filmagem foi a mesa do almoço em família; ora os pais apareciam, ora a criança. Ângulo: Para Gage, são três os tipos de ângulos. O ângulo alto, no qual a câmera está acima da personagem, o ângulo neutro, no qual a câmera está na altura da personagem, e o ângulo baixo, a câmera está abaixo da personagemNa análise do comercial, constatou-se somente o ângulo neutro. O uso do mesmo é utilizado para mostrar a igualdade existente entre as personagens. Movimento de câmera: Para Rabiger, os movimentos de câmera simulam os movimentos humanos; estes nunca acontecem sem um motivo. Nas pans a câmera movimenta-se horizontalmente e nos tilts a câmera movimenta-se verticalmente, sempre sobre seu próprio eixo. No movimento de traveling a câmera se move inteira. Na análise do comercial não é encontrado o movimento, a câmera é estática, e nem tampouco o movimento de lente, zoom in ou out. Formato: São classificados em 4:3 (formato da televisão analógica) e 16:9 (formato da televisão digital). Na análise do comercial, por se tratar de uma propaganda atual veiculada na televisão e na Internet, constatou-se a formatação de 16:9. Elementos fílmicos não específicos: 117 Iluminação: “Constitui um fator decisivo para a criação da expressividade da imagem”. (MARTIN, 1990, p.56). Na análise do comercial, constatou-se uma iluminação predominantemente difusa, como exemplificada abaixo: Cor: “A cor pode ter um eminente valor psicológico e dramático” (MARTIN, 1990, p.71). Na análise do comercial, há a predominância de tons pastel e alguns detalhes em vermelho, que são vistos em destaque no rótulo da garrafa de Coca- Cola, na roupa da criança presente em cena e em alguns utensílios domésticos, como abaixo: Figurino: “Assim como a iluminação ou os diálogos, o vestuário faz parte do arsenal dos meios de expressão fílmicos” (MARTIN, 1990, p.60). Maton ainda define três tipos de vestuário: Realista: ou seja, de acordo com a realidade histórica; Para-realistas: o figurino é baseado na moda da época recorrente à filmagem, mas possui uma estilização, prevalecendo a estética e a beleza; Simbólicos: a exatidão histórica não importa e o vestuário tem antes de tudo a missão de traduzir simbolicamente caracteres, tipos sociais ou estados de alma. Na análise do comercial, constatou-se que o figurino é realista, já que está adequado a uma situação do cotidiano. 118 Cenário: “Os cenários, quer sejam de interiores ou exteriores, podem ser reais (isto é, preexistir à rodagem do filme) ou construídos em estúdio (no interior de um estúdio ou em suas dependências ao ar livre)” (MARTIN, 1990,p.63). Para ou autor, eles podem ser: Realista: o cenário é o que representa, não significa senão aquilo que é; Impressionista: o cenário é escolhido em função da dominante psicológica da ação; condiciona e reflete ao mesmo tempo o drama dos personagens; Expressionista: o cenário é quase sempre criado artificialmente, tendo em vista sugerir uma impressão plástica que coincida com a dominante psicológica da ação. Na análise do comercial, constatou-se um cenário realista, já que a intenção é representar uma situação simples do cotidiano. Matriz Sonora Os resultados na matriz sonora estão na sequência de sons que aparecem no comercial: primeiro é tocada a música tema da marca, depois ouve-se uma música de fundo baixa e, para encerrar, volta a tocar a música do tema da marca. Matriz verbal Os últimos resultados são os da matriz verbal, verificados no diálogo que ocorre entre mãe, pai e criança. Diálogo: - Mãe: “Meu amor, eu e o papai... nós não temos o cabelo tão cacheadinho e lindo como o seu”. 119 - Pai: “É... E mesmo que a gente não seja assim, parecidos. Que você é muito mais bonita e muito mais inteligente que nós dois...”. - Mãe: “Nós somos os seus pais!”. - Criança: “Eu já sei o que vocês estão querendo dizer. Mesmo que vocês gostem de beterraba e eu não, o que importa são as coisas iguais que a gente sente! E é por isso que eu adotei vocês, tá bom?!”. Discussão O contexto da propaganda “Adoção – Comer juntos alimenta a felicidade”, permite a interpretação de que a Coca-Cola está atenta aos assuntos de evidência na mídia e na sociedade. A organização preocupou-se em trazer ao público o tema da adoção e se posicionou positivamente perante o mesmo, cativando o telespectador e provocando reflexões sobre os conceitos de família e diversidade. Ao longo dos anos, toda empresa precisa renovar o modo de transmissão de suas mensagens, as quais refletem o seu posicionamento perante os acontecimentos do mundo. Ainda há a necessidade de se diferenciar das outras organizações, seja com ações criativas, escolha de um tema polêmico para abordar ou, até mesmo, promoções e incentivos aos clientes. A bebida Coca-Cola, em si, sofre várias críticas por não ser saudável e pela grande quantidade de calorias, portanto, a empresa precisou pensar alternativas de posicionamento sobre qualidade de vida e bem-estar. O tema adoção foi uma dessas alternativas encontradas pela empresa, que teve perspicácia e sensibilidade ao tratar um assunto importante e envolver em seu comercial os conceitos de família, educação, amor ao próximo e aceitação do outro. A Coca-Cola expõe no comercial os seus valores, estabelecidos na matriz verbal e descritos em seu site institucional. Tal como neste discurso, é possível observar na propaganda os ideais de inovação: a empresa inovou ao realizar um comercial de teor polêmico, inesperado e que provoca o compartilhamento e a troca de opiniões sobre o assunto. A liderança aparece no fato de a organização considerar-se líder e exemplo para os indivíduos; desse modo, busca, através da atitude de adotar, inspirar seu público a tomar atitudes que construam um mundo melhor. A responsabilidade e a integridade podem ser observadas pelo posicionamento da empresa perante um assunto delicado e de alta visibilidade. Os valores de paixão e a colaboração podem ser percebidos no próprio ato de amor que é a adoção de uma criança, pois nele há o comprometimento de se buscar um futuro melhor para quem precisa de um lar, sendo indispensável a participação e o engajamento de indivíduos que almejam melhores condições de vida para si e para os outros. A diversidade pode ser vista nos personagens, que representam etnias diferentes, fato que posiciona a Coca-Cola como uma organização que estimula o relacionamento entre indivíduos diversos e que não exprime preconceitos. E o último valor apresentado, a qualidade, é expresso no comercial em si, embora simplicista em detalhes, pois possui recursos que fazem o espectador avaliar a Coca-Cola como uma empresa moderna, íntegra e preocupada com seu público. 120 Os recursos da matriz visual, tais como o plano, o enquadramento, a iluminação e as cores, são feitos de maneira articulada e dão ao comercial efeito de simplicidade. Assim, é dada ênfase ao momento familiar, casual, destacando a importância do diálogo. É, no momento em que está sentada à mesa, que uma família troca experiências e discute diversos assuntos, desde os mais triviais aos mais importantes. A interação com entes queridos, o momento juntos, representam a felicidade, valor propagado pela Coca-Cola; o termo “felicidade” está presente no slogan atual da organização, “Abra a Felicidade”, e também no nome do comercial, “Adoção – Comer juntos alimenta a felicidade”. Neste último caso, a palavra “alimenta” referese ao momento do provável almoço da família, e da felicidade conquistada pelos momentos de união como este. Reitera-se que a Coca-Cola, nesta peça audiovisual, enfatiza os seus valores e princípios e não o seu produto, a bebida em si. O foco não está no produto, porém o mesmo aparece sutilmente em todos os enquadramentos do comercial. Em um cenário de tons predominantemente pastel, o vermelho do rótulo da garrafa de Coca-Cola e de poucos objetos da mesma tonalidade, destaca-se nas cenas (liquidificador, roupa da criança). A partir dessas observações, podemos entender que a Coca-Cola está presente nos momentos mais familiares e comuns do dia a dia, como a reunião à mesa dessa família. O pai bebe um gole do copo de Coca-Cola para descontrair, e se preparar para conversar com a filha. A beleza e a emoção do comercial estão no discurso simples e objetivo da garotinha que, de maneira didática e rápida, consegue transmitir que as diferenças entre ela e os pais são mínimas, se comparadas à importância dos sentimentos compartilhados entre eles. A fala, breve e carregada de inocência e de despreocupação da criança, é também o posicionamento da Coca-Cola: não importam as situações adversas, o que importa são os momentos em que celebramos a felicidade. Referências BASTOS, F.O.S. A Marca Organizacional como Entidade Discursiva e sua Natureza Semiótica. In: Congresso Brasileiro Científico de Comunicação Organizacional e de Relações Públicas Abrapcorp, VI, 2012, São Luís (MA), Anais. São Luís: 2012, p. 1-3. CHARAUDEAU, P. Discurso das Mídias. São Paulo: Contexto, 2007. FERRARI, M. A. Relações Públicas contemporâneas: a cultura e os valores organizacionais como fundamentos para a estratégia da comunicação. In: KUNSCH, Margarida Maria Kroling (org). Relações Públicas: história, teoria e estratégias nas organizações contemporâneas. São Paulo: Saraiva: 2009. GAGE, L. D. O filme publicitário. São Paulo: Atlas, 2001. GUIMARÃES, M. S. Relações Públicas e Mídias Sociais: uma análise de suas aplicações no relacionamento organizacional. Manaus: UFAM, 2011. Disponívelem:http://www.ppgccom.ufam.edu.br/attachments/article/199/Disserta%C3%A7% C3%A3o%20%20MAYARA%20DE%20SOUSA%20GUIMAR%C3%83ES.pdf. Acesso em: 06/10/2015. KUNSCH, M. M. K. (org.) 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Neste trânsito, aponta-se a autonomização da cena e o vídeo como unidade de visualização da telenovela. Na sua leitura hipertextual, cabe ao espectador montar o capítulo a partir deles. Palavras-chave: Audiovisual; Recepção; Fluxo; Sob Demanda; Avenida Brasil. Abstract This paper, realized with support of São Paulo Research Foundation, discusses the on demand reception of the first chapter of the soap opera Avenida Brasil (2012), by João Emanuel Carneiro. The study was focused on distribution to the official provider non-subscribers and Cadinho character. The methods was the Mckee scene analysis (2006) and morphological examination by Propp (2010). Of three blocks that make up the chapter on the flow fruition originated twenty-three videos on demand, five of which belong to the core selected. It indicated the autonomy of the scene and the video as the unit of soap opera viewing. In hyper textual reading soap opera, it is up to the viewer to assemble the chapter from the videos. Keywords: Audiovisual; Reception; Flow; On Demand; Avenida Brasil. Introdução A telenovela, como ficção seriada televisiva, caracteriza-se pela transmissão parcelada de sua história em numerosos capítulos, que são fragmentados em blocos. Para o financiamento, são inseridos anúncios publicitários entre estas unidades menores. Define-se, dessa forma, a veiculação tradicional do capítulo em fluxo, sendo agendado e recepcionado por meio da grade horária de programação. Expoente na produção deste gênero do discurso, a Rede Globo de Televisão distribui além da forma clássica de outro modo: via streaming para assinantes e não-assinantes do provedor Globo.com, com acesso pelo GShow e aplicativo Globo Play. Define-se esta recepção como sob demanda, fruição possibilitada pela disponibilização do conteúdo. A falta de regramento e agendamento torna a experiência assincrônica. Para assinantes, o capítulo é disponibilizado em arquivo único e com blocos justapostos enquanto para não-assinantes o mesmo é desmembrado em inúmeros vídeos. Chama-se a atenção para a utilização da divisão interna da obra audiovisual em cenas e sequências como 123 métrica para este processo. Na recepção sob demanda para não-assinantes, o vídeo torna-se a unidade de visualização da telenovela e a cena autonomiza-se. A plataforma oficial da Globo.com utiliza o termo cena como sinônimo de vídeo. Considerando as definições de cena francesa e de inglesa, consagradas pela dramaturgia, destaca-se que ambas podem ser consideradas. Existem vídeos com ações que ocorrem e completam-se em diferentes localidades, ações que não completam-se e vídeos com ações em apenas uma localidade. Partindo desse pressuposto, este artigo discute a recepção sob demanda para não-assinantes do provedor Globo.com do gênero telenovela, tendo como córpus o primeiro capítulo de Avenida Brasil (2012), de João Emanuel Carneiro. Centrou-se na recepção do núcleo de Cadinho, empregando como métodos a análise de cena de Mckee (2006) e o exame morfológico de Propp (2010). Ao adentrar a página do primeiro capítulo, encontrou-se manchete, descrição e vídeos com títulos. Clicando sobre os vídeos, abre-se a página para exibição, conforme é demonstrado pelas figuras a seguir. Figuras 3 e 4: Página do primeiro capítulo de Avenida Brasil. FONTE: Gshow. O título sintetiza o evento do vídeo e demonstra o que ocorreu. A descrição do capítulo é realizada a partir deles, direcionando o espectador para o vídeo da ação por meio de hiperlink. Há, também, manchete do capítulo que, na maioria das vezes23, é o título de um dos vídeos elencados. 23 Este dado foi obtido a partir da análise dos sete primeiros capítulos do córpus que compõem a primeira fase da telenovela. 124 Quadro 01: Manchetes dos capítulos da primeira fase de Avenida Brasil Capítulo Vídeo Manchete do capítulo 1 23 Tufão atropela Genésio. 2 14 Max leva Rita para um depósito de lixo. 3 16 Carminha e Tufão se beijam. 4 5 Monalisa descobre que Tufão dormiu com Carminha. 5 19 Monalisa sofre um acidente de ônibus. 6 17 Tufão pede Carminha em casamento. 7 8e9 Rita é adotada por Martín e vai para a Argentina. Ao analisar a primeira fase da telenovela Avenida Brasil, composta pelos sete primeiros capítulos, o primeiro, o terceiro e o quinto possuem como manchete o título do último vídeo, aquele que contém o gancho de encerramento. Já o sétimo possuí a junção dos títulos de dois vídeos que são seguidos: Rita é adotada por Martín e Rita vai para a Argentina. Nota-se que apenas a manchete do segundo capítulo não é idêntica a nenhum dos títulos, ainda que aproxima-se de outro: Rita é abandonada no lixão. A manchete direciona o publico e revela qual é o evento principal. A partir da leitura de Mckee (2006) destes vídeos, averiguou-se que em todos eles existem alterações na condição da personagem e instauração de pontos de virada, um chamariz para o público. Para levantar sentidos produzidos nesta arquitetura de navegação é necessário recorrer aos estudos acerca do ciberespaço. Leão (2005) associa a linguagem desta mídia ao hipertexto e à multimídia, indicando o relacionamento entre fragmentos de informações de natureza diversa (texto, imagens ou vídeos) através de hiperlinks. A linearidade, como caminho originado da demarcação de dois ou mais pontos, é questionada. O termo hipermídia designa um tipo de escritura complexa, na qual diferentes blocos de informações estão interconectados. Devido a características do meio digital, é possível realizar trabalhos com uma quantidade enorme de informações vinculadas, criando uma rede multidimensional de dados. Esta rede, que constitui o sistema hipermidiático propriamente dito, possibilita ao leitor diferentes percursos de leitura. (LEÃO, 2001, p.9) De fato, a falta de estabelecimento de marcos ou hierarquizações possibilita múltiplas opções a partir dos pontos existentes. A linearidade é estabelecida quando funda-se o percurso 125 escolhido. O documento hipertextual é modulado e os fragmentos são associados com links. Ao analisar os relacionamentos, Leão (2001) vislumbra três experiências: Existem três labirintos. Um labirinto é a arquitetura propriamente dita, pura potencialidade gravada em disco, nos sistemas ou nas redes. Um segundo labirinto é esse “espaço que se desdobra” e que se forma através do percurso de leitura do viajante.” Esse segundo labirinto é uma atualização do primeiro. O terceiro labirinto seria aquele que surge após a experiência hipermidiática.” (LEÃO, 2001, p.46-47) O arranjo dramático é modulado em cenas e a linearidade da telenovela é elaborada durante a roteirização. Após registro audiovisual, monta-se o capítulo seguindo este planejamento inicial. Quando o capítulo é desmembrado, as cenas carregam o sentido inicialmente construído. Contudo, a vinculação dos é transferida para o internauta que pode não seguir essa égide. O espectador pode fruir outras linearidades, como de núcleo. Segue-se, desta forma, uma personagem específica. O exame de visualizações demonstra isso; a linha principal tem mais acessos as secundárias. Materiais e Método Para ilustrar a leitura hipertextual e sob demanda da telenovela na atualidade, selecionou-se Avenida Brasil, escrita por João Emanuel Carneiro e exibida pela Rede Globo de Televisão no ano de 2012. O córpus é constituído do capítulo de estreia e a pesquisa é centrada no núcleo secundário composto pelo empresário Cadinho e suas esposas. O primeiro método empregado é a análise de cena proposta por Mckee (2006). Este protocolo possibilita revelar os pontos de tensão que constroem a história, atentando para a sua localização e significância na fruição em fluxo contínuo e sob demanda. No primeiro momento, torna-se essencial compreender que é a cena para o autor: “é uma ação através de conflito em tempo mais ou menos contínuo que transforma a condição da vida de uma personagem em pelos menos um valor com um grau de significância perceptível” (MCKEE, 2006, p.47). Assim, averiguar alterações na situação da personagem é o que objetivase com o método. Ao termo “valor” é atribuído a definição de: “qualidades universais da experiência humana que podem mudar do positivo para o negativo ou do negativo para o positivo” (MCKEE, 2006, p.46). Estabelece-se a análise nas modificações dos valores que condizem com a experiência da personagem. Para aferir a mudança, Mckee (2006) propõe lançar um olhar fragmentado sobre a cena, considerando-a como um conjunto de beats. Esclarece o autor: “um BEAT é uma mudança de comportamento que ocorre por ação e reação. Beat a Beat, esse comportamento em transformação molda o ponto de virada da cena” (MCKEE, 2006, p.49). Neste ensejo de estímulo e resposta, a tensão é construída. Partindo desse pressuposto, beat, valor e cena estão diretamente relacionados. Parte-se da fragmentação e da observância da cena em beats. Na leitura deste decurso, verifica-se a manutenção ou transformação do valor da experiência da personagem comparando o estágio inicial com o final da cena. Com a alteração é demarcado ponto de virada enquanto que a 126 manutenção caracteriza a cena como expositiva. Mckee (2006) faz uma ressalva sobre este último caso. Se a condição de vida de uma personagem é a mesma do começo ao fim da cena, nada significativo acontece. A cena em atividade – conversando sobre isso, fazendo aquilo – mas nada mais muda em valor. É um não-evento. Por que então essa cena está na estória? A resposta é quase sempre a mesma: exposição. Ela está lá para enviar informações a respeito dos personagens, do mundo e da história ao público à espreita. (MCKEE, 2006, p.47) São empregados sinais de positivo e negativo para representar as experiências da personagem. A transformação é sinalizada com a passagem do positivo para o negativo e vice-versa. Há, ainda, a possibilidade da intensificação das cargas, representada pela duplicação ou triplicação dos sinais. O estabelecimento da ação e sua reação correspondente frente a uma intensa retroatividade nas cenas e a delimitação dos espaços no profundo recorte do texto audiovisual foram dificuldades encontradas na aplicação do método. Por fim, realizou-se o exame morfológico do núcleo selecionado considerando as 31 funções das personagens estabelecidas por Propp (2010). Segundo ele, “por função compreende-se o procedimento de um personagem, definido do ponto de vista de sua importância para o desenrolar da ação” (PROPP, 2010, p.22). Embora seu material de estudo tenha sido os contos de magia, a definição postulada é geralista possibilitando estender a análise para outros gêneros do discurso. Do ponto de vista morfológico podemos chamar de conto de magia todo desenvolvimento narrativo que, partindo de um dano (A) ou uma carência (a) e passando por funções intermediárias, termina com o casamento (Wo) ou outras funções utilizadas como desenlace. A função final pode ser a recompensa (F), obtenção do objeto procurado ou, de modo geral, a reparação do dano (K), o salvamento da perseguição (Rs) etc. A este desenvolvimento damos o nome de sequência. A cada novo dano ou prejuízo, a cada nova carência, origina-se uma nova sequência. (PROPP, 2010, p.90) São funções proppianas: “afastamento, proibição, transgressão, interrogatório, informação, ardil, cumplicidade, dano, mediação, início da reação, partida, primeira função do doador, reação do herói, recepção do meio mágico, deslocamento entre dois espaços, combate, marca, vitória, reparação do dano, regresso, perseguição, salvamento, chegada incógnita, pretensões infundadas, tarefa difícil, realização, reconhecimento, desmascaramento, transfiguração, castigo e casamento” (PROPP, 2010). Resultados e Discussões Na leitura hipertextual e sob demanda da telenovela Avenida Brasil, o núcleo de Cadinho possui certa regularidade nas visualizações, com média é de 34 mil acessos. Contudo, o índice é bem menor daquele conquistado pelo núcleo principal, composto por Rita Cármen e Genésio, com média de 69 mil acessos. Nota-se, portanto, que o espectador constrói um 127 percurso de fruição seguindo determinada personagem. Por fim, indica-se que o núcleo de Tufão obteve, em média, 55 mil acessos neste primeiro capítulo. O sexto vídeo introduz o núcleo de Cadinho. É, portanto, o primeiro contato que o público tem com a história e, consequentemente, o vídeo com maior número de visualizações: 49 mil acessos. Há um decréscimo nos vídeos seguintes, com nova elevação no vídeo vigésimo primeiro, gancho de final de capítulo do núcleo. Ao comparar com os acessos dos vídeos anterior e posterior, são denotadas quedas recorrentes. Nos vídeos 10, 13, 18 e 21 ocorrem mudanças na situação de personagens do núcleo, seguindo as considerações de Mckee (2006) expostas a seguir, que alimentam o interesse pela história e a continuidade da navegação na recepção sob demanda e a manutenção do interesse no fluxo. Contudo, o impacto dos eventos é baixo em comparação com os demais. A história de Cadinho é cômica e objetiva distender a narrativa. Quadro 02: Síntese da análise de cena do núcleo de Cadinho Cenas Views do Views Views do Escala de tensão no início e fim da vídeo vídeo 24 cena 15/06/14 anterior posterior 06 8 + + + + + + + + + + + + + + + + 88.171 49.470 71.748 10 3 ++ ++ ++ 44.348 33.152 43.317 13 1 + ++ 30.593 27.516 35.340 18 4 ++ +- ++ ++ 37.031 30.470 49.962 21 4 + + + + ++ +? 31.162 32.536 53.034 Vídeo Com cerca de cinco minutos e trinta e cinco segundos de duração, o sexto vídeo do primeiro capítulo é composto por oito cenas e é intitulado Cadinho engana suas duas esposas. Introdutório e expositivo, contém elementos que serão desenvolvidos a posteriori, como a venda da corretora e a possibilidade da revelação da bigamia do personagem. No exame morfológico foram encontradas neste fragmento situação inicial e as funções transgressão, carência e mediação. Segundo Propp (2010, p.28), "a situação inicial dá a descrição de um bem-estar particular, por vezes sublinhado propositalmente" e "este bemestar serve, evidentemente, de fundo constratante para a adversidade que virá a seguir". 24 128 Data em que ocorreu a análise de visualizações. Já transgressão é compreendida como ruptura da proibição ou proposta, função anterior. Neste caso, Cadinho mantém secretamente dois casamentos. dano ou carência é a adversidade ou necessidade a ser reparada: a venda da corretora. A medição é a constatação do dano ou carência pela personagem. Com a análise de Mckee (2006) é mensurado a manutenção da condição da personagem do começo ao fim desta cena. Cadinho é apresentado com suas esposas na eminência de vender a corretora e, dessa forma, permanece até o fim. Projeta-se a negociação da venda da corretora e abre-se a possibilidade para o desmascaramento de Cadinho pelo casamento duplo. Cria-se, dessa forma, o interesse para audiência. Quadro 03: Análise formalista do vídeo (06) - capítulo (01) Função Explicação Trechos “Verônica: Acorda, Cadinho. Chegou o grande dia.” (AVENIDA BRASIL, 2012, vídeo 06) Situação Inicial A situação inicial de Cadinho é construída em torno da venda de sua corretora. São apresentadas suas duas “Verônica: Hein, Cadinho? Olha lá, hein? Pelo amor de famílias. Deus. Tem que pedir alto pela corretora” (AVENIDA BRASIL, 2012, vídeo 06) Afastamento (I) Não há. Não há. Proibição / Proposta (II) Não há. Não há. Transgressão (III) “Cadinho: Toca para casa Cadinho é bígamo e mantém número 2, Marrento. Não, secretamente dois espera. Antes, vamos passar casamentos. Ele engana, num florista". portanto, suas esposas. (AVENIDA BRASIL, 2012, vídeo 06) Interrogatório (IV) Não há. Não há. Informação (V) Não há. Não há. 129 Ardil (VI) Não há. Não há. Cumplicidade (VII) Não há. Não há. Dano ou Carência (VIII) Cadinho: “Hoje o dia tá demais. Além de ser o dia que vou vender a minha corretora, Cadinho necessita vender a é a decisão do Campeonato corretora. Carioca”. (AVENIDA BRASIL, 2012, vídeo 06) Mediação (IX) Revelação sobre a venda da corretora. Com cerca de um minuto e vinte e oito segundos de duração, o décimo vídeo do primeiro capítulo é composto por cinco cenas25 e é intitulado Cadinho negocia a venda de sua corretora. O trecho desenvolve a negociação sem a concretização. De acordo com Propp (2010), a transação comercial pode ser considerada como a tarefa difícil, função aplicada para provas e desafios, cuja resolução atinge diretamente a reparação do dano. Já com Mckee (2006), denota-se que a condição da personagem permanece a mesma. Avançou-se nas negociações, mas não houve a sua concretização. A situação de Cadinho com a corretora e com o casamento duplo é mantida. Projeta-se a continuidade das negociações sobre venda da corretora. Quadro 04: Análise formalista do vídeo (10) - capítulo (01) Função Tarefa Difícil (XXV) Explicação Trechos “Jimmy: Talvez seja bom refrescar sua memória, mas Cadinho assiste ao jogo ao aqui na firma também tem mesmo tempo em que decisão de campeonato. Os negocia a venda de sua executivos do banco espanhol que nos quererem comprar já corretora. chegaram” (AVENIDA BRASIL, 2012, vídeo 25 Duas cenas não integram o núcleo analisado. 130 10) Com cerca de um minuto e trinta e um segundos de duração, o décimo terceiro vídeo do primeiro capítulo é composto por uma cena é intitulado Cadinho pede mais dinheiro pela corretora. É demonstrado a oferta do valor desejado, Cadinho aumentando o valor da venda e a concretização do negócio. Na leitura de Propp (2010), o trecho apresenta a realização que relaciona-se com o cumprimento da tarefa difícil. Com Mckee (2006), a qualidade da experiência de Cadinho é positivada por ter conseguido não só atingir seu objetivo da venda, bem como, ter dobrado o valor. Jimmy mostra-se surpreso com o resultado: “Eu não acredito que você pediu quarenta” (AVENIDA BRASIL, 2012, vídeo 10) e Cadinho minimiza a atuação do assessor: “Eu sou eu, você é você, Jimmy. Eu sinto as coisas no ar, entendeu? Isso é que difere um craque de um jogador comum como você, entendeu?” (AVENIDA BRASIL, 2012, vídeo 10). Quadro 05: Análise formalista do vídeo (13) - capítulo (01) Função Explicação Trechos “Executivo: Usted pediu un número. Llagamos a este número. Le ofrecemos veinticinco millones”. Tarefa Difícil (XXV) (AVENIDA BRASIL, 2012, vídeo Cadinho pede quarenta 13) milhões pela corretora. “Cadinho: Quarenta Milhões. Nenhum centavo a menos.” (AVENIDA BRASIL, 2012, vídeo 13) Realização (XXVI) Reparação do dano (XIX) “Executivo: É bem mais do que vale. Mas pra nós Cadinho vende a corretora interessa. Negócio fechado”. por quarenta milhões. (AVENIDA BRASIL, 2012, vídeo 13) Com cerca de um minuto e trinta e oito segundos de duração, o décimo oitavo vídeo do primeiro capítulo é composto por quatro cenas é intitulado Jimmy se vinga de Cadinho. De 131 acordo com Propp (2010), o trecho apresenta a tentativa de instauração da adversidade na situação inicial de Cadinho a partir da sua transgressão (bigamia). Cadinho faz uma proposta para Jimmy. Ao afastar-se, Jimmy transgride a proposta. Projeta-se a possibilidade do dano na situação de Jimmy pelo ato. Sabendo da transgressão de Cadinho, Jimmy é ardiloso e tenta transformá-la em dano por não receber um aumento. Já com Mckee (2006), abre-se a possibilidade da alteração da condição de Cadinho com a descoberta do casamento duplo e a de Jimmy como penalização. Será que Cadinho será desmascarado? Projeta-se o encontro das esposas com Cadinho. Quadro 06: Análise formalista do vídeo (18) - capítulo (01) Função Explicação Trechos “Jimmy: Cê tá pensando em me dar algum bônus especial pela venda da empresa? Situação Inicial Cadinho: Pois seu bônus especial é continuar o excelente salário que você vai Cadinho está feliz pela venda ganhar na minha nova firma. da corretora. Eu podia te deixar para trás. Jimmy não consegue sua Os espanhóis iam te botar no lixo, mas eu como sou um recompensa pela venda. cara legal, eu vou levar você comigo, Jimmy." (AVENIDA BRASIL, 2012, vídeo 18) Afastamento (I) Cadinho faz o pedido a Jimmy e vai embora da corretora. “Cadinho: Jimmy, Jimmy, vem cá. Liga pra minha mulher e fala que eu vou encontrar com ela em meia hora no Gino e Gino. Proibição / Proposta (II) Cadinho pede que Jimmy confirme com Verônica o Jimmy: Me desculpa, mas qual jantar no Gino e Gino. das mulheres? Cadinho: A Verônica, lógico.” (AVENIDA BRASIL, 2012, vídeo 18) 132 “Jimmy: Rose, Cadinho mandou avisar a mulher pra encontrar com ele no Gino e Gino em vinte minutos, tá? Rose: Tá! Qual das mulheres? Transgressão (III) Jimmy telefona para Verônica Jimmy: A Noêmia. e pede que a secretária ligue Jimmy: Oi, Verônica. Tudo para Noêmia. bem? Cadinho tá sem celular. Ele pediu pra você encontrar com ele no Gino e Gino em meia hora tá?” (AVENIDA BRASIL, 2012, vídeo 18) Interrogatório (IV) Não há. Não há. Informação (V) Jimmy já sabe que Cadinho é bígamo, sua transgressão. Ardil (VI) Por saber da transgressão de Cadinho, Jimmy tenta vingarse, transformando a transgressão em dano. Com cerca de cinquenta e oito segundos de duração, o vigésimo primeiro vídeo do primeiro capítulo é composto por quatro cenas é intitulado Cadinho encontra as duas esposas no restaurante. Verônica e Noêmia chegam no restaurante, seguidas por Cadinho. Ele vê suas duas esposas no restaurante. Interrompe-se a cena sem demonstrar o que ele fará. Segundo Propp (2010), o trecho apresenta a possibilidade da instauração da adversidade. Já com Mckee (2006), abre-se a possibilidade da alteração ou não da condição. Será que Cadinho será desmascarado? A ação dramática é fragmentada. Interrompe-se, dessa forma, a ação sem demonstrar o que de fato ocorrerá. Quadro 07: Análise formalista do vídeo (21) - capítulo (01) 133 Função Explicação Trechos “Cadinho: Boa noite, Moreira. Cumplicidade (VII) Dano (VIII) O plano de concretizado. Jimmy é Moreira: Pelo jeito o senhor está sendo esperado, seu Cadinho encontra as duas Cadinho.” mulheres no restaurante. (AVENIDA BRASIL, 2012, vídeo 21) As análises dos fragmentos com Propp (2010) possibilitou levantar a evolução da narrativa e apontar as projeções que alimentam o interesse do espectador. Referências AVENIDA BRASIL. Direção: José Luiz Villamarim e Amora Mautner. Núcleo: Ricardo Waddington. Roteiro: João Emanuel Carneiro. Produção: Rede Globo de Televisão. Rio de Janeiro, 2012. Disponível em: <http://gshow.globo.com/novelas/avenidabrasil/capitulo/2012/3/26/tufao-atropela-genesio.html>Acesso. 03.04.16. COSTA, Maria Cristina Castilho. O gancho – da mídia impressa às mídias eletrônicas. Revista Olhares, nº 06, 2 de setembro de 2000. MCKEE, Robert. Story: substância, estrutura, estilo e os princípios da escrita de roteiro. Curitiba: Arte & Letra, 2006. LEÃO, Lúcia. O labirinto da hipermídia: arquitetura e navegação no ciberespaço. São Paulo: Editora Iluminuras, 2001. PROPP, Vladimir. As raízes históricas do conto maravilhoso. Trad. Rosemary Costhek Abílio, Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2002, PROPP, Vladimir. Morfologia do conto maravilhoso. Trad. Jasna Paravich Sarhan. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. 134 Capítulo 4 Espaços das Sonoridades Tudo se Comunica. Memória, Comunicação e Formas de Sociabilidade em Meu Tio – filme de Jacques Tati Mirtes de Moraes26 , Universidade Presbiteriana Mackenzie Resumo A partir da análise do roteiro e da sonoplastia do filme Meu Tio, de Jacques Tati (Mon Oncle, França, 1958) esse trabalho pretende tecer relações entre as sonoridades emitidas dos objetos e das pessoas num contexto demarcado pela modernidade. Para isso será usado como instrumento de apoio o roteiro fílmico. De um lado será mostrada a família Pichard, representada como símbolo da modernidade sendo sua casa construída nos moldes de uma arquitetura moderna formada por blocos de concreto, onde o ponto referencial da casa dos Pichard é um chafariz que tem um formato de peixe, toda vez que toca a campanha da casa, seus moradores correm a acioná-lo, emitindo um barulho estranho, logo os visitantes são apresentados a casa em que do design moderno ecoa o vazio e a todo momento a única voz humana a ser ouvir é a da dona da casa dizendo a frase emblemática: “aqui tudo se comunica”. Por outro lado, na periferia de Paris, mora o Monsieur Hulot, o "Tio" a que se refere o título do filme. O bairro em que Hulot vive é marcado por construções velhas que sobejam sons de pessoas nas ruas, lá elas se encontram, conversam vivem de forma espontânea. O sobrinho Gérard admira o jeito desajeitado, descontraído e amável do tio, completamente avesso à imagem do pai, convencional e padronizado. O filme venceu o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro no Festival de Cannes, em 1958. Apesar de mais cinquenta anos de sua produção, sua crítica continua atual, e com ela, pretende-se refletir os sentidos constituídos pela memória cultural e as formas de sociabilidade no espaço urbano no Brasil repensando nos espaços “assépticos” dos supermercados e shoppings, e perceber como se estabelecem as relações de sociabilidade nesses lugares do espaço urbano. Palavras Chave: Comunicação, Sonoridade, Memória, Espaço Urbano “Aqui tudo parece que era ainda construção e já é ruína” O fragmento acima destacado, retirado da canção Fora de Ordem de Caetano Veloso reflete um processo de construção e demolição no espaço urbano, com esse cenário, o filme de Jacques Tati se articula com os valores advindos através de uma nova mentalidade construída 26 Doutora em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM) Curso de Graduação do Curso de Jornalismo e do curso de Publicidade ministrando disciplinas: História da Arte e da Cultura, Sociologia e Antropologia. [email protected] 135 pela modernidade. Nesse processo de construção percebe-se, no mesmo movimento, um processo de demolição de antigos modos de ser e de estar socialmente. Articulado a esse propósito de demolição e construção, o filme Meu Tio de Jacques Tati (Mon Oncle, França, 1958) pode ser visto como um olhar crítico sobre a modernidade. O filme está inscrito no auge da Guerra Fria, momento em que o mundo se divide politicamente, economicamente e ideologicamente o mundo em dois blocos. De um lado, o bloco capitalista, liderado pelos Estados Unidos, e de outro, pelo bloco socialista liderado pela União Soviética. Enquanto os capitalistas disseminavam imagens associando o estilo de vida americano como uma vida brilhante em que as pessoas possuíam carros e bens de consumo e defendia a democracia como sistema de liberdade, os socialistas disseminavam imagens de alto poder de elevação educacional nas escolas e nos esportes. (DEBORD, 2011). Com o objetivo de tirar a França das ruínas do pós guerra, os Estados Unidos propõe estabelecer uma cidade moderna em que pretende no seu projeto modernizante alterar não apenas sua fisionomia, mas também os valores que a ela estavam atrelados. Deste modo, o projeto americano visava não apenas inferir na organização espacial através de uma arquitetura moderna e funcional, mas esquematizar novos gestos, formas de sociabilidade e de comunicação social. Dentro desse esquadrinhamento adjetivações se referiam aos modos de ser e de estar relacionadas ao novo período, como moderno, e ao mesmo tempo, ao velho período, como arcaico. Porém, o velho e o novo convivem. E, descaracterizando a visão de modernidade, Jacques Tati coloca como crítica que nem tudo que é moderno é bom, como, nem tudo que é velho é ruim. Antes mesmo do filme de se iniciar, quando se anuncia o elenco e direção o som emitido é de uma britadeira, o barulho é acompanhado por imagens de guindaste, trator, britadeira, escavadeira, enfim um conjunto de equipamentos que sinalizam os novos tempos, demarcados pela construção e demolição. A primeira cena do filme é apresentada por alguns cães perambulando pela cidade entre restos e latas eles vão andando até se direcionarem para espaços mais regulamentados que são visualizados por sinalizações delimitando os sentidos das ruas ,até que um dos cães, o único vestido com um roupa xadrez, entra numa casa de arquitetura moderna. O cachorro pertence a raça basset hound e pelo seu porte consegue passar por um espaço delimitado para o seu tamanho, excluindo desse modo, os outros cães que o acompanhavam. Ao entrar pela residência o cão é virado de ponta cabeça pela dona da casa que a segura pelas pontas dos dedos, como se fosse um objeto sujo que deveria ser levado às pressas para a máquina de lavar. Deste modo, a obsessão pela limpeza marca a trajetória inicial do filme atrelando-a a mulher, que assume o papel de esposa, mãe e dona de casa. É a mulher que põe café na xícara do marido, é a mulher que acende o cigarro para o marido, é a mulher que dá o chapéu, as luvas e a pasta para que o marido pudesse trabalhar. Esse momento é acompanhado pelo ritmo frenético da mulher com o seu pano que tudo limpa, sobressaindo nesses movimentos, o som ecoado pelos seus sapatos. Não há diálogo entre eles, aparecendo no seu lugar o som dos 136 objetos. Que depois pode ser acompanhado pelo motor do carro que acelera e sai às ruas numa cadência jazzística. Setas, semáforos, pisca-piscas sinalizam o fluxo correto do trânsito dos carros que podem ser visualizados pelo encadeamento padronizado. Deste modo, Jaques Tati inicia seu olhar à modernidade que define padrões de comportamento regulados pela forma como o espaço passa a ser administrado na vida das pessoas. O espaço das ruas que passa pelo crivo da racionalidade, determinando através das sinalizações, caminhos trafegáveis e, num mesmo movimento, impossibilitando outras formas adjacentes de trajetos. Possibilitando desde então uma única forma a ser seguida, porém, no discurso da modernidade, a impossibilidade não cabe ser pensada, no seu lugar são exaltadas as novas regras que acentuam o tom moderno da vida racionalizada e controlada. A forma de controle é também percebida nos espaços domésticos, deste modo, o diretor Jacques Tati sinaliza de forma irônica o número exato de passos que deve ser dado para atravessar o portão e adentrar o domicílio. Para o caminho trilhado, milimetricamente calculado, seria preciso acertar o passo. Dessa forma, Tati mostra como as pessoas se esforçam para estarem inscritas em códigos que promovem o sentido de moderno. A arquitetura da casa dialoga com a escola Bauhaus fundada na Alemanha em 1919 por Walter Gropius sua proposta era estabelecer uma conexão entre arquitetura, artesanato, e arte minimizando relações estabelecidas com a esfera das Belas Artes, ou seja, havia uma proposta em democratizar a arte e uma das suas plataformas de apoio era a construção de casas populares baratas na República de Weimar. Porém em 1933, após uma série de perseguições por parte do governo nazista, a Bauhaus é fechada, considerada pelos nazistas como antigêrmanica pelo estilo moderno e por ser também observada como uma frente comunista. Contudo, depois de fechada na Alemanha muitos artistas ligados ao movimento migraram para os EUA transformando a Bauhaus em uma das maiores e mais importantes expressões do que é chamado modernismo tanto no que se refere ao design como na arquitetura. Se o seu projeto inicial da Bauhaus era o de democratizar arquitetura e design, nos anos 50 percebe-se um deslocamento dessa concepção inicial, em que o popular passa a ser elitizado. A característica da funcionalidade do estilo de vida americano vai adotar como marca da sua modernidade grandes espaços, formato de cubo, branco, envidraçado, concreto aparente traduzindo numa arquitetura ousada, arrojada, moderna, mas com preço elevado. Esse tipo de construção vai traduzir em outras palavras o que é ser moderno e ao mesmo tempo sofisticado. Jacques Tati tenta desconstruir essa versão americana sobre o continente europeu, ironizando a funcionalidade tanto no que se refere a arquitetura, como nos objetos e também na relação das pessoas com tudo isso. “Aqui tudo se comunica” A residência da família Pichard é representada no filme como símbolo da modernidade, a casa onde residem é construída nos moldes de uma arquitetura moderna formada por blocos de concreto. Assim que se chegava à casa da família Pichard, já do lado de fora do portão, o convidado escutava um ruído irritante de dentro do estabelecimento, não era apenas o som que causava 137 um incômodo, mas também o objeto que enunciava tal ruído: um chafariz no formato de peixe. O chafariz pode ser considerado o ponto referencial da casa dos Pichard, e consequentemente do filme de Jacques Tati, frequentemente encontrava-se desligado, mas, assim que a campainha era tocada, os habitantes corriam para ligar o chafariz, porém muitas vezes seus moradores ao perceberem que eram determinadas pessoas o desligavam no mesmo momento. Nesse sentido, Tati se apropriou de um objeto de design excêntrico que estaria ali representado como referencial simbólico cultural, era como se chafariz ocupasse o lugar de uma obra de arte, uma escultura, em que os moradores ao acioná-la pretendiam expor sua peça e ao mesmo tempo mostrar seu bom gosto, mas, na ironia de Tati era um objeto um tanto quanto estranho. Assim que os visitantes entram na casa, o papel da esposa do Sr. Pichard como dona de casa é apresentar com grande satisfação o design moderno dos móveis e aparelhos eletrônicos. Os móveis com design arrojado podem ser pensados como objetos de decoração que possuem uma vida independente do seu usuário, sua funcionalidade se atrela à disposição e não ao seu modo em acomodar pessoas, na verdade, ocorre uma inversão de valores, as pessoas que devem se adaptar aos objetos. Entre os poucos sofás e cadeiras ecoa o vazio dos ambientes e a sonoridade “abafada” emitida através dos materiais sintéticos. A única voz humana a se ouvir é a da dona da casa dizendo a frase emblemática: “aqui tudo se comunica”. Jaques Tati demarca paradigmaticamente padrões de comportamento regulados pela forma como o espaço passa a ser administrado. Pode-se perceber que ao direcionar a casa como espaço simbólico do feminino o diretor pontua de modo bastante singular quais deveriam ser os papeis sociais da mulher e do homem. Cabe notar que a construção do comportamento feminino foi conduzida para a esfera do recolhimento tendo como campo de referência, o espaço doméstico, o cuidado com os filhos e o marido e as extensões desse mundo privado se atrelando as responsabilidades do lar como lavar, cozinhar, passar e bordar. Deste modo, a casa, no filme de Tati deve ser vista como espaço referencial que delimita o que significa ser uma mulher nos anos 50 idealizada nos moldes da cultura norte-americana. Para isso, o diretor além de estabelecer a casa como lócus de determinação comportamental, passa a observar o interior do domicílio sobressaindo um endeusamento aos objetos, móveis e aparelhos eletrodomésticos. O estilo de vida americano vai empregar o uso desses objetos como forma de um modelo de conforto, e a mulher moderna inserida naquela década vai ouvir um discurso que com os eletromésticos sua vida iria ser simplificada, assim ela teria tempo de cuidar da casa e dela também. Observa-se então que não é mais apenas a casa, o marido e os filhos que devem ser olhados com atenção, mas a própria mulher, por trás dessa nova responsabilidade feminina pode-se perceber um deslizamento ideológico em que se associa a mulher a sua beleza e cuidados pessoais. 138 Desse modo se constrói nesse repertório, uma valorização das aparências tanto físicas como econômicas, Jacques Tati sobressai como característica da dona de casa, a vida pautada nas relações de aparências, mostrando assim, de forma irônica e ao mesmo sutil, uma vida regada pelo artificial, pelo formal e sem afeição humana. Outro espaço que merece atenção é a cozinha da senhora Pichard , lá tudo é racionalizado, automatização, regulamentado. Minutos são cronometrados para abrir e fechar a porta do armário, o tempo exato calculado pela ciência em que regula o momento em que o usuário gastaria para pegar um objeto do armário. A funcionalidade dos objetos é apresentada de forma tão exagerada que Jacques Tati propõe com isso, deixar a cena engraçada para quem assiste o filme. As tarefas são executadas por aparelhos, bastando a dona de casa apertar o botão, mas, para tal execução todos os aparelhos manifestam um barulho ensurdecedor, deixando assim, que as pessoas se calem para que no seu lugar os ruídos dos eletromésticos ganhem vozes. Assim, mais uma vez Jacques Tati pontua a crítica na forma de humanizar os objetos e desumanizar as pessoas. Recolocando a frase da senhora Pichard de que “aqui tudo se comunica”, a comunicação se faz entre os objetos, são eles que falam e comandam determinações sociais. Enquanto que as relações famíliar e social são esvaziadas e frígidas, como a própria casa em que habitam. Meu tio Como contraponto da família dos Pichard aparece o irmão da senhora Pichard, o tio Hulot. Monsieur Hulot é solteirão e desempregado, fora dos padrões impostos pela sociedade e é um grande admirador do seu sobrinho Gérard. Observa-se que o título do filme (e aqui do trabalho) tem como protagonista o próprio Jacques Tati, situando dessa forma o seu posicionamento político e econômico frente a esse estilo de vida americano. Hulot vive na periferia de Paris lugar em que a ordem é estabelecida pelos próprios moradores, um espaço onde os barulhos são emanados por pessoas e animais. Entre as cenas que demarcam o espaço de convivência, pode-se observar um varredor que não consegue acabar sua tarefa pois sempre tem algo novo para acrescentar na sua conversa. É possível ver também pessoas sentadas numa mesa na rua conversando. Assim, o espaço público das ruas é visto como espaço de sociabilidades. Jacques Tati destaca com grande força o espaço das feiras livres de onde se pode traduzir a forma espontânea e descontraída. Por meio das feiras é possível perceber espaços de sociabilidade demarcados por formas de comunicação oral. Enredadas numa diversidade de produtos que se subdividem em frutas, hortaliças, vegetais, peixes, pasteis e caldo de cana, esses produtos são expostos em barracas e suas qualidades são divulgadas pelos feirantes em tom alto, muitas vezes cantam e assobiam, convidando o freguês a experimentar o produto como forma de garantir sua qualidade, estabelecendo muitas vezes, relações de fidelidade entre o vendedor e o freguês. Deste modo, a feira livre, pode ser considerada como um espaço dinâmico dentro do espaço urbano, lugar de trocas mercadológicas e sociais, em que fregueses negociam o preço e a qualidade do produto. O feirante por sua vez, organiza em pacotes, bacias e dúzias seu produto a ser comercializado, e dependendo da transação estabelecida, uma dúzia, invés de doze unidades, pode ser combinada por quinze ou mais unidades. A 139 conversa nas barracas pode se desdobrar em outros assuntos do produto à política, ao futebol, à novela. Jacques Tati destaca como o espaço das ruas era um local de vida espontânea e é com esse atrativo que seu sobrinho Gerard estabelece relações bem aproximas ao tio. Na periferia, as crianças brincavam e traquinavam nas ruas e nos matagais. Gérard com o tio podia comer ‘porcarias’ com as mãos sujas, diferentemente de onde e como vivia. Tati demarca de forma bastante acentuada que, embora na periferia as pessoas vivessem com menos recursos monetários eram mais felizes. Essa felicidade é recuperada pela vivência entre pessoas, o barulho que se escuta daí advêm de seres vivos. Novas formas de sociabilidade na contemporaneidade Apesar de mais cinquenta anos de sua produção, sua crítica continua atual, e com ela, pretende-se refletir os sentidos constituídos pela memória cultural e as formas de sociabilidade no espaço urbano, Tati coloca uma forte presença da oralidade, essa oralidade que parte das ruas, do discurso informal, da criatividade, do improviso em tecer relações, marcando assim uma articulação entre a subjetividade capturada pelo tempo vivido com a forma assimilada pelo processo cultural. A vida de uma rua densamente povoada é inesgotavelmente rica, se registrarmos os seus sons e movimentos. Podemos gravar a trilha sonora de uma rua durante 24 horas. Desde a primeira janela que se abre de manhã, a vassoura na calçada, as portas das lojas que se erguem, os passos de quem vai para o trabalho, conversa, cantigas... Sob essa diversidade há uma ordem e um ritmo cuja seqüência é portadora de um sentimento de identificação. A seqüência de movimentos na calçada segue ritmos que se aceleram e se abrandam em horas certas e vão se extinguindo devagar, quando as janelas se iluminam e as ruas se esvaziam. Depois, as janelas vão-se apagando e fechando, menos alguma que resiste ainda, da qual escapa um som que finalmente silencia. Por que definir a cidade somente em termos visuais? Ela possui um mapa sonoro compartilhado e vital para seus habitantes que, descodificando sons familiares, alcançam equilíbrio e segurança (BOSI, 2003; 45) Desta forma, esse artigo se objetivou a analisar como Jacques Tati valoriza a espontaneidade, expressões orais marcadas pela sonoridade urbana, podendo estabelecer assim uma preocupação sua com a memória social. Hoje , podemos rever a crítica de Jacques Tati ao nosso universo, assim percebemos nos discursos sobre às adversidades das feiras livres, pode-se exemplificar o caso da sua ocupação geralmente em ruas, a céu aberto, que em dias chuvosos, ou então, em dias extremamente frios ou quentes, muitas pessoas preferem lugares cobertos equipados com ar condicionado preferindo conforto e comodidade. Assim, Percebe-se com grande frequência no mundo contemporâneo o direcionamento das pessoas para ambientes mais “seguros” onde existem seguranças, câmeras, onde não existem pedintes... Se observa nesses lugares organizados pela tecnologia um distanciamento 140 das relações sociais, a negociação que se estabelece entre o consumidor e a mercadoria são substituídas por relações burocráticas organizadas em espaços determinados para atender a reclamação do cliente. O horário do estabelecimento se estende comparado ao período do expediente do trabalhador de uma empresa, abrindo inclusive nos finais de semana e feriados, conectando o consumidor com a sua função social que passa a ter como centro de referência do homem moderno as relações de consumo enredadas pelo capitalismo. Invés de ‘baciadas’ o freguês passa a ser o consumidor por quilo, redimensionando o valor a ser pago pelo cálculo da balança, oposto a forma de negociação que poderia ser estabelecida quando o freguês não estivesse satisfeito com o valor da mercadoria. Observa-se que a palavra freguês é definida como uma pessoa que compra com regularidade em uma loja ou que tem uma relação continua e estável com determinado estabelecimento comercial. No que se refere a palavra consumidor também é indicado à pessoa que consome um produto ou serviço, porém sem vinculo pessoal com o vendedor ou com a loja. Quando se observa o serviço de proteção e defesa do consumidor, o PROCON, nota-se que o consumidor reclama por uma insatisfação do produto, loja ou serviço, quando a insatisfação ocorre com o freguês, ele pode tentar resolver a situação num diálogo com o comerciante. De acordo com o sociólogo polonês Zygmunt Bauman (2003) cada vez mais as pessoas na sociedade contemporânea tornam-se mais isoladas por questões que se atrelam a segurança, mesmo que para isso precisem ser controladas. Diante do avanço tecnológico, muitas pessoas conversam, trocam informações, realizam compram mediadas pela tecnologia, distanciando desta forma, as relações pessoais, tornando-as impessoais. Ao mesmo tempo em que as sonoridades dos espaços abertos vêm sendo substituídas por outras formas de representação de espaço social como supermercados e shoppings, os sons emitidos já não são mais parte de um repertório criativo e humano, mas sim o som padronizado de elevadores, escadas rolantes, quando nesses lugares aparece a voz de pessoas emitindo o andar do recinto são gravadas por áudio padronizado, proporcionado uma sensação apenas de informação ao transeunte. O mesmo se procede com o distanciamento das relações afetivas e engraçadas entre vendedores e a clientela. Se antes o centro da cidade era o lugar onde começavam a ser despertados os sentidos atrelados às compras, nos anos 50 inaugura-se um centro de compras: o shopping center, ampliando assim suas funções que passaram a serem acompanhadas por outras significações do consumo: lanchonetes, restaurantes, cinema e parque de diversões. (SARLO,2000) No que se refere à alimentação, pode-se notar a grande força desse modelo que se impôs socialmente, em que, comer, passou a ser sinônimo de lazer, é notável o aparecimento de várias lanchonetes que são criadas nos moldes americanos ditando uma imagem moderna e prática da época: hambúrguer, batata frita, milk shake ou Coca Cola . Nesse sentido, a praticidade trazida pelos enlatados vai ser a marca do sucesso da época, seja nas prateleiras dos supermercados, nas dispensas das casas ou também na própria sociedade, 141 em que começam a divulgar formas de vida padronizadas, em série, colocando num bloco homogêneo a sociedade em massa. Todos os produtos passam a ganhar uma dimensão do consumo, o estilo de vida americano passa a invadir várias áreas como o corpo, arte, cultura. E todas elas se tornam articuladas às ideias do consumo e por consequência à espetacularização, pois para fazer sucesso, é necessário um grande público. Desta forma espetacularizarida, podemos ler a divulgação da estreia do primeiro shopping de São Paulo: o shopping Iguatemi. Inaugurado a 28 de novembro de 1966 teve seu destaque (entre outras notícias) na capa do jornal Folha de São Paulo com a manchete: o “shopping” abriu com festa. E a abertura dessa festa contou com pessoas famosas. Além do novo conceito em compras, a atração ao público fora despertada pelo show com show de Chico Buarque, Nara Leão, Eliana Pittman e Chico Anísio que aconteceu no local. (FOLHA, 1966) O shopping center - centro que irradia um novo conceito de vida se amalgamava ao consumo, tornando-se assim, o lócus do espetáculo, um simulacro, onde se perde a noção do externo. Um mundo que se faz a parte, se cristaliza, como uma nova forma de modernidade, tornandose por sua vez, o cenário padronizado de todas as cidades modernas. (MORAES, 2011) O shopping center é uma espécie de simulacro da cidade em miniatura, em que todos os extremos são anulados: o mal tempo, os ruídos, o claro-escuro, os monumentos, os espaços vazios, os grafites, os monumentos, os pôsteres, assim como a diversidade social urbana (SARLO, 2000) Dessa mesma forma, o shopping cria um lugar asséptico divulgando a imagem de segurança, porém, há ainda uma grande procura pelo espaço informal das ‘feirinhas’ em que a figura do vendedor se assemelha a um conhecedor do produto a ser comercializado e não apenas um comerciário inserido num processo de terceirização. Invés da padronização de espaços e pessoas o lugar passa passa a ser povoado por relação mais ‘humana’ e menos tecnológica, ganhando um representativo espaço de socialibilidade, preservando desta forma a relação cultural, a construção e manutenção da memória social. Assim esse trabalho procurou situar através da analise do filme Meu Tio de Jacques Tati desdobramentos que se atrela a cultura de antes e do depois, da França e do Brasil sendo permeados pelo modelo de vida norte americano. Referências AMERICANO, Jorge. São Paulo naquele tempo (1895-1915). São Paulo: Carrenho Editorial.2004. ANDRADE, Mário de. Ensaio sobre a Música Brasileira. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1962. BAUMAN, Zygmunt; Comunidade – a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003. 142 BENJAMIM, Walter (1892-1940). O narrador : observações acerca da obra de Nicolau Lescov. Textos escolhidos, São Paulo : Abril Cultural, 1975. BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: Lembranças de velhos. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. ______. Memória da cidade: lembranças paulistanas. Estudos Avançados. vol.17 no.47 São Paulo Jan./Apr. 2003 – Disponível em http://dx.doi.org/10.1590/S0103-40142003000100012. Acesso: 30/06/2015. BRAUDEL, Fernand. 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Antes de Russolo escrever A arte dos Ruídos em 1913, o ruído já estava presente de alguma forma nas artes pictóricas pós impressionistas do final do século XIX e no início das vanguardas modernistas, como por exemplo nas colagens cubistas de George Braques e claramente nas propostas de ressignificação da apreciação, fruição e produção da arte elaboradas por Marcel Duchamp.Tanto conceitualmente como formalmente a importância da utilização do ruído pode ser sintetizada nas propostas dos futuristas italianos, que adotam o ruído como um forte elemento estético que pode ser encontrado em toda interdisciplinaridade que a vanguarda propicia. Contudo, em Luigi Russolo o ruído é estudado e utilizado além da estética ou da semiótica, o ruído se torna a práxis vital do artista, sendo cada vez mais utilizado é encorporado nas pesquisas e obras de artistas icônicos como o sul coreano Nan June Paik, pioneiro da videoarte e a banda nova-iorquina Sonic Youth, que dentre toda produção fonográfica e videográfica controlada pela indústria cultural do final da década de 90, se destaca por utilizar o ruído de forma intersemiótica, explorando a próxima relação entre o áudio e o visual, buscando a criação de um fio condutor, de uma estrutura que alinhe as diferentes produções artísticas que no início do século passado aliaram arte à evolução tecnológica. Palavras-chave: Ruído, Linguagem, Interdisciplinaridade Abstract The development of pictorial art in the early twentieth century is dynamic until its break with the dadaist Marcel Duchamp urinol. With visual art film has its continuation in a new hybrid language, the visual language will be deified by Futurism Italian artists who will recognize in the new language mimesis of his new world. The futurist Luigi Russolo is regarded as an artist pioneer in research, trials and uses noise as a major element in his artistic works that transcends the avant-garde movement of Italian Futurism and presents resignificado throughout the different art forms of the twentieth century. Before Russolo write The Art of Noise In 1913, noise was already present in some way in the arts pictorial post Impressionists of the late nineteenth century and the beginning of the modernist avant-garde, such as the Cubist collages of George Braque and clearly in the draft redefinition of appreciation, enjoyment and production of art designed by Marcel Duchamp. Both conceptually and formally the importance of using the noise can be synthesized in the proposals of the Italian Futurists, adopting noise like a strong aesthetic element that can be found throughout 145 interdisciplinarity that provides cutting edge. However, in Luigi Russolo noise is studied and used beyond the aesthetic or semiotic, noise becomes a vital practice of the artist, increasingly used and is embodied in the research and work of iconic artists such as the south korean Nan June Paik, pioneer of video art and the new yorker band Sonic Youth, that among all recording and video production controlled by the culture industry of the 90's, stands out for using the noise intersemiotic form, exploring the close relationship between the audio and visual, creating a common thread, a structure that aligns the different artistic productions that early last century allied art technological developments. Key- words: Noise, Language, Interdisciplinarity Considerações Iniciais Os artistas sempre representaram a camada mais sensível da sociedade e este elemento estético, o ruído, já havia sido utilizado visualmente pelos artistas divisionistas do final do século XIX, experimentado também nas obras cubistas do início do modernismo, e fortemente adotado na esfera conceitual dos ready-mades de Marcel Duchamp; mas em nenhum momento da história da humanidade o ruído teve a importância sígnica dada pelos futuristas italianos. O Futurismo Italiano foi um importante movimento artístico de vanguarda no início do século XX que apresentava uma proposta de glorificar estéticamente o mundo moderno, com toda mecanização, velocidade e dinamismo emergentes na época. A Itália, país ainda semi rural no início do século, ansiava por mudanças que a incluiria no circuito cosmopolita moderno que se formava na Europa e o futurismo italiano e suas práticas ofereciam esta oportunidade. As grandes cidades do norte italiano cresciam com suas indústrias, e a cidade de Milão se tornava a cidade mais emblemática do progresso tecnológico, não por acaso sede da editora futurista de F.T. Marinetti, fundador e mentor do futurismo. Um poeta de personalidade forte e atitudes anárquicas, um líder nato que habilmente reuniu artistas de diversas áreas na cidade de Milão, como o pintor e escultor Umberto Boccione; o arquiteto Antonio Sant'Elia; o pintor, poeta, compositor e inventor Luigi Russolo; o pintor e professor Gino Severini; e os pintores Carlo Carrá e Giacomo Balla entre outros nomes que se juntariam ao grupo dos futuristas. Um movimento que conseguiu atrair artistas de diversas áreas como poesia, pintura, arquitetura, escultura, cinema, gastronomia, moda, teatro e música; o futurismo trazia em sua gênese a interdisciplinaridade artística. Desta maneira o futurismo acabou se convertendo muito além de sua proposta estética, não bastava fazer futurismo, mas principalmente ser futurista. Essa proposta comportamental colocava a figura do artista em destaque, um herói romântico que buscava através da estética um sentido, uma ética e uma lógica. A utilização da interdisciplinaridade de linguagens como metodologia artística se torna a coluna central que irá sustentar não somente os artistas do futurismo italiano, mas principalmente as vanguardas modernistas que preservarão esta herança para os artistas 146 contemporâneos. Nesse panorama se destaca o pintor Luigi Russolo, que fiel a esta nova estética narra as dialéticas da grande cidade moderna, desenvolvendo um elemento crucial nas matrizes interdisciplinares do futurismo. Por meio do ruído, que agora fazia parte da vida na grande cidade, Russolo desenvolveu o trânsito sígnico entre as várias linguagens artísticas, colocando a interdisciplinaridade artística como marca fundamental não somente do futurismo, como também das vanguardas que surgiriam a partir dessa conversa entre várias linguagens artísticas. A proposta desta pesquisa parte das relações entre som e imagem, na arte pictórica, na música e inclusive na poesia, com ênfase no ruído como elemento primordial no cenário futurista, principalmente no conjunto de obras do artista Luigi Russolo, pintor de formação clássica que participa dos principais manifestos da vanguarda surgida em Milão no início do século XX. Analisando a produção sonora e escrita do artista e compositor Luigi Russolo, esta pesquisa busca delinear o ponto de encontro e a importância desse ponto de encontro da música, do som, com a produção pictórica, gráfica e até mesmo poética, onde o ruído se torna práxis vital no futurismo italiano, e consequentemente, o ruído é incorporado na arte como uma entidade de linguagem do século XX. Para Russolo, o ontem era silencioso, era orgânico; o hoje está acompanhado da eletricidade, da máquina, da cidade, do ruído: o cotidiano está contaminado pelos avanços da modernidade, e por isso em seu manifesto afirma a importância e a necessidade da utilização do ruído além da poética artística. RUÍDO Ruído é uma palavra originária do Latim, rugitus, o mesmo que o rugido dos animais ferozes, daí sua forte associação com a matriz sonora, com o barulho. De modo geral, a definição de ruído está ligada ao som não desejado, aos distúrbios linguísticos e aos problemas de comunicação. Todo sinal considerado indesejável na transmissão de uma mensagem por um canal pode ser considerado ruído, tudo o que dificulta a comunicação, interfere na transmissão e perturba a recepção ou a compreensão da mensagem. Todo fenômeno que ocasiona perda de informação durante o processo de comunicação entre fonte e o destinatário. Alguns exemplos como perturbações atmosféricas na recepção radiofônica, transmissão errada de uma letramorta no envio de um telegrama, pontos brancos salpicados na tela de TV, letras miúdas em um livro, linha cruzada numa ligação telefônica, erro tipográfico num jornal, rasgão numa página de revista, mancha de cor num quadro, pronuncia incorreta, emprego de palavras de difícil compreensão para o público a quem se destina a mensagem (signos que não constam do repertório do destinatário) etc… sao comumente associados ao conceito de ruído. Segundo Abraham Moles (1991), não existe nenhuma diferença de estrutura absoluta entre ruído é sinal: ambos são da mesma natureza e a única diferença logicamente adequada que se pode estabelecer entre eles deve basear-se exclusivamente no conceito de intenção por parte do transmissor: 147 Na eletrônica o ruído tem sua definação associada à percepção acústica, por exemplo de um "chiado" característico ou aos "chuviscos" na recepção fraca de um sinal de televisão, semelhante a granulação de uma fotografia, que em determinadas proporções, também tem o sentido de ruído na sintaxe da linguagem visual. Na comunicação, de um modo geral, a presença do ruído é vista como algo prejudicial, como perda de informação. (RABAÇA; BARBOSA, 1998, p.522-523). Já para os pesquisadores da corrente teórica denominada Teoria da Informação o ruído pode desempenhar a função de portador de informação. A informação totalmente original cabe, em Teoria da Informação, a designação de entropia máxima, apresentando a entropia como a medida da desordem introduzida numa estrutura informacional. A informação ideal tende para o máximo de originalidade, quanto mais imprevisível for, menos será passível de apreensão por um receptor médio, para o qual as mensagens surgem dependentes de uma ordem e para quem o novo, o original, surge como desordem, confusão, complexidade. (COELHO NETTO, 1996, p. 129). A Teoria da Informação nasceu nas áreas da telefonia e da telegrafia, como uma teoria estatística e matemática. Sua utilização na comunicação diz respeito à criação de mecanismos para se pensar os aspectos sintáticos, formais e estruturais, para se compreender a organização e transmissão das mensagens. Seu foco se restringe á codificação e decodificação da mensagem, que será ou não significativa de acordo com a capacidade de mudanças causadas no receptor, como bem define Teixeira Coelho Netto (1996), a Teoria da Informação preocupa-se antes de mais nada com a eleboração de uma dada mensagem, capaz de promover em seus receptores uma alteração do comportamento. Sendo assim, o novo, o original, ou o próprio ruído, gera quebra de estruturas, propiciando mais informação. Quanto mais originalidade, menos previsibilidade, consequentemente mais informação. A mensagem que tende para um grau máximo de originalidade [a mensagem mais imprevisível] tende igualmente para um máximo de informação e, inversamente, quanto mais previsível a mensagem, menor sua informação […] a mensagem ideal - em oposição às mensagens reais pode ser descrita como sendo a que contem um máximo de informação ou como a que se apresenta com uma tendência para a entropia. (IBIDEM, p. 133). A mudança no comportamento do receptor de uma mensagem depende do caráter de novo desta mesma mensagem. Quanto maior a taxa de novidade de uma mensagem maior o seu valor informativo, sendo maior a mudança de comportamento provocada. Segundo Décio Pignatari, o conceito de entropia em confronto com o conceito de informação pode se relativizar de acordo com o valor de informação, conceito também comum para Norbert Wiener, pesquisador pioneiro na área da cibernética: As mensagens são em si uma forma de padrão e de organização. Com efeito, é possível tratar conjuntos de mensagens como tendo uma entropia, tais como conjuntos de estados do mundo exterior. Assim como a entropia é uma medida da desorganização, a informação transmitida por um conjunto de mensagem é uma medida de organização. De fato, é possível interpretar 148 a informação de uma mensagem essencialmente como o negativo de sua entropia e o logarítmo de sua probabilidade. Isto é, quanto mais provável é a mensagem, menor é a informação fornecida. Lugares-comuns, por exemplo, são menos esclarecedores do que grandes poemas.(WEINER apud PIGNATARI, 1993, p. 57). Portanto, conforme os estudos elaborados por seus teóricos, na Teoria da Informação a “entropia negativa pode ser considerada a própria informação”, pois os conceitos e o valor significativo de informação estão ligados à “originalidade, novidade e ao inesperado”; conceitos que podem ser aplicados na esfera da arte. Sendo assim, a noção de ruído identificase com a noção de entropia e pode ser entendida nas artes como a medida do original, do inusitado que propõe uma ruptura com a noção de absoluto, seja em sua estética, forma ou conceito. O futurismo italiano O futurismo italiano foi um importante movimento artístico de vanguarda no início do século XX que apresentava uma proposta de glorificar esteticamente o mundo moderno utilizando toda velocidade, mecanização e dinamismo que emergiam na sociedade. O século XX se iniciava e inaugurava um novo tempo para as artes. Um tempo que buscava o rompimento brutal com o passado, com a tradição das academias, valorizando e se utilizando dos adventos da ciência e da tecnologia, muitas vezes por meio da transgressão, da força, do ímpeto da paixão e da violência, meios que justificariam os fins. O futurismo italiano é marcado por sua anarquia e irreverência, é na inquietação com o passado, no rompimento com a tradição que se torna o berço fértil das artes modernas. Sua importância como movimento artístico se confunde com a sua capacidade de gerar vanguardas artísticas, devido à sua interdisciplinaridade de linguagens. Um movimento que atraía artistas de diversas áreas, como poesia, pintura, arquitetura, cinema, teatro e música; o futurismo trazia em sua gênese a convergência das novas tecnologias e o rompimento com as regras acadêmicas. O século começava com um alto desenvolvimento tecnológico incluindo o telégrafo, o telefone, o raio-X, a bicicleta, o automóvel, o avião e o cinema foram o molde dessa nova consciência cultural. A psicanálise e a teoria da relatividade resultaram em novos moldes e dimensões do pensamento humano. A visão de uma nova Itália se consolidava a partir da experiência física e cognitiva em conjunto. Os artistas das principais regiões italianas se reuniam em apoio a uma ofensiva militar contra a Áustria, que controlava territórios na península itálica. Formava-se um sentimento nacionalista irrigado pelas recentes frustrações militares e dos incríveis adventos da ciência que provocavam transformações na percepção do espaço-tempo. As mudanças produzidas nos meios de comunicação tiveram resultados impressionantes. O dinamismo e a velocidade modelavam todos os meios de transporte, comunicação e expressão. A estética do futurismo italiano era decididamente anti-romântica e estava com os dois pés na sociedade industrial do início do século XX. Foram temas centrais dos futuristas a 149 industrialização, as máquinas, a velocidade, o urbano, a juventude, vitalidade, força, o heroísmo, a violência, a violência, o grotesco, e até mesmo uma glorificação da guerra. O manifesto de 1909 reflete assim o programa de Marinetti para o futuro mais do que sua própria prática poética. Como poeta lírico, ele era um medíocre simbolista tardio; como pensador, era quase todo um derivado de outros, suas declarações extravagantes sendo facilmente rastreáveis até Nietzsche e Henri Bergson, Alfred Jarry e Georges Sorel. Mas, como o que chamamos hoje de artisita conceitual, Marinetti era incomparável, tendo a estratégia do seus manifetos, performances, recitações e ficções sido concebida para transformar a política numa espécie de teatro lírico. (PERLOFF,1993, p.157) O ano de 1909 é normalmente tido como a data de início da vanguarda, porque o poeta italiano e líder do movimento, Filippo Tommaso Marinetti (1876-1944) em 20 de fevereiro daquele ano publica no jornal francês Le Figaro seu Manifesto Futurista. Pouco depois formase um movimento na ex-união soviética com os princípios dos italianos e posteriormente em outros países grupos surgiram com propostas semelhantes. O futurismo apresenta-se como um movimento artístico multidisciplinar extremamente avant-garde, inclusive no sentido militar do termo. 1. Nós queremos cantar o amor ao perigo, o hábito da energia e do destemor. 2. A coragem, a audácia, a rebelião serão elementos essenciais de nossa poesia. 3. A literatura exaltou até hoje a imobilidade pensativa, o êxtase, o sono. Nós queremos exaltar o movimento agressivo, a insônia febril, o passo de corrida, o salto mortal, o bofetão e o soco. 4. Nós afirmamos que a magnificência do mundo enriqueceu-se de uma beleza nova: a beleza da velocidade. Um automóvel de corrida com seu cofre enfeitado com tubos grossos, semelhantes a serpentes de hálito explosivo... um automóvel rugidor, que correr sobre a metralha, é mais bonito que a Vitória de Samotrácia. 5. Nós queremos entoar hinos ao homem que segura o volante, cuja haste ideal atravessa a Terra, lançada também numa corrida sobre o circuito da sua órbita. 6. É preciso que o poeta prodigalize com ardor, fausto e munificiência, para aumentar o entusiástico fervor dos elementos primordiais. 7. Não há mais beleza, a não ser na luta. Nenhuma obra que não tenha um caráter agressivo pode ser uma obra-prima. A poesia deve ser concebida como um violento assalto contra as forças desconhecidas, para obrigá-las a prostrar-se diante do homem. 8. Nós estamos no promontório extremo dos séculos!... Por que haveríamos de olhar para trás, se queremos arrombar as misteriosas portas do Impossível? O Tempo e o Espaço morreram ontem. Nós já estamos vivendo no absoluto, pois já criamos a eterna velocidade onipresente. 150 9. Nós queremos glorificar a guerra - única higiene do mundo - o militarismo, o patriotismo, o gesto destruidor dos libertários, as belas ideias pelas quais se morre e o desprezo pela mulher. 10. Nós queremos destruir os museus, as bibliotecas, as academias de toda natureza, e combater o moralismo, o feminismo e toda vileza oportunista e utilitária. 11. Nós cantaremos as grandes multidões agitadas pelo trabalho, pelo prazer ou pela sublevação; cantaremos as marés multicores e polifônicas das revoluções nas capitais modernas; cantaremos o vibrante fervor noturno dos arsenais e dos estaleiros incendiados por violentas luas elétricas; as estações esganadas, devoradoras de serpentes que fumam; as oficinas penduradas às nuvens pelos fios contorcidos de suas fumaças; as pontes, semelhantes a ginastas gigantes que cavalgam os rios, faiscantes ao sol com um luzir de facas; os piróscafos aventurosos que farejam o horizonte, as locomotivas de largo peito, que pateiam sobre os trilhos, como enormes cavalos de aço enleados de carros; e o voo rasante dos aviões, cuja hélice freme ao vento, como uma bandeira, e parece aplaudir como uma multidão entusiasta. 12. É da Itália, que nós lançamos pelo mundo este nosso manifesto de violência arrebatadora e incendiária, com o qual fundamos hoje o ‘Futurismo’, porque queremos libertar este país de sua fétida gangrena de professores, de arqueólogos, de cicerones e de antiquários. Já é tempo de a Itália deixar de ser um mercado de belchiores. Nós queremos libertá-la dos inúmeros museus que a cobrem toda de inúmeros cemitérios. (MARINETTI apud BERNARDINI, 2013, p.33-35) É claramente a antítese da glorificação romântica da natureza, do rural, o pastoral clássico ou passado imaculado. Artistas futuristas em diversas disciplinas (poesia, música, escultura, pintura, gráficos, tipografia, arquitetura, fotografia, gastronomia ...), vão partilhar a sua visão não apenas através de suas criações artísticas, mas também através de manifestos, uma forma de comunicação que sintetiza os pontos de vista de um grupo de pessoas. Em geral, os futuristas focavam na discrepância entre a forma e conteúdo das artes, na realidade cotidiana e na visão do mundo no início do século XX. A vida agrária idealizada pelas emoções românticas não era mais compatível com a realidade social, onde a indústria urbana consolidava um papel vital na evolução da sociedade. Em relação à sintaxe da linguagem visual nas artes plásticas, a forma estava ultrapassada, morta. Os futuristas haviam concluído que a arte havia perdido sua ligação com o mundo. No que diz respeito à forma, a percepção do mundo assim como as dimensões de tempo e espaço passavam pela mais radical mudança de todos os tempos. Todas as engrenagens, motores e eletricidade causaram um gigantesco estímulo para os sentidos e tiveram um impacto muito particular sobre o indivíduo urbano do mundo préindustrial. 151 A percepção do tempo, do movimento, dos sons que se formavam nesse novo mundo foram os desafios que os futuristas encontraram no desenvolvimento de multiplas linguagens de expressão. A relação temática em que os futuristas trataram o mundo industrializado é facilmente perceptível em sua própria materialidade. Em suas pinturas não são encontradas paisagens ou naturezas mortas, e sim o vapor dos trens, fábricas e carros. Nas artes plásticas procuram objetivar a criação de obras com o mesmo ritmo e espírito da sociedade industrial. Para expresser a velocidade na pintura, os artistas recorrem à repetição dos traços das figuras. Quando desejam retratar vários acontecimentos ao mesmo tempo adaptam técnicas próximas do cubismo para um novo conceito de simultaneidade. Na escultura, os futuristas fazem trabalhos experimentais utilizando a combinação de novos materiais como elemento compositivo, como o vidro e o papel. A interdisciplinaridade inata do movimento leva os artistas a se preocuparem com interação entre as artes, alguns pintores e escultores se aproximam da música e do teatro. No teatro a proposta futurista introduz a tecnologia nos espetáculos e cria um novo modelo de interação com o público. Na música a proposta vai além da pesquisa das estruturas harmônicas, o som do novo mundo é mais dinâmico, estridente e ruidoso, abrindo a possibilidade de uma nova maneira de compreender a música, sua materialidade, seus objetivos, e até mesmo sua linguagem. A nova sociedade industrial e tecnocrata impulsiona as pesquisas e o desenvolvimento de uma nova sonoridade, capaz de ultrapassar os limites da formação da orquestra e dos instrumentos clássicos. Novas maneiras de se utilizar os instrumentos clássicos eram propostas, bem como a urgência de se pensar em novos instrumentos musicais. Imagem 16: F.T.Marinetti, Antonio Russolo e Luigi Russolo com os intonarumores Fonte: Biblioteca do Conservatório Santa Cecília di Roma A nova vida exigia da música novos instrumentos, sons mecânicos, que reproduzissem uma sociedade muito mais dinâmica e barulhenta. Exigia da arte não somente a expressão do movimento e da força, mas novas propostas de se fruir, produzir e apreciar a arte. O anatomia formal da arte futurista e de suas novas tecnologias, da estética da velocidade, do dinamismo e da variedade de estímulos, gera um complexo fluxo criativo e interdisciplinar. 152 O apego ao novo propicia diversas experimentações em diversas matrizes de linguagens, principalmente quando ocorre o cruzamento de uma ou mais linguagens, gerando uma nova possibilidade artística. O futurismo é o resultado de inúmeras experimentações da relação espaco-tempo, da limitação bidimensional, da pesquisa em se expressar o movimento real, a velocidade, o movimento no espaço. O artista futurista não quer o simples registro de um objeto, situação ou fenômeno, ele busca captar a forma plástica do movimento, do som, dos espaços urbanos que emolduram o novo ritmo e espírito de uma sociedade tecnológica e industrial. O texto em forma de manifesto se trata de um escrito comum às vanguardas artísticas do século XX, uma espécie de declaração pública de princípios, e neste manifesto Russolo discute precisamente sobre a necessidade de questionar o papel que os instrumentos desempenhavam na música da época. As capas dos manifestos, as poesias que exigem uma sinestesia que transcende o conteúdo político e ou ideológico, refletem a necessidade de não apenas uma ruptura com a arte vigente, mas uma nova maneira de se fazer e perceber a arte. As colagens recebem uma importância notória, pois incorpora e resignifica fragmentos do referente, cabendo ao receptor ou apreciador da arte levar em consideração o intercâmbio de signos entre a mensagem, a materialidade da obra pré-existente e a nova composição originada pela colagem. A visualidade das poesias que não eram “nem completamente ‘verso’ nem ‘prosa’, um texto cuja unidade não é nem o parágrafo nem a estrofe, mas a própria página impressa” (PERLOFF, 1993, p.21) Assim como na produção pictórica da vanguarda, a sonoridade futurista deveria estar ciente das mudanças que ocorreram na sociedade pós-revolução industrial, com o advento da máquina e da eletricidade, e clama em seu escrito para que a música não se mantenha alheia desta nova realidade, propondo assim, uma espécie de “morte do ontem” (RUSSOLO, 1916, p.3), ou morte do passado na arte. Traçando um paralelo entre a produção pictórica e musical do futurismo, podemos notar uma comum vontade dos artistas de transpor essa nova realidade para dentro das obras. As utilizações corriqueiras de onomatopéias nas poesias futuristas mostram uma clara necessidade de aliar o som com a imagem, de trazer para dentro da imagem a mecanicidade, a velocidade, o movimento. A composição gráfica do poema sonoro de Marinetti “Zang Tumb Tuuum”, de 1912, demonstra a intenção de criar dinamismo na poesia, que busca imitar o prolongamento do som através de palavras alongadas, distorcidas e assimétricas. 153 Imagem 17: Capa do Fonte: Treccani, 2014, online. poema Zang Tumb Tuuum, de 1912. Esse mesmo dinamismo é encontrado na obra de Luigi Russolo, que em sua icônica pintura “Dinamismo de um automóvel”, de 1912, investiga a entrada do movimento na produção visual. Segundo Marinetti, em 1909, “O esplendor do mundo foi enriquecido por uma nova forma de beleza, a beleza da velocidade”. (MARINETTI apud FABRIS, 1987, p.62). Imagem 18: Dinamismo Fonte: Treccani, 2014, online. de um Automóvel, Luigi Russolo. Um movimento artístico interdisciplinar em sua gênese, que conseguiu atrair artistas de diversas áreas como poesia, pintura, arquitetura, escultura, gastronomia, moda, teatro, música e principalmente o cinema, que para os futuristas reunia todas as formas de arte e sintetizava a proposta futurista. 154 O cinema era visto pelos futuristas como uma forma de expressão artística que atenderia às necessidades da expressividade múltipla e pluralista do movimento, conforme o manifesto Cinema Futurista de 1916: “Pintura + escultura + dinamismo plástico + palavras em liberdade + intonarumori + arquitetura + teatro sintético = cinematografia futurista.” Neste manifesto, a proposta de criação de um novo tipo de filme, diferente do cinema que conta uma estória, o cinema futurista deveria cumprir a síntese interdisciplinar que posteriormente seria fragmentada em diversas vanguardas artísticas ao longo do século XX. O Manifesto da Cinematografia Futurista diz: O cinema futurista que preparamos, alegre deformação do universo, síntese alógica e fugaz da vida mundial torná-se-á a melhor escolar para os jovens: escolar de alegria, de velocidade, de força, de temeridade e de heroismo. O cinema futurista tornará mais aguda a sensibilidade, imprimirá velocidade à imaginação criadora, dará à inteligência um prodigioso sentido de simultaneidade e de onipresença. (MARINETTI et al apud BERNARDINI, 2013, p.219) Este primeiro manifesto futurista era uma ode às máquinas modernistas, de que o cinema foi um excelente exemplo e influência direta para novas linguagens audiovisuais onde ecoam nomes como Lev Kuleshov, Sergey Eisenstein e DzigaVertov, que por meio da decomposição temporal e especial, mas principalmente pela proposta de liberdade criativa, abriu as portas para as vanguardas européias de cinema como o Experimentalismo Soviético, o Expressionismo Alemão, o Impressionismo e Surrealismo Francês. É preciso libertar o cinema como meio de expressão para fazer dele o instrumento ideal de uma nova arte muito mais vasta e mais ágil que todas aquelas existentes. Estamos convencidos de que só por meio disto é que poderá se alcançar aquela poliexpressividade para a qual tendem todas as mais modernas pesquisas artísticas. (IBIDEM, p.220). O Futurismo rejeitava o moralismo e o passado, e suas obras se baseavam na velocidade e nos desenvolvimentos tecnológicos. Sua estética se articulava como uma visão de mundo audiovisual. A utilização da interdisciplinaridade de linguagens como metodologia artística se torna a coluna central que irá sustentar não somente os artistas do futurismo italiano, mas principalmente as vanguardas modernistas que preservarão esta herança para os artistas contemporâneos. Luigi Russolo A carreira artística de Luigi Russolo demonstra os múltiplos interesses e linguagens de uma arte expressiva e interdisciplinar, mas é o caminho percorrido pelo artista que reforça a convicção de uma vida de pesquisas, a busca da universalidade da arte. Da música à pintura, retornando à música, e da música à filosofia e esoterismo, passando pela poesia e finalmente voltando à pintura. Foi este o percurso artístico que Russolo trilhou, caminhando entre as diversas linguagens do futurismo sinestesicamente. Um artista que demonstra um forte entendimento da importância da inovação e das possibilidades 155 expressivas da linguagem futurista. Uma arte capaz de abrigar todas as artes e produzir novos signos que transitam entre todas essas linguagens artísticas. Russolo redigiu seu próprio manifesto em 1913, ano que marcaria uma forte mudança em sua vida artística. Neste ano apresenta sua grande invenção: Intonararumores, espécie de máquinas de ruídos. Uma família de instrumentos sonoros que permitem controlar a dinâmica, o volume e o comprimento de ondas de diferentes tipos de som. Junto com o seu assistente técnico, o também pintor Ugo Piati, construiu um verdadeiro e arsenal de ruídos que futuramente iriam revolucionar os hábitos musicais para sempre. [...] o barulho não é sempre desagradável e chato como você pensa e diz, e de fato para aqueles que sabem compreendê-los, o ruído é uma fonte inesgotável de deliciosas sensações de tempos em tempos e profundo, grandioso e excitante. (Tradução NossaRUSSOLO, 1916, p.3) Imagem 20: Luigi Russolo com seus Intonarumores Fonte: Biblioteca do Conservatório Santa Cecília di Roma Entre 1913 e 1914, Russolo realiza concertos em Modena, Milão, Genova e Londres, mas previsivelmente no momento em que as máquinas de ruídos intrigava a classe intelectual européia, a imprensa tecia fortes ataques äs propostas do artista. As apresentações eram cercadas de controversas, provocações e inúmeras brigas. O músico foi vaiado em sua primeira audição, quando recebeu uma chuva de tomates e outros vegetais que foram atirados no palco entre outras manifestações violentas. Russolo não se deixou intimidar e continuou suas perfomaces em mais doze apresentações pela Europa, incluindo uma no Coliseu de Londres, ocasião em que conheceu o compositor russo Igor Stravinski. Em 21 de abril de 1914, durante uma noite futurista, no Teatro Dal Verme, em Milão foram realizados três peças: Despertar de uma cidade, Temos almoço no terraço do Congresso Kursaal e Encontros de carros e aviões. Em 1916 Russolo publica pela Editora Futurista de Poesia; com sede em Milão e pertencente a F.T. Marinetti; o livro La arte dei rumori, uma versão mais completa e com novas abordagens 156 teóricas, principalmente com a aperfeiçoamento de novos instrumentos, como o Rumorarmonio, por exemplo. Na "Artedos Ruídos" (L'arte dei Rumori), Luigi Russolo apresentou não somente um manifesto sobre a música futurista, mas definiu como seria a música do século XX. Defendeu os princípios futuristas do manifesto inaugural de 1909, e após minusciosas experimentações entre visualidade e sonoridade, sinestesia de um modo geral, como podemos observar em seu quadro “Perfumo” (1910). E o resultado inevitável era fazer música nova e com novos materiais, novos instrumentos e um novo elemento sígnico: o ruído. Para essa nova concepção, ele descreveu a evolução ao longo da história do silêncio ao som, do som ao ruído, do ruído à música. O som musical é muito limitado na variedade qualitativa dos timbres. As orquestras mais complexas se resumem a quatro ou cinco tipos de instrumentos diferentes em timbre: instrumentos de cordas sem arco, vento (metal e madeira), percussão. Assim que a música moderna é discutida neste pequeno círculo, lutando em vão para criar novas variedades de anéis. Temos de quebrar este círculo restrito de sons puros e conquistar a infinita variedade de ruído-sons ... (RUSSOLO, 1916, p.6) Ele propôs, portanto, uma nova maneira de compreender a música, seus materiais, seus objetivos, e até mesmo seu idioma. A arte musical procurou e conseguiu primeiro a pureza, a limpeza e a doçura do som para depois unir sons diversos, preocupada, porém, em acariciar o ouvido com suaves harmonias. Hoje, a arte musical tornando-se cada vez mais complexa, pesquisa as combinações de sons mais dissonantes, mais estranhas e mais ásperas ao ouvido. Aproximamo-nos assim cada vez mais do som-ruído. Essa evolução da música é paralela à multiplicação das máquinas, que colaboram por toda parte com o homem. Não somente na atmosfera estrondosa das grandes cidades, mas também no campo, que até ontem era normalmente silencioso; as máquinas hoje criaram tanta variedade e concorrência de ruídos, que o som puro, na sua exiguidade e monotonia, não suscita mais emoção. Para excitar e exaltar nossa sensibilidade, a música se desenvolveu rumo à mais complexa polifonia e rumo à maior variedade de timbres ou coloridos instrumentais, pesquisando a mais intricada sucessão de acordes dissonantes e preparando paulatinamente a criação do “ruído musical”. Essa evolução rumo ao “som ruído” não era possível até então. O ouvido de um homem do século XVIII não conseguiria suportar a intensidade desarmônica de certos acordes produzidos por nossas orquestras (triplicadas no número de executantes em relação àquelas de então). Nosso ouvido, no entanto, se compraz, porque já foi educado pela vida moderna tão pródiga dos mais variados ruídos. O nosso ouvido, porém, não se contenta e exige sempre emoções acústicas mais amplas. (RUSSOLO, 1916, p.8) O Intonarumori, assim como toda a família de instrumentos musicais inventados e desenvolvidos a partir de 1913 por Russolo, eram produtores ou geradores de ruído, que são no início puramente mecânicos, e mais tarde, por impulsos elétricos, permitem o controle dinâmico e alturas sobre diferentes tipos de ruídos gerados. 157 Imagem 35: Fonte: Biblioteca do Conservatório Santa Cecília di Roma Intonarumore Nenhum dos dispositivos originais sobreviveram, mas temos algumas fotos importantes daquela época, mas recentemente foram reconstruídos alguns que são usados em apresentações e expostos em museus. Do ponto de vista musical, embora os instrumentos e obras de Russolo pareçam bastante arcaico e rudimentar, sua teoria musical, suas tentativas de traçar um novo sistema, o projeto de renovação "do zero", e "o início do caminho para um novo som "através da criação e concepção de novos instrumentos de ruídos, de acordo com seus objetivos, eles acabaram sendo uma semente de infinitas ramificações, da música concreta, eletrônica, performances improvisadas com percussão exótica, ou mesmo a plena introdução de percussão no mundo do clássico, e que quase imediatamente pode estar ligada aos avanços tecnológicos, mas principalmente à inclusão do ruído como um importante elemento de linguagem, que por meio da interdisciplinaridade futurista, vai permear as principais produções artísticas do século XX. Nan June Paik Nan June Paik foi um grande artista contemporâneo e a figura mais importante da vídeo arte. Desde suas performances com o grupo Fluxos, suas esculturas de vídeos com televisores alterados, suas instalações aos seus vídeos inovadores e instalações multidisciplinares, Paik fez uma enorme contribuição para a história e para o desenvolvimento do vídeo como uma forma de arte que traduzisse sua época. Na década de sessenta, participou da formação inicial do grupo de artistas conhecido como “Fluxos”, Paik foi um dos primeiros artistas a ser convidado por Geoges Maciunas para incluir suas obras no projeto do periódico fluxos, um editorial de Maciunas lançado em Nova Iorque. Devido a formação musical de inúmeros participantes do grupo fluxos, suas pesquisas possuíam um caráter interdisciplinar, propondo um intercâmbio sígnico entre as diversas matrizes artísticas visuais e sonoras , como por exemplo suas músicas de ação, denominado por eles como a nova música, que seria o audível e o visível se entrelaçando. (STILES, 2003, p. 71). A partir desses experimentos realiza diversos trabalhos de vanguarda como Exposição de música/televisão eletrônica” de 1963, que apresenta doze monitores de tv modificados de 158 maneira inusitada, Paik utiliza distorções diferentes de uma mesma programação, através de imãs que seriam sua grande ferramenta para utilização do ruído como linguagem. Ao trabalhar com os televisores Paik se utiliza da tecnologia como uma conexão com a música de maneira que no domínio das imagens eletrônicas a obra de Paik não será diferente de sua experiência como compositor de música eletrônica. Em entrevista a Jean Yves Bosseur, Paik cita esse intercâmbio sígnico no processo de criação de suas obras: Eu comecei como compositor de música eletrônica. Eu dispunha então de todos os sons, toda gama acima de dez mil kilociclos. Então, eu simplesmente estendi esses dez mil kilociclos a quatro megaciclos no domínio visual, em todo caso, trata-se ainda de números. Enquanto músicos, nós temos o hábito de trabalhar com números, quer se trate das regras do contraponto ou das relações harmônicas. (BOSSEUR,1992, p. 135136). Junto com a violoncelista Charlotte Moorman realizou uma série de trabalhos performáticos que se tornaram referência na arte contemporânea, entre eles se destacam Ópera Sextronic, de 1967, obra em que Charlotte Moorman foi presa por praticar topless durante a performance, e TV Cello de 1971, obra que combina vídeo, música e performance. Em Tv Cello, Paik e Moorman empilham televisores um sobre o outro de maneira a criar o formato de um violoncelo, quando Moorman passa o seu arco sobre as cordas do violoncelo as imagens dela e de outros violoncelistas aparecem nas telas. Na década de 70 Paik se torna uma referência que ultrapassa a vídeo arte quando utilizando além de suas esculturas de aparelhos de tv, metais e componentes eletrônicos introduz imagens em uma tv de circuito fechado, como no caso de Tv Buda de 1974. Arte como auto referência. O Buda metálico é a arte enquanto escultura e arte enquanto imagem neste circuito fechado de TV, que em última instância é a vídeo arte. Imagem 49: Fonte: Paikstudios, online, 2015 159 TV Cello ,1971. Imagem 50: TV Buda, 1974 Paikstudios, online, 2015. Fonte: A partir da década de 90 Paik sofre alguns problemas de saúde e o colocam em uma cadeira de rodas mas sua perspicácia, inteligência e criatividade o colocam como o grande artista e pensador de um novo milênio que ele já havia previsto décadas antes dele começar. Um artista experimental, criativo e provocador cujas ideias tiveram profundo efeito sobre a arte produzida no final do século XX. Nan June Paik morreu em 29 de janeiro de 2006 em Miame Beach, Flórida EUA. Sonic Youth Sonic Youth é uma banda que se destacou no cenário do rock alternativo por utilizar o ruído como uma forte característica em suas composições. Por meio de microfonias, afinações não convencionais e guitarras distorcidas através de uma combinação de pedais analógicos que interferem diretamente na harmonia, timbre e modulação das linhas de guitarras. O grupo teve seu início em 1981 na cidade de Nova Iorque, em pleno auge do movimento new age. No mesmo ano o guitarrista Thurston Moore organiza um festival de música e arte chamado “Noisa Fest Festival” com duração de dez dias realizado na galeria White Columns, onde o Sonic Youth realiza o seu primeiro show. Na década de 90 o grupo assina contrato com uma grande gravadora, a Geffen Records, e finalmente resolve os problemas de distribuição e direitos autorias que incomodavam o grupo há anos. Goo é considerado o primeiro álbum com total liberdade artística lançado no mainstream e distribuído em escala internacional. Com um contrato praticamente vitalício e controle artístico total de seus álbuns o Sonic Youth começa a desenvolver o conceito artístico da banda em seus videoclipes, que serão exibidos massivamente na MTV. Em 1992 lança Dirty, com Spike Jonze dirigindo o clipe inaugural 100%. Em 1994 o grupo grava seu álbum mais experimental até o momento, desenvolvendo minuciosas pesquisas sonoras com pedais que distorcem analogicamente os sons das guitarras, produzindo ruídos até então desconhecidos no cenário musical. Mesmo gozando de absoluta liberdade artística na Geffen, no final da década de 90 o grupo cria sua própria gravadora , a SYR, e aposta em projetos cada vez mais experimentais, sem letras e com melodias não harmônicas recheadas de diversos ruídos; como a série “Perspectiva Musicais” , que reúne artistas convidados para cada volume, que tem o nome das músicas, créditos e notas de produção em línguas diferentes, como francês, holandês, lituano, japonês e até em esperanto. 160 O álbum SYR 3, em Esperanto, tem a participação do guiitarrista Jim O’Rourke, que se torna membro definitivo da banda, compondo ora linhas de guitarras, ora linhas de contra baixo, sempre com camadas de ruídos intercaladas com melodias tonais e atonais. Imagem 65: Guitarra com Fonte: SonicYouth, 2015, online 18 cordas desenvolvida por Lee Ranaldo Com o desenvolvimento cada vez mais artístico e interdisciplinar dos projetos da SYR, a banda grava em 1999 o quarto projeto da série “Perspectiva Musicais”, em inglês, emblematicamente chamado “Goodbye 20th Century”. Imagem 66: SYR Fonte: Sonic Youth, 2015, online 4: Goodbye 20th Century Esse álbum duplo é uma homenagem aos grandes artistas avant-garde que desenvolviam a arte em toda sua sinestesia e interdisciplinaridade. O álbum contem composições de John Cage, George Maciunas, Pauline Oliveros, Christian Wolff, Takehisa Kosugi, Yoko Ono, Steve Rich, entre outros; e conta também com uma performance gravada em vídeo homenageando Nan June Paik, em que eles pregam as teclas de um piano aleatoriamente, produzindo não somente um som não convencional como também uma visualidade extremamente ruidosa referente às teclas com os pregos e ao gesto da performance, que é na verdade uma releitua de uma composição de 1962 do mentor do grupo Fluxus, George Maciunas. CONSIDERAÇÕES FINAIS 161 A música é uma linguagem em que seus elementos circulam livremente pelos fenômenos semióticos e estéticos. Também na linguagem visual, o poder de comunicação se faz presente passando por uma rede de interpretações subjetivas. O som, a forma, a cor são elementos que, combinados com a paixão inerente dos artistas, produzem as mais diversas e sublimes sensações. O caráter estético dessas linguagens acompanha o ser humano desde os primórdios, e nos dias de hoje o estudo da semiótica se faz vital nas relações significativas dos sentidos. Toda relação estética se produz de fora para dentro, na relação semiótica, dá-se o oposto, de dentro para fora. Esse fluxo contínuo de sensações, significações e interpretações, criam um universo de transposições de linguagens. O futurismo italiano foi um movimento que conseguiu atrair artistas de diversas áreas como poesia, pintura, arquitetura, escultura, gastronomia, moda, teatro, música e principalmente o cinema, que para os futuristas reunia todas as formas de arte e sintetizava a proposta interdisciplinar futurista. O cinema como proposta de uma nova linguagem híbrida criou grande fascínio nos futuristas, que por meio dessa nova estética buscavam uma visão de mundo audiovisual, onde rejetavase o moralismo do passado e criava-se uma nova percepção, dinâmica e atemporal. Como já foi dito acima, O Futurismo trazia a utilização da interdisciplinaridade de linguagens como metodologia artística, tonando-a estrutura central que irá sustentar não somente os artistas do futurismo italiano, mas principalmente as vanguardas modernistas que preservarão esta herança para os artistas contemporâneos. Luigi Russolo destacou a mudança de paradigma das artes no século XX em "Arte dos Ruídos", apresentando um novo olhar para desenvolvimento da humanidade, uma percepção do cotidiano moderno com seus novos adventos. Por isso em seu manifesto afirma que o ruído não somente se faz presente na vida, como também traduz uma estética, uma poética e também uma semiótica bem pertinente ao século XX (RUSSOLO,1916). A vida de então já não era a mesma, e a arte, portanto, não poderia estagnar. Por meio do ruído, que agora fazia parte da vida na grande cidade, Russolo desenvolveu o trânsito sígnico entre as várias linguagens artísticas, colocando a interdisciplinaridade artística como marca fundamental não somente do futurismo, como também das vanguardas que surgiriam a partir dessa conversa entre várias linguagens artísticas. De acordo com a Teoria da Informação o ruído pode desempenhar a função da própria informação, assim, o novo, o original, ou o próprio ruído, gera quebra de estruturas, propiciando mais valor de informação, como já comentado. Quanto mais originalidade, menos previsibilidade, consequentemente mais informação, assim a mudança no comportamento do receptor de uma mensagem depende do caráter de novo 162 desta mesma mensagem. Quanto maior a taxa de novidade de uma mensagem maior o seu valor informativo, sendo maior a mudança de comportamento provocada. Lucia Santaella (2004, p.8) define comunicação como sendo o “processo através do qual um indivíduo suscita uma resposta num outro indivíduo”, ou seja, dirige um estímulo que visa favorecer uma alteração no receptor por forma a suscitar um resposta. Podemos entender dessa maneira o ruído sendo o meio primordial para a práxis artística do século XX. A partir desse conceito, Marshall Mcluhan (1964) entende que as relações sinestésicas entre o meio e o sentido explorado pela extensão transformam esse meio em um conjunto de expressões onde uma linguagem midiática pode decodificar ao ser apropriada por outro usuário. O meio afeta a sociedade assumindo um papel de não ser apenas transmissor da mensagem, mas a própria a mensagem. Sendo assim, o ruído se torna práxis fundamental nas vanguardas artísticas do século XX, desde as colagens cubistas, passando pelos ready-mades de Marcel Duchamp, se desenvolvendo como linguagem nos filmes de Dziga Vertov e se consolidando como práxis vital nas obras performáticas do grupo Fluxos, principalmente nas obras de Nam June Paik, onde o desenvolvimentoda utilização do ruído segundo as lições de Duchamp tem sua clara continuidade, abusando da possibilidade da múltiplas relações que a portabilidade do audiovisual irá propiciar na produção, fruição e percepção da arte. Sua síntese pode ser percebida no tributo em que o Sonic Youth lança no final do século XX, chamado “Goodbye 20th Century”, do qual participam diversos artistas ligados ao grupo fluxus, entre eles Yoko Ono e Steve Reich, realizando releituras de obras de renomados artistas como George Maciunas, John Cage, Christian Wolff entre outros. Nestas composições o ruído se apresenta como uma entidade de linguagem própria do século XX, tendo como grande expoente uma releitura audiovisual de uma obra composta em 1962 por George Maciunas dedicada ao artista Nam June Paik, onde literalmente todas as teclas do piano são pregadas uma a uma, em uma performance audiovisual que ilustra claramente a presença do ruído como uma entidade de linguagem, presente não somente nas diversas mímesis e práxis artísticas do século XX, mas principalmente na vida como sentido próprio de existência. “Todas as manifestações de nossa vida vem acompanhadas pelo ruído. O ruído é, portanto, familiar ao nosso ouvido, e tem o poder de remeter a própria vida.” (RUSSOLO, 1916, p.11). Referências ARGAN, Giulio. Arte Moderna. (trad. Denise Bottmann e Federico Carotti). São Paulo: Companhia das Letras, 1992. ARNHEIM, Rudolf. Arte e Percepção Visual. (trad. Ivonne Terezinha de Faria). São Paulo: Cengage Learning, 2011. BELTING, Hans. O Fim da História da Arte. 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Filosofia da Práxis. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977. 165 Escrever o som: o espaço do sonoro nos manuais de roteiros audiovisuais Iana Cossoy Paro, mestranda USP27, [email protected]; [email protected] , Eduardo Simões Santos Mendes, doutor, USP Resumo Este artigo é um primeiro passo para responder à pergunta: como se escreve o som?. Trata-se de uma análise de técnicas de escrita audiovisual, sistematizadas em 14 manuais de roteiro, e suas consequências para a escrita do som. Até que ponto, nos manuais e guias para a elaboração de roteiros, o som é previsto como elemento narrativo interdependente da imagem? Começaremos estabelecendo como os manuais têm a imagem como ponto de partida e como isso contribui para que os aspectos sonoros da narrativa fiquem em segundo plano. Em seguida, daremos atenção a elementos específicos relacionados ao som identificados nos manuais: o som como elemento formal do modelo de escrita de roteiros audiovisuais e a ideia de som como fator técnico; o som e a música como metáforas para descrever a estrutura e o ritmo do relato; o diálogo como "par" complementar da imagem; o som fora de campo ou em off. Finalmente, avaliaremos como o conceito de trilha sonora é abordado nesses manuais. Palavras-chave: roteiro, som, manuais de roteiro Abstract This paper is a first step in answering the question: how can we write the sound?. It is an analysis of audiovisual writing techniques, systematized in 14 script manuals, and its consequences for the writing of the sound. To what extent, in manuals and guides for the development of scripts, sound is considered as an interdependent narrative element of the image? We begin by setting how manuals have the image as a starting point and how it contributes to make the sound aspects of the narrative become just a background. Then we will give attention to specific elements related to the sound identified in the manuals: the sound as a formal element of the writing model of audiovisual scripts and the idea that sound is a technical factor; sound and music as a metaphor to describe the structure and rhythm of the story; dialogue as the complementary "pair" to the image; the sound offscreen and the voice over. Finally, we will evaluate how the concept of soundtrack is addressed in these manuals. Keywords: script, sound, script manuals 27 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Meios e Processos Audiovisuais - ECA USP, Linha de Pesquisa Poéticas e Técnicas, sob orientação do Prof. Dr. Eduardo Simões dos Santos Mendes 166 Como é possível escrever uma trilha sonora narrativa e dramaticamente significativa a partir do desenvolvimento do roteiro audiovisual? Até que ponto a criação de uma trilha sonora expressiva passa por técnicas e recursos de escrita do roteiro? O esforço para "pensar em como soa a nossa história, no que escutam os personagens e em como o som influi em suas ações e emoções, como na vida” (LABRADA, 2009; p.52)28 tem início necessariamente no roteiro? Como o som pode ser um agente tão importante quanto a imagem, atuando junto a ela, chegando à "dicotomia que não reside na oposição, mas na identidade som-imagem" (BURCH, 1992; p.117 ). A intenção deste artigo é começar a investigar como é possível escrever roteiros em que o som é um elemento narrativo e dramático, e não apenas um complemento ou agente corroborador ou homogeneizador da imagem que ajuda a "estabelecer a 'relação intersubjetiva' entre o filme e o espectador” (DOANE, 1991;p.467). O primeiro passo para responder à pergunta “como se escreve o som?” é uma análise das técnicas de escrita audiovisual, sistematizadas em manuais de roteiro (aqui entendidos como os manuais em si, ou seja, os que se intitulam assim, e outros livros que se propõem a estabelecer regras, conselhos e diretrizes para a escritura de obra audiovisual). Os manuais e livros de roteiro não são a única fonte à qual os roteiristas recorrem para escrever, mas de certa forma, ainda que generalizada, tais publicações sistematizam as práticas de escrita audiovisual. Os manuais norte-americanos, principalmente os de Robert McKee e Syd Field, têm bastante influência no Brasil: o Manual do Roteiro, de Syd Field, por exemplo, teve 14 edições no país. Ambos autores ministraram palestras no país ao longo dos anos 1990 e 2000 (McKee veio em 2010 e em 2014). Mais recentemente, o franco-argentino Miguel Machalski tem participado de palestras e laboratórios de roteiro no Brasil, onde também atua como consultor de roteiros. As obras escolhidas como material de estudo são manuais de roteiro que tiveram ou ainda têm grande circulação: Manual do Roteiro (1979), de Syd Field; Story (1986), de Robert McKee; Como aprimorar um bom roteiro (1987), de Linda Seger; Save the cat! The last book on screenwriting you’ll ever need, de Blake Snider (2005); Script columns (1997), de Terry Rossio; La narración en el cine de ficción (1985), de David Bordwell; Como se escribe un guión, de Michel Chion (1986), Técnicas de guión para cine y televisión; de Eugene Vale (1982); Práctica del guión cinematográfico (1991), de Pascal Bonitzer e Jean-Claude Carrière; Guiones modelo y modelos de guión (1991), de Francis Vanoye e El guión cinematográfico: un viaje azaroso (2006), de Miguel Machalski. Além dos manuais estrangeiros internacionalmente conhecidos, analisamos, neste capítulo, três manuais brasileiros: Roteiro (1983), de Doc Comparato, Manual de Roteiro (2004), de Nilton Cannito e Leandro Saraiva e Roteiro de Cinema e Televisão: A arte e a técnica de imaginar, perceber e narrar uma estória (2007), de Flavio de Campos. Os manuais de roteiro, de forma geral, dão pouco ou nenhum espaço ao som como elemento integrante da narrativa do relato. Podemos afirmar que estabelecem uma ideia muito mais visual do que auditiva da narrativa audiovisual. O espaço dedicado ao sonoro, nos manuais, 28 “pensar en cómo suena nuestra historia, en lo que escuchan los personajes y en cómo el sonido influye en su acción y en sus emociones, como en la vida” 167 restringe-se, basicamente, ao diálogo e à música. Ao longo deste artigo analisaremos manuais com o objetivo de encontrar as ocasiões em que fazem referência, direta ou indireta, ao som. A imagem como ponto de partida Syd Field a rma repe das vezes que o roteiro “é uma história contada com imagens” (FIELD, 2001, p.31). Tal definição de roteiro é compartilhada, com algumas variações, por diversos autores. A imagem é o ponto de partida e o ponto de chegada; a partir dela se definem e se desenvolvem os demais elementos narrativos. Esta abordagem não é equivocada, pois grande parte do trabalho do roteirista é realmente a de descrever imagens com palavras e os manuais têm a função pedagógica de convidar os roteiristas a expressar-se por meio de imagens e não apenas do diálogo (heranças do teatro e da televisão). Apenas gostaríamos de chamar a atenção para o fato de que uma abordagem apenas imagética pode ser um tanto incompleta, uma vez que o som também é um recurso narrativo em potencial. A autora de manuais e consultora norte-americana Linda Seger, por exemplo, enfatiza a importância do fator imagético desde a cena inicial do relato, afirmando que “na maioria dos filmes bons, a abordagem começa com uma imagem. Vemos algo que nos proporciona uma ideia adequada do lugar, ambiente ou época em que se desenvolve a historia, e em algumas ocasiões até do tema”29. (SEGER,1991, p.33). Blake Snider, considerado um dos mais populares mentores na área de roteiro audiovisual, coincide com Seiger ao tomar a imagem como ponto de partida do roteiro. Segundo ele “a primeiríssima impressão do que um filme é - seu tom, seu humor, o tipo e o escopo do filme - pode ser toda encontrada na imagem de abertura”30 (SNIDER, 2005, p.72). O roteirista de Hollywood Terry Rossio, ao enumerar uma série de regras de escrita, resume a ordem de importância de elementos na narrativa: “Visual, Auditivo, Verbal - nessa ordem. A expressão de alguém que acaba de levar um tiro é melhor; o som da bala o atingindo é o segundo melhor; a pessoa dizendo: 'Eu levei um tiro’ é apenas o terceiro melhor”.31 (ROSSIO, 1997, p.8). Os manuais variam no que diz respeito à ordem de auditivo e verbal -muitas vezes ignorando a possibilidade do auditivo- mas a ideia de filmes feitos predominantemente para os olhos perpassa, ainda que de forma sutil, todos os manuais de roteiro. A ênfase à imagem pode, assim, ser atribuída ao caráter visual do relato cinematográfico, a natureza do filme como imagem em movimento, que remonta às origens do cinema e a sua fase silenciosa. O escritor e roteirista norte-americano Eugène Vale ajuda a entender essa primazia do imagético sobre o sonoro ao explicar a relação entre obra audiovisual e espectador. Segundo Vale, "deve-se compreender que o realismo fotográfico da câmera afeta o relato e portanto a escolha de seus materiais. A lente deduz o reino da fantasia e da imaginação do espectador de maneira considerável: a câmera visualiza os fatos por ele"32. 29 en la mayoría de las buenas películas, el planteamiento comienza con una imagen. Vemos algo que nos proporciona una idea adecuada del lugar, ambiente o época en que se desarrolla la historia, y en ocasiones hasta del tema 30 the very first impression of what a movie is - its tone, its mood, the type and scope of the film - are all found in the opening image 31 Visual, Aural, Verbal -- in that order. The expression of someone who has just been shot is best; the sound of the bullet slamming into him is second best; the person saying, 'I've been shot' is only third best 32 se debe comprender que el realismo fotográfico de la cámara afecta al relato y por lo tanto a la elección de sus materiales. La lente reduce el reino de la fantasía y la imaginación del espectador de manera considerable: la cámara visualiza los hechos por él 168 (VALE, 1982, p. 8). Ou seja, a atenção do roteirista deve estar em mediar aquilo que o espectador verá na obra audiovisual. O que o espectador ouvirá fica, via de regra, em segundo plano. O roteirista e dramaturgo brasileiro Doc Comparato jus ca por meio de uma comparação com a poesia o caráter fotográ co do relato audiovisual. Comparato faz referência às considerações do poeta Stephen Spender sobre as qualidades básicas na construção de um poema, destacando o fato de que o pensar poé co se dá em imagens. (COMPARATO, 1983, p.20) Ao substituir a noção de “ponto de vista” por “ponto de foco” em seu manual, o roteirista brasileiro Flavio de Campos dá espaço a outros elementos além da imagem na construção do relato audiovisual, entre eles o som (CAMPOS, 2007, p.33). Mesmo valendo-se de uma metáfora visual, fotográfica (foco), Campos amplia as possibilidades do que pode ser visto, sentido ou ouvido pelo narrador que conduz o relato. O autor, no entanto, limita-se a citar o som como possibilidade narrativa, sem desenvolver neste momento como o sonoro pode narrar ou ajudar a contar uma história ou expressar uma informação ou sensação audiovisual. Os roteiristas Newton Cannito e Leandro Saraiva, ao sugerirem que se deixe “de lado a ideia de que roteiro é basicamente diálogo”, reforçam a ideia do roteiro audiovisual como instrumento em que se deve valorizar a imagem (CANNITO e SARAIVA, 2004, p.18). Ao definirem o roteiro como instrumento de comunicação, os autores complementam que ele “deve ser escrito de modo a facilitar ao seu leitor a vizualização da história”. (CANNITO e SARAIVA, 2004, p.18, grifos meus). Os mesmos autores descrevem, em seu manual, a necessidade da existência, na escrita de roteiros, de uma “dramaturgia plástica”, na qual se apresentam e desenvolvem os elementos visuais da cena (CANNITO e SARAIVA, 2004, p. 204). Tal definição nos faz pensar se não seria o caso de buscar também uma dramaturgia sonora, na qual estariam desenvolvidos os elementos sonoros na cena. Apesar de enfatizar a imagem, McKee dá um pouco mais de espaço ao som ao definir os componentes da obra audiovisual, como quando, por exemplo, define a ideia de "sistema de imagens". Segundo o autor, tal sistema é uma estratégia de motivos ornamentais, uma categoria de imagem embebida no filme que se repete, em imagem e som, do começo ao fim com grande variação, mas com igual sutileza, como uma combinação subliminar que aumenta a profundidade e a complexidade da emoção estética. (McKEE, 2002, p 374) Jean-Claude Carrière e Pascal Bonitzer, por sua vez, afirmam que “é a imagem que conta a história”33 (BONITZER e CARRIÈRE, 1991, p. 108). Os autores, no entanto, aconselham o roteirista a imaginar imagens compactas, belas e ricas, imagens emblemáticas, que cada uma pareça conter o filme inteiro. Buscar para cada cena a imagem central e construir a cena ao redor dela. Deixar o diálogo intervir apenas em segundo 33 la imagen es la que cuenta la historia 169 lugar, ao menos que o centro da cena seja uma palavra ou um efeito 34 sonoro. (BONITZER e CARRIÈRE, 1991, pp.46/47) Apesar de também terem a imagem como ponto de partida, tais autores são uma exceção nos manuais de roteiro ao aconselhar “não esquecer nunca o som, não considerá-lo nunca como acessório. Se constrói a trilha sonora de um filme desde o roteiro”. 35(BONITZER e CARRIÈRE, 1991, p108). Carrière e Bonitzer afirmam que é possivel -e necessário- construir e escrever a narrativa audiovisual pensando conjuntamente no som e na imagem. E, diferente de outros manuais, fazem referência não apenas à música e ao diálogo, mas à trilha sonora como um todo, ou seja, recursos sonoros que incluem vozes, ruídos e músicas (diegéticos ou extradiegéticos) que afetam, segundo Bordwell e Thompson (BELTON e WEIS, 1985; p. 181199), volume, passo, ritmo, tempo (de projeção e do relato) e espaço fílmicos. Forma do roteiro e o som como efeito técnico Há, nos manuais de roteiro, consenso com relação ao fato de que um roteiro não é uma obra literária. Machalski afirma que é fundamental distinguir o roteirista do escritor de obras literárias, pois “se narra com a caneta de forma muito diferente que com a câmera, e cai sobre o roteirista a tarefa especializada de criar a ponte entre a caneta e a câmera, entre o papel e a tela.”36 (MACHALSKI, 2006, p.19 ). Em sua definição do que é um roteiro, o teórico francês Francis Vanoye também o situa entre a literatura e o cinema, relacionando o que é escrito no roteiro às etapas posteriores de produção de um filme, inclusive a captação, edição e mixagem de som. Para ele. “(...) o roteiro constitui um conjunto de propostas para a elaboração de um relato cinematográfico, propostas que interagem com as operações de filmagem, montagem, mixagem, etc.”37 (VANOYE, 1996, p. 20) Vanoye relaciona, ainda, a atual forma do roteiro audiovisual à chegada do cinema sonoro, que “modifica a apresentação do script, no qual temos que integrar os diálogos, a menção aos ruídos e à música. Fica então comum o script cena a cena (e já não plano a plano)”38 (VANOYE, 1996, p. 16). Assim como Vanoye, Bordwell chama a atenção para a técnica sonora como elemento que interferiu nos padrões atuais de escrita do roteiro cinematográ co: “o som criou novas técnicas, mas estas eram u lizadas principalmente de maneira que repe am ou ampliavam as qualidades básicas e procedimientos da narra va clássica.”39 (BORDWELL, 1985, p.186). Os autores de manuais enfatizam a necessidade de objetividade na forma do roteiro audiovisual como um todo. Observa-se, no entanto, que também ao tratar da forma como um roteiro deve ser escrito as descrições de imagens, ações, personagens e diálogos são o foco dos conselhos e sugestões de como escrever. 34 imaginar imágenes compactas, hermosas y ricas, imágenes emblemáticas, que cada una parezca contener la película entera. Buscar para cada escena la imagen central y construir la escena alrededor de ella. No hacer intervenir el diálogo sino en segundo lugar, al menos que el centro mismo de la escena sea una palabra o un efecto sonoro. 35 no olvidar nunca el sonido, no considerarlo nunca como accesorio”. Se construye la banda sonora de una película desde el guión. 36 se narra con la pluma de manera muy diferente que con la cámara, y recae sobre el guionista la tarea especializada de crear el puente entre la pluma y la cámara, entre el papel y la pantalla 37 el guión constituye un conjunto de propuestas para la elaboración de un relato cinematográfico, propuestas que entran en interacción con las operaciones de rodaje, montaje, mezcla, etc 38 modifica la presentación del script, en el que hay que integrar los diálogos, la mención de los ruidos y de la música. Se convierte entonces en corriente el script escena a escena (y ya no plano a plano) 39 el sonido creó nuevas técnicas, pero éstas se u lizaban principalmente de manera que repe an o ampliaban las cualidades básicas y procedimientos de la narra va clásica. 170 Ao definir a unidade estrutural básica do relato audiovisual (a cena), Field ainda prescinde do áudio em detrimento do visual, ao a rmar que "a cena é onde tudo acontece — onde você conta sua história com imagens em movimento". (FIELD, 2001, p. 118). Em suas considerações sobre a forma do roteiro acabado, Cannito e Saraiva ressaltam que “não há indicações sobre ‘clímax’, ‘respiração’ etc., nem indicações sobre as intenções de uma sequência. Tudo o que há são diálogos e rubricas indicativas de ações”. (CANNITO e SARAIVA, 2004, p. 166). O teórico e compositor francês Michel Chion leva em conta a informação sonora ao escrever sobre como deve ser a forma de um roteiro literário para uma obra audiovisual. Chion expressa a possibilidade de um roteiro ser escrito em duas colunas, uma dedicada às informações visuais e outra às informações sonoras (CHION, 1986, p 182). Apesar de afirmar que o roteirista pode prescindir do formato em duas colunas, ao considerar a forma do roteiro como elemento que influencia na disposição das informações sonoras e visuais no papel Chion possibilita que nos perguntemos se a forma interfere no conteúdo no momento de descrever o sonoro no roteiro audiovisual. Seguindo com as regras técnicas sobre a forma como se deve escrever um roteiro, Field aconselha o roteirista a assinalar, com moderação, os pontos do relato em que pode haver efeitos sonoros, usando por exemplo maiúsculas. (FIELD, 2001, p.161) Rossio segue a mesma linha de Field ao sugerir que se destaquem efeitos sonoros ao longo das frases escritas no roteiro: “Efeitos sonoros e efeitos especiais podem ser escritos em maiúsculas, que têm o efeito adicional de fazer o roteiro parecer mais ativo (ROSSIO, 1997, p.70) Field afirma ainda que “o cinema lida com dois sistemas — o filme, que nós vemos, e o som, que ouvimos. A parte de lme é completada antes de ir para a nalização de som, e depois as duas partes são colocadas juntas em sincronismo. É um processo longo e complicado.” (FIELD, 2001, p. 61) Em seu manual, Comparato recomenda a indicação de marcações ou temas musicais no roteiro, assim como a descrição de efeitos ou ruídos. Acrescenta, contudo, que “uma vez dada a indicação o técnico de som saberá o que fazer” (COMPARATO, 1983, p.77 ). McKee também sugere que as indicações a músicas e efeitos sejam limitados ao longo do texto escrito no formato de roteiro. (McKEE, 2002, p. 36) . Observa-se, assim, que o espaço concedido ao som no texto do roteiro literário, ou seja, sua participação na forma como o roteiro é escrito, é levado em conta em alguns dos manuais analisados. Em parte dos materiais, o som aparece como uma faceta técnica a ser tratada em uma etapa posterior, na pós-produção, portanto não deve ser escrita e não tem nada a ver com o trabalho do roteirista. A música como metáfora Alguns dos autores de manuais recorrem ao universo sonoro, mais especificamente o da música, para estabelecer metáforas entre conceitos como composição, partitura, estrutura, beat e elementos da escrita do roteiro. Tais comparações, apesar de não chegarem a abordar o som como elemento narrativo em si, podem indicar que existe uma natureza para além da visual na composição da estrutura e do conteúdo do roteiro cinematográfico, como observaremos em seguida. 171 Cannito e Saraiva afirmam que, na leitura do roteiro, “é preciso ‘ouvir’ o arranjo que vai formando a escaleta, sentindo quando uma cena está ‘uma oitava’ acima, ou quando a passagem de um tom a outro está abrupta demais.” (CANNITO e SARAIVA, 2004, p.126) . Machalski, por sua vez, afirma que o roteiro é “un pouco como uma melodia à que temos que acrescentar a harmonia, a instrumentação, o ritmo, a atmosfera (...) A fluidez de um roteiro se determina também com base em algo como um ‘ouvido’ roteirístico: o roteiro pode estar bem ‘afinado’ ou ‘desafinado’.” 40 (MACHALSKI, 2006, p.24-25). É McKee quem dedica mais páginas de seu manual na aproximação entre a escrita do roteiro e a música, partindo do princípio de que se deixarmos de lado o conteúdo de filmes de grandes roteiristas, e estudarmos apenas a padronização pura dos acontecimentos, veremos que, como uma melodia sem a letra, ou uma silhueta sem a matriz, seus formatos de estória são fortemente carregados de significado. A seleção e arranjo do contador de estória para os acontecimentos é sua metáfora mestra para a interconectividade de todos os elementos da realidade. (McKEE, 2002, p. 22) O conceito de conceber uma história, para McKee, é como o conceito da composição da música (McKEE, 2002, p. 31). Assim sendo, tal qual o estudante de música, o roteirista precisa passar por uma etapa anterior à escrita, na qual estuda as ferramentas das quais dispõe para compor o relato (McKEE, 2002, p. 41). Após esta etapa, a escrita em si é considerada como análoga à composição, que “significa ordenar e ligar as cenas. Como um compositor escolhe notas e acordes, nós moldamos as progressões selecionando o que incluir, excluir e colocar antes e depois do que.” (McKEE, 2002, p.275). Apesar de priorizar ações e imagens (além do diálogo) ao estabelecer seu método para a escrita de roteiros, McKee busca distanciar o relato audiovisual da mídia espacial (pintura, escultura, arquitetura ou fotografia), e aproximá-lo das formas temporais (música, dança, poesia e canção). Segue suas comparações afirmando que o conflito está para a história assim como o som está para a música, uma vez que tem a função de manter a atenção do espectador ao longo do que chama de arte temporal. O autor chega a explicar sua comparação demonstrando como o som é importante para a expressão musical, mas não chega a transferir a importância do som para o roteiro. A metáfora musical, portanto, funciona como um apoio para explicar estruturalmente como funciona o roteiro, não para caracterizar o som como elemento narrativo e expressivo do cinema. McKee se vale de outros conceitos estruturais da música a sua terminologia para explicar os componentes do roteiro, como por exemplo a ideia de beat (batida), segundo ele “o nível de atividade dentro de uma cena, através de diálogo, ação ou uma combinação”. (McKEE, 2002, p. 279). Seger, por sua vez, considera o beat um incidente ou acontecimento dramático, e também utiliza a metáfora da composição musical para explicá-lo (SEGER, 1991, p.44). Em seu manual, Vanoye, como outros autores, usa exemplos de filmes já prontos para definir regras ou sugestões de escrita de roteiros. Em sua aproximação entre estrutura musical e estrutura do relato audiovisual ele cita a experiência do cineasta francês Eric Rohmer: 40 un poco como una melodía a la que hay que añadirle la armonía, la instrumentación, el ritmo, la atmósfer a(...) La fluidez de un libreto se determina también en base a algo aí como un ‘oído’ guionístico: el libreto puede estar bien ‘afinado’ o ‘desafinado’. 172 “Concebi meus Contos Morais na forma de seis variações sinfônicas. Como ele (o músico), vario o motivo inicial, o faço mais lento ou o acelero, o longo ou o diminuo, lhe dou corpo o o depuro”41 (VANOYE, 1996, p.115) O diálogo como som da imagem Há uma recorrência significativa de oposição entre "cenas de imagem" e "cenas de diálogo" nos manuais de roteiro. Assim, o par da imagem nos manuais, por vezes, não é o som, mas o diálogo, e ambos formam os pilares fundamentais da construção de um roteiro: Geralmente, há dois pos de cenas: um, em que algo acontece visualmente, como uma cena de ação — a perseguição que abre Star Wars (Guerra nas Estrelas), ou as cenas de luta em Rocky (Rocky, um Lutador). O outro é a cena de diálogo entre uma (monólogo) ou mais pessoas. A maioria das cenas combina os dois tipos. (FIELD, 2001, p. 118) Vanoye refere-se ao que chama de “princípio da alternância” para caracterizar os tipos de função de uma cena, e um dos pares alternos é justamente a dupla visual x dialogado (VANOYE, 1996, p.118). Seger também trata o diálogo como oposto à imagem para explicar que costuma ser mais fácil para o espectador começar a absorver as informações do filme a partir dos olhos e não dos ouvidos. (SEGER, 1991, pp.33-34). A autora incentiva ainda a expressão do conflito por meio de imagens e ação junto ao diálogo: “Como se expressa o conflito? Utilizo as imagens e a ação, ao mesmo tempo em que o diálogo, para mostrá-lo?”42 (SEGER, 1991, p.198) Saraiva e Cannito também trabalham com a ideia de que as cenas são compostas por imagens e/ou diálogo, lembrando que “a capacidade do cinema de narrar por imagens, muitas vezes supera a necessidade do diálogo - e isso deve ser indicado já no roteiro”. (CANNITO e SARAIVA, 2004, p.64). Comparato tende ao mesmo tipo de hierarquização entre visual e verbal, considerando também imagem e diálogo como a dupla principal da composição de um roteiro para obra audiovisual (COMPARATO, 1983, p.96). O autor chama a atenção para o peso da imagem e o peso da palavra no cinema, concluindo que “a palavra perde consideravelmente sua importância, substituída pelo maior peso da imagem.” (COMPARATO, 1983, p.14) Chion, por sua vez, observa que ainda em um tipo de cinema mais “visual” o diálogo costuma ter uma função importante, e até mesmo antes do advento do lme sonoro o diálogo já ocupava um papel de destaque na narra va, composta pela dupla imagem e diálogo. O autor a rma que “estes diálogos não se ouviam, mas seu sen do nos era comunicado mediante a mímica dos atores e ‘inter tulos’ (letreiros)” 43 (CHION, 1986, p. 73). Assim, os manuais de roteiro apontam para a predominância da voz como elemento sonoro de destaque na construção de obras audiovisuais. Bordwell chama a atenção para esse aspecto 41 He concebido mis Cuentos morales en la forma de seis variaciones sinfónicas. Como él (el músico), vario el motivo inicial, lo hago más lento o lo acelero, lo alargo o lo acorto, le doy cuerpo o lo depuro 42 ¿Cómo está expresado el conflicto? ¿Utilizo las imágenes y la acción, a la vez que el diálogo, para mostrarlo ? 43 estos diálogos no se oían, pero su sen do nos era comunicado mediante la mímica de los actores e inter tulos (letreros). 173 ao analisar o papel do diálogo nos filmes, afirmando que “na maioria dos filmes, a fala parece ocupar o primeiro plano, e o ruído, o fundo.”44 (BORDWELL, 1985, p.119). O som invisível/off Outro dos aspectos do destaque da voz como elemento sonoro principal nos manuais é a atenção dada à voz off ou over como principal elemento sonoro fora de plano. Vanoye destaca a composição de imagens com vozes em off, mais uma vez considerando o diálogo como par complementar da imagem: Os roteiros com narrador (es) e voz em off desenvolveram um modelo contrapontístico de narração especificamente cinematográfico, uma vez que têm como base a utilização conjunta da imagem e do som, modelo rico em implicações reflexivas (...), emocionais ou musicais (...), vozes em off 45 flutuantes e imateriais, por não estar ‘associadas aos corpos’ (...) (VANOYE, 1996, p. 81) McKee também recomenda o uso da voz off como complemento, afirmando que “se a narração pode ser removida e a estória continua em pé, então você provavelmente usou a narração para seu único bom propósito - como contraponto.” (McKEE, 2001, p. 323). Machalski, por sua vez, vê no recurso da voz fora de campo uma forma de amenizar diálogos explícitos ou informativos, tornando-os mais sutis. (MACHALSKI, 2006, p.36). Bordwell amplia a atenção para outros sons além do diálogo provenientes de fora de campo, diegéticos ou não diegéticos, ao tecer observações sobre o espaço em off da narração (BORDWELL, 1985, p.120) . Comparato também leva em consideração o universo criado fora de campo, e chama a voz do narrador em off de “presença sonora”, citando como exemplo os filmes de Woody Allen ou os desenhos animados de Walt Disney (COMPARATO, 1983, p.66) . A denominação utilizada pelo autor nos faz pensar que muitas vezes os manuais só consideram “presença sonora” aquela que está fora de campo, em off, deixando um pouco de lado as presenças sonoras dentro de campo, ou mesmo itinerantes. Trilha sonora e som Apesar de não serem o foco dos manuais de roteiro, o som e a trilha sonora para além do diálogo e da voz recebem diferentes tipos de considerações ao longo dos guias analisados. Campos é o autor que dedica mais espaço em seu manual para tratar do som, definido pelo autor como “toda emissão sonora” (CAMPOS, 2007, p.147 ). Segundo Campos, os sons épicos passam informações sobre os personagens e suas ações. Já os líricos são expressões de sentimentos dos personagens, enquanto os dramáticos têm como objetivo motivar a ação de outros personagens. Tais sons, segundo o autor, pertencem ao mundo do roteiro se cumprem uma função no relato (CAMPOS, 2007, p.149). Em alguns casos, apenas a música (e não todos os elementos sonoros como explicamos anteriormente) é considerada como trilha sonora. Saraiva e Cannito falam da música como recurso de comentário planejado: “uma trilha sonora pode servir para isso - como a trilha de antigas bandas de rock de um só sucesso, como em 44 en la mayoría de las películas, el habla parece ocupar el primer plano, y el ruido, el fondo. 45 Los guiones con narrador (es) y voz en off han desarrollado un modelo contrapuntístico de narración específicamente cinematográfico, puesto que se basa en la utilización conjunta de la imagen y del sonido, modelo rico en implicaciones reflexivas (...), emocionales o musicales (...), voces en off flotantes e inmateriales, por no estar ‘asociadas a los cuerpos’ (...) 174 Houve uma vez dois verões (...) (SARAIVA e CANNITO, p. 7.). Chion, por sua vez, cita um exemplo do engenheiro de som Lewis Herman para falar sobre sons que “coroam” ou enfatizam determinadas ações, como é o caso dos trovões em melodramas, por exemplo (CHION, 1990, p.160). O som é um complemento que enfatiza ou potencializa o significado ou a intenção de determinada imagem. Qual o som dos manuais? A análise dos manuais de roteiro nos permite afirmar que o som não é um elemento narrativo muito explorado por aqueles que se dedicam a dar conselhos e sugestões sobre como escrever um roteiro. Nossas observações sobre os diferentes aspectos do som como elemento narrativo nos levam a perguntar até que ponto o som pode ou deve ser escrito. Segundo Bordwell, a maioria das teorias fílmicas recentes se baseiam em pressupostos sobre a narração que apresentam deficiências cruciais: muitas teorias se baseiam em débeis analogias com as representações pictóricas ou verbais, enfatizam certas técnicas fílmicas, concentram ou isolam os mecanismos narrativos às custas da totalidade do filme, e imputam uma passividade fundamental ao 46 espectador. (BORDWELL 1985, pp. XIV-XV) Esta afirmação nos faz indagar se os manuais de roteiro seriam fruto dessa base teórica. A suposta passividade do espectador e a ênfase no pictórico e no verbal estariam relacionados à forma de escrever ou não escrever o som para os filmes? Bibliografia BERGALA, Alain. Voyage en Italie de Roberto Rossellini. Virginia: Yellow Now, 1990. BORDWELL, David , THOMPSON, Kristin. Fundamental Aesthetics of Sound in the Cinema in BELTON, John e WEIS, Elisabeth (Ed). Film Sound: Theory and Practice. Nova Iorque: Columbia University Press, 1985 BORDWELL, David. La narración en el cine de ficción. Barcelona: Paidós, 1996. BORDWELL, David, THOMPSON, Kristin. Arte Cinematográfico. Mexico- DF: McGraw Hill, 2003. BURCH, Noel. Práxis do cinema. São Paulo: Perspectiva, 1992 CAMPOS, Flavio de. Roteiro de Cinema e Televisão: A arte e a técnica de imaginar, perceber e narrar uma estória. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. CANNITO, Nilton, SARAIVA, Leandro. Manual de roteiro. São Paulo: Conrad, 2004. CARRIERE, J-C, BONITZER, P. Práctica del Guión Cinematográfico. Buenos Aires: Paidós, 1998. CHION, Michel. Como se escribe un guión. Madri: Cátedra, 2002. 46 la mayoría de las teorías fílmicas recientes se basan en asunciones sobre la narración que presentan deficiencias cruciales: demasiadas teorías se basan en débiles analogías con las representaciones pictóricas o verbales, enfatizan ciertas técnicas fílmicas, concentran o aíslan los mecanismos narrativos a expensas de la totalidad de la película, e inputan una pasividad fundamental al espectador. 175 COMPARATO, Doc. Roteiro. Rio de Janeiro: Nórdica, 1983. DOANE, Mary Ann. A voz no cinema: a articulação de corpo e espaço in XAVIER, Ismail. A experiência do cinema. 2ª ed. Rio de Janeiro: Graal, 1991 FIELD, Syd. Manual do Roteiro. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. LABRADA, Jerônimo. El Sentido del Sonido. Barcelona: Alba Editorial, 2008 McKEE, Robert. Story. Curitiba: Arte e Letra, 2005. NAGIB, Lucia. Going global: the Brazilian scripted film. In: Harvey, S. (ed.) 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Catálogo, 2006. 176 Eduardo e Mônica - Adaptação da música da banda Legião Urbana para o audiovisual da empresa Vivo nas redes sociais Natália Azevedo Coquemala (UNESP/Bauru) – [email protected]; João Cristiano Pavan Araujo (UNESP/Bauru) – [email protected] Resumo O presente trabalho apresenta uma análise da adaptação audiovisual da música Eduardo e Mônica, da banda Legião Urbana. A canção foi lançada em 1986, completava 25 anos em 2011 e ainda não possuía um videoclipe próprio. Tal produção foi feita para a internet e contemplou a operadora de telefonia Vivo. A adaptação em questão pode ser considerada híbrida, por se tratar de uma peça publicitária que aparece em outros meios como sendo o clipe oficial da música. Tal produto publicitário ilustra o momento atual da comunicação midiática, que tem assistido a um processo de hibridização de gêneros e formatos. O objetivo é contribuir com os profissionais de publicidade e propaganda e produtores de conteúdos audiovisuais. Palavras-chave: Eduardo e Mônica; Legião Urbana; videoclipe; adaptação; música. Abstract This paper presents an analysis of audiovisual adaptation of Eduardo e Mônica music, Legião Urbana band. The song was released in 1986, completing 25 years in 2011 and without its own videoclip. Such production was made for the Internet and elaborated by Vivo. The adaptation in question can be considered hybrid, because it is an advertising piece that appears in other media as the official music video. Such advertising product illustrates the current situation of media communication, which has witnessed a process of hybridisation of genres and formats. The goal is to contribute to the advertising professionals and producers of audiovisual content. Keywords: Eduardo e Mônica; Legião Urbana; videoclip; adaptation; music. Introdução As campanhas publicitárias contam com diversas estratégias para transmitirem suas mensagens e chegarem até o público desejado. As histórias estão presentes em anúncios impressos, jingles e spots de rádio, comerciais televisivos e diversas outras peças e auxiliam na propagação das marcas. Atualmente, novos produtos e formatos estão sendo criados, inovando, assim, o mercado publicitário. Criam-se novos formatos publicitários; multiplicam-se os apliques em outdoors; proliferam as revistas segmentadas que passam a trazer encartes e anúncios especiais; cresce a concorrência entre as redes de televisão; surge a TV a cabo, um novo espaço para a veiculação de comerciais e 177 patrocínios, e a internet, (CARRASCOZA, 1999, p. 124). rede internacional de computadores As campanhas, para divulgar um produto, uma marca ou um serviço, muitas vezes empregam, em seus anúncios, recursos narrativos, como afirma Carrascoza: Os anúncios dessa variante vão buscar influenciar o público contando histórias. É uma estratégia poderosa de persuasão, sobretudo quando o neurologista Oliver Saks nos lembra que “cada um de nós tem uma história de vida, uma narrativa íntima – cuja continuidade, cujo sentido é nossa vida. Pode-se dizer que cada pessoa constrói e vive uma ‘narrativa’ e que a narrativa é a sua identidade (CARRASCOZA, 2004, p. 87). O emprego de músicas nas peças audiovisuais também constitui uma das estratégias utilizadas na criação publicitária. Segundo Bullerjhan (2006), a música ganha novos significados quando utilizada para influenciar os estados de espírito do consumidor e gerar impressões afetivas para o produto. Este trabalho apresenta uma análise da adaptação da música Eduardo e Mônica, da banda Legião Urbana, para o audiovisual da empresa Vivo nas redes sociais. A canção, lançada em 1986, completava 25 anos em 2011 e não possuía um videoclipe. Tal produção foi feita para a internet, pela agência África e contemplou a operadora de telefonia Vivo. De acordo com o site47 da empresa, lançada em 2003, a Vivo é a marca líder no mercado de operações móveis no Brasil. Seu papel é estimular diálogos, aproximar e ampliar possibilidades para as pessoas estarem sempre conectadas. Ao criar o produto audiovisual, a marca anunciou o seu novo posicionamento no mercado, “Amor, conexão e transformação”. Tal criação surgiu em um ano de muitas comemorações. Renato Russo, compositor e vocalista da banda Legião Urbana, completaria 50 anos em 2011. Também se completavam 15 anos de sua morte, além da comemoração dos 25 anos da música. O filme publicitário foi produzido pela O2 e estreou nas páginas da Vivo no YouTube e nas redes sociais, como Facebook, Twitter e Orkut, na semana do Dia dos Namorados, em 2011. O vídeo também foi veiculado nas salas de cinema das principais capitais brasileiras. A versão 2.0 da música contextualiza o cenário atual e como as pessoas utilizam a conexão para se aproximar. No vídeo, o amor do casal Eduardo e Mônica é pontuado por celulares, tablets, notbooks e outros serviços de telefonia e internet oferecidos pela empresa. Em menos de três meses da criação do anúncio, o mesmo contava com nove milhões de exibições no YouTube (o vídeo não está mais no canal). Um vídeo com o making off e os bastidores das gravações também foi lançado pela operadora. Assim sendo, pretende-se, a partir da apreciação dos enquadramentos, posicionamentos, planos e ângulos de câmera, averiguar os efeitos instaurados na adaptação em questão. A partir de expostos sobre a canção, o audiovisual e a adaptação, o objetivo é contribuir com os profissionais de publicidade e propaganda e produtores de conteúdos audiovisuais. A canção 47 Disponível em: http://www.vivo.com.br/portalweb/appmanager/env/web#. Acesso em: Outubro/2015 178 A música Eduardo e Mônica, que conta com aproximadamente 70 versos, foi composta em 1978, por Renato Russo e lançada em 1986, no álbum “Dois” da banda Legião Urbana, que vendeu 1,4 milhões de cópias do disco. Sua letra possui riqueza de detalhes e pode ser considerada um poema-canção. Com frases bem humoradas, a música mostra a evolução de uma relação e é narrada, de forma linear, uma história de amor entre duas pessoas com características diferentes entre si. Quem um dia irá dizer Que existe razão Nas coisas feitas pelo coração? E quem irá dizer Que não existe razão? Eduardo abriu os olhos, mas não quis se levantar Ficou deitado e viu que horas eram Enquanto Mônica tomava um conhaque No outro canto da cidade, como eles disseram Eduardo e Mônica um dia se encontraram sem querer E conversaram muito mesmo pra tentar se conhecer Um carinha do cursinho do Eduardo que disse "Tem uma festa legal, e a gente quer se divertir" Festa estranha, com gente esquisita "Eu não tô legal, não aguento mais birita" E a Mônica riu, e quis saber um pouco mais Sobre o boyzinho que tentava impressionar E o Eduardo, meio tonto, só pensava em ir pra casa "É quase duas, eu vou me ferrar" 179 Eduardo e Mônica trocaram telefone Depois telefonaram e decidiram se encontrar O Eduardo sugeriu uma lanchonete Mas a Mônica queria ver o filme do Godard Se encontraram, então, no parque da cidade A Mônica de moto e o Eduardo de camelo O Eduardo achou estranho e melhor não comentar Mas a menina tinha tinta no cabelo Eduardo e Mônica eram nada parecidos Ela era de Leão e ele tinha dezesseis Ela fazia Medicina e falava alemão E ele ainda nas aulinhas de inglês Ela gostava do Bandeira e do Bauhaus Van Gogh e dos Mutantes, de Caetano e de Rimbaud E o Eduardo gostava de novela E jogava futebol-de-botão com seu avô Ela falava coisas sobre o Planalto Central Também magia e meditação E o Eduardo ainda tava no esquema Escola, cinema, clube, televisão E mesmo com tudo diferente, veio mesmo, de repente Uma vontade de se ver 180 E os dois se encontravam todo dia E a vontade crescia, como tinha de ser Eduardo e Mônica fizeram natação, fotografia Teatro, artesanato, e foram viajar A Mônica explicava pro Eduardo Coisas sobre o céu, a terra, a água e o ar Ele aprendeu a beber, deixou o cabelo crescer E decidiu trabalhar (não!) E ela se formou no mesmo mês Que ele passou no vestibular E os dois comemoraram juntos E também brigaram juntos muitas vezes depois E todo mundo diz que ele completa ela E vice-versa, que nem feijão com arroz Construíram uma casa há uns dois anos atrás Mais ou menos quando os gêmeos vieram Batalharam grana, seguraram legal A barra mais pesada que tiveram Eduardo e Mônica voltaram pra Brasília E a nossa amizade dá saudade no verão Só que nessas férias, não vão viajar Porque o filhinho do Eduardo tá de recuperação 181 E quem um dia irá dizer Que existe razão Nas coisas feitas pelo coração? E quem irá dizer Que não existe razão? (RENATO RUSSO – LEGIÃO URBANA) A intenção rítmica da canção direciona a atenção do ouvinte às “batidas” contínuas, aferidas em cordas de violão, que conduzem ao conteúdo literário ao final de cada verso. Em seu desenvolvimento, detalhes vão sendo revelados, os quais dão um ar de conto à canção, onde cada verso mostra uma característica ou acontecimento, seja da vida de Eduardo ou de Mônica. A canção pode ser ainda caracterizada como música folk. Tal expressão é provinda do termo “folk lore”, música gerada pelo saber popular. Com uma construção harmônica simples, fórmula oriunda do estilo folk, a melodia se repete e constrói a harmonia, que se articula com a origem literária e o caráter poético para se completarem. Por outro lado, a harmonia, distanciada de virtuosismo técnico musical, a qual se apropria da miscigenação de poucos acordes, contextualiza sonoridade marcante ao conteúdo literário narrativo. Este, por sua vez, também é simples e de fácil absorção interpretativa pelo interlocutor. Assim, a canção não possibilita grande diversidade interpretativa em seus versos. O desenrolar da história é, de certa forma, direto, sem grandes metáforas e simbolismos. O audiovisual “Quem um dia irá dizer que existe razão nas coisas feitas pelo coração? E quem irá dizer que não existe razão?”. Este trecho da canção foi inspirado no filósofo francês Blaise Pascal (16231662), autor da conhecida frase "O coração tem razões que a própria razão desconhece". Tal trecho abre e fecha o contexto, tanto na música, como no filme publicitário e, feita uma analogia, se apresenta como um abrir e fechar das cortinas no teatro, como o “era uma vez” e o “viveram felizes para sempre” nas histórias, delimitando o tempo, criando suspense e seduzindo a plateia ou o leitor. O vídeo inicia-se com um dia que começa (ou uma noite que termina) e as primeiras cenas mostram um dia típico dos personagens Eduardo e Mônica, ressaltando seus contrastes em um intercalar de suas pessoalidades. O ambiente do bar versus o ambiente do lar são retratados, mostrando tais afrontes. Cenas da vida noturna de Mônica, por meio de figuras como luzes neon e taças de bebida misturam-se com o jogo de botões e o material escolar de Eduardo, juntamente com diversas fotos da sua infância em um mural no quarto do garoto. As cenas iniciais são apresentadas em close extremamente fechados, fazendo com que os objetos 182 nem cheguem a aparecer completamente na tela. Com esse recurso, cria-se um clima de intensa proximidade, os personagens vão aparecendo aos poucos, construindo-se, assim, a narrativa. Mônica, nos closes iniciais, aparece apenas por meio de uma ponta de cabelo, lábios e nariz e Eduardo pelos dedos dos pés. No momento seguinte, ela aparece gargalhando no balcão de um bar e ele, na cama, ainda dormindo. A mãe de Eduardo, no quarto do menino, abre a cortina e enche o quarto de luz, tentando acordá-lo. Ele olha a hora na tela do celular e o mesmo, que aparece em câmera subjetiva, mostra a mão de Mônica que está em outro ambiente também checando as horas. Na tela do aparelho, lê-se “Vivo 6:07”, fazendo menção à marca anunciada. Eduardo abre os olhos lentamente e Mônica também tem os olhos ofuscados pela luz do dia ao deixar o bar. E, finalmente, os dois aparecem de corpo inteiro em uma fusão de imagens que mostra os personagens caminhando em ambientes diferentes, mas que vão ao encontro um do outro. Eles se esbarram e derrubam os celulares que carregam em suas mãos. Neste momento, voltam os closes, plano e contraplano, a partir dos ombros dele e depois dela. A câmera subjetiva foca o momento em que os personagens olham para os aparelhos e trocam mensagens. Instantes depois, ela o envia uma mensagem: “Trocamos os celulares. E agora?”. No alto da tela, é possível ver novamente a marca Vivo 3G. Em seguida, aparece a fala do amigo do cursinho do Eduardo, que na música vira uma resposta do rapaz em forma de mensagem de texto via celular: “Tem uma festa hj à noite”. A referência ao fato de Eduardo só pensar em ir para casa e sua preocupação com a hora é também representada por uma mensagem de texto, desta vez de sua mãe: “Filho, cadê você?”. Para mostrar que os dois personagens “eram nada parecidos”, como é relatado em um trecho da música, Mônica aparece com uma tatuagem nas costas e Eduardo espreme uma espinha; ela acompanha a aula de Medicina e pesquisa sobre os mais diversos assuntos no tablet, ele estuda inglês e lê os resumos dos capítulos da novela no celular. Acontecem, neste momento, algumas passagens de cena, onde um personagem completa a ação do outro, o que sugere uma simbiose entre os dois. Várias cenas de encontros do casal em ritmo acelerado representam a passagem do tempo e a evolução do relacionamento entre os dois. Cenas sobre brigas e reconciliações do casal humanizam ainda mais a história. Eles enfrentam dificuldades, constroem uma casa, têm filhos e pagam contas. Em seguida, as crianças já aparecem maiores no carro. A menina lê um livro e o menino usa o celular aparentemente para jogar. Para representar a recuperação do filho mais novo na escola, que impede a família de viajar, uma mensagem de texto do menino: “Pai corasão escreve com S ou Ç?”. Vídeos e fotos do casal finalizam o filme e antes da assinatura da Vivo, com o slogan “Conexão como nenhuma outra” (Figura 1), o casal mede a altura dos filhos com marcações na parede em típica imagem familiar. 183 Figura 1: Logo da empresa Vivo no final do filme publicitário “Eduardo e Mônica” A adaptação A adaptação da música Eduardo e Mônica para o audiovisual da empresa Vivo conta com uma estratégia publicitária chamada product placement (inserção de produtos). De acordo com Farias (2015), esta é a “modalidade que cuida da inserção ou aparição de produtos em uma cena de um programa de televisão ou filme”. Além de ser um produto criado por uma marca, a peça em questão traz inserções dos serviços de internet e telefonia da Vivo no desenrolar da narrativa. A partir de uma análise técnica de tal adaptação audiovisual, é possível verificar os posicionamentos de câmera que sugerem um narrador-personagem testemunha, que, em vários momentos, toma o lugar de protagonista da narrativa. Em determinados trechos, tal narrador adentra nos ambientes em que o enredo se desenvolve, dando mais veracidade ao relato. A música, na adaptação, assume o papel do narrador off, porém, que conhece os protagonistas e o desenrolar da história. Planos detalhe e close dão efeitos de sentido de intimidade à narrativa, onde a imagem adquire um caráter quase abstrato na cena. O raccord, que é a continuação da história que pode ser certificada, entre outros aspectos, por ligações credíveis nas passagens de planos, acontece no início do filme. Em seguida, o vídeo ganha um ritmo cada vez mais acelerado com o uso de fusões e cortes secos em um total 200 planos, cenas curtas e poucas sequências. Há sincronismo e simultaneidade entre o áudio e o visual, entre a letra da música e as cenas do filme, resguardando os espectadores de interferência interpretativa diversas daquela já conhecida pela canção em sua via original. A adaptação visual, uma montagem linear, se mostra uma sequência fidedigna dos acontecimentos transcorridos na letra da música. A própria canção impõe sua duração e métrica ao filme, ou seja, não houve corte ou adaptações, conforme ocorre nas edições de videoclipes comerciais, cuja duração possui, em média, três minutos. As cenas são curtas e rápidas, característica dos videoclipes, cuja intenção é captar a atenção do espectador como forma de oferecer um produto ao consumo, segundo Brandini (2006): Os videoclipes tornaram-se um novo referencial para a apreciação estética da música associada a uma forma de oferecer um produto ao consumo. Inegavelmente, pela indústria fonográfica, vídeos musicais são formas de 184 exposição de um produto que está à venda, um apelo ao consumo. Sua estética une técnicas apuradas do cinema e da publicidade, a liberdade de criação de film makers e um universo simbólico que visa à expressão do sentido da canção e da personalidade do artista (BRANDINI, 2006). No conceito de videoclipe, o registro original da canção ganha diversos efeitos sonoros (gritos, falas, barulhos) para enfatizar algumas cenas da narrativa. Logo no início da adaptação, a mãe de Eduardo abre a janela e fala ao fundo da canção: “Eduardo, vamos lá, acorda. Acorda, vai.”. Outros efeitos sonoros presentes na narrativa são o som dos celulares caindo ao chão no momento em que os personagens se esbarram; o som do ônibus parando; as mensagens recebidas e digitações nos celulares; o ronco do motor da lambreta; alguns pequenos diálogos; barulho de mergulho na água na cena da piscina; som de ambulância e tantos outros ruídos característicos. A característica do videoclipe também é bastante evidente no encadeamento dos planos e exploração de câmeras. Há várias focalizações que exploram planos próximos ou grande plano, close-up ou simplesmente primeiro plano, onde é mostrado apenas o rosto do personagem (Figuras 2 e 3), cujo enquadramento é mais fechado. Figuras 2 e 3: Exemplos de primeiro plano e plano próximo Outro enquadramento também explorado na adaptação é o plano detalhe, cuja preocupação é mostrar uma parte do corpo de um personagem ou um objeto, como, por exemplo, o pé de Eduardo ou a boca de Mônica (Figuras 4 e 5). Figuras 4 e 5: exemplos de plano detalhe Em vários trechos da adaptação faz-se uso de dois planos em sequência como forma de representar a simultaneidade dos acontecimentos ocorridos com ambos os personagens. Nos 185 dois planos gerais (Figura 6), é possível constatar também a descentralização dos personagens, de forma a se promover a compensação pelas massas. Figura 6: exemplo de planos gerais Mais de um plano em uma única cena (Figuras 7 e 8) também é um recurso utilizado diversas vezes na adaptação em questão. Figuras 7 e 8: exemplos de mais de um plano em cena Outra técnica de câmera utilizada é o plano distanciado (Figura 9), o qual também é um exemplo de plano em que a câmara permanece fixa, ainda que haja movimento interno de personagens, objetos, veículos etc. 186 Figura 9: exemplo de plano distanciado É possível observar que a câmara permanece fixa enquanto os personagens se movem (Figuras 10 e 11), bem como o efeito de filmagem de distanciamento, efetuado por uma câmera alta e outra câmera baixa. Figuras 10 e 11: exemplos de planos fixos Observa-se ainda vários efeitos de raccords de movimento, em que a personagem Mônica sai de um campo para aparecer em outro (Figuras 12 e 13). O raccord no movimento ou ação pode ser construído relativamente ao ângulo de visão ou à escala (regras dos 30º), à direção, ao gesto, ao olhar, ao campo/contra campo (regra dos 180º). Figuras 12 e 13: exemplos de raccord de movimento O efeito de raccord pode ser também encontrado no seguinte trecho da adaptação: “ela fazia medicina e falava alemão e ele ainda nas aulinhas de inglês”. Nesse instante, enquanto a canção verbaliza a constatação, a adaptação visual explora o efeito raccord que altera a tela do tablet de Mônica para a tela do celular de Eduardo com a “aulinha” de inglês. 187 A adaptação se vale também do efeito de elipse, o qual geralmente serve para omitir intencionalmente informações facilmente identificáveis pelo contexto, por significados construídos por sucessões de imagens sequenciadas. Cria-se uma elipse de tempo nas cenas das férias do casal (Figuras 14 e 15), sem que para isso seja necessário observar cada momento deste processo temporal. Tudo acontece pelo modo como as imagens são organizadas, de forma que, num primeiro momento, os protagonistas mergulham juntos em uma piscina e na próxima cena aparecem submergindo da água, porém, já no mar, em referência ao trecho da canção: “fizeram natação, fotografia, teatro, artesanato e foram viajar”. Figuras 14 e 15: exemplos de elipse/raccord O travelling lateral, técnica bastante usual no cinema, também pode ser verificado na adaptação nas cenas em que o personagem de Eduardo passa de um aposento a outro, deixando entrever a parede “furada” ou corrediça, para autorizar a câmera a transpô-la. Na cena, Eduardo está trazendo as caixas de um aposento e no momento seguinte a câmera mostra a transposição da parede que divide os ambientes para, em seguida, mostrar Eduardo já no ambiente de destino calçando o sapato em sua cliente. Ainda é possível verificar o uso de campo/contra campo (deslocamento da atenção). Isso ocorre no momento em que a câmera foca primeiramente a tatuagem de Mônica, com ela de costas, para, no momento seguinte, focalizar o rosto da personagem refletido no espelho (Figuras 16 e 17). Figuras 16 e 17: exemplos de campo/contra campo 188 Ainda é verificada, em vários trechos, a exploração de câmeras altas e baixas (Figuras 18 e 19), totais ou não, estilo vigilância (Figuras 20 e 21), distância focal e profundidade de campo (Figuras 22 e 23). Figuras 18 e 19: exemplos de câmeras altas e baixas Figuras 20 e 21: exemplos de câmera alta total e estilo vigilância Figuras 22 e 23: exemplos de distância focal e profundidade de campo Há trechos da adaptação em que a câmera insinua um narrador que possivelmente conhece os protagonistas. As lentes da câmera tomam conceito de subjetividade (Figuras 24 e 25) no seu ponto de vista, ora localizada no alto, atrás de fios de eletricidade, ora atrás de objetos dentro do bar frequentado por Mônica. Nas referidas cenas é possível questionar que seria essa a ótica do narrador que relata conhecer o casal e também a visão do testemunho do relacionamento dos dois personagens. 189 Figuras 24 e 25: exemplos de subjetividade/olhar testemunho Ainda é possível observar a utilização de sobreimpressões (Figuras 26 e 27), ou seja, impressão de duas ou mais imagens distintas obtidas em uma única cena. O trecho: “Eduardo e Mônica voltaram para Brasília”, é ilustrado com a sobreposição da imagem da placa da cidade de Brasília refletida sobre o veículo em que Mônica dirige, delineando a viagem do casal com os filhos. No mesmo trecho, aparecem, na imagem seguinte, as crianças dentro do carro e a figura da Catedral de Brasília também refletida no vidro do automóvel. Figuras 26 e 27: exemplos de sobreimpressões A partir de tais analises, constata-se que a representação visual da canção, carregada de certa redundância por espelhar em imagens cada trecho da canção, parece atender a uma necessidade publicitária de facilitar o entendimento da mensagem transmitida no audiovisual e enfatizá-lo. Observam-se mudanças e adaptações que a publicidade está experimentando em suas estratégias, em seus meios e formatos, na confecção das mensagens e na própria concepção de publicidade e de agência tradicional. O objeto em questão se trata de um produto híbrido. O vídeo, que é uma peça publicitária, aparece em sites48 de letras e cifras de música como clipe da canção. Ainda abordando a questão do hibridismo, trata-se de um narrador-personagem, que é testemunha e participa da história. A câmera também se encaixa como um narrador e traça o efeito mostrativo que tem uma visão narrativa. Considerações finais 48 Disponível em: http://www.vagalume.com.br/legiao-urbana/eduardo-e-monica.html, http://letras.mus.br/legiaourbana/22497/, http://www.cifraclub.com.br/legiao-urbana/eduardo-monica/ e https://ouvirmusica.com.br/legiao-urbana/22497/. Acesso em: Outubro/2015 190 O momento atual da comunicação midiática tem assistido a um processo de hibridização de gêneros e formatos, onde são necessários novos contextos, espaços e mídias. Neste processo, diante ao impacto das novas tecnologias, a publicidade tem colaborado significativamente com as experimentações na busca de uma linguagem adequada de se comunicar com o usuário dos meios digitais. Para isso, tem-se recorrido à força das narrativas audiovisuais. O contar histórias, recurso utilizado pelo homem desde os primórdios, ganha nova configuração como storytelling, ferramenta carregada de intencionalidade, que cria uma relação de proximidade entre marca e cliente. A adaptação da música para o audiovisual mostrou-se eficiente por abordar uma temática universal, o amor, em forma de narrativa. A releitura ou versão audiovisual de Eduardo e Mônica atualizou a narrativa e a marca conseguiu introduzir seus serviços na trama, como a telefonia e a internet. Os jovens personagens se conhecem a partir da troca de aparelhos celulares em um esbarrar na correria da cidade. As tecnologias aparecem no dia-a-dia de ambos, desde o despertar, na função de relógio. O casal se comunica o tempo todo por dispositivos móveis e os aparelhos, incluindo notebooks e tablets, os acompanham até o crescimento dos filhos, quando, no clímax, o garoto manda uma mensagem de texto fazendo uma pergunta ao pai. A situação atual é convulsiva, na qual cresce o número de indivíduos com possibilidade de comunicação, no entanto, com menor disposição para ouvir. Para que isso seja proveitoso, a história precisa provocar emoções e sensações (literatura-música x audiovisual). O audiovisual em questão encanta e envolve o usuário das redes sociais por oferecer conteúdo que traz sentido vital ao público, mostrando-se significativo por provocar tais sentimentos, uma das funções do processo persuasivo publicitário. Vale ressaltar a não utilização do vermelho e do azul na paleta de cores no vídeo por ter relação à concorrência mercadológica (TIM), o que destaca ainda mais o papel do vídeo como um produto publicitário. De acordo com Bulhões (2012), no fenômeno da adaptação audiovisual do universo literário, a noção de “fidelidade” porta um equívoco de base. Sendo assim, tal noção deve obedecer a origem de cada meio. Vale o conhecimento de que a adaptação é sempre um processo de reelaboração de linguagens, devem ser respeitadas suas deliberações inventivas, as soluções e licenças impressas em outro meio de expressão, observando que cada meio tem sua característica. A adaptação passa a ser vista como um fenômeno intermidiático, amplo, uma incessante troca de referências, um irreprimível intercâmbio de repertórios e linguagens. Formatos, suportes, canais, plataformas estão fadados a interagir, contaminar-se, fundir-se, complementar-se. Referências ALVES, C. M. P. Eduardo e Mônica – do planalto central para o meio digital: as estratégias da vivo no mundo online. Revista Temática. Ano VIII, n. 01 – janeiro 2012. Disponível em: http://insite.pro.br/2012/Janeiro/estrategias_vivo_mundoonline.pdf. Acesso em 05 de junho de 2014. 191 BULLERJAHN, C. The effectiveness of music in television commercials – a comparison of theoretical approaches. In: BROWN, S. & VOLGSTEN, U. (Eds.). Music and Manipulation: on the Social Uses and Social Control of Music. New York: Berghahn Books, p. 207-235, 2006. BRANDINI, V. Panorama histórico – MTV Brasil. In: PEDROSO, Maria Goretti & MARTINS, Rosana. Admirável Mundo MTV Brasil. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 04. BULHÕES, M. Para além da “fidelidade” na adaptação audiovisual: o caso da minissérie televisiva Capitu. Galaxia. São Paulo, Online, n. 23, p. 59-71, jun. 2012. CARRASCOZA, J. A. A evolução do texto publicitário: a associação de palavras como elemento de sedução na publicidade. São Paulo: Futura, 1999. _________________. Razão e sensibilidade no texto publicitário. São Paulo: Futura, 2004. COVALESKI, R. Publicidade Híbrida. Curitiba, PR: Maxi Editora, 2010. FARIAS, C. Marketing Aplicado. [recurso eletrônico]. Porto Alegre: Bookman, 2015. JULLIER, L.; MARIE, M. Lendo as imagens do cinema. São Paulo, Editora Senac, 2009. KOTLER, P. Administração de Marketing. São Paulo: Prentice Hall, 2000. MARZAL-FELICI, J. Conferência de abertura: Narrativa audiovisual e convergência midiática. In: XV jornada multidisciplinar: a linguagem nas mídias na era da convergência - 14 a 16 de maio – Bauru: UNESP-FAAC, 2013. NÚÑEZ, A. É melhor contar tudo. São Paulo: Nobel, 2009. 192 Capítulo 5 Mão dupla e mãos dadas: Adaptações Intersecções entre o esquete humorístico e a sua adaptação literária: É mentira, Terta? Luis Octavio Rogens de MELO ALVES*, [email protected] Resumo Este artigo tem como objeto de estudo o personagem Pantaleão Pereira Peixoto criado por Chico Anysio para o programa humorístico de televisão Chico City (1973). O personagem, neste mesmo ano, foi desenvolvido, pelo humorista, no livro É mentira, terta?. Deste modo, este artigo propõe observar possíveis intersecções desta obra com a narrativa dos esquetes humorísticos, que constituem um gênero instituído na programação televisiva nos formatos humorísticos brasileiros (MELO ALVES, 2014). Para tanto, a partir das especificidades das conversações representadas nos dois objetos, fundamentar-se-á o trabalho em estudos interacionais e nas Teorias do Humor. Palavras-chave Risível; Humor; Chico Anysio; Esquete Humorístico. Considerações Iniciais Este artigo abarcará um conto de uma obra com um protagonista tido como mentiroso: Seu Pantaleão. O livro É mentira, Terta?, de Chico Anysio, traz este tipo como protagonista. Digamos desde já que o narrador não lhe aplica este rótulo (mentiroso) em nenhum momento. Tratamo-lo desta maneira, de antemão, porque o personagem foi interpretado e popularizado, meses antes do livro ser publicado, pelo, mesmo, Chico Anysio no seu programa humorístico, da Rede Globo de Televisão, Chico City, em 1973. Nos esquetes deste programa, Pantaleão Pereira Peixoto é um fazendeiro aposentado, alcunhado Coronel Pantaleão, e criado cenicamente com a voz do cantor Luiz Gonzaga e a aparência do Imperador Pedro II. O personagem é o proprietário de uma fazenda e de um conjunto de narrativas inverossímeis (ANYSIO, 2013), e é tido como uma das principais atrações da sua cidade no sertão nordestino brasileiro, a pequena e imponente Chico City. Com prefácio de José Cândido Carvalho e ilustração de Ziraldo, a obra conta algumas das inúmeras façanhas deste personagem do humorístico em dezenove contos. Foi o sexto livro de * Melo Alves, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Programa de Estudos Pós-Graduados em Língua Portuguesa, Bolsista de Mestrado do CNPq, São Paulo, São Paulo, Brasil, [email protected]. 193 ficção mais vendido no ano de lançamento, 1973, e o décimo mais vendido no ano posterior (REIMÃO, 2001). Nota-se, aqui, que, a princípio, a mentira supõe presença desde o título da obra, “É mentira, Terta?”, nome homônimo ao bordão do protagonista nos esquetes humorísticos do programa televisivo. Ao contar suas narrativas surpreendentes a um popular de sua cidade, o personagem perguntava à única testemunha que podia confirmar seus causos, sua esposa Terta, que não o contradizia. A esposa dizia apenas “Verdade”, outro bordão do esquete. Outro interlocutor, nos esquetes humorísticos, das narrativas de Pantaleão era Pedro Bó, um abobalhado que acreditava no patrão e sempre o interrompia para interrogá-lo ingenuamente. “Pedro Bó” tornou-se, na época, uma gíria que representava uma pessoa fácil de iludir. Pantaleão diante dos questionamentos de Pedro Bó, sempre, impunha sua marca humorística através de insultos em suas respostas. Propõe-se aqui uma análise de um conto desta obra literária de Chico Anysio com o propósito de observar possíveis intersecções desta “adaptação” com a narrativa dos esquetes humorísticos, que constituem um gênero instituído na programação televisiva brasileira dentro dos formatos humorísticos. Para tanto, nesta apresentação, a partir das especificidades das interações representadas nos dois objetos, o trabalho fundamentar-se-á em estudos interacionais e nas Teorias do Humor. Chico Anysio Chico Anysio foi um artista que transitou por quase todos os campos das artes. Além da dedicação ao humorismo, atuou das artes plásticas à música. Dentre os seus diversos talentos artísticos, Anysio tornou-se sucesso de vendas e crítica como escritor. Desenvolveu vinte e uma obras: contos, literatura infanto-juvenil, policiais, bibliográfico, obras propriamente humorísticas e romances, como Negro Léo, que foi adaptado em um Caso Especial, da Rede Globo de Televisão, em 1980, rendendo diversos prêmios internacionais a emissora. Um dos principais méritos de Chico Anysio, em sua carreira, é a criação de inúmeros tipos, tanto na televisão quanto na literatura. Como humorista, Anysio desenvolveu mais de duzentos personagens que ilustravam um panorama cultural, social e político brasileiro do momento, como o jogador de futebol esquecido pela mídia esportiva, o Coalhada, o aposentado que vivia a procurar um emprego para poder sobreviver, Nico Bondade, e o jovem cantor tropicalista, o Baiano. A maioria deles apresentados em esquetes humorísticos em diversas atrações, como Chico City (1973), Chico Total (1981 e 1996) e Chico Anysio Show (1982). Com uma carreira consolidada no rádio, Chico Anysio estreou na televisão em 1957 no programa Aí vem dona Isaura, na TV Rio, estrelado pela humorista Ema D’Ávila, irmã do, também humorista, Walter D’Ávila. A personagem Dona Isaura era sobrinha do Professor Raimundo, um dos principais personagens da carreira de Chico, criado em um programa radiofônico pelo radialista Haroldo Barbosa. Protagonizou seu primeiro programa televisivo na década de 60, o Chico Anysio Show na extinta TV Rio. O programa era composto por quadros como o do Coronel Limoeiro, o 194 poderoso nordestino que tinha ataques de ciúmes da sua esposa, e o garoto tímido e conservador Valentino. Antes de ser estabelecer na Rede Globo em 1982, a atração teve uma passagem pela TV Excelsior. A cada ano, em seus programas, eram apresentados novos personagens ao telespectador, alguns deles seriam os carros-chefes da atração por um período. Em 1973, o sucesso da estreia de Pantaleão no programa Chico City fez com que o humorista escrevesse a obra É mentira, Terta?. Não era a primeira incursão de Chico Anysio na literatura. O humorista já havia publicado dois livros: O Batizado da Vaca (1972) e O Enterro do Anão (1973). Dois sucessos editoriais estruturados em coletâneas de contos humorísticos. Estas obras são marcadas por um enorme registro de oralidade na escrita, característica também presente no livro do Seu Pantaleão. Em É mentira, Terta?, Anysio incorpora a linguagem coloquial nordestina ao seu texto literário trazendo os causos de Pantaleão ao texto escrito. É a primeira obra literária protagonizada por um personagem de um programa humorístico de televisão. Recurso que o autor retomará, na literatura, apenas, em 1993, na obra Jesuíno, o Profeta. Vale lembrar que, além da literatura, Chico Anysio lançou long-playings temáticos dos seus personagens: Azambuja (Azambuja & Cia, 1975), Linguinha (Linguinha, 1971), Coalhada (Coalhada - O Craque que faltou na Seleção, 1978) e Roberval Taylor (Roberval Taylor, 1976). O esquete humorístico É dificultoso definir, exatamente, o que é o gênero esquete humorístico. O próprio estudo dos gêneros, ao longo dos tempos, apresenta uma polêmica discussão entre os diferentes autores nas suas classificações. Para Machado (2000), no campo dos estudos televisivos, “esse tipo de discussão se tornou alguma coisa anacrônica, quando não irrelevante”. A discussão genérica do esquete humorístico, proposta nesta seção, não se dará por uma opção de categorização, no entanto, sabemos que caracterizar um gênero significa lê-lo do ponto de vista de sua forma e de seu conteúdo. Entendemos a natureza dos gêneros como entidades dinâmicas, não engessadas em estruturas rígidas (MARCUSCHI, 2002). Ao analisar um gênero da esfera humorística, que pressupõe, na maioria das vezes, uma quebra da expectativa e subversão a uma ordem, essa definição se potencializa. É bem provável que a maior parte das categorizações referentes ao gênero esquete humorístico haverá algum exemplo que a desconstrua. Se formos aos estudos teatrais encontramos a seguinte definição para o esquete: “O esquete é uma cena curta que apresenta uma situação geralmente cômica, interpretada por um pequeno número de atores sem caracterização aprofundada ou de intriga, aos saltos e insistindo nos momentos engraçados e subversivos. O esquete é, sobretudo, o número de atores do teatro ligeiro que interpretam uma personagem ou uma cena com base em um texto humorístico e satírico, no “music hall”, no cabaré, na televisão ou no “caféteatro”. Seu princípio motor é a sátira, às vezes literária (paródia de um 195 texto conhecido ou de uma pessoa famosa), às vezes grotesca e burlesca (no cinema e na televisão), da vida contemporânea”. (PAVIS, 1999, p. 143). Como afirmamos, é possível apresentar, para esta definição, contraexemplos da própria produção humorística televisual brasileira. No que se refere à quantidade de atores, esquetes como o Coral dos Bigodudos, de A Praça é Nossa, contava com a presença de muitos humoristas. Quanto ao tempo, esquetes como o do Café Bola Branca de Chico Total (1996) possuíam uma longa duração. No entanto, esta delimitação apresentada pela autora traz contribuições ao nosso corpus quanto ao caráter humorístico do esquete: “insistindo nos momentos engraçados e subversivos” e “com base em um texto humorístico e satírico”. O Fantástico, a revista eletrônica de maior popularidade e longevidade da televisão brasileira, na qual Chico Anysio apresentou, durante os dezesseis anos iniciais do programa, monólogos de humor, apresenta um histórico de quadros humorísticos (MEMÓRIA GLOBO, 2015), como: O quadro Cartão de Visitas em que Chico Anysio apresentou a história oficial de seus próprios personagens em 32 esquetes; Raul Solnado apresentou esquetes construídos a partir de uma conversa telefônica; Os esquetes dos integrantes do Casseta & Planeta que parodiaram figuras públicas, como jogadores, políticos e artistas; No Vida ao Vivo, Luiz Fernando Guimarães e Pedro Cardoso parodiavam os telejornais em uma bancada com assuntos cotidianos. Nestes quatro exemplos elencados podemos perceber, a priori, relativa dificuldade de definir estabilidade neste gênero. No entanto, o podemos compreender por meio dos modelos de contextos que são acionados durante o processo produção e de recepção deste gênero (VAN DIJK, 2012). Assim, podemos considerar a presença de piadas como um dos elementos-chave para o nosso estudo. Na maior parte da história da produção televisiva brasileira, os programas humorísticos eram compostos por um conjunto de esquetes com humoristas consagrados que interpretavam piadas, prontas e conversacionais (GIL, 1991), por meio de tipos diversos. O humor na televisão brasileira baseia-se em uma tradição radiofônica, circense e, também, do teatro de revista (DURVAL, 2002). Exemplos disto estão nos humorísticos apresentados por Chico Anysio, Jô Soares, Renato Aragão e Agildo Ribeiro. A recorrência de esquetes em um programa humorístico com o mesmo personagem ou situação é rotulada como quadro humorístico. A presença de esquetes humorísticos não é necessária para compor um programa humorístico, o próprio Chico Anysio Show apresentava o personagem Jesuíno, o Profeta, que encerrava a atração com poesias e sabedorias sem um cunho risível. Desde sua estreia, em 1973, no programa Chico City, o quadro do Pantaleão, objeto deste estudo, era composto por histórias independentes entre si, baseadas, na maioria das vezes, na seguinte estrutura: uma ou mais pessoas chegavam à casa do coronel para ouvir suas narrativas inverossímeis sempre sob o atestado de veracidade de Terta e com as intervenções de Pedro Bó. 196 Na próxima seção deste artigo, observaremos uma das dezenove histórias de Pantaleão Pereira Peixoto e como se estrutura a relação entre os personagens deste quadro por meio de uma análise de um conto do livro É mentira, Terta?. O conto O conto eleito, aqui, chama-se O Boi Bozó e o Alazão Brioso de cujas capacidades só duvida quem é besta — coisa que não é o seu caso. O título já apresenta uma nova possibilidade de interpretação para o causo que virá a ser narrado, o da dúvida, no entanto, a credibilidade do produtor da narrativa é dada como certa em relação à opinião de quem é considerado “besta”, segundo o título do capítulo. O capítulo retrata a ida do personagem João Inácio à casa do Coronel Pantaleão para solicitar ajuda na busca do seu melhor touro que se perdeu na caatinga, vegetação típica no nordeste brasileiro. O coronel, por conta da sua saúde, problema de reumatismo, diz ao solicitante não poder ajudar. No entanto, no decorrer do diálogo um garoto anuncia que o touro retornou ao seu local de origem. A volta do touro deu-se como motivo para comemoração e mote para Pantaleão contar uma de suas inúmeras façanhas, a do Boi Bozó e o Alazão Brioso. Segundo Pantaleão, o boi era um lendário valente que ninguém conseguia pegar, desta forma, foi convidado a laçá-lo. Assim, pegou o seu alazão, um cavalo com o nome Brioso, cercou-o e correu atrás do boi, em alta velocidade, até chegar à cidade do Rio de Janeiro, no entanto, no primeiro sinal vermelho, o Boi, por obediência às normas de trânsito, parou. Assim, Pantaleão amarrou uma corda no pescoço do bovino e percebeu que o cavalo que montara estava frio, morrera há mais de cinquenta quilômetros antes de chegar à capital carioca, chegou “por embalo”, uma forma de inércia. Esse cavalo, segundo Pantaleão, até hoje está na frente do jóquei da capital carioca como estátua. Pantaleão Pereira Peixoto é o herói da façanha narrada por ele próprio. Pode-se dizer que mente para seu próprio benefício, manter seu prestígio na comunidade (GOFFMAN, 1993). Através de sua exposição, tenta convencer o outro participante da interação, João Inácio, e o leitor da existência de uma realidade ilusória. O protagonista dá esperança, ao interlocutor, na sua figura de herói e de narrador de histórias surpreendentes. A fórmula escolhida por Pantaleão em suas histórias é: da trágica situação tem uma solução inesperada que só alguém com características distintivas de todos os cidadãos da comunidade conseguirá solucionar (KOTHE, 1987.). Não é possível notar insegurança do narrador criado por Anysio. Ao narrar as aventuras de Peixoto descreve a ação com muitos detalhes e compartilha de informações que parecem ser corriqueiras no ambiente que o protagonista convive. O narrador é consciente dessa deslealdade com o leitor e com os outros personagens-interlocutores e acoberta o protagonista sobre todas as questões e dúvidas que podem surgir. 197 “Amestrador de cavalhadas incontáveis, rei na rédea, um deus na sela, fazendo o cavalo trotar ou galopar pelo lugar que deseje” (ANYSIO, 1973). Na esteira de um conjunto atributos à Pantaleão, o narrador tenta ilustrar a ideia do protagonista cheio de virtudes, este herói é como um ídolo da comunidade que consegue ultrapassar todas as leis da natureza. Suas histórias se encontram como uma forma de rebelião contra o objetivo da ordem da realidade do leitor e do seu repertório. Pode ser percebida, aos olhos do leitor, que um homem sobre um cavalo morto não conseguiria em alta velocidade percorrer tal distância. No entanto, se este leitor é também telespectador do humorístico de Anysio, Chico City, ativa modelos mentais (VIN DIJK, 2012) referentes ao seu repertório, e a sua leitura partirá de conhecimentos que já estão internalizados: Pantaleão é um personagem humorístico e apresenta um desvio, no programa humorístico ele é um mentiroso. Assim o leitor participa do acordo ficcional (ECO, 1994) proposto por Anysio. As mentiras do coronel se transformam em algo risível para este leitor. Para Bergson (1991), rimos de um desvio, no entanto, rimos mais ainda quando se tem o conhecimento da origem desse desvio e ele se constrói diante, gradativamente e com maior intensidade. A história revela mecanismos subjacentes à realidade dos habitantes de Chico City, uma cidade cujas conquistas científicas são os feitos do seu mais célebre personagem, Pantaleão, e as suas capacidades intelectuais contribuem para a promoção do personagem perante eles. O entretenimento dos moradores é feito dentro de uma atmosfera informal, em narrativas orais e conversas pessoais desse protagonista no alpendre da sua casa. Partindo da concepção, formula por Gumperz (1999), de que os participantes da interação produzem pistas de contextualização em que se posicionam de maneira estratégica e delimitam as interpretações de seus enunciados de acordo com seus objetivos, Pantaleão e o narrador constroem suas narrativas estabelecendo mecanismos em que se podem encontrar pistas no mundo real, mesmo que, correndo contra as leis naturais, e se o leitor desconfiar é “besta”. Como na exposição do protagonista em que a estátua do cavalo na frente do Jóquei Clube do Rio de Janeiro é o cavalo morto, pode-se: 1) dar esperança ao leitor que essa história pode não ser percebida como falsa, já que o personagem deixa claro ao leitor que no mundo real ainda existem pistas de contextualização para veracidade do causo e este acredita nele; 2) Rir, já que, utilizando a conceituação de Bergson (1991), rimos dos ouvintes da prosa de Pantaleão por estarmos cientes do arranjo mecânico cujo, estes são manipulados pelo coronel por meio de suas mentiras. Dentro do conto o único registro textual de dúvida sobre a veracidade de sua história está em “confirmou João Inácio, titubeando”: o interlocutor titubeou, não discordou, mas, logo, a mulher do protagonista atestou o fato. Deve-se dizer que as histórias de Pantaleão podem ser verossímeis aos olhos dos interlocutores, esta interpretação é possível. Como uma forma de expor suas histórias e não precisar prová-las, a sua idade avançada é um mecanismo usado com astúcia na construção do personagem e evita a investigação dos interlocutores na provação de sua narrativa oral. Uma das estratégias ativadas por Pantaleão. 198 Também utilizada na construção do risível por Anysio, já que o tipo é um estereótipo do idoso que conta mentiras, causando o riso. Pantaleão narra suas histórias, sempre após o pedido de algum habitante da sua cidade e, desta forma, o personagem desenvolve seu causo retomando o tema relacionado ao diálogo já iniciado. Com o causo que conta põe a prova sua narrativa sob um julgamento da compreensão do interlocutor-personagem que tem seu mecanismo de veracidade garantido sempre em um dos participantes da interação, engajada no encontro e disposta a concordar com a lorota do produtor e marido: Tertuliana, a Dona Terta. “Foi Dona Terta quem lembrou, porque Pantaleão não é homem de dar importância às coisas que lhe sucedem”, além de incentivá-lo, Terta não desmente seu marido e assume seu papel na interação. Com o objetivo de prestar uma utilidade pública aos moradores que vivem no alpendre da sua casa não atribuindo sentido negativo a imagem do marido. Ciente do papel assumido, a personagem testemunha a favor do esposo. O protagonista é submerso pelo juízo do leitor a fim de identificá-lo como um herói ou como um exímio fazedor de lorotas. Apesar da respeitabilidade que há em Chico City em relação à Pantaleão e a relação harmoniosa que o coronel estabelece com os outros cidadãos da pequena cidade e com sua mulher, o personagem se relaciona insultuosamente apenas com um personagem: Pedro Bó. A relação entre Pedro Bó e Pantaleão destaca-se por uma diferença notável dos diálogos de Peixoto com os moradores do município. Empurra-o, sempre, de escanteio após qualquer intervenção do rapaz. Neste sentido, na próxima seção procuraremos entender, por meio do modelo de análise proposto por Brown e Levinson (1987) em relação à cortesia verbal, como o sentido humorístico é construído através da sua desconstrução. Não, Pedro Bó Selecionamos, então, as três interrupções feitas pelo personagem Pedro Bó enquanto o personagem Pantaleão possuía o turno de fala no conto. Propomos ver, no contexto em questão, como se dão estas respostas. A interação no conto se constitui, assim como nos esquetes humorísticos, de um ajuntamento parcialmente focado, conceito de Goffman (2010), ou seja, “ocorre quando dois ou mais indivíduos estendem uma licença comunicativa especial mutuamente e sustentam um tipo especial de atividade mútua que pode excluir outros presentes na situação” (p. 95). Esta questão nos é cara neste estudo (o da exclusão) já que é permitido ao Pantaleão o mecanismo da proteção, não somente de face, mas a proteção no sentido da “possibilidade de proteger o conteúdo conversacional do ajuntamento como um todo” (Goffman, 2010, p. 192). Apesar de descrições do narrador que indicam um comportamento de uma demência em Pedro Bó, a interação analisada é efetivada entre pessoas conscientes da presença imediata do outro. 199 Brown e Levinson (1987), em sua análise do campo da cortesia, afirmam que para a polidez positiva podemos utilizar algumas estratégias, como a manifestação de atenção ao interlocutor e a busca de acordo com o interlocutor, repetindo parte do que ele diz, para mostrar que o entende e aprova. E é o que Pedro Bó faz, vejamos os diálogos: (1) — O touro voltou, né? — Voltou não, Pedro Bó. Ele veio só dar um recado, mas já vai pra caatinga de novo. Pedro Bó, se eu te batizar, eu quero ter o rabo do cão nascendo em mim. Tu vai morrer pagão! (2) — Só ele pega esse boi. — E vieram me buscar, Seu João. — Pra pegar o boi? — Não, Pedro Bó. Pra pegar um vapor e ir pra Alemanha. Mas será o tinhoso? Faz meia hora que só se fala no boi e tu vem me perguntar uma pergunta besta dessas? Hoje você dorme sem cear, pra aprender a não perguntar leseira. (3) O boi Bozó na frente. . . __ . . .e eu atrás, Seu João Inácio. — A cavalo? — Não, Pedro Bó. A cavalo, não. Eu ia montado em teu pai, que, pra mim, não tem montaria melhor do que teu pai. Podemos considerar que Pedro Bó, a priori, não falta com cortesia com Pantaleão. Ao contrário, ele utilizou as regras de polidez corretamente. No entanto, devemos, como já foi dito, considerar os papeis sociais que são atribuídos, o contexto e o objetivo da interação. Pantaleão é hierarquicamente superior a Pedro Bó e a qualquer da cidade de Chico City, há um grau alto de firmeza na relação. Goffman (2012), opõe os conceitos de firmeza e frouxidão, se referem ao grau de descontração que o ator pode ter a depender do ambiente social em que está inserido. Apesar de ser uma conversa informal, mediado por meio de um causo, Pantaleão tem apenas Terta como testemunha da sua mentira e precisa manter João Inácio engajado em sua conversa. Pedro Bó ao interromper Pantaleão nessa unidade de participação, não reconhece o contexto e o seu papel. E as expectativas do Pantaleão em relação a ele são verbalizadas na ofensa. Assim, marca sua agressividade quebrando a expectativa e, neste sentido, estabelece um ato de não cortesia, ou seja, ameaça a face positiva de Pedro Bó o reprimindo. Percebe-se a presença nos três diálogos do bordão “Não, Pedro Bó”, o consideramos como uma ironia, que carrega uma carga risível, segundo Propp (1992, p.119). Além disso, ativa o 200 repertório daquele leitor que também é telespectador, causando um riso maior. E se constitui, também, como um ato que ameaça a face positiva do Pedro Bó e reitera a condição de autoridade de Pantaleão. Novamente, não é utilizado recursos de cortesia linguística por parte do coronel. Na sequência Pantaleão apresenta um ato voluntário de infração por meio de um ato malicioso (GOFFMAN, 2012) por meio das palavras ofensivas ditas por ele de maneira consciente. O ataque por meio da malícia, ou seja, uma clara intenção de provocar um insulto se dá com o efeito risível. Podemos afirmar que estes textos são estruturados por meio de piadas e adequam-se a formulação de “linguagem da surpresa”, proposto por Gil (1991): estabelecem-se como pequenas narrativas, dialogais, própria do gênero piada enlatada (em termos de adequação enunciativa), e possuem um antecedente e um consequente. O antecedente prepara a piada e o consequente conclui com uma informação que estava implícita no primeiro momento. A revelação do risível se dá pelo mesmo gatilho (POSSENTI, 1998). No caso dos diálogos acima, a surpresa leva ao consequente por relação de oposição ao antecedente, mas não na oposição de frames, mas, sim, no grau de cortesia estabelecido nos momentos. Há uma mudança abrupta para um discurso descortês por meio de um gatilho. Considerações Finais O texto literário desenvolvido por Chico Anysio apresenta interações semelhantes aos da narrativa televisual, aproximada mais ainda por uma estrutura marcada por marcas de oralidade e piadas conversacionais. Sendo assim, as interações presentes no conto analisado assemelham-se às características apresentadas nos esquetes humorísticos da atração televisiva. A iniciativa de Chico Anysio em transformar o sucesso de um esquete humorístico em um livro produziu um produto peculiar. Considerando a popularidade de Chico Anysio, na época do lançamento, e a hegemonia da emissora criou-se um produto que ajudou manter o personagem Pantaleão sob holofotes. A forma de consumir os esquetes humorísticos naquele período é muito diferente do momento atual, a repetição de modelos fixos de esquetes humorísticos e a presença de bordões não eram refutadas pela crítica, mas visto como uma forma de fidelizar o público aos tipos humorísticos. Desta forma, o telespectador e o leitor sabiam como iria ser desenvolvida a história, no entanto não saberia qual seria a mentira que seria contada pelo coronel, na televisão e no livro, e quais seriam as ofensas que o Pantaleão faria ao Pedro Bó. A narrativa da surpresa se mantem exatamente nestas lacunas transformando o esquete e o conto em textos risíveis. Assim, podemos considerar o livro É mentira, Terta? uma estratégia transmídia (LOPES, 2013) na produção humorística televisual, já que o livro reverbera, de certa forma, um interesse no telespectador para a atração televisiva. 201 Anexo ANYSIO, Chico. É mentira, Terta? 1ª ed. São Paulo: Rocco, 1973. O BOI BOZÓ E O ALAZÃO BRIOSO DE CUJAS CAPACIDADES SÓ DUVIDA QUEM É BESTA — COISA QUE NÃO É O SEU CASO O NORDESTE É TERRA DE MUITOS VAQUEIROS, mas nenhum deles com a competência e o talento de Pantaleão Pereira Peixoto, montador escolado, cabra que conhece as manhas e os segredos de qualquer montaria. Amestrador de cavalhadas incontáveis, rei na rédea, um deus na sela, fazendo o cavalo trotar ou galopar pelo lugar que deseje. Por saber dessas virtudes foi a ele que João Inácio recorreu no dia em que seu touro melhor perdeu-se na caatinga. Quem, por aquelas bandas, seria capaz de achar o animal? — Não posso, não, seu João Inácio — desculpou-se Pantaleão, mordiscando o pé-de-moleque que Terta fizera para a merenda. — Mas, Seu Pantaleão, se o senhor não for, quem é que pode me ajudar? João Inácio lamentava a negativa de Pantaleão. Dependia exclusivamente dele para ter de volta seu touro preferido, que cobria as vacas de modo perfeito, garantindo uma melhoria de raça que já lhe valera alguns prêmios na capital. — Se não fosse esse reumatismo nas costas, eu pegava essa empreitada, mas do jeito que eu estou, até a cama incomoda. João Inácio sabia que nessas horas era inútil insistir. Teria que dar o touro por perdido ou esperar o milagre dele voltar sozinho. Foi o que se deu. Um menino gritava, do alto da mula, lá na porteira. — O touro voltou, Seu João Inácio, o touro voltou! Voltou o sorriso à cara do dono do bicho. Voltou a tranqüilidade ao alpendre de Pantaleão. Seu João Inácio até aceitou o bolo de milho que Dona Terta lhe estendia no prato pequeno de beirada quebrada. — Esse touro ia-me fazer muita falta. — Pra mim ele voltou só porque sentiu que o senhor vinha aqui — disse Dona Terta, pegando o bastidor e tomando seu lugar na cadeira de sempre. — O touro não sabia que Pantaleão não ia e, com medo, resolveu se entregar, pensando que ele fosse. — O touro voltou, né? — Voltou não, Pedro Bó. Ele veio só dar um recado, mas já vai pra caatinga de novo. Pedro Bó, se eu te batizar, eu quero ter o rabo do cão nascendo em mim. Tu vai morrer pagão! A volta do touro era motivo para comemoração. E era ainda mais. Era tema para uma estória das mais incríveis. Foi Dona Terta quem lembrou, porque Pantaleão não é homem de dar importância às coisas que lhe sucedem. — O derradeiro boi que Pantaleão pegou foi o boi Bozó. Foi o que deu mais trabalho. Conte o causo pra Seu João Inácio. — O homem lá quer saber disso? Ele quer é ir ver o boi dele, saber se chegou bem, se tudo tá em ordem, não é, não, Seu João Inácio? Podia ser, seria lógico que fosse, mas quem pode resistir à tentação de escutar uma estória importante como a do boi Bozó? E era estória verdadeira, contada por quem a viveu: Pantaleão Pereira Peixoto. — Pois bom... No sertão não havia quem já não tivesse escutado nesse boi Bozó. O bicho tinha parte com o cão, havia quem afirmasse. Nenhum vaqueiro, nem mesmo os campeões nas vaquejadas de Salgueiro, tinha conseguido arrancar do mato o boi valente, tinhoso como o capeta, sabido como fiscal. Era um boi que pertencia a um coronelão cearense e, além do medo do boi, havia o respeito ao animal que fazia parte da estima maior do coronel. — Meu boi Bozó é meu tesouro — o coronel sempre dizia. O diabo é que vez por outra o boi se soltava e tomava o mato. Era o caos. Quem tinha coragem e tutano de o trazer de volta? Fugindo dos cercos, cortando com os dentes a corda do laço, derrubando vaqueiros e escoiceando os atrevidos que dele se aproximavam, o boi Bozó só saía do mato quando bem lhe apetecia, como a dizer "saio porque quero, não tou saindo a mando de safado nenhum". Mas naquele dia havia um homem da cidade que tinha ido ao sertão especialmente para conhecer o boi Bozó, tão comentado, tão famoso, o boi preferido do coronel seu amigo. — Dr. Faustino está aí, e eu quero o boi Bozó no curral, custe o que custar. Durante oito horas os homens da fazenda cercaram o boi, prepararam-lhe armadilhas, tentaram laçá-lo, encaminhá-lo para a fazenda, mas tudo restou inútil. Um deles, então, lembrou de Pantaleão. — Só ele pega esse boi. — E vieram me buscar, Seu João. — Pra pegar o boi? — Não, Pedro Bó. Pra pegar um vapor e ir pra Alemanha. Mas será o tinhoso? Faz meia hora que só se fala no boi e tu vem me perguntar uma pergunta besta dessas? Hoje você dorme sem cear, pra aprender a não perguntar leseira. — Conte, meu velho. Vieram lhe buscar pra pegar o boi Bozó. — Pois bom. Pantaleão montou no alazão de patas brancas e pescoço empinado, alazão arisco, que sabia de cor os caminhos do mato. Ganhou o mundo. Andou um dia e uma noite. Na manhã do outro dia, atrás de uma jurema, estava o bicho. Malhado de branco, baba no canto da boca, olhar acendido pelo ódio que lhe dava a busca que sofria. Os olhares se encontraram. Pantaleão sabia que o boi Bozó não era igual os bois idiotas que se deixavam pegar com facilidade. Sabia das suas manhas, da sua violência e, principalmente, não desconhecia o ódio que dava no bicho essa conversa de o cercarem. O alazão mal respirava, para não chamar a atenção. Pantaleão fez o cavalo circundar a jurema, querendo pegar o boi pelas costas. Inútil. Como um saci, com leveza de um coelho, o boi Bozó deu um pinote e sumiu de vista. Galopava como um potro. Depois de o encontrar não seria Pantaleão o homem que o perderia. Na poeira do boi o alazão galopou. A distância não se encurtava, mas também não crescia. E Pantaleão não perdia de vista o boi Bozó, pernas enlaçadas em Brioso, seu alazão de confiança. O boi subiu o Morro da Estrela com o alazão Brioso em galope farto atrás dele. E corta campina, corta catinga, dobra desvio, pega 202 caminho, atravessa rio, pula cerca, passa ponte, passa estrada. O boi Bozó não parava, mas a distância que o separava do alazão Brioso já era a metade. Ninguém jamais poderá calcular a velocidade em que iam. O boi Bozó na frente. . . __ . . .e eu atrás, Seu João Inácio. — A cavalo? — Não, Pedro Bó. A cavalo, não. Eu ia montado em teu pai, que, pra mim, não tem montaria melhor do que teu pai. Terta, arme minha rede que eu vou me deitar. Não conto mais nada. Ameaçou levantar-se, a mulher o conteve. — Conte, meu velho. Pedro Bó perguntou sem querer. — Conte — pediu João Inácio, muito interessado. — Pois bom! A distância entre o boi Bozó e o alazão Brioso já não chegava a vinte metros. Foi quando Pantaleão deu fé que estavam na cidade do Rio de Janeiro. O povo corria para as casas e se escondia nas esquinas. Ninguém entendia aquela coisa inacreditável: um boi malhado voando pelas ruas, seguido por um alazão com um cavaleiro em cima, em velocidade ainda maior. — De mim você não escapa, seu boi cachorro! Pantaleão tinha a honra posta em jogo. Os vaqueiros, no sertão, certamente estariam apostando se ele traria ou não o boi Bozó, arreliado, bicho mateiro. Numa esquina o sinal fechou. Boi Bozó era danado, mas era obediente — palavras de Pantaleão. Parou no sinal e, cansado como estava, deixou que corda lhe fosse passada pelo pescoço. — Pronto. Embarque no Lóide — orientou Pantaleão a um cidadão que se prontificara a ajudá-lo. — Vai voltar de navio, que de pés ele não agüenta a viagem de volta. O boi Bozó foi levado para ser devolvido ao dono. Pantaleão abraçou-se ao cavalo. O alazão Brioso, mais brioso do que o nome, estava frio. Esquisitamente frio. — Morreu naquela hora, Seu Pantaleão? — perguntou Seu João Inácio, já se preparando para ir embora. — Nada. Tinha morrido há mais de cinqüenta quilômetros. O resto ele veio no embalo. Ah, Brioso, Brioso, que saudade eu tenho do meu cavalinho. — Esse cavalo, Seu Pantaleão. . . — Não conhece ele não? Já viu, na frente do Jóquei Clube lá no Rio? Não tem um cavalo lá, em pé, todo ajeitado? — Tem. . . tem — confirmou João Inácio, titubeando. — Diga pra ele, Terta, que cavalo é aquele. Referências Bibliográficas ALBERTI, Verena. "O riso e o risível na história do pensamento". 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Enfocamos especificamente os contos da série de "A Vida Como Ela É....", de Nelson Rodrigues, inicialmente publicados em jornal nos anos 50 e posteriormente adaptados para a televisão nos 90. A escolha do tema justifica-se pelo contínuo aumento no volume de produções literárias adaptadas para novos suportes eletrônicos e diferentes públicos. Optando pela metodologia teórico-prática, esta pesquisa consiste, sobretudo, numa análise dos conteúdos originais (escritos) e adaptados (televisivos) buscando encontrar conjunções, disjunções e transmutações na transição de uma forma a outra. Esta vem acompanhada de ampla pesquisa bibliográfica de modo a proporcionar uma reflexão criteriosa sobre a potencialidade de autores e obras em se adaptarem a novas linguagens e meios. Para isso, em nossos objetivos específicos, propusemos a criação de categorias de análise, ou fatores de adaptabilidade, a saber, a criatividade receptiva, a variabilidade de formatos, temática de ruptura e fenda narrativa. Palavras-chave: adaptação; tradução; literário; audiovisual. Abstact This article deals with the study of the adaptation process languages that has as objective to analyze the transition from written text to the audiovisual through intersemiotic translation (Jakobson, 1969). Specifically we focus on the tales from the 'Life As It Is .... "by Nelson Rodrigues, originally published in a newspaper in the 50s and later adapted for television in 90. The choice of theme is justified by the continuing increase in volume of literary productions adapted to different audiences and new electronic media. Opting for the theoretical and practical methodology, this research is above all an analysis of original content (written) and adapted (television) trying to find conjunctions, disjunctions and transmutations in the transition from one form to another. This is accompanied by extensive literature review to provide a thorough reflection on the potential of authors and works to adapt to new languages and media. For this, in our specific objectives, we proposed the creation of categories of analysis, or adaptability factors, namely the receptive creativity, variability of shapes, break of thematic and narrative slot. Keywords: adaptation; translation; literary; audiovisual. Adaptador e adaptado 205 Antes da adaptação de A Vida Como Ela É..., nos anos 90, Nelson Rodrigues já era um nome associado ao meio audiovisual. Por isso, é importante salientar a inserção de sua obra no panorama cultural brasileiro, na nossa memória imagética coletiva. O jornalista sempre foi um articulador de suas produções junto às grandes massas, enunciando diversos temas sobre o comportamento da sociedade brasileira na medida em que trazia à tona as tensões morais de suas criações. Primeiramente como jornalista, em suas colunas e crônicas, depois como ficcionista, autor de contos, romances e de 17 peças de teatro. Em seguida, na transcodificação de sua obra para TV e cinema. Como bom artesão das palavras, Nelson Rodrigues também produziu para televisão, muitas vezes adaptando sua própria obra. Escreveu diálogos e cenas de telenovelas, quase todas tendo como referências suas próprias peças teatrais. A “auto-adaptação” de sua obra começou quase que junto com a própria televisão. Quando nos propusemos a pesquisar material bibliográfico sobre adaptação, em nosso caso específico, houve uma certa dificuldade. Inicialmente, porque a maioria dos livros e artigos objetivam discutir a adaptação de romances para o cinema. Foi prática comum, desde o início do século passado (cinema), e a partir da metade dele (televisão), o empréstimo do status cultural de grandes dramaturgos e escritores para a construção da linguagem desses suportes manipuladores de imagens e sons em sincronia. Até que se constituíssem formas próprias de expressão, consagradas junto ao público, essas constantes releituras por meio das tecnologias audiovisuais, sempre recorreram aos cânones da literatura. Ainda é muito raro achar um estudo específico que estabeleça comparativos entre o suporte impresso de uma curta história (conto, por exemplo), publicado em jornal ou em livro (muito menos nos dois), e um formato específico de um programa de televisão (magazine, minissérie, seriado, especial etc.). Raros são os estudos que investigam essas especificidades. Destaca-se, no entanto, no Brasil, as análises de Ana Maria Balogh, e, no Canadá, Linda Hutcheon, ambas da área de Letras, às quais recorreremos constantemente quando mencionarmos os conceitos e os processos adaptativos. Talvez por esse tipo de produção televisiva adaptada ser considerada “menor”49, ou pelo fato de que adaptar um conto seja menos “desafiador” do que um romance. A condensação narrativa, a rapidez de desenvolvimento, o alcance limitado de sua ambição demonstrativa, evocadora ou satírica, são razões enumeradas por Mitterand50, para justificar um menor risco de perda no caminho da adaptação. Não que adaptar um conto esteja ao alcance de qualquer um, mas o risco do adaptador “picotar” o romance de partida, é muito maior, conforme o especialista justifica abaixo: Mas o romance, em suas manifestações mais rematadas, entra num jogo completamente diferente de dimensões, combinações, significados e valores [em relação ao conto]. E é nesse nível de dificuldade, na passagem de uma arte para outra, que é temerário “meter a tesoura”. (2014, p.11) A esses diversos motivos fomos obrigados a recorrer à linguagem que mais se aproximava do nosso objeto, ou seja, a adaptação audiovisual cinematográfica. Considerando as condições 49 Geralmente, autores se referem ao meio colocando a palavra “televisão” depois de “cinema, teatro” e antes de “etc.” 50 Miterand, Henri. 100 filmes: da literatura para o cinema. Tradução de Clóvis Marques. 1ª Edição Rio de Janeiro: Best Seller, 2014. (p. 10-11) 206 especiais de produção da série A Vida Como ela É..., captada por câmeras de cinema, gravada em filme de 35 mm, e não em fita eletromagnética (como a maioria dos programas de televisão), acreditamos que, enquanto conteúdo nuclear, o produto final independente do meio onde é distribuído. Isso porque é o uso da linguagem (audiovisual, no caso) o ponto em comum. Já o aspecto da adaptação ser na forma de um conto seriado irá implicar, sim, no meio (TV). Diferentemente do cinema, que trabalha com obras únicas e eventualmente uma a quatro continuações, a televisão, por sua natureza instantânea, de retorno imediato a partir de produção serializada, tem a capacidade de dilatar ao máximo as narrativas e multiplicar a quantidade de filhotes da obra original ao longo de sua programação. Também é notória a quantidade de material que analisa a originalidade da obra adaptada ou a inviolabilidade da obra original. Sabemos que, na medida em que algo deixa de manter sua forma original, a sua essência pode permanecer, mas seu duplo adaptado se modifica profundamente. E é isso que nos interessa discutir daqui para frente, pelo menos em três possibilidades: as aproximações, os distanciamentos e as transformações radicais que ocorrem no processo de adaptação de linguagens e quanto esses elementos interferem nos fatores de adaptabilidade de um suporte a outro. Antes, porém, vamos alinhavar algumas semelhanças e diferenças nas características da palavra escrita do conto e do episódio audiovisual, a começar pela concepção narrativa, compreendida aqui como o arranjo da disposição dos acontecimentos e das ações das personagens. A narrativa pode ser considerada o eixo comum da literatura, do drama e do cinema, do episódio de televisão ainda que muitos filmes, programas, peças e romances apresentem exatamente a intenção de promover uma espécie de desmanche do texto original. Como vimos, a teledramaturgia é a arte da ação e encenação, espécie de ação vivificada, captada por câmeras, montada e distribuída à audiência massiva. Ela reúne fragmentos desenvolvidos independentemente, embalando-os em um conteúdo moldado em um determinado formato televisivo. Já a literatura é um meio onde a imaginação do leitor constrói as imagens, já que é através do contato com as palavras que ele chegará até elas, formulando assim o seu exclusivo universo visual da ficção. Há mais liberdade na construção do mundo descrito, contado, pelo autor. Já o cinema, a TV, diferentemente, constituem-se formas ficcionais onde a imagetização já está presente na própria construção poética do autor ou, no nosso caso, os co-autores, ou autor coletivo da adaptação audiovisual. Voltando ao cinema como linguagem, Umberto Eco defende que ele se serve de imagens, enquanto a literatura se serve de “palavras-conceito”. O autor italiano elucida melhor a questão ao explicar que “no primeiro caso (o da literatura) o fruidor é estimulado por um signo lingüístico recebido de forma sensível, mas usufruído apenas por meio de uma operação mais complexa, embora imediata, de exploração do ‘campo semântico’ conexo com aquele signo, de modo que, acompanhado pelos dados contextuais, o signo deixará por evocar na acepção apropriada da palavra, uma série de imagens capazes de estimular emotivamente o receptor”51. As adaptações mais comumente consideradas são as que passam do modo contar para o mostrar, geralmente do meio impresso para o performativo. A adaptação de um meio 51 ECO, Umberto. A Definição da Arte. Trad. de José Mendes Ferreira. Lisboa: Lisboa, 1972, p. 189. 207 ao outro terá o papel de capturar e orientar a interpretação da história proposta, orientandonos para a percepção direta, conforme explica Hutcheon: No modo contar, na literatura narrativa, por exemplo, nosso engajamento começa no campo da imaginação, que é simultaneamente controlado pelas palavras que conduzem o texto, e liberado dos limites impostos pelo auditivo e visual (...) Mas na travessia para o modo mostrar, como em filmes e adaptações teatrais, somos capturados por uma história inexorável, que segue adiante. Além disso, passamos da adaptação para o domínio da percepção direta, com sua mistura tanto de detalhe quanto de foco mais amplo. (2013, p.48). Outra semelhança subjacente a essas duas produções é o foco narrativo. Comum entre texto impresso e episódio de televisão, ele é o eixo central da narrativa, que estrutura a fábula e é perseguida pelo autor. Sua forma poderá variar, mas o foco narrativo não. Veremos posteriormente que esse elemento comum será mantido em ambas as produções (texto e audiovisual) com objetivo de realizarmos nossa análise no próximo capítulo. Em linhas gerais, a adaptação é a repetição sem replicação. As mais comuns, e objeto de nossa análise, são as que partem de um texto escrito (publicado originalmente em mídia impressa, como jornais, revistas e livros) para um modo performático, como um conteúdo audiovisual eletrônico (veiculado em inúmeras mídias como cinema, televisão, DVD, Web e dispositivos portáteis como tablets e smartphones), uma peça de teatro, jogos interativos eletrônicos e até parques temáticos. Há sempre um “texto de partida” e um ou muitos duplos adaptados, lançados isolados ou simultaneamente em diversos suportes midiáticos52, geralmente atrelados a questões comerciais, como veremos no próximo capítulo. Como na mimese clássica, a adaptação não é uma cópia, mas um processo de apropriação do material adaptado. Nas palavras de Hutcheon53, uma adaptação pode ser descrita do seguinte modo: “uma transposição declarada de uma ou mais obras reconhecíveis; um ato criativo e interpretativo de apropriação/recuperação; um engajamento intertextual extensivo com a obra adaptada” (2013, p. 30). Ou seja, uma nova obra, porém atrelada de forma particular a uma ou várias obras originais. E essa particularidade implica na capacidade criativa do adaptador, na forma de esculpir a nova obra a partir de um original bruto, conforme comparação de Linda Seger54: The adaptor is much like the sculptor Michelangelo, who, when asked how he was able to carve such a beautiful angel, replied, “The angel is caught inside the stone. I simply carve out everything that isn’t the angel.” The 52 O conceito da narrativa transmidiática, discutido pelo pesquisador norte-americano Henry Jenkins em seu livro Cultura da Convergência parte do princípio que uma mesma história pode se desenrolar por meio de múltiplos canais de mídia contribuindo, conforme suas especificidades, para a boa compreensão do universo narrativo. Esse recurso é muito utilizado na indústria do entretenimento. 53 HUTCHEON, Linda. Uma Teoria da Adaptação. Tradução de André Cechinel. 2ª Edição. Florianópolis: Editora da UFSC, 2013. 54 SEGER, Linda. The Art of Adaptation: Turning Fact And Fiction Into Film. Nova York: Owl Books, 2011. (eBook) 208 adaptor is sculpting out everything that isn’t drama, so the intrinsic drama contained within another medium remains. (SEGER, 2011, pos.194-197) A adaptação também não é uma paródia ou um plágio. Geralmente, sua identidade é anunciada abertamente, com avisos como “baseada em” ou “adaptada de”, inclusive por motivos legais relacionados aos direitos autorais do autor de origem. Esse fator faz dessa produção algo já conhecido do público. Portanto, a escolha do material adaptado não ocorre por acaso e sim fruto de uma série de escolhas, conforme enumera Hutcheon: No ato de adaptar, as escolhas são feitas, com base em diversos fatores, incluindo convenções de gênero ou mídia, engajamento político e história pessoal e pública. As decisões são feitas num contexto criativo e interpretativo que é ideológico, social, histórico, cultural, pessoal e estético. (2013, p.153) Todos esses fatores irão interferir no processo de adaptação. Uma adaptação, assim como a obra adaptada, está sempre inserida em um contexto – um tempo e um espaço, uma sociedade e uma cultura; ela não existe num vazio. Conforme citamos nos capítulos anteriores, contextualizando o cenário dos anos 50 aos 90, havia uma série de questões envolvidas que de certa forma pesaram na escolha de A Vida Como Ela É... para transformar-se em conteúdo audiovisual televisionado, veiculado, de forma seriada, em programa semanal de televisão. Tanto aspectos ideológicos quanto estéticos foram preponderantes na passagem de uma mídia a outra, fazendo com que em seu processo ocorressem recodificações ocasionadas pela transcodificação de signos convencionados, conforme relaciona Hutcheon: Em vários casos, por envolver diferentes mídias, as adaptações são recodificações, ou seja, traduções em forma de transposições intersemióticas de um sistema de signos (palavras, por exemplo) para outro (imagens, por exemplo). Isso é tradução, mas num sentido bem específico: como transmutação ou transcodificação, ou seja, como necessariamente uma recodificação num novo conjunto de convenções e signos. (2013, p. 40) Esse caráter de transcodificação, passa necessariamente por um processo de ajuste. O conhecido roteirista Syd Field55, com larga experiência em adaptar romances, peças de teatro, artigos de jornais ou revistas para audiovisual (principalmente, cinema), inclui diversas vezes a palavra “mudança” em seu manual ao afirmar que a adaptação é definida como a habilidade de “fazer corresponder ou adequar por mudança ou ajuste – modificando alguma coisa para criar uma mudança de estrutura, função e forma, que produz uma melhor adequação”. Em sua visão, está descartada a superposição do roteiro sobre o livro, ou vice-versa. Está, sim, sendo operada uma troca irreversível. Troca-se um suporte por outro, com todas as particularidades que os caracterizam. Para ele, o roteiro é o primeiro meio para que essa alquimia se realize posteriormente. Do homogêneo ao sincrético (re)homogeneizado Dentro dessa perspectiva da troca, da mudança formal, nos apoiaremos no conceito de Roman Jakobson sobre tradução. Ele propõe, basicamente, três categorias, entre as quais destacaremos a tradução intersemiótica: 55 FIELD, Syd. Manual do Roteiro – os fundamentos do texto cinematográfico. Tradução de Álvaro Ramos. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p 174. 209 A tradução intralingual ou reformulação ("rewording") consiste na interpretação de signos verbais por meio de outros signos da mesma língua. A tradução interlingual ou tradução propriamente dita consiste na interpretação dos signos verbais por meio de outra língua. A tradução intersemiótica ou transmutação consiste na interpretação dos signos verbais por meio de sistemas de signos não-verbais. (JAKOBSON, 1969, p. 64-65, grifos nossos) Na passagem do texto literário ao fílmico, ao televisual, a tradução torna-se adaptação. O processo de adaptação, ou tradução intersemiótica, pressupõe a passagem de um texto caracterizado por uma substância da expressão homogênea - a palavra - para um texto na qual convivem substâncias de expressão heterogêneas, tanto no que concerne ao visual quanto ao sonoro. A tradução intersemiótica pressupõe a relação do verbal e do não-verbal. A matéria visual pode ser dividida em imagem fixa, imagem em movimento e palavra escrita; e a matéria sonora em música, ruído e palavra falada. Recorremos, novamente, a Linda Hutcheon: Na passagem do contar para o mostrar, a adaptação performativa deve dramatizar a descrição e a narração; além disso, os pensamentos representados devem ser transcodificados para a fala, ações, sons e imagens visuais. Conflitos e diferenças ideológicas entre os personagens devem tornar-se visíveis e audíveis. (2013, p. 69) Ver e ouvir o texto. Dar visibilidade e substância sonora à palavra escrita e depois reunir esses elementos em um construto síncrono audiovisual é o papel da adaptação. Nesse sincretismo, destaca-se o trabalho do roteirista, aquele profissional que, a partir do texto base, criará a ação, os diálogos e as cenas que se desenvolverão no tempo-espaço da narrativa audiovisual adaptada. Seu produto, o roteiro, também é um texto. Porém, essa materialidade de origem desaparecerá para permitir sua realização. Seu esforço está na forma como o roteiro manterá a essência da obra adaptada. Um dos fatores que poderá contribuir é a identificação entre roteirista e autor. Para Euclydes Marinho, adaptador da série aqui pesquisada, é vital que haja uma admiração pessoal do roteirista pelo autor a ser adaptado. Outro consagrado roteirista, Doc Comparato, descreve os primeiros passos na construção de um roteiro, a partir da construção dos diálogos no tempo dramático das cenas: O tempo dramático é o quanto tempo terá cada cena. Isto é, colocamos os diálogos nas cenas e por meio deles começamos a dar ao trabalho uma forma de roteiro. Nessa etapa, completaremos a estrutura com o diálogo. Então, cada cena terá seu tempo dramático e a sua função dramática. Esse trabalho já se concretiza no chamado primeiro roteiro. (COMPARATO, 2009, p. 32) Portanto, no processo de adaptação, o roteirista é o primeiro tradutor. Um problema particular da adaptação, e enfrentado no início pelos roteiristas, é comum a todas as mídias: a dificuldade de representar ou tematizar o desenvolvimento do tempo – algo que pode ser feito com facilidade na ficção e prosa. Como aponta Pellegrini: Tratando-se do texto ficcional, é a observação das modificações nas noções de tempo, espaço, personagem e narrador, estruturantes básicos da forma 210 narrativa, que ajuda a entender um pouco melhor a qualidade e a espessura dessas modificações (PELLEGRINI, 2003, p. 16). O trabalho do roteirista não está apenas no interior do texto, na transformação das ações em falas de atores de carne e osso, mas também a serviço do novo meio no qual o conteúdo será veiculado. Na adaptação tradicional, o trabalho do roteirista adaptador de TV se faz muito mais no sentido de criar acréscimos, novos planos e anti-planos narrativos, novos personagens, muitas vezes novos espaços e tempos. Talvez porque um roteiro lida com as exterioridades textuais, aquilo que precisa aparecer. Na definição de Field (2001, p. 175), “um roteiro é uma história contada em imagens, colocada no contexto da estrutura dramática”. Isso quer dizer que muitas vezes, a partir de um trecho de alguns parágrafos da obra original, o roteirista poderá multiplicar a narrativa audiovisual em dezenas de cenas, por exemplo, de acordo com a forma com a qual aquele conteúdo será mostrado, seja obra seriada, seja obra única. Em outras palavras, a transmutação audiovisual exige, em geral, uma estratégia de expansão narrativa e discursiva, fator que conta também com a participação do público na hora de preencher lacunas, conforme comenta Hutcheon: Durante o processo, inevitavelmente, preenchemos lacunas na adaptação com informações do texto adaptado. A rigor, os adaptadores contam com essa habilidade de preencher lacunas quando passam da expansão discursiva do modo de contar para as limitações de tempo performativo e espaço de mostrar. (2013, p. 166) Ao analisar a adaptação de romances brasileiros para minisséries de televisão, Balogh (1996, p. 142) afirma que tanto a recorrência de temas básicos (isotopias) quanto os programas narrativos que as delineiam são mantidos de uma obra para outra. A fragmentação televisual, no entanto, faz com que haja, no roteiro, uma consciência mais aguda da organização por blocos de sentido. Há maior exigência de concentração temática e narrativa no roteiro do que no romance (p. 150). Sendo assim, ao compararmos as adaptações de textos literários para plataformas de exibição audiovisual, como a televisão e o cinema, podemos dizer que os programas, por serem serializados, são muito mais extensos do que as obras fílmicas e a maioria das obras literárias. Além disso, os programas televisuais são descontínuos, visto que se fragmentam inúmeras vezes, não apenas nos capítulos ou episódios, mas também nos vários intervalos da programação, como os comerciais e nas chamadas de outros programas. A característica principal do meio televisivo, a extensão e a fragmentação, serão a constante preocupação do roteirista, na medida em que são determinadoras da descontinuidade, pois tornam os elementos conjuntivos propiciadores da tradução intersemiótica muito mais necessários, pois são os elementos responsáveis pela coerência e coesão do texto, no caso, o televisual. Outra característica que atinge diretamente a passagem do texto literário para outros formatos de adaptação é o número ilimitado de leituras e possibilidades presentes na ambiguidade poética que eles carregam. Por isso, é muito difícil traduzir exatamente o que o texto propõe, uma vez que muito daquilo que se expressa não está nas linhas e sim nas entrelinhas. Sobre este aspecto subjetivo, Jakobson explica tecnicamente: Em poesia, as equações verbais são elevadas à categoria de princípio construtivo do texto. As categorias sintáticas e morfológicas, as raízes, os 211 afixos, os fonemas e seus componentes - em suma, todos os constituintes do código verbal - são confrontados, justapostos, colocados em relação de contigüidade de acordo com o princípio da similaridade e do contraste; e transmitem assim, uma significação própria. A semelhança fonológica é sentida como um parentesco semântico (JAKOBSON, 1969, p. 72). Em uma transmutação, a plena intertextualidade entre um texto de partida e seu duplo adaptado, pode atualizar ou relativizar ambos os textos de alguma forma. Por isso, essa intraduzibilidade entre eles, na verdade, é resolvida pela recriação, como afirma Jakobson: Só é possível a transposição criativa: transposição intralingual - de uma forma poética a outra - transposição interlingual ou, finalmente, transposição intersemiótica - de um sistema de signos para outro; por exemplo, da arte verbal para a música, para a dança, para o cinema ou para a pintura (JAKOBSON, 1969, p. 47) Essa transposição criativa, no entanto, veste uma nova roupagem, novos signos, porém acreditamos que algo permanece. Linda Hutcheon recorre ao conceito de palimpsesto, o pergaminho reutilizável da Antiguidade, para exemplificar a questão: Como transposição criativa e interpretativa de uma ou mais obras reconhecíveis, a adaptação é um tipo de palimpsesto extensivo, e com frequência, ao mesmo tempo, uma transcodificação para um diferente conjunto de convenções. (2013, p.61, grifos nossos). Apagar o texto anterior a fim de reutilizá-lo em novo suporte seria o aspecto primordial da adaptação, que ocorre não apenas por parte do adaptador, mas em uma espécie de acordo tácito com o público. E esse é um acordo que tem como “cláusula pétrea” a temática. Sendo assim, podemos concluir que a tradução, ou adaptação, está aprisionada à isotopia básica do texto original e ao seu foco narrativo, conforme já citamos anteriormente quando mencionamos as semelhanças entre palavra escrita e audiovisual adaptado. Fora isso, quase tudo muda. Randal Johnson56 complementa que quando se vai de um sistema para outro, há uma mudança necessária de valores significantes. O que ele quer dizer é que nessa tradução que migra a homogeneidade da palavra escrita para o sincretismo do texto adaptado, a nova produção ganha significância autônoma precisamente de suas inevitáveis e necessárias divergências da obra original. A autonomia total é impossível pois o texto de partida é uma espécie de cárcere. Mas é necessário considerar que existem alterações inevitáveis nesse processo, principalmente pela função poética do texto base, o que irá implicar na recriação de uma nova narrativa, adaptada à linguagem “de chegada” e em consonância com o meio que a irá reproduzir, em nosso caso, a televisão, por meio da reconstrução audiovisual. Além disso, há nessa transição outra adequação gramatical: do aspecto formal da língua às possibilidades infinitas das imagens. Ainda que Johnson aponte pelo menos cinco tipos de material dentro do processo cinematográfico – imagens visuais, linguagem verbal oral (diálogo, narração e letras de música), sons não verbais (ruídos e efeitos sonoros), música e a própria língua escrita (créditos, títulos e outras escritas) enquanto a literatura costuma trabalhar com apenas uma delas, a escrita, o audiovisual é um meio imagético. Seu sentido, inclusive, parece extraído dos 56 JOHNSON, Randal. Literatura e Cinema, Diálogo e Recriação: O caso de Vidas Secas. In PELLEGRINNI, Tânia (org.). Literatura, Cinema, Televisão. São Paulo: Senac, 2003, p. 46 212 vários sentidos que se estruturam de uma imagem para a outra. Não fosse assim, seria impossível a existência de sentido dentro de qualquer narrativa audiovisual que não contasse com as palavras (o que excluiria o cinema mudo e boa parte dos desenhos animados infantis). Dentro deste contexto, pode-se apontar a soberania, o que não significa dizer exclusividade, da imagem como meio produtor de sentido como uma potencialidade do meio audiovisual. Já a imaginação também é tratada de modo diferente. De maneira geral, o audiovisual costuma trazer tudo pronto: não se evoca a imaginação do espectador, pouco é exigido dele. Por outro lado, esta mesma característica que retira praticamente qualquer possibilidade de evocação, confere a essa linguagem a sua potencialidade maior: o mostrar. Ao contrário da palavra literária, que leva o leitor à transformação mental daquilo que está escrito em imagens (algo que Flusser cita como sendo a função primordial do texto), e do signo literário, repleto de significações e cruzamentos concomitantes, a imagem costuma trazer seu fim em si mesma. Conclusão O alvorecer do século XXI é marcado pelas adaptações. Podemos destacar, pelo menos, três exemplos de versões fílmicas de romances em escala global: Harry Potter (J.K. Rowlling), O Senhor dos Anéis (J.R.R Tolkien) e Crepúsculo (Stephanie Meyer). Poderíamos prosseguir nossa longa lista com os outros filmes que se sucederam e derivaram dos temas “vampirismo” ou “fantasia”, explorados por esses sucessos de bilheteria. Só ficaríamos atrás das adaptações de quadrinhos, onde heróis e vilões da Marvel e da DC Comics ganharam o cinema nas versões audiovisuais de Homem de Ferro, Homem Aranha, Hulk, Capitão América, Vingadores sem contar suas continuações, em geral, uma a cada dois anos após a estreia. É notável que o recurso move freneticamente a indústria do entretenimento. Basta acessar sites da internet e constatar que não apenas os filmes, geralmente as primeiras produções adaptadas, encerram o processo. Ele continua desenfreadamente com uma série de produtos que nascem deles. São, por exemplo, itens de vestuário, itens de beleza, videogames, séries de televisão e até parques temáticos. Nunca antes na história a literatura esteve em um patamar tão rentável e popularizado. Porém, tudo indica que o ato de ler ficou em segundo plano; primeiro se assiste, se compra a marca, se joga, depois, se for o caso, vem a leitura propriamente dita.Ou seja, a obra desse último descola-se tanto do original que passa a fundar uma nova identidade a partir das múltiplas formas com que o público dialoga com ela. Isso quando não ocorre o oposto: filmes ou videogames que “viram” livros (Assasin’s Creed), jogos de videogame que “viram” filmes, ou roteiros de filmes que ganham as prateleiras das livrarias físicas ou virtuais. Aliás, está aí mais uma adaptação: o livro digital, com sua narrativa multimidiática, reunindo em um único espaço virtual textos, conteúdos audiovisuais, jogos e fazendo uso cada vez maior das funcionalidades dos softwares e da portabilidade dos dispositivos eletrônicos como tablets e smatphones. A escalada adaptativa transforma a obra original em um conteúdo digitalizado ubíquo, acessível a qualquer hora e em qualquer lugar permitindo, inclusive, interatividade por meio das redes sociais da internet. Contratos publicitários milionários ditam as regras do mercado. O que está em jogo não é mais a materialidade da obra. A tecnologia reduz a cada dia o valor do produto final visando torná-lo cada vez mais acessível e barato. Nesse sentido, poderíamos oferecer inúmeros exemplos, mas ficamos com o modelo de negócio massificante mais conhecido: a empresa multinacional de comércio eletrônico Amazon, sediada nos Estados Unidos e líder de mercado em venda e distribuição de livros no mundo. Não é o caso aqui dissecarmos as estratégias comerciais, boas ou más, desses grandes 213 conglomerados. Muito menos, critica-los ou enaltece-los levianamente em poucas linhas, deixando de lado um estudo feito com a devida profundidade. Mas é necessário saber que, mais do que empresas, eles são agentes de mudança nos nossos hábitos de consumo e, isso sim, é importante; é fundamental estarmos cientes disso, pois nosso comportamento altera as engrenagens do mercado. Compreender esse panorama, a cada dia modificado pela tecnologia crescente, e situar-se nele, se faz mais do que necessário nesses tempos. Em especial, para os profissionais que atuam no campo das Humanas, em específico, nas áreas das Letras, das Artes e da Comunicação Social. Nesse sentido, o presente trabalho se estrutura e se justifica objetivando oferecer, a partir da pesquisa realizada, ferramentas que eventualmente possam ser úteis para auxiliar na decodificação e na recodificação de construtos audiovisuais adaptados. A elas, daremos o nome de fatores de adaptabilidade. Em nosso entender, essas categorias devem ser levadas em conta tanto por aqueles que se propõe a adaptar uma obra para outra linguagem, como roteiristas ou escritores, quanto pelo público em geral que consome adaptações, como uma espécie de guia para um entendimento melhor do quesito “originalidade”, tanto na preservação da autoria no conteúdo adaptado, quanto na própria adaptação enquanto obra nova. Aliás, não podemos nos iludir que o novo meio adaptador não se apropria do original. Ele o faz, sim, de dois modos. De forma sutil, na menção formal do autor de partida, como as cláusulas dos contratos de direitos autorais exigem. Ou em um grau extremo, incorporando-o à sua natureza e readequando-o aos seus propósitos como meio, ao ponto de reconfigura-lo completamente sendo parte dele. A formulação dos itens propostos a seguir não é baseada no sucesso ou no fracasso comercial dos construtos adaptados. A esse fator atribuímos o modus operandi do mercado, o que em nada acrescentaria nessa parte, uma vez que é a lógica financeira que o orienta. Nossa formulação baseia-se nos conceitos aqui abordados, apropriados de diversas teorias e reunidos nesse trabalho, que podem enriquecer a leitura e auxiliar as escolhas de um grupo que pretende adaptar uma obra sem ter como único vetor o fator lucro. A primeira categoria de adaptabilidade é a criatividade receptiva do autor. A popularidade (ou não) de um autor junto ao público é certamente um aspecto relevante em qualquer adaptação. Porém, há ainda outros que podem complementa-lo. Como, por exemplo, conhecer a relação que ele estabelece com o público e a forma como ele desenvolve seu processo criativo. Conforme vimos nos capítulos anteriores, Nelson Rodrigues é um autor que utiliza a realidade como matéria-prima de suas ficções. Mesmo sendo jornalista, ele não se restringe a relatar os fatos com aparente realismo, mas inspirados deles, construir novas histórias que façam um sentido maior para a massa. Como constatamos, Nelson utilizava a imaginação para completar as lacunas dos casos que lhe contavam na redação, das suas memórias de infância e do subtexto das fotografias dos arquivos dos jornais. Essa sua capacidade criativa era posteriormente “testada” junto ao público para, a partir da aferição dessa recepção, readaptar as próximas criações, em um movimento contínuo de recriações que tiveram como laboratório os cerca de dois mil contos publicados em 10 anos na coluna A Vida Como Ela É... Ou seja, a capacidade de redirecionamento narrativo associada à recepção do público, recriando-a, de forma sutil, aos seus anseios, é um aspecto ligado ao autor que pode justificar ou não sua escolha para uma adaptação. Um autor que tem a constante preocupação em ser aceito ao ponto de imprimi-la em sua obra é um autor permeável pela alteridade, portanto, adaptável. Esse fator relaciona-se diretamente com o próximo. 214 O segundo, variabilidade de formatos, requer de nós uma análise conjuntural de tudo o que o autor já produziu. Quanto mais sua obra for diversificada em formatos, mais ela estará apta a outras linguagens. Como vimos, Nelson Rodrigues ergue assim a sua. Além dos contos aqui pesquisados, sua obra multiplica-se em peças de teatro, crônicas, resenhas, críticas, romances e folhetins. E esse constante processo de variação de gêneros (ou sobre o mesmo tema) é a própria auto-adaptação em si. A próxima obra sempre carrega os erros ou os acertos das anteriores num processo de “fortalecimento autoral”. Como vimos na peça A Falecida, originária de um conto de A Vida Como Ela É..., o próprio autor já mostra que foi capaz de imprimir uma linguagem performática em um texto de natureza verbal o que nos permite concluir que sua essência é adaptável. E isso irá ocorrer por meio da linguagem, da caracterização dos personagens e dos cenários escolhidos, expressos no texto. A partir do que via, lia e, principalmente lhe contavam, ele desenvolvia tipos psicológicos, planos, e situações facilmente transportáveis de um formato para outro, fator importante quando um adaptador necessita criar diálogos e cenas a partir de um texto de partida. Com linguagem coloquial, típica dos jornais, Nelson pré-roteiriza na origem, criando diálogos carregados de expressões populares, movimento, imprimindo em seus construtos, sobretudo, a ação e o detalhamento necessários para a equipe de adaptação construir o roteiro final. O próximo fator também está relacionado com a obra e é a temática de ruptura. O fator temático presente na obra de origem também precisa ser observado com cuidado. Como vimos, A Vida Como Ela É... propõe uma ruptura tanto no aspecto formal quanto semântico. Não somente pelas pequenas histórias exteriorizarem mazelas da sociedade, como o desejo sexual reprimido e o adultério, mas valer-se deles para romper com a temática vigente. Os contos de A Vida Como Ele É... repetem esses tabus à exaustão (foram duas mil histórias sobre assassinatos e adultérios), a ponto desses conflitos repercutirem nas obras de folhetim feitas até então (lembremos que o Asfalto Selvagem foi inspirado na obra de contos), sua própria obra dramatúrgica (Tragédias Cariocas) e a própria política brasileira (lembremonos do político Carlos Lacerda e seus constantes ataques ao “tarado” do Nelson Rodrigues). A temática de ruptura representa um aspecto de adaptabilidade na medida em que está associada às mudanças internas, na obra do autor, e externas, ao público. Quanto maior sua ruptura, mais clara estará a identidade da sua autoria. Esse padrão que pode ser trabalhado em diversas perspectivas pela equipe de adaptação, é o ponto de encontro com o público, que reconhece a autoria original na adaptação e “permite”, tacitamente, modificações a partir dela. Isso dará mais liberdade à equipe de adaptação para fazer os ajustes necessários, sem perder de vista a fidelidade autoral. O último aspecto é a fenda narrativa. Adaptar uma obra cuja estrutura narrativa é muito bem construída nos diálogos, nas ações, no tempo e no espaço, pode ser vantajoso. Isso ajuda o roteirista a construir melhor o roteiro, conforme observamos no capítulo de análise do conto O Decote em relação ao seu foco narrativo presente tanto na versão escrita quanto audiovisual. Porém, para que haja uma margem de negociação que permita viabilizar a adaptação, um texto hermético em sua construção pode trazer problemas. Por isso, acreditamos que é necessário encontrar na obra de partida pequenas janelas sugestivas de alterações, permitindo uma maior sintonia com os objetivos gerais da adaptação, na linguagem e no meio de destino. É esse componente presente nos textos de Nelson Rodrigues, materializado, por exemplo, pelo interdito, que faz com que a mesma obra ganhe montagens e identidades diferentes, 215 dialogando com sucessivas gerações de espectadores, em diferentes épocas. Essa fenda, ou a soma delas, também permite uma recriação mais qualificada na adaptação justamente porque, se bem utilizada, preserva a identidade original, mas abarca a poética da nova proposta artística que a adapta. Foi justamente isso que, ao nosso ver, caracterizou a adaptação dos contos pela TV Globo. De modo geral, ela valeu-se de sua competência técnica para estabelecer, por meio de sua equipe, sua estratégia de adaptação. Dessa sutileza, conquistada pelos seus realizadores, surge o pacto com o público, indissociável de qualquer construto adaptado. Pela fenda narrativa surge a troca na programação da emissora: a programação ressalta o erotismo latente do conto, dando o bote na audiência, mas em contrapartida, a adaptação oferece uma tecnoimagem convincente, de boa qualidade artística, “quase original”, permitindo às massas, pela obra de um autor consagrado, o acesso à sua “verdadeira identidade”. Referências BALOGH, Anna Maria. Conjunções, Disjunções, Transmutações - da literatura ao cinema e à TV. São Paulo: Annablume, 1996. BATAILLE, Georges. O erotismo. São Paulo: ARX, 2004. BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e Simulações. Lisboa: Relógio D'Água, 1991. BAKTHIN, Mikhail M. Problemas da Poética da Poética de Dostoievski. 2ª edição revista. Tradução de Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997. BORBA, José César. Vestido de Noiva. In: RODRIGUES, Nelson. 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The film adapts the diary of Ernesto Che Guevara. We analyzed the extensions and enlargements (Genette, 2011) conducted by screenwriter Jose Rivera, seeking to understand what plots were created for the film and reflecting about these additions in the adaptation. Keywords: transtextuality, screenplay, Genette, Walter Salles. Introdução Neste artigo vamos refletir sobre os acréscimos de trama em Diários de motocicleta (2004) de Walter Salles, adaptação de De moto pela América do Sul (2011) escrito por Ernesto Che Guevara e Com Che Guevara pela América do Sul (1978) escrito por Alberto Granado. Che anotou suas impressões da jornada e narrou as aventuras num diário que foi posteriormente editado por ele em forma de narrativa. Os manuscritos ficaram guardados por anos, até que a família resolveu organizá-los e publicá-los em livro em 199357. Granado lançou sua versão no final dos anos 197058. Em nossa análise, o foco estará no diário escrito por Che, uma vez que, o filme leva o título da versão inglesa da obra, o longa-metragem de Salles tem como narrador Guevara e o relato de Granado serviu de apoio à construção do roteiro, não como cerne da transposição. Para pensarmos a relação entre literatura e cinema em Diários de motocicleta vamos utilizar os conceitos de Genette (2011) sobre práticas transtextuais. Por meio da teoria do pesquisador francês, poderemos entender como se dá a passagem dos diários para o filme. A ideia de Genette sobre adaptação está vinculada ao conceito de palimpsesto, que “é um pergaminho cuja primeira inscrição foi raspada para se traçar outra, que não a esconde de fato, de modo que se pode lê-la por transparência, o antigo sob o novo” (GENETTE, 2011, p.7). Ou seja, palimpsestos são obras derivadas de uma obra anterior, o que o autor vai chamar de 57 Utilizamos aqui a edição de 2001, lançada pela Sá Editora no Brasil, que teve como base a traduções das versões inglesa (Verso Books, 1995) e italiana (Feltrineli Editore, 1993). 58 Utilizamos aqui a edição de 1987, lançada pela Editora Brasiliense, que teve como base a tradução do original Com el Che por Sudamérica. 220 hipertextos, uma das cinco práticas transtextuais que ele vai sugerir para analisar obras literárias. Para Genette, o objeto da poética já não é mais o texto, considerado em sua singularidade, mas a sua transtextualidade, no caso, “tudo que o coloca em relação, manifesta ou secreta, com outros textos” (GENETTE, 2010, p. 13). A hipertextualidade é formada por vários processos, sendo o mais importante para este artigo, o da transmodalização, que podemos entender como “qualquer tipo de modificação feita no modo de representação característico do hipotexto. Mudança de modo, portanto, ou mudança no modo, mas não mudança de gênero [...]” (GENETTE, 2011, p. 119). As transformações modais podem ser intermodais (passagem de um modo a outro) ou intramodais (mudança que afeta o funcionamento interno do modo). As intermodais diriam respeito à passagem do narrativo ao dramático59 (dramatização), e à passagem inversa, do dramático ao narrativo (narrativização). As intramodais seriam as variações do modo narrativo e as variações do modo dramático. Dentro dessas quatro distinções, a que se relaciona com Diários de motocicleta é a dramatização, uma vez que Genette a exemplifica ao falar das adaptações, inicialmente teatrais e hoje, cinematográficas. Essa prática persistiu ao longo da história, passando pelos Mistérios (baseados na Bíblia) e pelos Milagres (baseados nas vidas de santos) da Idade Média, o teatro elizabetano, a tragédia neoclássica, até a prática moderna da “adaptação” teatral (e hoje em dia, mais frequentemente, cinematográfica) dos romances de sucesso (GENETTE, 2011, p. 120) Devido a diferenciação entre as mídias, literatura e teatro, ou no caso aqui, literatura e cinema, a dramatização normalmente é marcada por transformações quantitativas, tanto no sentido de abreviá-la (redução) quanto para estendê-la (aumento). “Reduzir ou aumentar um texto é produzir a partir dele um outro texto, mais breve ou mais longo, que dele deriva, mas não sem o alterar de diversas maneiras, específicas de cada caso [...]” (GENETTE, 2011, p. 77). A redução compreende processos como a excisão, concisão e condensação e o aumento pode ser entendido por meio de procedimentos como a extensão, expansão e ampliação. Neste artigo vamos focar na extensão e ampliação, portanto, antes de entrarmos na análise, vamos tratar de defini-las. A extensão se caracteriza pelo aumento por adição maciça, com a criação de tramas não presentes no hipotexto e com elas novos personagens e cenários. Já na expansão é realizada uma dilatação estilística, na qual diálogos e cenas são dobradas ou triplicadas. Como no caso aqui, são tramas que já existem no livro, não iremos analisa-las, dedicando atenção apenas ao que foi acrescido no filme. O terceiro e último procedimento de aumento é a ampliação, que é a conjunção dos dois primeiros processos. Como extensão e expansão são práticas simples e que dificilmente são encontradas em estado puro, não devemos acreditar que um aumento se limite apenas a uma delas. Sendo assim, “a extensão temática e a expansão estilística devem, portanto, ser consideradas como os dois caminhos fundamentais de um aumento generalizado, que consiste mais frequentemente na sua síntese e na sua cooperação [...]” (GENETTE, 2011, p. 110). 59 Genette (2011) utiliza os conceitos de narrativo e dramático a partir dos modos de representação designados por Aristóteles e Platão. 221 Para facilitar nossa análise, vamos apontar separadamente as extensões e ampliações, para ao final, refletir sobre elas. Extensão: as tramas criadas para o filme a) Despedida de Che Logo nos primeiros minutos do filme temos a criação de cenas não existentes na obra original. Enquanto no relato de Che, a viagem inicia em Córdoba e a passagem por Buenos Aires rende um parágrafo sem detalhes, no filme assistimos ao jovem discutindo com o pai, que é contra a viagem, e recebendo o olhar de apoio da mãe e em seguida, a despedida de sua família, que é toda apresentada. Tais cenas já deixam claro que o foco está em Che. Tanto que um acontecimento narrado por Granado em seu livro e omitido por Che em sua obra é utilizado no filme. Em seu diário, Granado narra a sua despedida com a família e conta que ao partirem quase colidiram com um ônibus. O incidente é visto no filme, mas após Che dar adeus aos seus familiares. b) Os dólares de Chichina Ausente no livro, a trama que envolve os dólares que Chichina dá a Che para que ele a compre calças em Miami tem grande importância no filme. É por meio dela que o roteiro de Diários de motocicleta vai fazer uma piada recorrente e, quase no fim da história, demonstrar uma mudança na conduta do personagem de Che. Tudo começa quando Granado vê Che com as notas americanas e já inicia a fazer planos com o que poderão fazer com o dinheiro. Che então corta as esperanças do amigo e explica que o valor será utilizado para a compra de um presente para a namorada. Revoltado com a situação, Granado provoca o parceiro de viagem. Mais adiante na narrativa, a dupla de viajantes consegue uma hospedagem no galpão de um senhor, mas devido a honestidade de Che, que revelou ao homem que ele estava com um tumor e devia procurar um hospital, acabaram por não conseguir refeições, apenas o direito de pescar no lago da propriedade. Quando se dirigem para o local, avistam patos e Granado acerta um. Por ter derrubado a refeição, ele força Che a entrar no lago de águas geladas. Quando o futuro guerrilheiro se recusa, Granado o chantageia dizendo que eles não precisam entrar no lago congelado se usarem os dólares, motivo que faz Che adentrar e buscar o pato que flutua em meio ao lago. Como resultado, Che fica doente e passa uma noite febril. O amigo propõe que eles utilizem o dinheiro para ir a um hospital e recebe uma negativa do doente que prefere seguir viagem passando mal a gastar os dólares. Os dois discutem novamente sobre os dólares quando atravessam o Deserto do Atacama. Depois desse trecho, a trama do dinheiro só retorna próximo ao final do filme, quando os viajantes estão embarcados no La Cenepa, rumo ao leprosário de San Pablo. Granado conhece uma linda e jovem prostituta, Luz, e tenta seduzi-la, no entanto, ouve uma recusa. Completamente encantado pela moça, ele invade o quarto do amigo e implora pelos dólares de Chichina. Che que se recupera de um ataque de asma, revela então que já gastou o dinheiro, causando incredulidade no parceiro de aventura. Então o jovem Ernesto Che Guevara conta que, tocado pela história do casal que conheceram no deserto – que estava em busca de trabalho na mina de Chuquicamata, havia abandonado a 222 família na procura de emprego e que era perseguido por serem comunistas – havia dado o dinheiro para os dois, para ajudá-los em sua peregrinação por serviço. O fato de ter se negado a facilitar a viagem pela América utilizando o dinheiro ou mesmo gastando-o, enaltece ainda mais o ato de doação. Che privou a si e seu amigo para não gastar o dinheiro que havia sido confiado pela namorada, mas não hesitou em dá-lo ao casal que havia o tocado profundamente. c) Honestidade de Che A questão da honestidade de Che parte da realidade, mas é criado um arco para torná-la ainda mais visível ao espectador. A primeira cena que retrata isso é aquela em que os dois jovens chegam à propriedade de um alemão, o senhor Pulkmanken, que pede que os “doutores” examinem seu pescoço. Che toca no caroço proeminente próximo à orelha do homem e o diagnostica com um tumor, algo que assusta o paciente. Na tentativa de amenizar a situação e conseguir ser recebido na casa pelo alemão, Granado diz que acha que é apenas um cisto, no entanto, Che reafirma que aquilo é um tumor e que o paciente deve procurar um hospital o quanto antes. Irritado com o diagnóstico trazido pelos forasteiros, o senhor Pulkmanken (que é citado no livro de Che, inclusive com o detalhe sobre sua doença) diz que os dois podem ficar num galpão e pescar no lago. Após a abordagem sincera de Che lhes colocar numa situação desconfortável, Granado discutiu com o amigo, que se defendeu dizendo que não podia mentir para o homem, que era um caso de saúde. Granado criticou a forma como o companheiro deu a notícia, a seco, sem preparar o paciente. A honestidade de Che é usada aqui também para mostrar uma solução encontrada pelo jovem para amenizar as reclamações do amigo e ligar um acontecimento fictício a um fato real: a entrevista que ambos concederam ao periódico Temuco Austral. Salles cria um evento ficcional para criar uma ligação com outro real, que é apenas citado na obra. O outro momento criado, na verdade, é narrado por Granado em Com Che Guevara pela América do Sul, mas não é citado por Che na sua obra (a qual estamos levando em conta na análise). No filme, a dupla fica hospedada em Lima com o médico especialista em lepra, Hugo Pesce, que os leva para atender os pacientes leprosos do hospital da cidade e que se torna uma espécie de mestre dos dois. Num dos almoços, Pesce revela aos pupilos que escreveu um romance e pede que eles o leiam. Quando estão embarcando no La Cenepa, barco que os levará até a colônia de San Pablo, o médico pede a opinião dos jovens. Após um silêncio incômodo, Granado faz diversos elogios vazios em relação à obra e Che permanece sem falar nada. Quando Pesce pede que Che revele sua crítica, Granado responde por ele e diz que o amigo gostou tanto quanto ele e é interrompido pelo mestre que solicita ouvir isso do próprio Che. Finalmente, o jovem dá seu parecer e faz duras críticas ao romance do médico e sugere ao final que ele permanece apenas clinicando. A sinceridade de Che deixa Pesce sem falas e Granado extremamente constrangido, afinal, o amigo havia dado um parecer nada gracioso ao mestre que tanto os havia ajudado. Pouco antes de se despedirem, Pesce agradece a honestidade de Che e diz que o jovem foi um dos poucos que lhe deu uma opinião tão verdadeira. Como mencionado, uma versão breve da história é narrada por Granado, mas aqui ela ganha destaque ao se reunir com as cenas anteriores em que o caráter de Che está em foco. 223 d) O aniversário de trinta anos de Granado Logo no início do filme, ao apresentar a ideia da viagem, Che revela que eles têm como meta completar a aventura antes do aniversário de trinta anos de Granado. A trama retorna no meio do filme, quando longe do final do itinerário, eles passam o aniversário de Granado na estrada. No final da obra, quando os dois amigos estão se despedindo e vão se separar, Granado revela que a história do aniversário era falsa e que ele a havia criado para motivar Che, que então conta que sempre soube a verdade. Essa pequena trama adicional serviu como alívio cômico e como desafio a ser alcançado no início da viagem e não é mencionada nem no diário de Che, muito menos do de Granado. e) Uso de atores sociais Ao se analisar entrevistas do diretor Walter Salles na época de lançamento de Diários de motocicleta, é possível encontrar uma recorrência em sua fala sobre o uso de um roteiro aberto à realidade da filmagem, algo que ele coloca ter feito antes, em filmes como Terra estrangeira (1995) e Central do Brasil, mas que na obra sobre a juventude de Che Guevara parece mais forte e visível no material fílmico. “Esse é um filme (Diários) que se encontra entre o documentário e a ficção. Para aproximá-lo de um documentário, usamos muita improvisação” (SALLES, 2004)60. O cineasta acrescenta: “dei de cara, por exemplo, em Diários de Motocicleta, com um número incrível de personagens que não estavam no livro, mas poderiam estar, estavam no espírito daquela jornada, e a gente trouxe esses personagens para dentro da história” (SALLES, 2012)61. Um desses personagens é o menino Don Nestor que aparece quando Che (interpretado por Gael Garcia Bernal) e seu amigo Alberto Granado (interpretado por Rodrigo de la Serna) chegam à cidade de Cuzco. Como conta Salles: “o garoto que guia os dois na cidade, por exemplo, não estava no roteiro, foi completamente improvisado” (2004)62. O diretor se refere novamente ao personagem em outra entrevista63, quando explica que “os encontros que tivemos em Cuzco e em Machu Picchu [Peru] foram incorporados à história. Não estavam no roteiro. A cerimônia de coca e os jovenzinhos foram encontros que a viagem nos proporcionou”. Logo após encontrarem Don Nestor e o menino apresentar a cidade aos dois jovens, o mesmo participa da cena em que Che e Granado conversam com um grupo de mulheres indígenas numa praça de Cuzco. É a essa cena que Salles está se referindo em sua declaração. Che questiona sobre a vida das peruanas e, por fim, participa de uma cerimônia da coca, na qual as senhoras ensinam como é o ritual. 60 Entrevista disponível em:http://www.delfos.jor.br/conteudos/index_interna.php?id=85&id_secao= 1&id_subsecao=3. Acesso em 01 de julho de 2014. 61 Entrevista disponível em: http://ultimosegundo.ig.com.br/cultura/cinema/2012-07-14/walter-salles-sobre-na-estrada-e-a-buscada-ultima-fronteira-americana.html. Acesso em 01 de julho de 2014. 62 Entrevista disponível em: http://www.delfos.jor.br/conteudos/index_interna.php?id=85&id_secao =1&id_subsecao=3. Acesso em 01 de julho de 2014. 63 Entrevista disponível em http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u43985.shtml. Acesso em 01 de julho de 2014. 224 Além das cenas em Cuzco, há um encontro numa estrada no Peru rumo a Machu Picchu, no qual os jovens interpelam um andarilho e o questionam sobre sua caminhada e o fato de ter sido expulso de suas terras, tema que é recorrente no filme. Para além das falas do diretor, é possível se certificar do acréscimo desses personagens na leitura do roteiro de José Rivera, que não conta com a presença dos atores sociais. f) A cena final com Alberto Granado A última cena do longa-metragem apresenta Alberto Granado, envelhecido, olhando para um avião que voa ao longe. A cena é uma continuação de outra anterior, na qual o Granado de Rodrigo de la Serna acompanha o avião que o Che interpretado por Gael García Bernal havia embarcado. O grande diferencial é que o Alberto Granado da cena final é o real, que interpretou a si para o último plano do filme. Obviamente, nenhum dos diários escritos continha tal cena, uma vez que, ambos terminam seus relatos ao fim da jornada em 1952. Ampliação: extensões e expansões de tramas Conforme explicitado anteriormente, a ampliação é a conjunção dos processos de extensão e expansão, que, segundo Genette (2011), dificilmente são encontrados isolados no caso de uma transmodalização intermodal. a) Visita à casa de Chichina Descritos de forma breve em De Moto pela América do Sul, os dias na casa de Chichina foram expandidos no filme por meio de três sequências. A primeira delas é a do jantar e posterior dança na sala da mansão. Ali somos apresentados à família de Chichina que é representada por pessoas ricas e arrogantes que não concordam com o relacionamento da jovem com Che. Na cena das danças, o casal de namorados discute sobre a viagem que Che está iniciando. Na sequência seguinte, Che finalmente consegue um tempo a sós com a namorada e a leva de carro para um bosque. Os dois namoram dentro do veículo, conversam novamente sobre a viagem e Che convence Chichina a esperá-lo. Para finalizar, assistimos à despedida do casal, com Che já sobre a moto e Granado na direção. Se no diário a dificuldade em partir e deixar a namorada para trás ganha destaque, no filme isso é ainda mais expandido. Partir estando apaixonado torna ainda mais louvável a façanha de Che, e Salles parece empenhado em tornar a viagem de seu personagem num grande feito. b) La Cenepa Os acontecimentos no barco que leva os viajantes até o leprosário em meio à floresta amazônica são descritos por Che em De Moto pela América do Sul, no entanto, no filme é criado uma personagem nova, Luz, que traz consigo uma trama própria, assim como acompanhamos mais aspectos da mudança de olhar do jovem Che Guevara. Em De Moto pela América do Sul, os dias no La Cenepa são narrados como tediosos, uma vez que a dupla fica hospedada na primeira classe e acaba por ter de conviver com pessoas ricas e arrogantes. Além disso, Che destaca as diversas crises de asma que enfrentou durante o trajeto, que são resumidas numa única cena no filme, em que o jovem cai em meio a estranhos 225 após passar mal e tem de receber uma injeção de adrenalina. Também merecem atenção do argentino os ataques diários dos mosquitos e a demora para chegar ao final da viagem, causado pela baixa maré do rio durante a noite. No filme, logo que embarcam no La Cenepa, Granado conhece Luz e se enamora pela jovem prostituta. Após receber a recusa dela e descobrir que Che gastou os dólares de Chichina com o casal que eles encontraram no deserto, Granado decide jogar pôquer para conseguir o valor necessário para receber atenção da bela moça. Sem dinheiro, o rapaz inicia sua aposta com apenas um sole, o que motiva piadas por parte dos outros jogadores, mas, conforme o jogo avança, Granado multiplica seus soles e acaba por ficar com Luz no final da noite. Vale aqui destacar que, a aposta ínfima e a multiplicação do dinheiro realmente aconteceram, segundo o relato de Che em seu diário. Notamos aqui que, mais uma vez, Salles criou uma trama fictícia e a ligou com um fato real. c) San Pablo: novos personagens e clímax Cenário do clímax do filme, o leprosário de San Pablo tem maior importância na obra de Salles do que no diário de Che, tanto que, enquanto na literatura se resume a algumas páginas, no longa-metragem ocupa um quarto do tempo total. Se no livro acompanhamos descrições do dia-a-dia dos dois viajantes, sem um foco maior na relação destes com os pacientes, na narrativa fílmica são criados personagens e novas situações para desenvolver a interação entre os doutores e os leprosos e com isso levar ao ápice da história: a travessia à noite do rio. Papa Carlito é um dos personagens criados para mostrar a forma como Che e Granado se relacionavam com os doentes. Logo que chegam à colônia, eles optam por não usar luvas, pois sabem que a lepra quando em tratamento não é contagiosa e com isso ganham o respeito dos pacientes, que se sentem humanizados e se tornam inimigos da freira Sor Alberto, que comanda o local e não gosta que quebrem suas regras. A personagem da freira é relatada no livro, com os mesmos traços de personalidade, mas no filme ela ganha contornos mais salientes, afinal é preciso alguém para se opor aos protagonistas. Outra personagem criada para o filme é Silvia, jovem que sofre de lepra e recusa-se a permitir uma operação. O médico que recebe a dupla na colônia apresenta o caso da moça e Che resolve conversar com ela para convencê-la a mudar de ideia. A cena mostra a humanização do papel do médico, que ouve a paciente e se expõe, criando uma relação de confiança e humanização. Após a conversa, Silvia decide realizar o procedimento cirúrgico, que é feito com o acompanhamento de Che. Além da criação dos personagens que reforçam a trama da transformação de Che, temos o clímax da narrativa, que foi totalmente ficcionalizado. Ernesto chegou a cruzar o rio a nado, como ele conta em uma carta à mãe em seu livro, no entanto, nunca o fez à noite e muito menos após a festa de seu aniversário. Na mesma correspondência escrita à mãe ele frisa que jamais teria coragem de se lançar no rio à noite. A cena foi criada para simbolizar a transformação do protagonista do filme, que entre o antigo (acostumado com o conforto, distante da realidade latino-americana) e o novo Che (que prefere passar o aniversário junto aos pacientes, pessoas simples, mas seus iguais), opta por este último ao cruzar o rio. Como se em cada margem tivesse uma versão dele e, ao nadar rumo à uma, ele deixasse a outra 226 definitivamente para trás. A cena ganha mais emoção porque durante o filme inteiro a problema de asma de Che foi ressaltado, tornando a travessia do rio um ato ainda mais heroico. O personagem supera uma dificuldade sua e sai dela transformado. Livro X Filme: os acréscimos de tramas e o uso de atores sociais Podemos perceber por meio das extensões e ampliações a mudança no foco entre literatura e cinema, já comentada aqui. As tramas criadas ressaltam ainda mais a centralidade na transformação do jovem Che, como vemos na despedida que, ao invés de ser em Córdoba, na família de Granado, passa a ser em Buenos Aires, com a de Che. As tramas dos dólares e da honestidade do jovem Guevara foram criadas para reforçar o caráter do personagem, algo bastante comum na ficção clássica. Se no livro as informações sobre a personalidade do futuro revolucionário estão implícitas por meio de ações e pensamentos, estão colocadas de forma sútil, o filme trata de escancará-las, para não deixar dúvida alguma nos espectadores. No caso das ampliações, todas as três têm um papel importante na ficcionalização da história de Che. A visita à casa de Chichina tem como foco reiterar o desafio do jovem Ernesto, que abre mão do seu amor para viajar pela América. O desprendimento de arriscar perder a namorada para viver uma grande aventura torna a saga do argentino ainda mais digna de torcida por parte do espectador. As ações que se passam no barco La Cenepa tem por um lado função de alívio cômico, com Granado e sua busca por dinheiro para ficar com uma prostituta e reiteração sobre a saúde de Che. Ao mostrar o jovem tendo um forte ataque de asma, o filme nos lembra da doença que acomete o personagem e que não aparecia há algum tempo na trama e nos prepara para o clímax, quando Che terá de superar sua debilidade física para atravessar o rio. Toda trama de San Pablo foi criada para servir como ápice do filme. Nas sequências na colônia Che mostra-se ainda mais condoído em relação as mazelas dos povos latino-americanos; trata os pacientes como iguais, sem se preocupar com o uso de luvas e dando a mão para todos; convence uma paciente a aceitar a cirurgia; bate de frente com as religiosas que comandam o local por não concordar com as regras delas. Salles opta por condensar numa única trama toda a catarse do personagem, que no clímax atravessa o rio a nado para comemorar seu aniversário junto aos pacientes, uma metáfora de sua escolha em lutar junto ao povo oprimido do continente. As sequências com a utilização de atores sociais foram acrescida para dar mais realidade à história que estava sendo contada e reforçam a ideia de Salles sobre roteirização: “Em português a palavra ‘roteiro’ tem a ver com rota. É o que o roteiro deveria ser, a indicação de um caminho. Não deveria encerrar oportunidades, mas ampliá-las” (SALLES apud STRECKER, 2010, p. 244). É possível observarmos uma relação entre o uso de um roteiro com possibilidades de aberturas durante as filmagens e sequências mais documentais no filme. As cenas que não estavam descritas no roteiro de José Rivera e foram acrescentadas durante a captação de imagens a partir do encontro da equipe com atores sociais são as mesmas que sugerem certa documentaridade. O registro da conversa com as mulheres indígenas na praça em Cuzco não estava planejado, nasceu da viagem pelo Peru, dos encontros possibilitados pela filmagem em 227 locação. Como não eram figurantes com um texto a ser decorado e interpretado, as mulheres foram questionadas e responderam sobre suas realidades, o que agregou um caráter documental à cena. Ao invés de Che, no caso, Gael Garcia Bernal, questionando, poderia ser um documentarista que estaria buscando revelar a realidade dos indígenas do Peru. Além do uso de atores sociais, outra cena com teor documental é aquela em que o próprio Alberto Granado aparece. Mais uma vez aqui, Salles se utiliza de uma estratégia documental para provocar tal leitura em seus espectadores. Ao fechar o filme com a imagem do Alberto Granado real, o diretor busca suscitar uma leitura de que tudo o que se passou no filme foi real, sendo que foram criadas tramas e personagens para o longa-metragem. A força da imagem final de um filme, que é algo que fica com o espectador por mais tempo, é aqui usada com a presença de Granado. O filme enfoca sua trama em Che, mas nos seus minutos finais rende-se ao olhar de Alberto. Vale destacar que a cena é de alguma forma uma homenagem de Salles ao argentino que colaborou intensamente com a produção do filme, concedendo longas entrevistas e até mesmo visitando os sets de filmagens. REFERÊNCIAS GENETTE, Gérard.Palimpsestos: a literatura de segunda mão. In: Cadernos Viva Voz. Trad. Cibele Braga, Erika Viviane Costa Vieira, Luciene Guimarães, Maria Antônia Ramos Coutinho, Mariana Mendes Arruda e Miriam Vieira. Extratos: capítulos 1, 2, 3, 4, 5, 7, 13, 37, 38, 40, 41, 45, 46, 47, 48, 49, 53, 54, 55, 57,79,80.Belo Horizonte: Faculdade de Letras/UFMG, 2010. GRANADO, Alberto. Com Che Guevara pela América do Sul. São Paulo: Brasiliense, 1987. GUEVARA, Ernesto Che. De Moto pela América do Sul – Diário de Viagem. São Paulo: Sá/ Rosari, 2011. 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São Paulo: Publifolha 2010. 228 Adaptações no roteiro: literatura e quadrinhos Isabel Orestes Silveira e Alexandre Jubran, Universidade Presbiteriana Mackenzie Resumo: Esta investigação partiu do interesse em desenvolver um roteiro em formato HQ (História em Quadrinhos) a partir da adaptação da biografia literária do missionário norte-americano Ashbel Green Simonton (1833-1867). A hibridização das linguagens que conjuga em um mesmo texto, a escrita e o desenho, exigem especificidades relacionadas à linguagem visual além do domínio técnico. Nesse sentido a relevância científica desta pesquisa, consiste em dialogar com as áreas da Comunicação, da Educação, da História, da Cultura, das Artes Visuais e da Teologia dentre outras, pois na tentativa de enriquecer o repertório infanto juvenil, propõe-se ao conhecimento da biografia do missionário Ashbel Green Simonton (1833-1867), fundador da Igreja Presbiteriana do Brasil. Palavras-chave: Simonton, missionário, Igreja Presbiteriana do Brasil Introdução “Lembrai-vos dos vossos guias, os quais vos pregaram a palavra de Deus; e, considerando atentamente o fim de sua vida, imitai a fé que tiveram.” (Hebreus 13:7). Não há dúvida alguma de que em diferentes áreas do saber quer na Biologia, Psicologia, Filosofia, Educação, etc. muito já se têm dito sobre o desenvolvimento da criança em diferentes aspectos. Tal tema que desperta inúmeras discussões torna-se atualizado quando consideramos que a leitura e o resgate de histórias podem contribuir e tornar-se fundamental para que a criança desenvolva hábitos de leitura, adquira novos vocabulários, amplie seu universo lingüístico e cresça nos aspectos afetivos, sociais, cognitivos, espirituais etc. A História em quadrinhos pode, por isso, ser também um dos agentes fundamentais para o desenvolvimento e a formação da criança. Nessa perspectiva, entendemos que ser leitor e conhecedor dos diferentes tipos de textos é uma forma de ampliar o universo linguístico. Não foi a toa que Abramovich (1997, p.16) ressaltou: "[…] ah, como é importante para a formação de qualquer criança ouvir muitas, muitas histórias. Escutá-las é o início da aprendizagem para ser leitor, e ser leitor é ter um caminho absolutamente infinito de descoberta e de compreensão do mundo [...]". Nesse sentido a relevância científica desta pesquisa, consiste em dialogar com as áreas da Comunicação, da Educação, da História, da Cultura, das Artes Visuais e da Teologia dentre outras, pois na tentativa de enriquecer o desenvolvimento da criança propõe-se neste projeto o acesso desta, ao conhecimento da biografia do missionário Ashbel Green Simonton (18331867), fundador da Igreja Presbiteriana do Brasil. 229 Muitas pesquisas envolvendo Simonton, já foram e são desenvolvidas no meio acadêmico, sendo publicadas em forma de livros e cadernos de pós-graduação, todavia o acesso a textos considerados menos densos, especialmente voltado ao público infanto-juvenil pode ser uma forma interessante de estimular a leitura e o acesso das crianças ao conhecimento da vida e da obra de um pioneiro que em seu diário (obra autobiográfico) destaca sua fé reformada. A hibridização das linguagens que conjuga em um mesmo texto a escrita e o desenho (História em quadrinhos) poderá então, contribuir e estimular o conhecimento da criança sobre a história do Presbiterianismo no Brasil, ampliando seus recursos de referência, além de contribuir para a sua formação espiritual. É importante ressaltar que na simplicidade reside a força dos textos deixados por Simonton em seu diário. Em seus registros, encontramos a grandeza de uma fé que suportou crises e provações, sem perder a confiança em Deus. De igual modo, por meio da leitura de um HQ (História em Quadrinhos), as crianças poderão desenvolver uma relação de confiança no Deus vivo e verdadeiro, alicerçando a fé firmada no exemplo deixado por Simonton. Nesse Mackpesquisa, foi possível embasarmos nas referências teóricas sobre o assunto através dos textos de Costa (1999) e nos escritos de Simonton (os quais foram traduzidos por Rizzo em 1962). Até aqui foi possível desenvolver um texto facilitador para que o público infanto-juvenil compreenda os principais fatos que marcaram a vinda de Simonton a saber: infância, chamado ao campo missionário, saída dos Estados Unidos, ministério e sua morte em solo brasileiro. O êxito para um texto e para a ilustração, arte final e produção definitivos, puderam ser efetivados na troca com outros pares, a saber: uma equipe de professores que atuam nas áreas de letras, design, e ilustração, somada ao envolvimento de um aluno do curso de publicidade e propaganda. Esta pesquisa possui um duplo objetivo: primeiramente, apresentar a vida do missionário Presbiteriano Ashbel Green Simonton sob a forma de história em Quadrinhos, em uma linguagem que alcance a compreensão das crianças alfabetizadas a partir de 8 anos de idade. A força da imagem ilustrada em quadrinhos pretende despertar o interesse de adolescentes, por isso o público alvo desta pesquisa se destina ao infanto-juvenil. Em segundo lugar, o resultado da pesquisa poderá ser passível de ser futuramente publicada a fim de que visibilizada em forma de HQ, torne-e útil para os professores e pais os quais poderão fazer uso deste material em suas igrejas, nas classes dominicais, nas escolas bíblicas de férias e em outros trabalhos (educativos, evangelísticos e missionários) oferecendo oportunidade de reflexão aos adultos e servindo de estímulo e modelos às crianças. Esta pesquisa pretende aprimorar a linguagem textual e visual das referências já teóricas e produzir em forma de História em Quadrinhos para crianças, a narrativa biográfica da vida do missionário Simonton. A pesquisa exigiu três passos metodológicos. Levantamento teórico- prático, dos dados que seguem: Revisar a bibliografia de Simonton, (Rizzo 1962) e Costa (1999). 230 Adaptar a biografia de Simonton a uma linguagem acessível ao público alvo, tendo como referências textuais de teóricos diversos. Experimentar técnicas de ilustração que sejam atrativas ao público infanto-juvenil. Pesquisa prática da ilustração. A investigação caminha tendo como exigências: O desenvolvimento dos esboços e croquis de desenhos dos personagens, indumentários e cenografia. Definição do ley-aut para a História em Quadrinhos Pesquisa da técnica da arte final, (poderá ser pintura, desenho manual ou com recurso computacional ou até mesmo ambas). Revisão do texto Produto final conclusivo 1. A força da Mensagem visual Podemos considerar que todo sentimento ou estado emocional do homem pode ser representado visualmente. As cores, as linhas e os contrastes podem transmitir sensações e sentimentos. Essa noção sempre foi utilizada pelas artes plásticas com grande maestria e, tem sido utilizada pelas artes gráficas, cinematográficas, editoriais, etc. com a finalidade de direcionar-se de modo mais sedutor para determinados públicos, e de transmitir suas mensagens artísticas dependendo de seus propósitos, quer sejam culturais ou comerciais. Podemos constatar então que o potencial atrativo da linguagem visual está diretamente ligado a emoção transmitida e a rápida possibilidade de compreensão da mensagem de um modo que seria extremamente complexo ser representado apenas por meio de textos. Sobre isso Dondis (1997, p. 13) afirma: “Ao ver [...], vivenciamos o que está acontecendo de maneira direta, descobrimos algo que nunca havíamos percebido, talvez nem mesmo visto, conscientizamo-nos [...]. Ver passou a significar compreender”. Se considerarmos tal afirmação como válida poderemos argumentar que o ato de “ver” nos possibilita vivenciar de maneira direta. Por isso a mensagem visual contribui para a compreensão de ideias, sendo as imagens, um importante fator para a transmissão da mensagem. As diferentes imagens visuais sejam elas em forma de desenho, pintura, escultura, etc; sempre cativaram o ser humano especialmente por causa da atração deste pela estética ou pela busca da beleza, do equilíbrio e da harmonia. Percebemos isto quando consideramos especialmente as pinturas das cavernas e observamos o que o homem pré-histórico nos legou. Imagens de figuras humanas que correm com lanças nas mãos atrás de bisões, retratam uma época e um modo de vida que se eterniza através da pintura rupestre. Desde que foram feitos os primeiros registros de tais desenhos, o homem evoluiu e articulou novas formas de linguagem, mas a força da mensagem visual sempre continuou ilimitada, se tornando sempre cativante e atraindo o olhar do espectador. 2- A mensagem visual na literatura 231 Até aqui pudemos desenvolver um raciocínio embasado no fato de que as imagens visuais carregam em si uma força que a caracteriza como mensagem. Portanto podemos entender que as mensagens visuais comunicam algo ao receptor. Comunicam imagens carregadas de significado. É interessante notarmos que a palavra “imagem” vem do latim imago que significa a representação visual de um objeto. As imagens não se detêm no limite de desenhos, esboços, pinturas etc.; elas caminham e se expandem para outras imagens, quer as mentais ou as concretas. Imagem, seja em qual dimensão a vinculamos, está sempre em construção. E nesse universo da comunicação visual se encaixa a literatura. Apesar de não estarmos discutindo sobre gêneros discursivos, não podemos deixar de alocar que a literatura se apropria do desenho, da história em quadrinhos, da charge, como mecanismo para destacar sua mensagem ou destacar um discurso através da ilustração. Para transmitir seus significados a literatura com o auxílio de imagens dá maior significado as palavras. As mensagens visuais apoiam o texto escrito não sendo apenas um simples desenho, mas carregando uma forte expressão gráfica. As mensagens visuais podem abordar temas polêmicos como a política, a religião, os conflitos sociais etc.; estando quase sempre presentes no dia-a-dia, em jornais, revistas, outdoors, além de provocarem o humor e, conseqüentemente, o prazer no leitor. Não é difícil ouvir de leitor infantil, jovem ou mesmo de um leitor maduro, que um livro de linguagem complexa seria mais bem compreendido ou menos maçante se houvessem imagens ilustrativas acompanhando o texto. A imagem pode despertar os sentidos, aflorar experiências imaginativas e emocionantes de forma criativa. Por isso a comunicação visual é especialmente interessante quando utiliza de símbolos e ícones de potência expressiva, dinamicidade e emoção. A literatura não ignora esses fatos, por isso faz uso da ilustração como solução para aproximar grandes conteúdos literários da realidade do infanto-juvenil. 3 - Os desenhos e suas diferentes técnicas ilustrativas O desenho é uma forma de manifestação da arte. O artista transfere para o papel imagens e criações da sua imaginação. É basicamente uma composição bidimensional (algo que tem duas dimensões) constituída por linhas, pontos e forma. É diferente da pintura e da gravura em relação à técnica e o objetivo para o qual é criado. O desenho é utilizado nos mais diversos segmentos profissionais, tornando a arte diversificada em diferentes contextos. Existe o desenho de projetos, onde é trabalhada toda estrutura e detalhe de uma construção. Há também o desenho de composição pictórica, quando a artista expressa no papel, situações que estão ocorrendo em tempo real; esse tipo de desenho é bastante utilizado em tribunais durante julgamentos em que a presença de câmeras fotográficas ou algo do gênero não é permitida. Nesse caso os desenhistas tentam retratar de forma mais real possível todos os momentos e detalhes do julgamento, para que quando outras pessoas olharem o desenho tenha a sensação de que estavam presentes na cena. Há desenhos simples onde é empregada pouca técnica e outros onde a sofisticação se faz presente. Atualmente, existem cursos técnicos e superiores direcionados ao desenho, quando 232 são trabalhados todos os seus aspectos, criando assim profissionais capacitados na arte de desenhar. Todavia podemos constatar que o ser humano sempre desenhou. Silveira (2006, p.121) afirma: Ao longo da nossa história como seres humanos, podemos observar registros gráficos como indícios da necessidade do homem de revelar sua presença e se comunicar, sem necessariamente ter consciência de que ao desenhar deixa marcas para a posteridade. O registro do desenho permite a manifestação expressiva e dá acesso ao ser humano que se apropria do mundo atribuindo-lhe significado. O ser humano é um ser simbólico, por isso dentre tantas capacidades que lhe são inerentes destacamos o seu desejo por: simbolizar, conhecer e representar. Seu potencial criativo, também se mostra através do desenho que desde criança revela interesse pelo rabisco, pelo uso das linhas e, na medida em que cresce, cresce também seu repertório gráfico. Silveira (2006, p.121) acrescenta “como fruto da interação entre mão, gesto e instrumento nascem os desenhos”. Wucius Wong (1998, p.42), que em seu livro Princípios de formas e desenho considera quatro tipos de elementos de um desenho: elementos conceituais, o ponto, a linha e o plano; elementos visuais, formato, cor, tamanho e textura; elementos relacionais, direção, posição, espaço e gravidade, e por fim os elementos práticos. Estes últimos se manifestam na representação (realista, estilizada e abstrata), no significado, na função, na moldura de referência, no plano da imagem e por fim na forma e na estrutura. De igual modo, Dondis (2002, p.26), no livro Sintaxe da Linguagem Visual, escreve sobre os elementos de que se compõem as mensagens visuais, ressaltando a importância de desenvolver noções de gramática visual, a saber: ponto, linha, textura, formas, contraste, instabilidade, equilíbrio, simetria, assimetria, cores, etc. Todos esses elementos são utilizados pelo desenhista. O desenho e a ilustração podem dar vida e realidade à uma história ou à uma mensagem escrita. Novamente podemos citar Dondis (2002, p.18) o qual postula que existe uma forma, uma sintaxe visual para toda imagem. E sobre isso argumenta: Há linhas gerais para a criação de composições. Há elementos básicos que podem ser aprendidos e compreendidos por todos os estudiosos dos meios de comunicação visual, sejam eles artistas ou não, e que pode, ser usados, em conjunto com técnicas manipulativas para a criação de mensagens visuais claras. No exemplo que segue podemos observar uma ilustração hiper realista desenhada em um cenário fictício para a obra de Dante Alighieri: “A divina comédia”. 233 Figura 1: Ilustração da obra de Dante Alighieri. “A Divina Comédia” Na produção das Histórias em Quadrinhos percebemos o uso de dois grandes meios de comunicação: a palavra escrita e a imagem que se traduz nas ilustrações em forma de desenho na maioria das vezes. Eisner (1999, p. 15) argumenta que “a separação das formas de linguagem é arbitrária”, e que “no mundo moderno da comunicação são tratados como disciplinas independentes, porém na realidade são derivadas de uma mesma origem”, segundo o autor “o potencial expressivo de palavras e imagens se dá pela utilização correta de ambos.” Dondis (1997, p. 12) vem ao encontro desse pensamento quando afirma: Em textos impressos, a palavra é o elemento fundamental, enquanto fatores visuais, como o cenário físico, o formato e a ilustração, são secundários ou necessários apenas como apoio. Nos modernos meios de comunicação acontece exatamente o contrario. O visual predomina, o verbal tem função de acréscimo. O desenho feito para as histórias em quadrinhos possibilita dentre tantas variáveis, a narrativa de histórias e a ilustração de situações concretas, mesmo quando se trata de temas de ficção ou fantasia. Os elementos essenciais do desenho são os cenários, os personagens, as expressões faciais etc. As imagens precisam ser facilmente reconhecidas pelo leitor, pois a credibilidade das histórias não se deve apenas às palavras, mas ao meio imagem/texto visando fazer com que o leitor consiga visualizar ou processar rapidamente uma idéia. A predominância de elementos visuais em quadrinhos se dá por uma compreensão absolutamente icônica e simbólica, tanto de textos como de imagens, considerando textos como imagens e curiosamente também o contrário: imagens como textos se levarmos em conta a origem da escrita, cujos caracteres foram formados a partir de imagens representativas como é o caso das letras chinesas, japonesas, egípcias etc. Figura 2: Ideograma Egípcio para descrever a idéia de adoração 234 Figura 3: Ideograma Chinês para descrever a ideia de adoração Figura 4: Um desenho básico que pode expressar a ideia de adoração. Nessa ilustração de Eisner 64 (Figura 11) percebemos o uso e o tratamento do texto como imagem. Trata-se de uma ilustração intitulada: “contrato com Deus”. Refere-se a um bloco de pedra feito para que realce o tema de uma de suas muitas histórias. Figura 5: Titulo de história de Eisner O significado da imagem sugere um símbolo universal que é uma tábua dos dez mandamentos entregue a Moises. Observa-se também o uso de dois estilos de letras, uma delas em hebraico e outra em letras romanas. O propósito com que o artista desenha, essa dualidade pode ser o de fortalecer o significado da lei dada ao povo hebreu. 64 *William Erwin Eisner (1917- 2005) é considerado um dos mais importantes artistas de histórias em quadrinhos e uma das maiores influências no desenvolvimento do gênero. 235 Podemos considerar então, os quadrinhos como um recurso poderoso e um forte aliado da educação. Podemos pensar neles como instrumentos para levar ao conhecimento dos jovens obras clássicas da literatura. Muitos Profissionais de quadrinhos e grandes editoras já têm despertado para essa realidade que resulta em um sucesso significativo. Os quadrinhos funcionam como um divulgador e incentivo ao interesse pelos clássicos da literatura mundial, despertando no jovem curiosidade de procurar posteriormente a obra original. Outras literaturas clássicas como Dom Quixote, Os lusíadas, Obras de Machado de Assis e Lima Barreto, são alguns exemplos de ilustração e do uso da literatura em interface com as histórias em quadrinhos. Figura 6: Dom Quixote adaptado para quadrinhos. Figura 7: Os lusíadas adaptado para quadrinhos (série clássicos em hq) Figura 8 e 9: Obras de Machado de Assis e Lima Barreto (coleção literatura brasileira em quadrinhos) Não podemos deixar de mencionar que os quadrinhos (comics) desde sua aparição no Brasil, têm contado com a apreciação de um numeroso público, estimulando muitas vezes a atividade literária. A afinidade dos jovens pelas histórias em quadrinhos se dá principalmente pela forma 236 dinâmica de comunicação e linguagem que os quadrinhos permitem, e o que se espera como já citamos é exatamente a fácil compreensão da combinação de imagens e palavras. Entre os educadores se discute sobre a preferência dos jovens pelas histórias em quadrinhos e se esta atividade literária é ou não uma pratica saudável. Para D’Ávilla (1964 p.88) os quadrinhos são um problema. Segundo o autor, o quadrinho, “rouba nuances literárias” por não haver textos descritivos. O autor prossegue argumentando contra o uso de quadrinhos, afirmando que ao usar imagens, “elimina-se o esforço de ler, pensar e julgar”, sendo a imaginação “pouco solicitada”. Segundo ele, nas histórias em quadrinhos, “tudo é explicitado pela imagem, sem necessidade de esforço do leitor”. Ainda segundo o autor, o quadrinho, causa “dispersão visual”, tornando a leitura “desatenta”. Assim, cria-se uma literatura, empobrecida, por ser meramente visual. Em oposição a este pensamento, apresentamos outra estudiosa do assunto que discorda do malefício citado por D’Ávilla (1964). Trata-se de Coelho (1991), que nos fala da formação do leitor. Segundo esta teórica, um bom leitor pode partir das leituras mais simples/fáceis para as mais complexas/difíceis. Para esta autora os quadrinhos pode ser o início da literatura, e servir de estímulo durante a formação da criança que aos poucos conhecendo novas literaturas tenderá a abandonar os HQ progressivamente. Ela reconhece, portanto, a utilidade dos Quadrinhos na formação do leitor, porém faz ressalvas em relação ao seu conteúdo, pois, em sua opinião, a maior parte dele é prejudicial, assim como nas demais publicações da imprensa. O fato das histórias em quadrinhos enquanto literatura ser considerada saudável ou não para crianças e jovens é uma discussão muito polemica e, portanto nessa pesquisa estaremos apoiando as considerações de teóricos como Silva (2002), Vergueiro (2004), e Guyot (1994) que descrevem as Histórias em quadrinhos como positiva para o repertório literário, quando usado em todas as idades. Dos teóricos recentes, poderemos citar Pessoa (2006) que fez uma pesquisa intitulada: Quadrinhos na educação: uma proposta didática na educação básica. O autor destaca o pensamento de Vergueiro (apud Pessoa, 2006, p.8) que afirma: (...) as histórias em quadrinhos vão ao encontro das necessidades do ser humano, na medida em que utilizam fartamente um elemento de comunicação que esteve presente na história da humanidade desde os primórdios: a imagem gráfica. Seguindo pelas trilhas do raciocino de Pessoa (2006), podemos percorrer as afirmações que Vergueiro (apud Pessoa 2006, p. 95) faz ao considerar a importância dos quadrinhos nos primeiros anos escolares. Pré – Escolar: Os alunos se encontram nas primeiras iniciativas de representação (etapa pré-esquemática), atendendo a necessidades motoras e emocionais. Em seu trabalho com a linguagem, os resultados obtidos são menos importantes que o processo. A relação desses estudantes com os Quadrinhos é basicamente lúdica, sem que interfira uma consciência crítica sobre as imagens que aparecem nas Histórias em Quadrinhos, tanto nas que recebem do professor como naqueles que eles próprios produzem. Nessa fase, é muito importante cultivar o contato com a linguagem das HQs, incentivando a produção de narrativas breves em Quadrinhos, sem pressioná-los quanto a elaboração de textos de qualidade ou a cópia de outros modelos. 237 Sobre os quadrinhos para alunos do ensino médio Vergueiro (apud Pessoa 2006, p.104) acrescenta: (...) Passam a ser mais críticos e questionadores em relação ao que recebem em aula, não se submetendo passivamente a qualquer material que lhes é oferecido. Tendem também a ter uma desconfiança natural (e saudável) em relação aos meios, demandando um tipo de material que desafie sua inteligência. Por outro lado, são também, muito pressionados pelo coletivo perdendo às vezes um pouco da sua espontaneidade ao terem que confrontar suas opiniões pessoais com as do seu grupo. Nas produções próprias, buscam reproduzir personagens mais próximos da realidade, com articulações, movimentos e detalhes de roupas que acompanham o que vêem ao seu redor. Com base nesse pensamento de ser relevante o uso do HQ, consideramos importante tornar a obra de Simonton, o mais interessante para o público infanto- juvenil, utilizando-se de linguagem e técnicas ilustrativas das histórias em quadrinhos adaptando-as a contemporaneidade. 4 - Projeto: planejamento e execução Reforçamos nosso pensamento a favor de que a História em Quadrinhos para o público infanto-juvenil pode se tornar um recurso de interesse a favor da leitura e do conhecimento. Por isso, nosso interesse em dialogar com as artes visuais em especial com o desenho em quadrinhos em interface com a literatura. Dentre tantas possibilidades optamos por escolher a narrativa da história clássica: Simonton”. Tal interesse teve como premissa o fato de se tratar de uma literatura cristã que evidencia a importância de uma vida com Deus. Os desafios de se adaptar tal texto para os quadrinhos nos permitiram trilhar por caminhos que nos enriqueceram através das experiências criativas. Optamos por ilustrar em forma de História em quadrinhos e adaptar o texto. Num segundo momento, buscamos argumentos sobre a arte final. As referências ilustrativas a seguir demonstram os estilos de ilustração que se pretendeu chegar neste projeto. O objetivo foi desenvolver um traço realista e dramático que fosse atraente ao público infanto-juvenil, mas que também transmitisse ao leitor toda profundidade da narrativa. Para chegar a este objetivo é fundamental a experimentação e o levantamento de diversos tipos de desenhos a fim de utilizá-los como referência e analisando-os, compreender melhor e mais adequada técnica de ilustração para o projeto em questão. Os desenhos sendo realistas deixam claro ao leitor que não se trata de um conto de fadas infantil, mas algo familiar a sua realidade. E os traços com contrastes de preto e branco em nanquim inspiram uma compreensão dramática da narrativa, tornando a reflexão mais envolvente. 5- Processos de criação Antes de tudo vale ressaltar que, existem muitos pesquisadores interessados pelo tema da criação como foco de debate. Estamos falando do processo criativo como um percurso de 238 trabalho, que é executado em meio ao diálogo entre o sensível e o intelectual. Abre-se, assim, espaço para uma visão da criação onde são reconhecidos modos de ação e decisões com envolvimento intelectual e sensível - consciente e não consciente. De modo mais específico, Salles (1998) descreve o processo de criação como movimento falível, com tendências, sustentado pela lógica da incerteza, englobando a intervenção do acaso o qual possibilita espaço para a introdução de idéias novas. Um processo no qual não se consegue determinar um ponto inicial, nem final. Esse trajeto de criação, com tendências incertas e indeterminadas direcionam o artista em sua incansável busca pela construção de obras, que satisfaçam seu grande projeto poético. Sem a pretensão de nos considerarmos artistas, concordamos com Salles (1998)65, acerca do percurso criativo. A autora descreve o percurso criativo, observado sob o ponto de vista de sua continuidade. Em outras palavras, o processo de criação não se esgota, coloca os gestos criadores em uma cadeia de relações, formando uma rede de operações estreitamente ligadas. Toda ação criativa está atada a outras. Anotações, esboços, exposições, visitas, aromas lembrados, livros anotados, tudo está de algum modo, conectado. Os elementos selecionados já existiam, a inovação está no modo como são colocados juntos, dando continuidade ao processo criador, aliado a sua natureza de busca e de descoberta. Vale destacar que para Salles (1998) discutir processos de criação leva a um conceito de inacabamento da obra intrínseco a todos os processos. O inacabamento olha para todos os objetos de nosso interesse - seja um romance, uma peça publicitária, uma fotografia, um artigo científico ou jornalístico, como uma possível versão daquilo que pode vir a ser ainda modificado. Nesse sentido, para a realização das ilustrações da obra de Simonton e mais precisamente para a linguagem dos quadrinhos, optamos por investigar as ilustrações feitas aos personagens e também verificarmos fontes de pesquisa diversas, como revistas, fotos e sites, que nos servissem de modelo para a criação. Para essa fase introdutória da pesquisa fizemos um levantamento de referências visuais acerca do figurino feminino e masculino da época, além de móveis, objetos, cenário e paisagem. Segue abaixo apenas uma pequena mostra do amplolevantamento que fizemos. Por fim, a representação do personagem principal: Simonton. 65 Ver discussão mais aprofundada em Salles, C. A. Gesto Inacabado: processo de criação artística. São Paulo: Annablume, 1998. 239 240 241 Figura 10: Referências visuais para HQ de Simonton É interessante notarmos que o processo de criação não desperdiça rascunhos, esboços. Para se obter um produto final, passamos pela dependência muitas vezes de desenhar e insistir no domínio da técnica. Nos exemplos abaixo, verificamos os primeiros desenhos do personagem Simonton, feitos na tentativa de adequação do melhor traço. Nesses exemplos, ainda verificamos a necessidade de relacionarmos traços de desenhos com os figurinos de época e por meio da gravura que retrata Simonton, procurou-se desenvolver a ilustração que o representa. Em uma fase bastante prática, iniciou-se o projeto de formatação para modelo da revista. Abaixo podemos verificar os primeiros esboços e croquis que foram feitos a partir das referências visuais levantadas. 242 243 Figura 11: Definição gráfica da estrutura do HQ e esboços iniciais. Figura 12: Definição gráfica do personagem Simonton 244 Na ilustração que segue apresentamos a sequencia do resultado do Mackpesquisa, ou seja, a narrativa histórica da vida e obra de Simonton. Começamos apresentando a capa e em seguida o miolo do livro. Figura 13: Definição gráfica da capa 245 246 247 Figura 14: História em Quadrinhos: Simonton 4 - Conclusão Encaminhando-nos para os apontamentos finais desta pesquisa, queremos ressaltar ainda algumas ideias. A vida de Simonton e seu exemplo de vida de fé impõe uma nova escala de valores, um estilo de vida e postula modelos de comportamento. Entendemos que os valores cristãos e sua importância permanecem relativizados na sociedade secularizada, pela força dos diferentes discursos e dos mecanismos midiáticos. Portanto, esperamos poder prosseguir nesse diálogo, deixando em aberto um modelo de literatura que poderá vir a ser publicado e de algum modo responder a uma sociedade que não consegue esconder o vazio e a frustração da vida sem sentido e ao recorrer ao exemplo de Simonton, encontrar uma comunicação que trás uma mensagem de fé, de tolerância, de solidariedade, de compaixão, de amor ao próximo, enfim, mensagens construtivas e proveitosas que eduquem e estimulem as pessoas de múltiplas maneiras tendo em vista o bem comum. Dito de outro modo, esperamos que o resultado final desta pesquisa possa de algum modo, ser o embrião de uma proposta maior, como a publicação, por exemplo, dessa História em quadrinhos que prioriza o resgate da memória do personagem Simonton, a fim de que as futuras gerações mantenham a memória viva do legado deixado por esse homem de fé. 5 - Referências Bibliográficas ABRAMOVICH, F. Literatura infantil: gostosuras e bobices. 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Contexto, 2004 249 Capítulo 6 Proezas Lúdicas Apontamentos para compreender a narrativa líquida da TV Alexandre Kieling66; Edleide Epaminondas de Freitas Alves67; Kênia Freitas68 Resumo Este artigo aborda as variações contemporâneas da morfologia da narra va da televisual provocadas pelas relações dessa mídia com as novas tecnologias de comunicação. Nesse sentido, investigaremos os efeitos sob dois aspectos complementares: a dissolução dessa narrativa em outros meios, pelas partículas dissipativas, e a inclusão de outras formas na narrativa televisual, pelas partículas incorparativas. Para fins de análise, observaremos a natureza de forma e a substância de conteúdo e expressão em exemplos de narrativas que circulam entre a TV e Internet, trazendo como estudo de caso o projeto Porta dos Fundos. Palavras chave:Televisão; Narratologia, Morfologia Narrativa; Partículas Dissipativas; Partículas Incorporativas. Abstract This article addresses the contemporary variations of televisual narrative morphology which result from this media relations with the new communication technologies. Therefore, we will investigate the effects under two complementary aspects: the dissolution of narrative in other media, by dissipative particle, and the inclusion of other forms in televisual narrative, by incorporative particles. For analysis purposes, we will observe the nature of form and substance and expression of content on examples of stories that circulate through the TV and the Internet. We will use as study case the project Porta dos Fundos. Key words: Television; Narratology; Narrative morphology; Dissipative particles; Incorporative particles. A narrativa televisual debate-se entre as demandas da múltipla oferta, as demandas de um público volátil e infiel e as demandas pela fragmentação e expansão. Essas acomodações vêm induzindo processos de deslocamentos e adaptações ao consumo de novos meios de difusão e 66 Prof essor permanente do Programa de Mestrado em Comunicação da Universidade Católica de Brasília, doutor em Ciências da Comunicação, [email protected]. 67 Dou toranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Católica de Brasília, [email protected]. 68 Pósdoutotanda do Programa de Mestrado em Comunicação da Universidade Católica de Brasília, bolsita do Capes/PNPD, [email protected]. 250 circulação. São movimentos que, a priori, produzem variações na morfologia da narrativa da televisual. Sob um aspecto, podemos dizer que os deslocamentos do texto da TV por outros dispositivos implicam em efeitos dissipativos, que resultam em adaptações às características dos meios de circulação e recepção. De outra parte, a mobilidade a qual está submetida provoca ainda outro processo de composição narrativa: a incorporação de características comuns aos outros meios. Assim, acreditamos que o presente fenômeno empresta à morfologia da narrativa televisiva processos que incluem partículas dissipativas e partículas incorparativas. E são essas partículas que iremos analisar neste artigo. Iniciaremos nossa investigação retomando alguns aspectos fundamentais da morfologia narrativa televisual. A morfologia narrativa é o estudo da estrutura narrativa, sendo que a estrutura narrativa “é o padrão, a uniformidade observável, de acordo com a qual a história é desenvolvida como um todo” (JIMÉNEZ 1996, p.16). Nossa atenção, dessa forma, estará voltada para a compreensão de qual seria o padrão de estrutura da mídia televisão considerando-a como sendo um certo modo de se contar histórias, ou de propor e mesmo vender discursos que lhe conferem um caráter distintivo de outras mídias. Por fim, para fins de análise, traremos como estudo de caso o projeto Porta dos Fundos69, um coletivo de humor que produz esquetes e programas que circulam tanto pela televisão, quanto pela internet. Defenderemos que a forma de construção narrativa do Porta dos Fundos é uma demonstração exemplar dos efeitos de incorporação e dissipação da narrativa televisual. Morfologia Narrativa: o canal televisivo e a promessa A partir da observação da lógica operativa do relacionamento entre o telespectador e essa natureza de proposta da emissora que configura sua identidade, é possível alinhavar e mesmo admitir um deslocamento do sentido de Canal Televisivo. Anote-se que na constituição da promessa se inscrevem pressupostos das abordagens do mundo, por meio das temáticas, da estética, tanto de programas quando dos demais elementos paratextuais assim como o seu encadeamento dentro de um fluxo contínuo, permitindo a manutenção ou atualização da promessa. São construtos estratégicos que embalam um conjunto de conteúdos cuja flexibilidade facilita a acomodação dos textos televisivos e sua apropriação pelo público em qualquer plataforma de recepção. Assim, analisaremos o Canal Televisivo, não mais como uma designação que se refere à faixa de frequência na qual opera a organização produtora, programadora e transmissora. Nem também, e tão somente, ao espaço no espectro eletromagnético por meio do qual um transmissor emite suas ondas hertzianas. Afasta-se totalmente da aplicação presente na teoria da informação, na qual canal é unicamente meio técnico. Afinal, admitindo-se a proposta de Jost (2004), em que a promessa é um espaço de interface entre produtores e receptores dos conteúdos da TV, é preciso considerar que tudo que o constitui a programação de uma emissora configura a identidade deste emissor, portanto, como dito, faz parte da promessa. 69 Pro dutora de vídeos humorísticos veiculados inicialmente pela internet. O Porta dos Fundos foi fundado em 2012. Mais informações em: http://www.portadosfundos.com.br/. Acesso em 16 de outubro de 2015. 251 Desse modo, conteúdo e expressão do texto televisivo se somam onde suas formas e substâncias ocupam ambientes técnicos (MCLUHAN, 1974) de circulação e consumo na dinâmica da Midiosfera (KIELING, 2009). Atribui-se o sentido de canal televisivo a esse conjunto de estratégias e conteúdos estruturados em grades de programação, com fluxos vertical e horizontal que permitem o acompanhamento do tempo cronológico dos acontecimentos, a partir da integração de textos desenvolvidos em tempo presente e tempo fílmico. Soma-se ainda ao conjunto de textos uma amarração que lhes dá fluência utilizando-se elementos que levam à identificação e ao reconhecimento (VERÓN, 2004). O sentido de canal televisivo, livre das limitações de meio de transmissão, assume então uma nova dimensão simbólica. Opera como uma interface identitária no processo comunicativo televisual, que funciona como um elo entre emissor (televisão) e receptor (telespectador) em qualquer suporte de circulação e consumo. Se é a conjunção entre as instâncias que autentica o valor simbólico do discurso televisivo, a grade de programação funcionaria como uma macronarrativa (SCOLARI, 2008; KIELING, 2009), que asseguraria a linha imaginária identitária do canal, que vai costurando a sequência de micronarrativas, que são os programas. Nesse contexto, os gêneros operam como máscaras que envolvem e ao mesmo tempo referenciam, ordenam, estruturam os pacotes de conteúdos alinhados na grade. Ou, ainda, poderíamos supor que os próprios canais televisivos apresentam-se como organizadores dos gêneros discursivos, agregados ao viés institucional que também é constitutivo da promessa da emissora. Até aqui, definimos o canal televisivo para além do seu suporte técnico de transmissão e a promessa como um vínculo fundamental era o emissor e o receptor da televisão. Mas como esses elementos podem nos ajudar a pensar a estrutura da narrativa televisual? Esse modo de contar histórias utiliza como base a linguagem audiovisual. No entanto, a utilização de um conteúdo audiovisual como forma de relatar uma história não é privilégio dessa mídia. Suscitando, portanto, a descrição de sua taxonomia narrativa. Retomando o conceito de morfologia narrativa, Jiménez (1996) orienta que a estrutura do relato audiovisual se constitui na comunhão entre conteúdo e expressão, e descreve esses dois elementos em seus aspectos de forma e substância, à luz de Hjelmslev (2009): A forma do conteúdo é a história. Seus elementos componentes são o acontecimento, a ação, os personagens, o espaço e o tempo. A substância do conteúdo é o modo determinado em que os elementos componentes são contextualizados e tratados de acordo com o código particular de um autor. A forma da expressão é o sistema semiótico particular ao qual pertence o relato: cinema, tv, ballet, ópera etc. A substância da expressão é a natureza material dos significantes que configuram o discurso narrativo. (JIMENEZ, 1996, p. 16-17) A morfologia também se dedica ao estudo do discurso narrativo, noção que chegou ao âmbito da narrativa procedente da linguística, por meio de Emile Benveniste. O discurso, em narrativa audiovisual, “é o fluxo de imagens, sons e outros elementos portadores de significação, que assumem a função de configurar textos narrativos, ou seja, textos cujo significado são as histórias” (JIMÉNEZ, 1996, p. 17). A imagem e o som, enquanto significantes discursivos, quer dizer, enquanto signos da sequencialidade narrativa, exibem três propriedades que lhes 252 conferem a capacidade de dar forma ao relato: a ordem, a duração e a frequência (JIMÉNEZ, 1996, p. 17). A ordem, a duração e a frequência dos signos da sequencialidade macronarrativa televisiva podem ser observadas por meio da organização de sua grade de programação, bem como pelo fluxo estabelecido pelo canal. Podem, ainda, ser observadas verticalmente e horizontalmente. O executivo de televisão Walter Clark (apud ARONCHI DE SOUZA, 2004, p. 54) afirma que TV não é programa, mas programação. Aronchi complementa essa ideia lembrando que “programação é o conjunto de programas transmitidos por uma rede de televisão”, sendo que “o principal elemento da programação é o horário de transmissão de cada programa”. Verificase então que o horário de exibição é considerado o principal elemento da programação pelo fato de que este elemento é o responsável pelo índice de audiência da TV. A necessidade de criar um hábito de consumo de cada programa por meio desse encontro marcado fez com que a televisão iniciasse o processo de produção de programas seriados. E nessa perspectiva nasce o conceito de horizontalidade da grade: A programação horizontal significa, em resumo, a estratégia utilizada pelas emissoras para estipular um horário fixo para determinado gênero todos os dias da semana, com o objetivo de criar no telespectador o hábito de assistir ao mesmo programa nesse horário. (ARONCHI DE SOUZA, 2004, p. 55) Faz-se necessária, então, a observação da narrativa em sua horizontalidade, pois uma das características da televisão é a produção de micronarrativas seriadas com duração limitada (dias, semanas, meses) ou ilimitadas (programas semanais, mensais). Os conteúdos audiovisuais (programas, vinhetas etc.) produzidos para a televisão, considerados significantes discursivos ou signos da sequencialidade narrativa, são capazes de dar forma ao relato por meio de suas propriedades: a ordem, a duração e a frequência (JIMÉNEZ, 1996). Sendo que a ordem se refere às escolhas de sequência dos programas, por faixa horária; a duração às janelas de exibição, ou seja, à duração dos programas, ou ainda, dos blocos de cada programa, que é determinado pela emissora; e a frequência por meio do índice de variação de gêneros televisivos tanto em sua verticalidade quanto em sua horizontalidade. De outra forma, ao observar a taxonomia narrativa da televisão por meio de suas várias substâncias de expressão, da materialização do discurso por meio do texto, ou melhor, do relato audiovisual, é importante realizar a descrição da morfologia narrativa da televisão, considerando o conceito proposto por Hjemslev (2009) a partir da linguística e transposto para a narrativa audiovisual por Jiménez (1996), por meio dos funtivos forma e substância do conteúdo e forma e substância da expressão. Acreditamos que a análise dos significantes discursivos, somada à descrição da estrutura narrativa televisiva, a partir da concepção de canal aqui desenvolvida, nos aproxima de uma possível proposta de elementos constituidores do palimpsesto televisivo, tais como a promessa, os gêneros e a grade, fragmentados em macro e micronarrativas. Dissipação e incorporação: o caso do Porta dos Fundos 253 O Canal televiso (KIELING e ALVES, 2013) composto por conteúdo e expressão em sua forma e substância pode ser erroneamente comparado a fragmentos de suas substâncias expressivas, quando ocorre produção de conteúdos híbridos contaminados pela natureza material que configura seu discurso narrativo e ou pelo sistema semiótico que configura o seu relato. Dessa forma, um conteúdo produzido de forma emancipada do Canal Televiso, mas que mobiliza a percepção com um sistema semiótico a ele inerente pode ser considerado uma Partícula Figura: Partícula Dissipativa Grade Vertical GÊNERO Grade Horizontal GÊNERO (Objetos semióticos) (Objetos semióticos) GÊNERO GÊNERO Híbrido (Objetos semióticos) (Objetos semióticos) (Objetos semióticos TV) GÊNERO GÊNERO (Objetos semióticos) (Objetos semióticos) Ambiência Midiática Ordenamento do Discurso Dissipativa do Canal Televisivo, como ilustra a figura a seguir: Por outro lado percebemos que sistemas semióticos da web e da ambiência midiática constituída em dispositivos móveis contaminam as narrativas de programas televisivos como forma de tornar o uso de recursos interativos originários dessas ambiências facilmente reconhecidos por telespectadores, ou seja, facilitando a mobilização de sua percepção. Um exemplo seria a utilização de um plano que simula a visualização da tela de um computador, com recursos próprios desse suporte, na tela da televisão. A esse movimento denominamos incorporação, ou seja, a presença de uma partícula incorporativa ao Canal Televisivo. 254 Figura: Partícula Incorporativa Grade Grade Vertical Horizontal GÊNERO GÊNERO (Objetos semióticos) (Objetos semióticos) Ambiência Midiática GÊNERO GÊNERO (Objetos semióticos) (Objetos semióticos da Web) (Objetos semióticos WEB) GÊNERO GÊNERO (Objetos semióticos) (Objetos semióticos) Ordenamento do Discurso A internet sendo reconhecida como um ambiente que, em princípio, oferece maior liberdade de criação independente, começa a apresentar conteúdos com características peculiares, que surgem a partir da hibridação de formatos de relatos audiovisuais para consumo na rede. Um exemplo instigante é o canal Porta dos Fundos que se apresenta como “um coletivo criativo que produz conteúdo audiovisual voltado para a web com qualidade de TV e liberdade editorial de internet”. O projeto em menos de um ano de existência alcançou a marca de um milhão de inscritos e ganhou APCA (Associação Paulista dos Críticos de Arte) de “Melhor Programa de Humor para TV” (CANAL PORTA DOS FUNDOS, 2013). Mas o que seria essa qualidade de TV? Aqui começamos a identificar pistas da presença da forma de expressão televisiva como critério de identificação de uma suposta qualidade de TV. A proposta do Porta dos Fundos nasce de forma independente, desconectada de um grupo específico de mídia, no ambiente da rede e sem a necessidade da concessão de um canal – frequência de transmissão –, com uma promessa de conteúdo editorial de internet que pressupõe liberdade de expressão e independência dos grandes conglomerados de mídia. É preciso lembrar, no entanto, que não há atualização significativa na produção de seus textos. As esquetes – formato já conhecido pelo público consumidor por sua apropriação no teatro pelo standup comedy – com pitadas de sitcom americanos, são produzidas sob as lógicas da televisão tradicional e sofrem adaptações no tempo fílmico para atender a um perfil identificado de consumo, aquele já descrito anteriormente. 255 Porta dos fundos: uma partícula dissipativa A maneira como a TV, por meio dos seus mecanismos de produção, constrói recortes do mundo real ou fictício, ou seja, enfatiza, desfoca, suaviza, exclui objetos na construção de seus relatos, na materialização de seu simulacro, se refere a sua forma de expressão. Esta está diretamente relacionada ao conceito de gramática televisiva (DUARTE, 2004). A construção narrativa televisiva se manifesta na unidade básica da linguagem audiovisual que possui um significado, o plano (JIMÉNEZ, 1996). Um conjunto de planos formará uma cena que, em conjunto, formarão uma sequência, e, então, as várias sequências comporão a história. Os planos desempenham um papel determinante na gramática televisiva. Supomos então, que o Porta dos Fundos ao mobilizar a forma expressiva da televisão na construção dos relatos de seus esquetes estão na realidade promovendo a dissipação de uma partícula do Canal Televisivo. Esse movimento de dissipação, por outro lado, faz com que o seu conteúdo seja reconhecido como sendo de televisão. Essa suposição explicaria o sucesso dessa suposta novidade para os seguidores do portal: agora temos televisão na internet, desvinculada das emissoras. E a contradição demonstrada pelo constante questionamento dos mesmos seguidores nas redes sociais sobre a ida do produto para a televisão. Com essa pergunta, os seguidores parecem reconhecer que se trata de uma partícula deslocada do Canal Televisivo. O grande sucesso do produto, fez com que o grupo lançasse mão de atualizações semanais de conteúdo, produção de esquetes inéditas, que passaram a ter dia e horário de disponibilização. Parece-nos haver aqui mais uma contaminação pelo palimpsesto televisivo, já que a ação constitui a criação de uma grade horizontal. Ainda resiste uma característica própria das esquetes que fazem parte desse produto e que rompe com uma das características dos relatos televisivos, organizados em função de janelas de exibição. Essa característica é a inexistência de um tempo determinado de duração. As esquetes não obedecem a um padrão de tempo, cada história possui uma duração específica. Porta dos fundos: partícula incorporativa Ao serem questionados sobre a ida do Porta dos Fundos para a TV aberta, o grupo respondeu com uma esquete entitulada Porta dos Fundos na TV. Na esquete o grupo reproduzia seus vídeos mais visualizados com textos adaptados com referência ao programa de humor, veiculado pela Rede Globo, Zorra Total. A ideia era mostrar que a censura inerente à instância de produção roubaria o sentido de liberdade de expressão proposto pelo grupo. Ou seja, na internet podemos falar o que queremos, utilizar palavras vulgares, tocar em temas polêmicos. Na TV todas essas possibilidades seriam censuradas e o programa passaria a representar apenas mais do mesmo. Liberdade de criação é tudo. Não queremos ter compromisso algum, nem mesmo com o politicamente incorreto. Nosso único objetivo é fazer coisas engraçadas, sem denegrir a imagem de alguém, e acho que as empresas entenderam isso, porque nos procuraram espontaneamente. Claro que alguém em algum momento poderá não gostar, mas um aprendizado que a internet trouxe é que é melhor rir na hora, junto, do que ficar sozinho, sendo o alvo da piada. (Fábio Porchat) 256 Todavia, com esquetes que alcançam mais 13 milhões de visualizações, como é o caso do esquete “Judith” ou que mantêm a média de 5 milhões de visualizações, não demorou para que o grupo recebesse propostas de emissoras para que o projeto se incorporasse ao Canal Televisivo. Aqui observamos que aquela que nasceu como partícula dissipativa do Canal Televisivo, retorna como partícula incorporativa. O Porta dos Fundos fechou parceria com o canal de TV por assinatura Fox, em 2014. Segundo entrevista de um de seus fundadores, Gregorio Duvivier, a proposta da emissora respeitava o formato que já vinha sendo veiculado na internet. A estréia do programa aconteceu em outubro de 2014, no Brasil e em Portugal, e apresentou os esquetes já conhecidos, disponibilizados no Youtube, com previsão de lançamento de novos conteúdos produzidos para a emissora, em 2015. Apesar de carregar a forma de expressão televisiva, o produto sofreu contaminações por ter sido planejado para consumo na internet. Como foi dito anteriormente, a duração do relato não seguia um padrão, os esquetes não eram criados de forma a serem organizados nas janelas de exibição televisivas. Agora, segundo a emissora Fox, os esquetes são editados em “formato televisivo” com duração de 20 minutos. O produto é considerado como partícula incorporativa não por ter sido exibido originalmente na rece, mas em função de parte da substância expressiva da internet se incorporar ao relato. Referências GENETTE, Gérard. Figuras. Perspectiva. São Paulo, 1972. ______. Discurso da narrativa. Gérard. Lisboa: Arcádia, 1979. HJELMSLEV, Louis. Prolegômenos a uma taxonomia da linguagem. São Paulo: Perspectiva, 2009. JENKINS, Henry. A cultura da convergência. São Paulo: Aleph, 2008. JIMÉNEZ, Jesús Garcia. Narrativa audiovisual. Madrid: Cátedra, 1996. JOST, François. Compreender a televisão. 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O texto de Mori me parece mais pertinente aos cientistas, designers, artistas e teóricos de nossos dias do que poderia ter sido em 1970, pois, agora, a robótica está mais avançada por meio de seus humanoides, em busca da sonhada fidelidade à cópia humana. Isso se verifica tanto nos aspectos de aparência e comportamento, quanto nos atributos da inteligência artificial. Entretanto, o que tem valido, apoiando-me no texto de Mori, é a constatação e que, quanto mais próximo do humano, mais incômodo e estranheza um androide causa nas pessoas, a ponto de vir a ser, repentinamente, repudiado e renegado. Às vezes, basta um detalhe na constituição epidérmica sintética ou um movimento muscular facial menos semelhante ao natural para se deflagrar que ali está, de fato, um robô. Proponho, pois, uma reatualização da hipótese de Mori a partir de comentários sobre o gráfico que acompanha seu pequeno ensaio original, e também de uma mirada psicanalítica sobre a problemática, considerando o quão presente na contemporaneidade é o antigo desejo de se fazer com que um robô seja a cópia fiel de um ser humano. Palavras-chave: psicanálise – semiótica – robótica - cinema Abstract: In this paper I retake the Masahiro Mori’s hypothesis of the Uncanny Valley present in an essay that remained for more than four decades in oblivion. Mori’s text seems more relevant to the scientists, designers, artists, and theorists today than it might have been in 1970 because now robotics is much more advanced from its humanoid creations in search of the dreamed perfection of a human copy. This can be verified both in appearance and behavior aspects as in terms of artificial intelligence. However, according to the Mori’s text, what has been noticeable is that the closer is an android to the human form, more discomfort and strangeness it can cause up to the point of being suddenly disavowed and disowned. Sometimes just a little detail in a synthetic epidermal constitution or even a facial muscle movement less similar to the natural movement is able to expose that we indeed face a robot. I propose therefore an updating of Mori’s hypothesis from comments about the chart accompanying his small original essay, and also from a psychoanalytic glance on this issue, considering how present in our times is the ancient desire to produce a robot like the perfect copy of a human being. Keywords: psychoanalysis - semiotics - robotics - movies 70 Pós-doutorando com bolsa Fapesp no Programa de Estudos Pós-Graduados em Tecnologias da Inteligência e Design Digital, PUCSP. 259 Conhecendo a hipótese O caminho da humanização das criações tecnológicas da robótica coincide com as questões da humanização das máquinas enquanto personagens do cinema: HAL 9000, o computador psicótico de 2001, uma Odisseia no Espaço (2001, a Space Odissey, Stanley Kubrick, 1968), RoboCop (RoboCop, Paul Verhoeven, 1987) e sua teologia da ressurreição, ou a mãe humana que não estava “programada” para amar o sensível filho androide em A.I., Inteligência Artificial (A.I., Artificial Intelligence, Steven Spielberg, 2001), por exemplo, evocam o assombro perante a imprevisibilidade das criaturas robotizadas, em confronto com as limitações humanas. Agregados ao desejo de se engendrar um aparato inteligente que espelhe uma certa subjetividade, estão os avanços formais da tecnologia que, muitas vezes, contrariam as expectativas dos cientistas: por que uma máquina, quanto mais próxima de uma suposta semelhança humana completa ou idealizada, mais nos incomoda? Por que as pessoas tendem a rejeitar as representações da cibernética que flertam com o quase-humano? Estas são perguntas que dialogam diretamente com o fracasso de certos filmes e games junto a seu público, e com a repugnância que determinadas novidades tecnológicas nos causam, conforme discuto neste artigo. A hipótese do Vale do Estranho Familiar (Uncanny Valley)71, de Masahiro Mori, tentou dar conta do panorama de estranhamento que acompanha muitas criações e representações cibernéticas. Elaborada no Japão, na década de 1970, inicialmente foi restrita ao campo científico e praticamente não teve resposta dos leitores que dela tomaram conhecimento na época72. Mori, convidado para escrever um breve ensaio sobre robótica, lembrou-se da peculiar e desagradável sensação que figuras de cera lhe causavam quando menino, assim como da estranheza das mãos protéticas eletrônicas que a ciência já desenvolvia. De início, o artigo não agradou muito: uma investigação séria sobre robôs era considerada com desconfiança e sem grandes propósitos no Japão daquele período. Hoje, porém, o Vale do Estranho Familiar pode ser entendido como instrumento útil para se fazer indagações bastante úteis no campo da animação em 3D, dos games, dos filmes e de outros suportes que trabalhem com criação e imagem. Tal hipótese me impeliu a buscar o precioso ensaio de Sigmund Freud, O Estranho Familiar (Das Umheimliche), de 1919 – termo este que foi traduzido de forma não muito adequada em língua portuguesa, ora como “sinistro”, ora como simplesmente “estranho” –, ainda que Masahiro Mori não tenha sido estudioso da psicanálise. Neste texto, Freud analisa O Homem 71 No original, o texto se chama Bukimi no Tani, e foi publicado inicialmente em um discreto periódico japonês (Energy, de responsabilidade da Esso). Sua primeira tradução para o inglês aconteceu apenas em 2005, às pressas e de madrugada, em um laboratório japonês de robótica. Foi feita sem grandes pretensões pelo pesquisador K. F. MacDorman, que queria apenas ajudar um colega. Somente em 2012 a tradução foi devidamente revisada, tendo contado com a participação da jornalista Norri Kageki, que escreve sobre robôs. O termo shinwakan, presente no texto original, foi traduzido, no inglês, como sendo equivalente a “familiaridade”, “afinidade”, “encontro entre mentes”; logo, um shinwakan negativo – o que tem a ver com a sensação de incômodo que determinados androides nos causam – parece recuperar o sentido psicanalítico anglo-saxônico de uncanny, o “estranho familiar”. Por isso, houve uma associação apressada entre ambos os termos. O termo familiarity, empregado na linha vertical do gráfico que sintetiza a hipótese de Mori (gráfico este que é apresentado adiante), foi alterado, no texto revisado de 2012, para affinity. Há quem defenda, em vez de uncanny, o uso de eeriness, que sugere “estranhamento”, “mistério”, “espanto”. Mas, considerando o quanto o texto japonês tem, de fato, afinidades com a ideia freudiana, prefiro o uso de uncanny. Ou seja, a proximidade entre o conceito psicanalítico e a expressão de Mori acabou por ser muito mais evidente do que se supôs. 72 Somente em 2005, na Conferência Internacional de Automação e Robótica sobre Robôs Humanoides da IEEE, o ensaio de Mori ganhou relevo. 260 de Areia (Der Sandmann), conto fantástico de E. T. A. Hoffmann73, e estabelece as bases do que ele considerou um familiar estranhamento: o fato de alguém se deparar com uma situação que, a princípio, seria conhecida e mesmo esperada, mas que, simultaneamente, causaria medo, repulsa ou desconforto. É o caso de quando alguém se levanta à noite para ir ao banheiro e tem a impressão de ter visto um vulto misterioso no espelho. Porém, ao acender a luz, conclui que se tratava da mera projeção de um casaco dependurado atrás da porta. Em seu texto, Masahiro Mori, então professor de robótica do Instituto de Tecnologia de Tóquio, usou uma expressão que foi traduzida para o inglês como Uncanny Valley, uma vez que uncanny é expressão equivalente à alemã Umheimliche, conforme explicado em nota de rodapé. Sob o escopo psicanalítico, é inegável que sua hipótese se ancora intuitiva e amplamente nos pensamentos de Sigmund Freud e de Ernst Jentsch, psiquiatra alemão que inspirou a escrita de O Estranho Familiar a partir do ensaio Sobre a Psicologia do Estranho Familiar (Zur Psychologie des Umheimlichen, 1906). A ideia topográfica de um vale, no gráfico de Mori, apresenta a reação crescentemente simpática de uma pessoa perante a verossimilhança de um robô; simpatia esta que, entretanto, cai de maneira abrupta até atingir o nível da antipatia e da repulsa toda vez que um humanoide não apenas “finge” ser humano, mas, de fato, “pretende” parecê-lo ao máximo. O ponto nevrálgico aqui, segundo o roboticista, é existir, por trás dos esforços da criação tecnológica, uma vontade de equiparação ao humano em termos de aparência, funções e comportamento. De acordo com o ensaio, à medida que a fisionomia de um robô, androide ou ciborgue se torna mais humanizada, mais positiva e empática será a resposta de quem o observa, desde que não se ultrapasse um limite máximo de similitude. Do contrário, cai-se no abismo do estranho familiar. Entretanto, se as feições da criatura se tornarem cada vez mais distinguíveis às de um humano, a resposta emocional do observador será, uma vez mais, positiva, e a curva ascendente assumirá o nível empático que costuma haver entre dois humanos de verdade. Para melhor esclarecer, apresento a seguir o gráfico de Masahiro Mori. 73 A editora Companhia das Letras traz, em sua coleção Obras Completas de Freud, em 20 volumes, a opção “inquietante”. Acredito que alguns conceitos psicanalíticos já permanecem tão classicamente definidos em língua portuguesa que se torna difícil pensar em outra alternativa lexical. O texto desta editora, ao qual me refiro aqui, encontra-se especificamente no volume que agrega textos de 1917 a 1920, sob o título O Inquietante, com tradução de Paulo César de Souza. Malgrado as críticas que, no decorrer de décadas, têm sido feitas à tradução da coleção Standard, esta tem-me sido de mais valia. 261 Nele, pode-se notar que a reta vertical vai da menor à maior afinidade com o ser criado, e a horizontal, da menor à maior semelhança humana. O pontilhado se refere às criações moventes, que usualmente causam maior impacto do que as imóveis (linha não pontilhada). Ao acompanharmos esta última, vemos que ela apresenta um pico em animais empalhados, e depois despenca ao nível dos cadáveres. A linha pontilhada tem seu início com os antigos robôs industriais, aqueles menos humanizados, e segue até atingir o patamar do robô humanoide (o androide). Porém, quando a intenção de um designer é tornar a criatura “idêntica” à forma de um ser humano, a mesma cai em desconsideração por parte dos apreciadores, e vai parar na fossa abissal do Vale do Estranho Familiar, onde apenas o zumbi se sobressairá em termos de horror e repulsa. Mori, nos anos de 1970, também inseriu uma mão protética neste nível não-empático, posto que, para ele, a intenção de se reproduzir o membro humano em sua perfectibilidade deixava a incômoda marca de um “quase” que se pretendia “igual”; ou seja, existia, tanto na textura da pele quanto nos movimentos das próteses de sua época, algo que não conseguia convencer totalmente um observador. Figura 1: O braço humano (na parte superior da foto) controla a mão protética. Esta imagem ilustra o ensaio original de 1970 de Masahiro Mori (2012). A linha repentina de subida do gráfico vai ao encontro dos tradicionais bonecos banraku da cultura japonesa, dotados de movimentos quase humanos, e termina no ponto em que está 262 representada uma pessoa de aparência saudável. Portanto, conforme o gráfico, o que faz com que as criações da robótica tenham um efeito angustiante sobre o observador é a presença de sutis diferenças na aparência e no comportamento dos humanoides, diferenças estas ressaltadas com a movimentação. A isto eu denomino de efeito do estranho familiar biotecnológico ou cibertenológico. A humanização das máquinas A história das representações dos robôs, androides e ciborgues no cinema ressalta o mal-estar humano, em grande medida de propensão paranoica e fóbica, para com os prováveis perigos da tecnologia, ainda que, em torno desta questão, o temor seja de fato tão antigo quanto o das primeiras incursões da civilização pelo reino das técnicas e das invenções. Porém, o diferencial que o século passado nos reservou foi a aproximação a uma já não tão fictícia cultura das máquinas: note-se como até mesmo a célebre configuração do monstro de Frankenstein no cinema o apresentou mais robotizado – a exemplo dos parafusos no pescoço (Frankenstein, James Whale, 1931) –, em comparação com a personagem original da obra literária de Mary Shelley. Figura 3: Configuração de Frankenstein no clássico de 1931. Lembro aqui outras figuras que se tornaram caras à ficção científica: o protagonista de O Exterminador do Futuro (The Terminator, James Cameron, 1984), que nos fez indagar sobre o que aconteceria se um ciborgue se rebelasse contra a própria programação e, de servo, passasse a mestre, em oposição à palavra “robô”74. Dentre os personagens que enriqueceram o imaginário americano em torno da sci-fi, cito os simpáticos robozinhos do filme Corrida Silenciosa (Silent Running, Douglas Trumbull, 1972). Nele, um cosmonauta perdido é auxiliado por um trio de drones: o drone 1, Louie; o drone 2, Huey; e o drone 3, Dewey – homenagem aos três sobrinhos do Pato Donald. Figura 4: Os três drones de Corrida Silenciosa. 74 Da palavra checa robota significa “trabalho forçado”, “trabalho escravo”. 263 Engraçados e geométricos, eles foram inspiradores de R2D2, o caro parceiro de C3PO na saga Guerra nas Estrelas. Este último, um polido droide dourado, foi programado para exercer funções de mordomo. Figura 5: R2D2 e C3PO Figura 6: Maria, a robô dominadora. Sua arquitetura exoesquelética, por sua vez, foi inspirada na terrível Maria, de Metrópolis (Metropolis, Fritz Lang, 1927). Ainda no percurso das representações de robôs, é valorosa a figura do desajeitado Robby, tanto de Planeta Proibido (Forbidden Planet, Fred M. Wilcox, 1956) quanto de O Menino Invisível (The Invisible Boy, Herman Hoffman, 1957), outro representante das máquinas serviçais a caminho da humanização. E no século XXI, dá-se um encontro cada vez maior entre a inteligência artificial e a robótica, o que se traduz em várias produções cinematográficas, a exemplo de Eu, Robô (I, Robot, Alex Proyas, 2004), Substitutos (Surrogates, Jonathan Mostow, 2009) e Eva, um novo começo (Eva, Kike Maíllo, 2011), sem mencionar os games e as animações. Figura 2: Robby, o robô gentil. Decidi, portanto, retomar a hipótese de Masahiro Mori e enriquecer os elementos de seu gráfico ao pensar em algumas das variadas criações e representações que marcaram a cultura tecnológica, não só neste século, mas desde os anos de 1970, quando aquele roboticista japonês desenvolveu pela primeira vez suas ideias em torno do Vale do Estranho Familiar. Conforme MacDorman (2005), trata-se de uma hipótese que recebeu pouca investigação científica direta desde sua elaboração. Assim, seguindo a curva ascendente que se inicia com os robôs industriais, o carismático R2D2 antecederia C3PO, seu companheiro com feições mais humanas. E o simpático cão robô da Sony, Aibo, também estaria nesta parte da curva. Na linha 264 pontilhada, estariam softwares, como o Siri, um aplicativo no estilo assistente pessoal para iOS, e Samantha, personagem virtual no filme Her (Spike Jonze, 2013) – na verdade, um sistema operacional para smartphone. A drone borg Seven of Nine, que aparece nas temporadas 3 a 7 de Star Trek: Voyager (Rick Berman, Michael Piller, Jeri Taylor, 1995-2001), se insere na linha contínua descendente. A hipótese de Masahiro Mori também vale para os esforços de fotorrealismo no que diz respeito a personagens de jogos, em especial aqueles voltados para a indústria dos produtos 3D: afinal, nos menores detalhes é que se flagra uma incongruência, como um piscar de olhos pouco natural ou um sorriso não convincente para a emoção de um personagem em determinada cena. As linhas descendentes rumo ao solo do Vale exibiriam figuras como as de Data, um androide do tipo Soong75 do seriado Star Trek (linha contínua), de vários hubots do seriado sueco (Real Humans/ Äkta Människor, Lars Lundström, 2012); ou dos Real Dolls, bonecos sexuais em borracha de silicone platina (estes últimos permaneceriam na linha pontilhada). No fundo quase abissal, jazem criações como o robô Sonny, de Eu, Robô (I, Robot, Alex Proyas, 2004), e personagens das animações Tin Toy (Tin Toy, John Lasseter, 198876), O Expresso Polar (The Polar Express, Robert Zemeckis, 2004), A Lenda de Beowulf (Beowulf, Robert Zemeckis, 2007), As Aventuras de Tintim: O Segredo do Licorne (The Adventures of Tintin: The Secret of the Unicorn, Steven Spielberg, 2012), que causam estranhamento no espectador. Jogados neste abismo, provavelmente estariam também nossos clones, caso eles já existissem, ao lado de membros protéticos revestidos por pele sintética e isolados de seus corpos receptores, e, por que não, até mesmo a Ultimate Machine, de Claude Shannon. Em tom humorístico, aquele engenheiro e matemático americano deixava sobre sua mesa esta curiosa invenção: uma caixa contendo uma mãozinha mecânica dentro. Quando alguém apertava um interruptor na lateral do dispositivo, a mão saía para fora, desligava-o e retornava para seu sossego. Este dispositivo, espécie de robô freudiano, tinha por única finalidade se desligar quando alguém acionava o interruptor. O estranhamento no usuário se dava pela presença da mão independente, que se movia para fora da caixa, lembrando uma ampla tradição em torno de membros e outras partes do corpo que se moviam galvânica e misteriosamente. Atualmente, a cirurgia a distância, que se efetiva por meio de um par de luvas que parecem fazer passes espirituais sobre o paciente, rememora a invenção de Shannon. Em medicina, este procedimento, que já ocorre em diversas partes do mundo, é chamado também de cibercirurgia, telecirurgia ou cirurgia remota. Esta “cirurgia do futuro” teve início em 2001, quando o professor Jacques Marescaux e sua equipe, em Nova York, operaram a vesícula biliar de uma paciente em Estrasburgo usando um console robotizado. O procedimento transatlântico pioneiro foi batizado de Operação Lindbergh. Quando o robô nos aponta o Real O Vale proposto por Mori pode ser visto como um desafio geográfico: ou, por cautela, um cientista se mantém na borda anterior do penhasco, evitando aproximar seu robô da perigosa semelhança humana, ou, então, ele empreende um “salto” arriscado, que pode inserir sua obra tecnológica diretamente na margem oposta, sem que aquela conheça as profundezas do 75 Este tipo de androide foi criado pelo ciberneticista Noonian Soong no respectivo seriado. 76 Este filme ganhou o Oscar de melhor curta de animação de 1988. 265 desprezo que o estranhamento causa nas pessoas. Porém, a chance de falhar, em nossos dias, ainda é significativa, conforme exemplifiquei. Por isso, não se pode desconsiderar a força do impacto emocional e cognitivo das novas gerações de robôs humanoides sobre os humanos. O dilema dos cientistas e dos designers tem sido pensar se devem manter suas criações ligeiramente afastadas de uma suposta fidelidade ao humano, para que se evite provocar estranhamento, ou se as aprimoram insistentemente, a fim de chegarem a uma desafiadora cópia perfeita de nós mesmos. Segundo o próprio Masahiro Mori, alguns robôs de nossos dias praticamente já conseguiram ultrapassar o nível do estranho familiar, evitando-se, com isso, o infernal abismo do Vale (cf. entrevista do roboticista em: KAGEKI, 2012). Ele cita, como exemplo, o caso do HRP-4C, um humanoide de tamanho adulto, criado pelo Instituto Nacional de Tecnologia e Ciência Industrial Avançada do Japão77, que, entretanto, não me convence de ser totalmente incapaz de provocar o estranho familiar. Relutante, porém, Mori acredita, mais de quarenta anos após escrever sua hipótese, que é melhor os cientistas pararem de buscar a similitude humana em suas criações, antes que estas caiam na depressão do Vale. Para ele, não há necessidade de uma máquina ser absolutamente igual a um humano, considerando-se que a margem de erro pode transformar um humanoide em fracasso. Diferentemente de outros pesquisadores, como Rodney Brooks78, Mori acredita que não conseguiremos jamais criar uma pessoa apenas derivada do maquínico, e se preocupa com o lado negativo da tecnologia. Para ele, já octagenário, cabe uma reflexão filosófica sobre o problemática, o que pessoalmente busca apoiando-se na relação entre os ensinamentos de Buda e o mundo tecnológico. Do ponto de vista psicanalítico, penso que o Vale do Estranho Familiar é o lugar do “quase”, da vida que quis ser humana, do morto que não se contentou com a condição imóvel, e do robô que desejou tornar-se pessoa, mas, por conta de um mero traço performático, veio a cair em descrédito. Ora, indo além, o que faz com que várias criações tecnológicas sejam “jogadas” no funesto Vale tem a ver com o incômodo que sentimos com a morte e sua inevitável constatação: afinal de contas, um androide – esteja ele inanimado ou animado – pode parecer cadavérico (cf. MacDORMAN, 2005, p. 2) ou nos fazer lembrar o corpo morto, e o mesmo se dá com uma cabeça, um braço ou uma perna separada do todo orgânico. A partir deste contexto, ser inserido no perímetro obscuro do Vale significa ter se aproximado demasiadamente da região dos mortos – ou seja, apresentar indícios e sinais da mortalidade –, o que exacerba nossos mecanismos de defesa, como a negação. Em suma, estar dentro do Vale é acercar-se em demasia do Real lacaniano, da perturbadora Coisa – corpo estranho –, que se constitui por um dimensionamento que se nos escapa em termos de representação. E isso significa flertar com a própria pulsão de morte que, por rodear sempiternamente o Real, também se insere nas bordas do reino do impossível. Portanto, a marca “quase” humana de um robô androide, esta criação que – a despeito dos esforços dos cientistas e designers – (ainda) foge ao convencimento total de sua similitude, acaba por esbarrar na delicada encosta 77 Cf. os vídeos: https://www.youtube.com/watch?v=xcZJqiUrbnI, de 2010, https://www.youtube.com/watch?v=YvbAqw0sk6M, de 2011, https://www.youtube.com/watch?v=X3oH01RXZrI, de 2012, e https://www.youtube.com/watch?v=i3o7P91-WYI, de 2013. 78 Atual diretor do Laboratório de Inteligência Artificial e Ciência da Computação do MIT, Instituto de Tecnologia de Massachusetts, e professor de robótica da Panasonic. 266 que separa o mundo da linguagem daquele do indizível. O Vale do Estranho Familiar poderia, assim, ter outro nome: Vale da Sombra da Morte. Referências: FRANCE PRESSE. Cirurgia que usa imagens 3D e robôs é o futuro da medicina, diz cientista. Disponível em: http://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2012/11/cirurgia-que-usaimagens-3d-e-robos-e-o-futuro-da-medicina-diz-cientista.html Acesso em: 13 de dezembro de 2014. FREUD, Sigmund. O estranho. [1919] In: Obras completas. Edição Standard Brasileira, v. XVII. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1996. HSU, Jeremy. Robotics’ Uncanny Valley Gets New Translation. Disponível em: http://www.livescience.com/20909-robotics-uncanny-valley-translation.html Acesso em: 12 de dezembro de 2014. KAGEKI, Norri. An Uncanny Mind: Masahiro Mori on the Uncanny Valley and Beyond. [12 jun. 2012] Disponível em: http://spectrum.ieee.org/automaton/robotics/humanoids/an-uncannymind-masahiro-mori-on-the-uncanny-valley Acesso em: 12 de dezembro de 2014. MacDORMAN, Karl F. Androids as an Experimental Apparatus: Why is there na Uncanny Valley and can we exploit it? 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Disponível em: http://info.abril.com.br/noticias/ciencia/kinect-e-hackeado-para-cirurgia-a-distancia19012011-21.shl Acesso em: 13 de dezembro de 2014. 267 Play theMovie. O diálogo entre as estéticas lúdica e cinematográfica Yuri Garcia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, [email protected]; Ivan Mussa, Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, [email protected] Resumo: O presente trabalho tem como objetivo analisar o filme “Tron” (1982) de Steven Lisberger a partir da relação entre cinema e videogame. Se o diálogo entre diferentes mídias não é novidade nos estudos de Comunicação (sobretudo do audiovisual), há de se pensar em como ocorre esse diálogo. McLuhan destaca que toda mídia nova traz características de uma mídia mais antiga. Seguindo essa ideia, Jay Bolter e Richard Grusin propõem o termo “remediação” para pensar em como essa relação se dá. “Tron” foi uma novidade no meio cinematográfico ao referenciar uma história sobre videogames trazendo um visual e uma estética que remetem ao meio. Assim, ao propormos nosso objeto como um possível pioneiro de tal diálogo, podemos desvelar interessantes características que se propagam com mais força atualmente (como a utilização de recursos estéticos e visuais dos games no cinema) e problematizar outras associações entre essas mídias que não têm obtido o mesmo êxito (como filmes baseados em jogos). Palavras-chave: cinema; videogames; mídias; Tron. Abstract: This paper aims to analyze the movie “Tron” (1982) of Steven Lisberger through the relation between cinema and videogame. If the dialogue between different mediums in not something new in the Communication studies (especially in the audiovisual), we must think about how this dialogue happens. McLuhan highlightens that all new medium brings characteristics of an older medium. Following this idea, Jay Bolter and Richard Grusin propose the term “remediation” to think about the way in which this relation happens. “Tron” was an innovation in cinema by making reference to a story about videogames bringing an aesthetic and visual that makes reference to this medium. So, by proposing our object as a possible pioneer of this dialogue, we can uncover interesting aspects that propagate more intensively nowadays (like the utilization of aesthetic and visual resources of games in movies) and problematize other associations between these mediums that haven’t obtained the same success (like movies based in games). Key-words: cinema; videogames; mediums; Tron. Introdução O cinema se utilizou de elementos de outras mídias desde seu início. Criado como uma invenção79, adquiriu o aspecto cênico do teatro com o passar do tempo e hoje se assemelha 79 Para mais detalhes ver COSTA, 2005. 268 em muito a literatura em seu aspecto narrativo (tanto que os livros sempre foram uma enorme fonte de inspiração para filmes). Não estamos apenas nos referindo aqui às transposições, mas também a diversos elementos de outras mídias que vemos em um filme (um interessante exemplo é a utilização do clássico “Era uma vez” em início de filmes com a imagem da primeira página de livros com tal frase). Atualmente, parece haver uma tendência no cinema Blockbuster em se utilizar de Histórias em Quadrinhos como sua fonte de inspiração, mas enquanto a indústria dos videogames cresce massivamente chegando a render mais do que a cinematográfica, poucas transposições são feitas. Entretanto, pensar nos diálogos entre esses meios apenas no âmbito das transposições é simplificar demais uma possibilidade mais interessante de análise. Enquanto filmes baseados em games não surgem com freqüência e/ou não obtém tanto êxito, outros aspectos do universo dos videogames são cada vez mais vistos no cinema. O diálogo entre tais mídias não começou com uma transposição e sim com um filme que misturava animação digital, linguagem de computadores e videogames em uma história que foi aparentemente muito complexa para a sua época. A época em questão é 1982, quando a Walt Disney Pictures lançou “Tron” com o astro, ainda em ascensão, Jeff Bridges e escrito e dirigido pelo desconhecido Steven Lisberger. Traduzido no Brasil pelo estúdio Herbert Richards como “Tron – Uma Odisséia Eletrônica”, o filme não obteve a resposta esperada pelo estúdio (talvez em parte pelo lançamento de “E. T. – O Extraterrestre” no mesmo ano) e recebeu poucas críticas favoráveis. No entanto, com o passar do tempo, acabou se tornando uma obra Cult. Atualmente, “Tron” é considerado um precursor na indústria cinematográfica. Além de ser o primeiro filme a dialogar diretamente com os videogames, é também um dos primeiros na utilização de diversas técnicas de efeitos visuais tão vistos nos filmes de hoje. O imaginário gerado por computador foi considerado o inspirador de várias idéias criadas pelo chefe do grupo de animação da Disney e da Pixar, John Lasseter. Podemos ver não apenas o visual nos remetendo a videogames da década de 1980, mas toda a história se passa dentro de um sistema computacional com jogos como desafios (para permanecer vivo). Mas qual a espécie de diálogo que o filme promove especificamente e como tal diálogo se desenvolve a partir dele? Embora seja o primeiro e o objeto principal de análise desse texto, tentaremos utilizá-lo para problematizar certas características que se desenvolvem com mais força na contemporaneidade e assim, passar por outros filmes ao longo do texto. Tron O roteiro de Steven Lisberger é baseado em uma história criada em parceria com Bonnie MacBird. Kevin Flynn é um engenheiro de Softwares que trabalha para a corporação ENCOM e passa horas desenvolvendo ideias para videogames com o objetivo de fundar sua própria companhia. Outro funcionário, Ed Dillinger, rouba seus projetos e os apresenta como seus para conseguir uma promoção para Vice-Presidente. Flynn é demitido e abre um Arcade para se sustentar, entretanto, decide invadir o servidor da ENCOM usando um programa chamado CLU para encontrar provas da fraude. CLU é detectado e destruído por um programa criado por 269 Dillinger para proteger os sistemas da ENCOM chamado Programa de Controle Mestre (MCP) que acaba também desativando o código de acesso de Alan Bradley, outro funcionário da empresa que criou um programa chamado Tron para monitorar o MCP. Bradley e sua namorada, Dra. Lora Baines, ao descobrirem que Flynn tentou invadir os servidores da empresa decidem ir avisá-lo que ele foi detectado. Unidos, invadem o prédio da ENCOM para usar o código de acesso do laboratório de Lora. O MCP detecta a ameaça de Flynn utiliza um laser que a doutora estava desenvolvendo para digitalizá-lo e transportá-lo para o mundo virtual (onde os programas possuem a aparência de seus criadores, chamados de Usuários). Dentro desse novo mundo, começa a aventura de Flynn com torneios (uma espécie de gladiadores eletrônicos), corridas de motos (Lightcycles), tanques e naves, onde ele descobre ser mais poderoso por não ser um programa e sim um Usuário e se une a Tron e Yori (programa criado por Lora) para tentar derrotar o MCP. A inspiração para criar “Tron” surgiu em 1976 quando Steven Lisberger viu o jogo “Pong” pela primeira vez. O diretor era um animador de desenhos em sua própria empresa a época. Depois de tentar produzir o filme independentemente com o auxílio de algumas companhias de informática. Após receber diversas recusas começou a procurar estúdios de cinema que também descartavam sua ideia. Em 1980 levou sua ideia aos estúdios Disney, que concorda em financiar um teste para ter uma noção do produto e após gostarem do resultado decidem apostar no projeto. O filme aborda temáticas relacionadas à computação e videogames e, mesmo tendo sido mais complexo para a época em que foi lançado (em que pessoas ainda não conheciam informática muito bem) teve um alcance razoável de público (embora bem abaixo do esperado pelos seus financiadores). De certa forma, podemos vê-lo como um pioneiro nesse diálogo entre cinema e videogame. Mas qual o diálogo que o filme propõe e qual sua relação com o nosso cenário contemporâneo. Ao observarmos filmes como “Scott Pilgrim vs. the World” (2010) ou “SuckerPunch” (2011) vemos uma estética de videogames presente. Seria “Tron” o responsável por isso? Mas antes de responder tal questão, devemos pensar no que seria realmente esse termo “estética de videogames” que usamos tão levianamente para nos referir a tais filmes. E ainda procurarmos entender porque escutamos falar de linguagem e gramática do videogame no cinema? O que seria uma “estética” de videogames? O que seria a “linguagem” de videogames? E como tudo isso se reflete no cinema? Filmes e Videogames Diálogos entre mídias diferentes não é um assunto novo e atualmente, parece até ser algo impossível de se separar. A transmidialidade não é tão comentada apenas por ser um tema que se encontra na moda, mas também por ser algo sempre visível quando olhamos para um objeto oriundo de uma mídia. O próprio “Tron”, além se ser um filme com diversos aspectos de videogames dentro, possui suas versões para videogame que são baseadas no filme, suas Histórias em Quadrinho, suas animações e seus livros. 270 Jay Bolter e Richard Grusin cunham o termo “remediação” em seu livro “Remediation: Understanding New Media” (2000) para falar sobre a relação entre mídias diferentes. McLuhan deixava transparecerem em suas obras que toda mídia possui características provenientes de mídias anteriores. Bolter e Grusin propõem ampliar e desenvolver a ideia do polêmico autor canadense em seu livro com o termo que criam. O subtítulo do livro dos autores “Understanding New Media” faz clara alusão ao mais famoso livro de McLuhan, “Understanding Media” traduzido para o português como “Os Meios de Comunicação como Extensões do Homem” (2007). Em “Estendendo McLuhan: da Aldeia à Teia Global” (2011), Vinícius Andrade Pereira destaca que “[...] um meio porta um outro meio no seu interior, como maneira de se apresentar e se traduzir para um usuário” (p.142) e discute a relação entre o livro de Bolter e Grusin e a obra de McLuhan no item 7.2 e 7.3.4 do capítulo 7. Pereira refere-se mais à questão gramatical, entretanto uma parte da obra de Bolter e Grusin ainda expande a análise aos conteúdos, tomando como exemplo uma onda de transposições fílmicas de obras de Jane Austin já a partir da década de 90. Assim, a ideia do diálogo entre as mídias perpassa qualquer simplicidade. Podemos perceber que no cinema há referências em relação à linguagem e gramática e até as transposições (de diversas mídias diferentes). Talvez “Tron” tenha sido apenas um ponto de partida para algo que ocorre normalmente, mas ainda não havia ocorrido entre cinema e videogame. Todavia, tal ponto de partida acabou desencadeando uma reação de diálogos de diversas espécies entre ambas as mídias que perdura até hoje. Talvez a mais visível ou mais óbvia possa ser a das transposições que se inicia em 1993 com “Super Mario Bros.”. O filme foi um fracasso de crítica e de público e acabou sendo apenas o primeiro de um legado de tentativas frustradas de transpor videogames para o cinema (embora as franquias de Silent Hill, Tomb Raider e Resident Evil tenham conseguido uma repercussão mais positiva, acabam sendo consideradas pequenas exceções em um universo de fracassos80). Outra forma de diálogo bem comum atualmente é a estética e linguagem dos videogames sendo incorporada no cinema. Quando pensamos em tais características tão presentes em filmes nos últimos anos, imediatamente fazemos uma ligação entre as mídias. Entretanto, nunca pensamos que o componente em comum que cria tanto os videogames como as cenas com “estética” ou “linguagem” de videogames nos filmes é o computador. Na verdade, a estética que dividem é uma estética computadorizada. A “estética” de videogames nada mais é do que o uso dos efeitos visuais que tanto os jogos quanto os filmes tem em comum. Obviamente, alguns casos tentam remeter diretamente à linguagem do videogame como o já citado “Scott Pilgrim VS. the World”, mas tal linguagem é apenas a utilização de recursos lúdicos que são utilizados nos jogos (como conseguir poderes, aumentar força, ganhar vida etc). Contudo, alguns outros filmes tentam explorar mais a fundo uma linguagem dos videogames propriamente dita. Aqui nos referimos a movimentos de câmera e a estrutura de cenas de uma 80 Para mais detalhes sobre os processos de transposição de videogames ver nossos dois artigos feitos em 2014 sobre o assunto. 271 forma bem mais complexa que pode até passar despercebido em alguns casos. A cena de luta do filme coreano “Oldboy” (2003) de Chan-wook Park é um perfeito exemplo de como isso pode ser feito. O plano sequência e o enquadramento da câmera que acompanha a ação se movendo apenas lateralmente sem nunca se aproximar ou dar um close misturado com a coreografia de luta são características típicas de um gênero de jogos chamado “beat’em’up”. Um caso mais claro é o filme mais desconhecido, embora conte com atores como Josh Hartnett, Demi Moore, Woody Harrelson e Ron Pearlman, “Bunraku” (2010) dirigido por Guy Moshe. Em um plano sequência bem coreografado há uma cena de luta similar a de “Oldboy” em termos de movimentação de câmera, porém acrescentando rapidez e escadas (assim a câmera se move lateralmente e para baixo). Outro bom exemplo é o filme “Kick-Ass” (2010) de Matthew Vaughn que usa o recurso cinematográfico da câmera subjetiva como uma simulação da perspectiva de jogos de tiro em primeira pessoa (first person shooters), estilo de jogo popularizado pelas franquias Wolfesntein e Doom81. “Tron” não se encaixa nesse perfil, a câmera se move como em um típico filme hollywoodiano. Seu diálogo se dá no uso de temáticas e do mundo dos videogames como enredo. Os efeitos visuais retratam os jogos da época em que o filme é feito e nos coloca exatamente na posição que pretende: de ver um filme sobre um personagem que está em um jogo. A estética lúdica e o cinema No ensaio com o título de “The Observer’s Dilemma: ToTouch or Not to Touch” (2011), a pesquisadora Wanda Strauven propõe uma ideia ousada. Em consonância com o campo da arqueologia da mídia, que procura traçar conexões perdidas na história dos aparelhos comunicativos (PARIKKA, 2012) a autora seleciona seu corpus de análise entre as geringonças midiáticas que antecederam o surgimento do cinema como inventado pelos irmãos Lumière. Estas eram máquinas e brinquedos que pediam, muitas vezes, a manipulação do “usuário” para dar vida a uma imagem. O exemplo mais simples e evidente talvez seja o de um disco onde se desenha, de um lado, um pássaro e, no outro, uma gaiola. Fixando dois cordões no disco, segura-se cada um com uma mão e, com os dedos, gira-se os cordões, que fazem o disco rodar. A oscilação dos dois desenhos em alta velocidade causa a ilusão de que o pássaro está dentro da gaiola. O artefato chamado de taumatrópio, popular no século XIX, é apenas um dentre vários dispositivos que são comumente chamados de pré-cinematográficos. Para Strauven, no entanto, faz muito mais sentido chamá-los de pré-videogames. O argumento da autora é de que a premissa básica do jogo de videogame é a manipulação de imagens através de ação direta sobre ela – no caso do taumatrópio, uma manipulação manual. O cinema, por outro lado, caracterizar-se-ia por uma observação que não intervém no movimento da imagem, que observa a ilusão de movimento sem atuar diretamente sobre ela. 81 As intersecções e distanciamentos entre a câmera subjetiva do cinema e aperspectiva em primeira pessoa no videogame são traçadas pelo pesquisador Alexander Galloway, no capítulo Origins of the First Person Shooter, no seu livro Gaming: Essays on Algorithmic Culture (2006). 272 A condição básica do videogame em sua era digital é a de que os bits se reorganizam a partir da intervenção manual sobre um suporte material – um joystick, um teclado, um mouse, etc. O movimento de personagens, cenários e objetos está condicionado, em parte, pelos movimentos manuais que o jogador opera. Assim como no taumatrópio, é a ação lúdica de manipular um “hardware” que produz o efeito ilusório que forma uma imagem nova a partir de duas outras (uma espécie de “software”, segundo Strauven). No cinema como conhecemos, a diferença entre a inspiração na visualidade dos videogames e a inspiração no seu funcionamento está exatamente vinculada à questão da manipulação. Obviamente é impossível interferir manualmente no processo de formação da imagem. O que resta, é simular o resultado desta intervenção. Sendo assim, qualquer influência da linguagem dos videogames em um filme deve se parecer com o que o jogador vê na tela quando altera o sistema do jogo através de sua conexão à interface. As motivações para tal estratégia de direção podem ser as mais variadas possíveis: seja para referenciar a cultura gamer, como parece ser o caso de “Kick-Ass”, ou para afetar o espectador de uma forma equivalente à do jogo, objetivo mais identificável em “Oldboy”. Independentemente da intenção, o que se tem com esse tipo de apropriação intermidiática é uma expansão das possibilidades do cinema, que consegue se apropriar dos modos próprios da imagem de se organizar nas telas dos videogames. Conclusão O diálogo entre videogames e cinema é algo mais complexo do que parece. As transposições de jogos para filme ainda passam por diversas dificuldades e aparentemente, ainda não consegue se estabelecer com o sucesso que as transposições de livros e histórias em quadrinhos. Entretanto, outras formas de diálogo entre as mídias são mais interessantes e recorrentes. “Tron” é um precursor nos diálogos entre essas mídias. Antes de qualquer transposição ou o uso de elementos de videogame no cinema, o filme de Steven Lisberger traz uma fusão que pareceu complexa na década em que foi feito, mas hoje alcança o status de filme Cult e uma significativa importância no meio audiovisual. Enquanto a estética visual dos videogames é recorrente no atual cenário cinematográfico com filmes que usam efeitos visuais de computação gráfica e alguns outros casos que se utilizam de recursos encontrados que remetem ao lado lúdico, casos em que possamos perceber a estética formal dos videogames ainda permanecem mais raros (e talvez até mais difíceis de reconhecer). Talvez, pelo fato de “Tron” utilizar os efeitos visuais e recursos lúdicos em sua narrativa e não se preocupar em ser similar em termos de enquadramento e movimentação de câmera, seus antecessores tenham se preocupado mais em dar continuidade ao que já havia sido feito. Se o filme de Steven Lisberger é o precursor e inspirou tanto tal diálogo, talvez o problema seja que sua inspiração tenha motivado mais projetos que utilizam as mesmas coisas do que projetos que foram motivados a fazer o mesmo que “Tron” fez com a relação videogames/cinema: inovar. 273 A proposta do filme de Steven Lisberger de contar uma história através do cinema de como seria estar dentro de um jogo de videogames e assim apresentar pela primeira vez o diálogo entre tais mídias, explorando ainda, seus recursos visuais e suas nomenclaturas poderia ser o início de uma procura por todas as possibilidades que o cinema tem de se apropriar de elementos, recursos, linguagens e gramáticas do videogame. No entanto, parece que, fora alguns casos mais específicos que mencionamos aqui, a maior parte do que surgiu foram apenas utilizações da receita que deu certo em “Tron”. Embora essa receita seja difundida e possa até mesmo suscitar a discussão a respeito de um subgênero, observa-se uma carência de explorações do amplo universo de possibilidades estéticas que os videogames podem oferecer ao cinema em um diálogo mais formal, além apenas da temática. Ficamos a espera de mais filmes que causem a sensação de jogo em quem os assiste. Referencias Bibliográficas BOLTER, Jay David; GRUSIN, Richard. Remediation: Understanding New Media. The MIT Press, 2000. COSTA, Flávia Cesarino. O Primeiro Cinema: Espetáculo, Narração, Domestificação. Rio de Janeiro: Azogue Editorial, 2005. GALLOWAY, Alexander. Origins of the First Person Shooter. In: Gaming: Essays On Algorithmic Culture. Minneapolis, MN: University of Minnesota Press, 2006. GARCIA, Yuri e MUSSA, Ivan. Videogames no Cinema: um olhar sobre as primeiras transposições. In: 3º Encontro Regional Sudeste de História da Mídia, 2014, Rio de Janeiro.Anais...Rio de Janeiro: ALCAR, 2014. ______. Terror, Horror, Survival-Horror: A Transposição do Gênero Horror dos videogames para o cinema In: VIII Simpósio Nacional da ABCiber, São Paulo, 2014. Anais...São Paulo: ESPM, 2014. McLUHAN, Herbert Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem. Cultrix, 2007. PARIKKA, Jussi. Whatis Media Archaeology? Chichester: Wiley-Blackwell. 2012. PEREIRA, Vinícius Andrade. Estendendo Mcluhan: da Aldeia à Teia Global. Editora Sulina, 2011. STRAUVEN, Wanda. The Observer's Dilemma: To Touch or Not to Touch. In: HUHTAMO, Erkki; PARIKKA, Jussi. Media Archaeology: Approaches, Applications, and Implications. Berkeley: University of California Press, 2011. 274 The Ghost Writer: a Crítica Política de Polanski Maria do Céu Martins Monteiro Marques, Universidade Aberta – CEMRI, [email protected] Resumo Através da análise do filme The Ghost Writer, propomo-nos examinar o papel do escritor fantasma que o realizador Roman Polanski explorou, de uma forma muito peculiar, ao expor a relação nos bastidores da política, entre os governos, os serviços secretos e a imprensa. Trata-se da adaptação da obra de Robert Harris, The Ghost, que remete para factos e personalidades da cena política internacional. O ex-primeiro ministro britânico Tony Blair é a principal referência, mas no filme surgem outras figuras de grande relevo a nível mundial como Condoleeza Rice, a secretária de estado do governo Bush ou Dick Cheney. Encontra-se, neste filme, uma narrativa consistente com a proposta de narrativa mínima definida por Gardies "equilíbrio – desequilíbrio – reequilíbrio", que pode ser encontrada em diferentes perspetivas e que procuraremos explorar através da análise de algumas cenas do filme. Com base em questões atuais, é uma história de enganos e traições em diferentes níveis - literárias, políticas e sexuais - que nos faz pensar que, muitas vezes, a realidade ultrapassa a ficção. Palavras-chave: Escritor fantasma; exílio; suspense; política; Polanski Abstract Through the film The Ghost Writer 's analysis, we propose to examine the role of the ghost writer that the director Roman Polanski explored in a very peculiar way, by exposing the relationship in the political backstage, between governments, intelligence agencies and the press. The film is the adaptation of Robert Harris' book, The Ghost, which refers to facts and personalities of the international political scene. Former British Prime Minister Tony Blair is the main reference, but in the film arise other highly prominent figures such as Condoleezza Rice, the Bush administration's Secretary of State or Dick Cheney. In this film, there is a consistent narrative with the proposed minimum narrative defined by Gardies as "balance - imbalance - rebalancing", which can be found in different perspectives and we seek to explore through the analysis of some scenes of the film. Based on current issues, it is a story of deceit and betrayal at different levels - literary, political and sexual - that makes us think that, often, the reality goes beyond fiction. Keywords: Ghost writer; exile; thriller; politics, Polanski 275 Que maior imitação há da vida que a feita pelos filmes? Nessa imitação subsumimo-nos e transcendemo-nos. Se não são realistas, é porque os próprios realizadores têm um conceito idealizado da vida. (Les, 102) Introdução The Ghost Writer (2010), a adaptação de Roman Polanski do romance de Robert Harris, The Ghost, um bestseller publicado em 2007, é considerado um thriller político que contém todos os ingredientes deste género cinematográfico. Evita clichés e conveniências narrativas conferindo a lugares comuns uma aura de mistério quando associados a uma conspiração política. O argumento resultou de um trabalho conjunto entre o realizador e o escritor, também jornalista, inicialmente, um apoiante entusiasta muito próximo do líder do Partido Trabalhista Tony Blair, o Primeiro-Ministro Britânico entre 1997 e 2007, de quem acabaria por se afastar por não concordar com a decisão de Blair da invasão do Iraque tomada em conjunto com o presidente norte-americano George W. Bush, que ocorreu em 2003. A obra literária remete para outras figuras da cena política internacional como a Secretária de Estado dos Estados Unidos da América, Condoleezza Rice, que exerceu este cargo durante a administração Bush e a mulher de Blair, Cherie Blair, vista como uma manipuladora do marido. O interesse público manifestado pelo filme The Ghost Writer deveu-se, em parte, às críticas feitas à obra de Harris, e à situação pessoal que Polanski estava a viver, a prisão domiciliária, algo semelhante ao que acontecia com Adam Lang, o político no exílio, e o escritor cujo nome nunca é mencionado do início o fim do filme. O fantasma que nunca passará disso mesmo, não consegue fugir a tempo da teia tecida à sua volta e que, provavelmente, acabará por lhe ser fatal. O espetador nunca saberá o que lhe aconteceu, apenas é sugerido um possível atropelamento mesmo no final. Ao aceitar completar as memórias do antigo primeiro-ministro britânico Adam Lang, o escritor sem nome pensou que esta seria uma excelente oportunidade para a sua carreira. No entanto, as suas expectativas parecem condenadas ao fracasso desde o princípio, dado o enigma que envolve a morte do seu antecessor e todas as peripécias que Lang que tenta ultrapassar. A câmara vai acompanhando o seu trabalho, registando as suas preocupações, os encontros, os desencontros, a investigação e as descobertas, envolvendo-nos no mistério que se adensa a cada movimento do escritor fantasma. A estrutura narrativa Ao propormos a análise de um filme, estamos conscientes que se trata de uma tarefa interminável em que ficam sempre aspetos por examinar, uma vez que não existe um método universal que se possa aplicar. Analisar um filme deve ser mais do que vê-lo, é revê-lo, examiná-lo e senti-lo pois trata-se de um espetáculo que provoca emoções. Na opinião de Vanoye e Goliot-Lété 276 A análise vem relativizar as imagens "espontaneistas" demais da criação e da recepção cinematográficas. Estamos cercados por um dilúvio de imagens. (…) O desafio da análise talvez seja reforçar o deslumbramento do espectador, quando merece ficar maravilhado, mas tornando-o um deslumbramento participante. (…) O primeiro contato com um filme, a primeira visão, traz toda uma profusão de impressões, de emoções e até de intuições, se já nos colocamos em uma atitude "analisante". (Vanoye e Goliot-Lété, 2005: 13) De facto, tal como é referido, o primeiro contacto com um filme permite a fruição das suas imagens e provoca processos emocionais, "o que emociona é a participação imaginária e momentânea num mundo ficcional, a relação com personagens, o confronto a situações." (Aumont, 2005: 90). As imagens iniciais de The Ghost Writer brindam o espectador com uma sensação de mistério. O modo como o realizador utiliza a luz e a sombra cria uma atmosfera propícia à tensão. A música da cena inicial e a cor fixam a nossa atenção. A penumbra funciona como a luminosidade possível para ver o que não pode ser visto à luz. Na primeira cena surge um plano geral, é de noite e a pouca luz provém de pequenos focos fixos, chove bastante. No meio da escuridão, é possível reconhecer os pilares de um cais e ao longe, em segundo plano, vislumbra-se a imagem de um navio com as suas luzes ténues que se movimenta na nossa direção. Em termos de som, consegue ouvir-se o cair da chuva e uma música que cria algum suspense. Na imagem seguinte houve um pequeno salto temporal, o navio passou para primeiro plano ocupando grande parte do ecrã, e percebemos a sua rápida aproximação aos cais. Um plano de pormenor permite ao espectador identificar o tipo de embarcação. Trata-se de um navio misto conhecido como ro-ro ou um ferrie, geralmente utilizado em viagens curtas no transporte de passageiros e veículos. Em primeiro lugar, vislumbra-se o casario iluminado e depois a proa do navio, branca e azul que se abre. A rampa para o desembarque desce e fica rapidamente disponível. Nas entranhas do navio surgem homens de rostos indefinidos, semi-cobertos pelas fardas, que se movimentam entre os vários carros de diferentes portes, todos alinhados que começam a sua marcha para a saída do navio. Dois destes homens movimentam-se para fora do campo e apenas um se mantém a orientar os condutores. Um plano picado mostra-nos a imagem de um carro que não se movimenta e impede a saída dos outros. Um funcionário aproxima-se e verifica que não existe condutor. O carro acaba por ser rebocado para fora do navio. No meio da escuridão surgem dois agentes, um carro da polícia, o reboque e o carro rebocado. Em segundo plano, observa-se a saída do navio que deixa o porto, mas sem luzes. Segue-se um grande plano, já existe alguma luz, o dia está a nascer e surge a imagem de uma praia em que a espuma branca das ondas deixa antever um corpo arrastado para a areia. 277 Figura 1 – Um corpo na praia Estas imagens constituem o que pode ser considerado como a "matriz" do filme por funcionar como uma potência geradora do género de ficção. Existe no filme uma narrativa que se identifica com a proposta de narrativa mínima definida por Gardies "equilíbrio→desequilíbrio→reequilíbrio", como explica: O que se poderia parafrasear assim: na sequência de um acontecimento, um mundo, até então estável, fica desequilibrado. Depois, tenta recuperar a estabilidade, quer pela instauração de um novo equilíbrio, quer pelo regresso ao primeiro equilíbrio. (Gardies, 2008: 76) Em The Ghost Writer, existem alguns casos em que se pode constatar esta sequência. Na perspetiva do escritor fantasma, que vive num mundo estável e "equilibrado", o convite para concluir o trabalho de McKara, o seu antecessor, provoca o seu "desequilíbrio". A estabilidade é, aparentemente, readquirida através da investigação que realiza, e os imprevistos que vão surgindo parecem conduzi-lo a um "reequilíbrio". No final do filme, a sequência apresentada pelo realizador remete para um outro "equilíbrio", o de Ruth. Também no caso desta personagem ocorre, no final, uma sequência de "equilíbrio, desequilíbrio, reequilíbrio". O "equilíbrio" existe porque o seu segredo se mantém depois da morte de McKara, mas o "desequilíbrio" surge quando o escritor fantasma começa a investigar e acaba por descobrir a verdade sobre Ruth. No entanto, o "reequilíbrio" acontece no final, depois do "acidente" que o escritor sofre antes de ter conseguido divulgar a sua descoberta. Um artigo publicado no jornal Guardian em 12/02/2010, intitulado "The Ghost Writer", revela a opinião do crítico de cinema Peter Bradshaw, relativamente ao trabalho do realizador Polanski keeps the narrative engine ticking over with a downbeat but compelling throb. This is his most purely enjoyable picture for years, a Hitchcockian nightmare with a persistent, stomach-turning sense of disquiet, brought off with confidence and dash. De facto, esta opinião expressa a inquietação que muitos espectadores sentiram ao visualizar obra de Polanski. O ambiente em todo o filme é pesado devido ao céu cinzento escuro e à chuva torrencial que não pára de cair. As condições atmosféricas condicionam os estados emocionais dos que vivem em espaços fechados e claustrofóbicos: a ilha isolada do 278 continente, a casa que mais parece uma prisão, e o barco contrastam com a natureza aberta e espaços amplos, mas de cores mortas em que nem o mar consegue ter uma função apaziguadora e de descontração. Na última cena, o espectador imagina que houve um atropelado, casual ou talvez não, do escritor. Contudo, ficam as apenas as suspeições uma vez que a ação ocorre fora de campo e apenas se vêm as folhas do manuscrito a inundarem a rua molhada de Londres. Figura 2 – Folhas espalhadas pelo vento O final em aberto foi uma forma perspicaz que o realizador escolheu para deixar o espectador na dúvida deixando-o imaginar o que acontecia fora do campo de visão. O movimento das personagens na rua, e o som escolhido sugerem o que a câmara não mostra – um presumível atropelamento mortal. A câmara que tinha acompanhado todos os movimentos da personagem estando sempre presente, mesmo nos momentos mais íntimos, abandona-o. O filme termina de uma forma semelhante ao início com mais um mistério por resolver. A questão do contexto não pode ser ignorada nesta situação tendo em conta que (…) a linguagem das imagens obriga a adoptar uma posição pragmática, ou seja, a pôr no posto de comando da análise as determinações externas ao texto: são elas que regem o modo de leitura que o espectador utilizará, ou seja, a forma como dará sentido às imagens: assim, conforme o contexto de leitura, é um texto diferente, apoiado em elementos diferentes da imagem, que será construído. (Gardies, 2008: 153) Ao falar em contexto, não podemos deixar de mencionar a existência, no filme, de uma cena de índole sexual que parece, de alguma forma, fora de contexto, mas que merece ser referida. A meio da noite, Ruth a mulher de Lang, dirige-se ao quarto do escritor, despe-se, deita-se com ele na cama e os dois acabam por envolver-se sexualmente. Depois deste encontro, os seus comportamentos e as suas relações permanecem inalteradas como se aquele episódio nunca tivesse existido. Não se conhecem consequências, apenas parece um "acidente" de percurso sem qualquer significado. Uma vez que este episódio surge perdido na diegese de forma descabida, as imagens acabam por remeter-nos para a vida pessoal de Polanski que daria um bom argumento para um filme, tendo em conta as múltiplas histórias por ele vividas envolvendo sexo, drogas e violações. As polémicas e os escândalos, em parte, fruto de uma infância e adolescência sofridas, acabaram por deixar marcas nesta e em outras obras de uma forma. O padrão parece repetir-se na sua vasta produção cinematográfica. 279 O realizador de clássicos como Repulsion (1965), Chinatown (1974), Tess (1979) ou The Pianist (2002) enfrentou, durante a rodagem, algumas adversidades a nível da mobilidade, devido a um pedido de extradição por parte dos Estados Unidos da América, que não lhe permitiu deslocar-se aos locais em que as filmagens decorriam, a Alemanha, e não nas Ilhas Britânicas, como seria de esperar. Embora as restrições que lhe foram impostas pelas autoridades restringissem os seus movimentos, Polanski tomou decisões artísticas e supervisionou a pósprodução, quer a partir da sua cela, quer quando se encontrava em prisão domiciliária. Apesar dos obstáculos que surgiram na sua vida pessoal e acabaram por se repercutir no trabalho, esta produção cinematográfica apresenta-nos uma história cativante que prende o espectador ao ecrã através das situações imprevistas que ocorrem até às últimas cenas do filme. A Crítica Política A editora responsável pela biografia do ex-primeiro ministro Adam Lang, contrata um segundo escritor fantasma para finalizar o livro iniciado por outro escritor, cuja morte repentina e misteriosa deixou a obra incompleta. Quase de imediato, este escritor se apercebe que o trabalho de recolha de informação para completar as memórias de uma figura que governou o Reino Unido não será fácil e que existem outras coisas em jogo que podem condicionar o seu trabalho como a luta pelo poder e a relação entre o casal, aparentemente estável, mas que ele precisa de entender. Por ter estado durante muito tempo à frente do governo, Lang parece não conhecer a realidade do seu país, daí a analogia entre a personagem do romance e Blair que Robert Harris comentou numa entrevista à estação de rádio americana, National Public Radio, em que afirmou: (…) politicians like Lang and Blair, particularly when they have been in office for a long time, become divorced from everyday reality, read little and end up with a pretty limited overall outlook. When it comes to writing their memoirs, they therefore tend to have all the more need of a ghostwriter. (National Public Radio interview, 31 October 2007) O escritor critica o alheamento dos políticos face à realidade que os cidadãos vivem, por isso, quando pensam em escrever as suas memórias, precisam de recorrer a um escritor fantasma, que, provavelmente, conhece melhor o que se passa no seu país. Na mesma entrevista, Harris referiu ainda que o título The Ghost Writer também se aplicava a Blair considerado um escritor fantasma ao serviço de Bush: "Blair, he said, had himself been ghostwriter, in effect, to President Bush when giving public reasons for invading Iraq: he had argued the case better than had the President himself". (ibid) O escritor fantasma é alguém que se propõe assumir a identidade de outra pessoa para escrever em seu nome, o escritor original ou autor, a troco de uma quantia, mas cujo nome ficará para sempre no anonimato. Este tipo de contratação é uma prática que acontece com alguma frequência quando alguém quer escrever textos para anúncios, livros, argumentos para filmes ou mesmo para redigirem os discursos de políticos. Um pouco por todo o mundo, políticos famosos como Churchill ou John Kennedy têm recorrido a escritores fantasmas para elaborarem os seus discursos. Um dos nomes que ficou célebre foi o de Ted Sorensen, cuja frase "Ask not what your country can do for you; ask what you can do for your country", 280 atribuída ao Presidente Kennedy, ainda hoje é repetida com frequência por alguns políticos americanos. Em Budapeste, um romance de Chico Buarque, o narrador José Costa é um escritor fantasma que escreve cartas, artigos, livros e discursos para quem lhe paga, permanecendo o seu nome no anonimato. No caso de The Ghost Writer, a vida do escritor parece complicar-se devido à pressão da editora em querer publicar o livro dentro de poucas semanas, e a uma situação algo inesperada que foi a acusação de Adam Lang de crimes de guerra pelo Tribunal Internacional Penal de Haia por ter permitido que soldados britânicos torturassem suspeitos de terrorismo no Afeganistão. Segundo Bradshaw: He makes a living ghostwriting the autobiographies of raddled showbiz veterans. In the current publishing scene, his business is booming, but even he is astonished to be offered the job of ghostwriting the memoirs of the former British prime minister Adam Lang, now living with his formidable wife Ruth (Olivia Williams) in his American publisher's palatial beachfront home. A possible war-crime prosecution for assisting the rendition of terror suspects means Lang may never be able to leave American soil. And his last ghostwriter has been found drowned – an awful fate that resonates, sickeningly, with TV images of waterboarding. Could it be that the dead man discovered something dangerous about the ex-PM and his super-powerful, super-rich American friends? (ibidem) Para evitar ser preso, Lang terá de permanecer nos Estados Unidos da América onde conta com a proteção de alguns amigos ricos, mas é perseguido pelos jornalistas que procuram saber o que se passa. Uma das situações em que existe alguma semelhança entre Lang e Blair surge através de um cartaz que aparece durante a manifestação e em que está escrito "LIAR". Os manifestantes anti-Blair também escreveram em cartazes o seu nome sob a forma de anagrama "TONY B. LIAR". Ainda de acordo com a opinião de Bradshaw no artigo citado anteriormente, as semelhanças que existem entre as personagens do filme e as da vida real estão longe de ser meras coincidências, como se pode constatar pelas suas palavras. Resemblances to Tony and Cherie Blair are very far from coincidental: both Harris and Polanski have clearly calculated that a libel lawsuit would make for an uproarious day in court, precisely the sort of legal appearance that Mr Blair does not care to make, in fact or fiction. This consideration adds a kind of meta-pleasure to the narrative. (ibid) A acusação inesperada de Lang dá origem a uma discussão política dentro do filme sobre questões que continuam muito atuais como o terrorismo, e as medidas que devem ser adotadas para combatê-lo. Numa cena, o escritor surge no bar do hotel, a assistir ao noticiário que está a ser transmitido pela televisão, e em que são apresentadas informações sobre supostos terroristas vítimas de uma técnica de tortura praticada pela CIA. Esta notícia faz-nos pensar no papel de Lang no que respeita ao conhecimento e autorização dessas práticas. Há ainda outra cena, com uma mensagem importante sob o ponto de vista político e que passa quase despercebida. Quando Lang sai do seu avião particular, na parte lateral do aparelho pode ler-se "Hatherton", uma referência a uma empresa de segurança que o escritor fantasma tinha pesquisado numa cena anterior do filme e que remete para as relações ocultas com o governo americano. 281 Conclusão Ao longo de mais de quarenta anos dedicados ao cinema, Polanski nem sempre tem sido notícia pelos melhores motivos. Apesar das transgressões e escândalos relacionados com a sua vida privada, a sua carreira alcançou muitos sucessos que culminaram com a atribuição de vários prémios. Profundo e muitas vezes neurótico, o realizador explora de forma exemplar os medos e ansiedades, quer das personagens, quer dos espectadores, possivelmente um reflexo do seu passado nubloso que ainda continua a marcar o seu presente. The Ghost Writer não é apenas mais filme baseado em factos reais transpostos para o cinema. O que atraiu os espectadores não foi apenas a curiosidade sobre a vida de um primeiroministro inglês, mas o mediatismo por que passava o seu realizador devido à suspeita de violação de uma menor que o manteve preso durante algum tempo e afastado da vida social. Enquanto crítica política, The Ghost Writer denuncia algumas ligações secretas entre os governos do Reino Unido e dos Estados Unidos que visavam pôr fim ao terrorismo. Surgem referências a várias individualidades do mundo da política em que Tony Blair parece ser o alvo principal, e empresas internacionais também relacionadas com a política como o Instituto Claremont cuja missão consiste em restaurar os princípios expressos na Declaração da Independência Americana, a Halliburton uma empresa de Dick Cheney, vice-presidente de Bush, responsável por uma parte da reconstrução do Iraque depois da guerra. Neste filme, Polanski arriscou bastante ao expor as relações entre governos, órgãos de segurança e a imprensa. Também não poupou o ex-primeiro ministro britânico ao expor a notificação do Tribunal Penal Internacional para responder sobre os possíveis crimes de guerra que envolveram a entrega de prisioneiros para serem interrogados e torturados pela CIA. De certa forma, pode afirmar-se que existe um desejo de punição para um político que cometeu erros graves, para que o seu julgamento possa servir de exemplo a futuros governantes. Bibliografia citada Aumont, Jacques. A Imagem. Lisboa: Edições Texto & Grafia, Lda., 2005 Bradshaw, Peter. "The Ghost Writer", 12/02/2010 http://www.theguardian.com/film/2010/feb/12/roman-polanski-ghost-writer consultado em 05/01/2015 Gardies, René. Compreender o Cinema e as Imagens. Lisboa: Edições Texto & Grafia, Lda., 2008 Harris, Robert. The Ghost. London: Harrow Books, 2008 Vanoye, Francis, Goliot-Lété, Anne. Ensaio sobre a Análise Fílmica. S. Paulo: Papirus, 2005 282 Capítulo 7 Narrativa audiovisual: lendo permanências e inovações Gran Torino, de Clint Eastwood: subversão (e sobrevivência) do modelo narrativo clássico no cenário pós-industrial Fabio Camarneiro, Universidade Federal do Espírito Santo – UFES, [email protected] Resumo Em Gran Torino (Clint Eastwood, 2008), encontramos, lado a lado, valores ligados ao masculino, ao capitalismo industrial e à ética do trabalho (em último sentido, às narrativas clássicas) e valores ligados ao feminino, ao capitalismo tardio e ao multiculturalismo. Ao operar essa tensão, Eastwood compõe um filme-réquiem para sua persona fílmica e, inadvertidamente, aponta novos caminhos para o modelo narrativo clássico. Palavras chave: roteiro cinematográfico, Gran Torino, Clint Eastwood, capitalismo tardio. Abstract Gran Torino (Clint Eastwood, 2008) displays two different sets of values: the classical narrative (associated with Masculinity, Industrial Capitalism, and the “ethics of work”), and the postmodernity (associated with feminism, late capitalism, and multiculturalism). Eastwood creates a sort of requiem to his film persona and, at the same time, creates a new understanding about the old forms of the classical film narrative. Keywords: screenwriting, Gran Torino, Clint Eastwood, Late Capitalism. O corpus teórico relativo ao roteiro cinematográfico tende a concentrar sua atenção, de maneira recorrente, em modelos consolidados pelo cinema narrativo de matriz norteamericana, destinados a um público amplo: a “estrutura em três atos” (FIELD, 1995), a “arquitrama” (McKEE, 2000) ou a “jornada do herói” (VOGLER, 1997) são alguns dos conceitos normalmente associados a esses modelos. Se tal modelo efetivamente existe, é possível imaginá-lo em crise ou, ao menos, em processo de renovação de paradigmas. Estudos de Ivette Huppes (2000) e Ismail Xavier (2000) já apontaram a capacidade de adaptação do melodrama – um dos modelos mais duradouros das narrativas modernas. De modo análogo, imaginamos que as “arquitramas” passem por semelhante processo de renovação. Nosso projeto é analisar a tentativa de superação dos valores clássicos do cinema (e da sociedade) norte-americano(s), bem como perceber, nos próprios elementos fílmicos, as contradições históricas que levaram esses modelos (narrativos e econômicos) a um colapso e uma necessária renovação. 283 Em primeiro lugar, é necessário entender que a chamada “narrativa clássica hollywoodiana” refere-se a um período histórico específico: Bordwell (2005), por exemplo, fala em 1960 como um limite para o período caracterizado por esse modo de produção e seu correlato modo narrativo. Assim, no período clássico, “a história canônica” é entendida como “a atividade de um indivíduo (o protagonista) voltado a consecução de objetivos e casualmente determinada”. (BORDWELL, 2005, p. 295) Importa aqui certa “teleologia” do personagem protagonista no roteiro clássico: ele possui um “objetivo final” que, apesar de muitas vezes ser previamente enunciado, muitas vezes é apenas “revelado” com clareza (sempre ao público, nem sempre ao próprio personagem) ao final da narrativa. Então, numa espécie de recapitulação que o espectador realiza das peripécias narradas, cada elemento da narrativa passa a ser revisto a partir desse objetivo último. Esse modelo narrativo está intimamente associado com uma época histórica em que os EUA eram – desde o fim da primeira guerra mundial – a grande potência de economia mundial e, ao mesmo tempo, as imagens cinematográficas ainda não tinha recebido o “choque de realidade” dos cinemas modernos – o neorrealismo italiano e todos os cinemas nacionais por ele influenciados. Essa peculiar combinação entre poderio econômico, crença quase absoluta no poder da imagem – associada ao modelo da narrativa canônica e aos valores do American way of life presentes no cinema estadunidense – criou as bases do cinema clássico hollywoodiano. Para tentar examinar como os parâmetros narrativos – que aqui chamaremos de “clássicos” – encontram-se em processo de crise e de adaptação, numa tentativa de renovar a força dos modelos tradicionais frente ao público amplo, recorreremos a um exemplo de subversão (e, ao mesmo tempo, de sobrevivência) desse modelo: Gran Torino (Clint Eastwood, 2008), com roteiro de Nick Schenk. Além de lidar com a crise de parâmetros narrativos (o papel do protagonista, o objetivo central, a relação entre protagonistas e personagens secundários etc.), o filme lida com a crise da própria economia norte-americana, pois a trama se passa em um subúrbio, habitado por diferentes grupos de imigrantes, que vive a recessão econômica do retraimento da indústria automobilística. Perseguidor (outrora) implacável Em Gran Torino, além das ruas quase sempre abandonadas do subúrbio, a figura da decadência encontra-se representada também no personagem Walt, interpretado pelo próprio cineasta. Em suas atitudes, nota-se uma espécie de desarmonia com tudo que o cerca: em determinada cena, apesar de sua bravata ao enfrentar pequenos ladrões que tentam roubar seu carro – o “Gran Torino” do título – os resultados de sua ação resultam um tanto patéticos. Enquanto os jovens delinquentes terminam por fugir, ele se atrapalha, cai e termina com um leve ferimento. Aqui, o filme coloca em crise a figura do homem viril, destemido e audaz, capaz de resolver qualquer problema com as próprias mãos (o legítimo self-made man), imagem que o próprio Eastwood protagonizou em diversas ocasiões, sendo talvez a mais paradigmática em sua interpretação do detetive Dirty Harry, em Perseguidor implacável (Dirty Harry, Don Siegel, 1971) e em suas quatro sequências – uma delas, Impacto fulminante (Sudden impact, 1983), também dirigida por Eastwood. 284 Em Gran Torino, vemos que o arquétipo de Dirty Harry envelheceu. O personagem “implacável” mostra-se fisicamente comprometido, seja pela velhice, seja pela doença que, anunciada durante todo o filme (com uma tosse recorrente, às vezes acompanhada de sangue), é diagnosticada apenas no terço final da narrativa. Além disso, a ética do detetive (que poderíamos sumariamente resumir como “atirar primeiro e perguntar depois”) também parece não mais encontrar eco no mundo contemporâneo. O clímax final opera nesse sentido, ao mostrar um justiceiro que, para surpresa geral, encontra-se desarmado e que desaparece sem ver (apesar de ter provocado) a reviravolta final da trama, centrada em uma força policial “correta” (multirracial e sem nenhum excesso no uso da força) e na união da comunidade (que, ao que tudo indica, decide testemunhar contra a gangue de orientais que representam os antagonistas da trama do filme). Duas pedras de toque do detetive justiceiro – o “agir com as próprias mãos” e a “subversão de regras a partir de resultados desejados” (ou, em termos maquiavélicos: “os fins justificam os meios”) – aqui aparecem como métodos retrógradas e mesmo insuficientes, algo que poderia causar surpresa nos aficionados pelos filmes de Dirty Harry, mas não na plateia que acompanha a carreira do ator-realizador Clint Eastwood. O “truque” final do personagem de Walt, bem distante das táticas um tanto quanto fora-da-lei de Dirty Harry, consiste em provocar uma comoção social: em Gran Torino, o coletivo supera o indivíduo – sutil inversão de uma tradição do cinema estadunidense, baseada quase exclusivamente na força de indivíduos, seja nas telas (nos protagonistas “voltados a consecução de objetivos”) ou fora delas (no star system, por exemplo). Mas, antes que possamos imaginar tratar-se de um filme de ruptura, é importante atentar para as “continuidades” presentes em Gran Torino: toda a narrativa é perpassada pela ideia de uma tradição “em crise” que precisa encontrar herdeiros – ou corre o risco de perecer. Aqui, essa herança (de valores culturais) será passada do anacrônico Walt, cujos filhos não correspondem às expectativas paternas, para o jovem Thao, seu vizinho, um garoto de etnia hmong (grupo étnico originário do sul da China, do Vietnam e do Laos). Sue, mentora de Walt O filme de Eastwood lida com o ocaso não apenas de um certo tipo de personagem, mas de suas bases históricas: a supremacia dos EUA no cenário político e econômico internacional. Note-se que o personagem de Walt lutou na Guerra da Coreia (1950-1953) – de onde saiu traumatizado – e tem uma relação bastante preconceituosa com seus vizinhos hmong, a família formada por mãe, avó e pelos irmãos Thao e Sue. Esta última será importante na narrativa por servir como uma espécie de “guia” quando Walt finalmente adentra a casa e as tradições dos hmong – retratadas com certo humor, decerto por serem distantes e mesmo estranhas para um americano de perfil conservador, cheio de preconceitos, como aquele representado por Eastwood. Considerando as categorias de personagem de Vogler, Sue seria uma espécie de “mentora” de Walt, a personagem que vai lhe ensinar coisas necessárias ao seu desenvolvimento (e à conclusão de seus objetivos). Normalmente, personagens desse tipo são mortos em certo ponto da narrativa, numa demonstração (dentro de estruturas arquetípicas) de que o protagonista estaria pronto para seguir sozinho em sua “jornada”. O “mentor” morre para que o discípulo complete sua trajetória. Em Gran Torino, Sue não chega a 285 morrer de fato, mas passa por um martírio quando é violentada pela gangue de seu primo. (Episódio que representará também o ponto de virada para o ato final da narrativa.) Eis um primeiro deslocamento das funções dos personagens em relação a sua definição nos chamados manuais de roteiro. Sendo Walt o personagem mais velho e experiente e Thao o adolescente que está em processo de entrar na idade adulta, seria lícito pensar que o primeiro seria o mentor do segundo. Isso efetivamente acontece e, durante o filme, Walt ensinará muitas coisas ao garoto: como utilizar ferramentas, como lidar com o barbeiro e até mesmo como flertar com garotas. Thao “herda” certos valores de Walt que representariam, mais do que o American way of life, uma espécie de ethos nacional, que não exclui certa rudeza, certo machismo, uma relação puritana com a culpa, a honra e o dinheiro. O homem mais velho tenta transformar o garoto hmong em algo bastante distinto da imagem que ele tem dos próprios filhos, ou seja, em alguém construído a partir dos bons e velhos valores dos EUA, a “terra da oportunidade”: trabalho, honra etc. A ética do trabalho braçal Na estrutura simbólica do filme, em lugar diametralmente oposto ao de Thao está Ashley, a neta de Walt, que gostaria de ter parte da mobília do avô, além de ter esperança em herdar ela própria o mítico carro guardado na garagem. Mas – eis o ponto nevrálgico para Walt –, ao contrário de Thao, ela não faz nada para merecer esses presentes. O velho homem vive de acordo com código ético ligado ao trabalho manual, algo patente na maneira como suas ferramentas estão arrumadas, bem como na forma como se dá a “reeducação” de Thao: a partir de trabalhos domésticos, feitos para Walt e para os vizinhos, até que o gatoro possa conseguir um trabalho (braçal) remunerado. (Note-se que o trabalho intelectual está fora do escopo do filme, ao menos para os personagens masculinos, de acordo com um antiintelectualismo que marca grande parte da indústria cultural contemporânea e, em particular, o cinema norte-americano de grande público.) Essa “ética do trabalho” de Walt é anacrônica porque anterior ao capitalismo tardio (baseado principalmente na especulação). Na lógica arcaica de Walt, Thao (apesar de ser visto como um imigrante sem perspectivas) vai “dar duro” e, logo, será recompensado; por outro lado, Ashley (que não se esforça para fazer ou para aprender nada, mas acredita em uma espécie de “direito natural”) terminará preterida. O testamento do velho homem realiza uma espécie de vingança em nome de uma ideia conservadora a respeito dos EUA: quem trabalha duro terá direito às melhores oportunidades. Não nos cabe questionar a correção ou a incorreção desse conceito. Basta-nos perceber que ele existe e serve de motor para as escolhas do personagem de Gran Torino, cujo anacronismo perpassa de suas decisões testamentárias até a opção de ter em sua garagem um carro praticamente novo (o Ford Gran Torino), apesar de fabricado na primeira metade dos anos 1970. O carro imaculado é símbolo de um Zeitgeist que, em tese, é passado, mas que Walt insiste em manter como se fosse contemporâneo. Objeto de desejo para Thao (para quem o carro representa a chegada da idade adulta, seja como fruto do roubo planejado pela gangue do primo, seja ao final, quando ele o recebe de herança); símbolo de um tempo perdido para Walt (lembrança de quando os carros eram fabricados nos próprios EUA, por empresas americanas, ao invés de serem importados do Japão); espécie de peça de museu que simboliza 286 os sonhos dos imigrantes (possuir o carro) e dos americanos conservadores (possuir – novamente – a produção do carro). Nessa imbricação entre uma indústria automobilística decadente (que está ausente do filme, exceto por suas consequências) e a paixão por um carro construído há décadas encontra-se a contradição da ética do personagem central. Entre um mercado mundial que delegou aos países asiáticos a produção de automóveis e um país que segue recebendo imigrantes agora sem possuir indústrias para empregá-los, a contradição de um mundo globalizado onde commodities e capitais viajam com muito menos restrições do que pessoas. Assim, o que permanece subterrâneo no filme de Eastwood é a linha tênue que liga o preconceito em relação aos imigrantes (as novas fronteiras humanas) com o esgotamento dos tradicionais parques industriais (a ausência de fronteiras comerciais). Não por acaso, o filme está ambientado nas redondezas de Detroit, uma das cidades que mais sofreram com o declínio da produção automobilística nos EUA: segundo o jornal britânico The Guardian (2013), 250 mil pessoas teriam abandonado a cidade entre 2000 e 2009. A vizinhança decadente, repleta de imigrantes, é o índice dessa nova massa de “trabalhadores sem trabalho”. Assim, o discurso do filme de Eastwood sobre uma “ética do trabalho” deixa de parecer condizente com seu tempo histórico. Eastwood cria um filme marcado pela nostalgia, não de outras formas estéticas – uma das marcas da pós-modernidade, segundo Fredric Jameson (1985) – mas de outro tempo histórico, de outras condições econômicas e sociais. Nesse novo contexto, parece impossível a “harmonia” buscada ao final das narrativas hollywoodianas clássicas. A sociedade representada em Gran Torino está à beira de um colapso social, com agressivas gangues surgindo literalmente a cada esquina. Nesse mundo, o “perseguidor implacável” já não é suficiente para dar conta da violência: o transgressor não é mais uma “exceção” em meio a um mundo de abundância, mas a “regra” em um mundo colapsado. A narrativa é marcada pelo sacrifício do anacrônico vingador viril, defensor da antiga ética do trabalho. Ao invés disso, como já apontado aqui, aposta-se em uma solução comunitária e, conforme a cena da partilha dos bens de herança, também legalista. Os estereótipos dos personagens femininos O personagem de Eastwood – que, em termos ideais, funcionaria como o mentor do garoto – falha ao não perceber que seus ensinamentos não são mais aptos para dar conta do mundo contemporâneo. É o próprio Walt que, tutorado por Sue, se transformará em aprendiz – até perceber que seu tempo (tanto em relação a seus valores quanto a sua sobrevivência física) está terminado. A personagem forte de Gran Torino, que detém uma espécie de “sabedoria superior”, não é Walt, mas Sue. Uma jovem mulher, e não o velho homem. Uma oriental, ao invés do ocidental. Dessa maneira, o filme opera o contato entre paradigmas complementares, para não dizer “opostos”. Ao colocar Sue como sua “falsa” protagonista, Gran Torino poderia flertar com o feminismo. Se isso acontece em cenas pontuais, a própria estrutura do filme tende a recolocá-la em uma posição secundária. Durante o terceiro ato – no trecho que vai desde a descoberta da violência por ela sofrida até o final –, Sue torna-se uma personagem sem expressão. Sua única função é libertar o irmão (que havia sido aprisionado por Walt para impedi-lo de tentar repetir o exemplo do “justiceiro implacável”) e acompanhá-lo na cena em que a gangue é presa, cena 287 que tem o cadáver de Walt como centro da mise-en-scène. Depois, ela desaparece. No fundo, Gran Torino é um filme de homens mais velhos e homens mais novos. As lições de Sue, apesar de representarem um ponto de vista mais historicamente contemporâneo e socialmente consciente, são ensinamentos “teóricos”. A prática, a ação, a tomada de decisões – e o direito de estar ao volante do Gran Torino – são parte de um universo exclusivamente masculino. Desse ponto de vista, podemos repensar Ashley como uma personagem injustiçada. Não é apenas por ser “interesseira” que ela tem negado seu direito de herança, mas também por ser... mulher. A sucessão dos bens não pode ser feita diretamente entre Walt e seus filhos, que já estariam muito contaminados pela lógica globalizada do capitalismo tardio. O velho homem precisa de outro herdeiro, mas não Sue, que a ele ensina sobre o mundo, nem Ashley, que teria com ele uma espécie de “dívida de sangue” (para aludirmos ao título traduzido de outro filme do diretor). Ele precisa de alguém do sexo masculino, alguém apto, de acordo com a lógica machista do filme, a conduzir a grande máquina do capitalismo “arcaico” (o Ford Gran Torino). Nesse sentido, não deixa de ser significativo que a cena inicial do filme seja justamente a cerimonia fúnebre da esposa de Walt. O elemento que inicia a narrativa é a perda do elemento feminino e sua substituição (simbólica) por uma figura feminina dividida em duas: uma, o porto seguro, que traz apoio, suporte, compreensão e, em última instância, redenção, mais inteligente que sensual (Sue); a outra, trazendo perdição e danação, mais sensual que inteligente (Ashley). A mulher que equilibra a equação (segundo a concepção de Walt) é Youa, a pretendente de Thao: nem tão inteligente (ao ponto de roubar o protagonismo masculino), nem tão sensual (a ponto de confundir o discernimento masculino). Espécie de nova esposa que será recolocada no lugar da falecida, não exatamente para Walt, mas para seu pupilo. Como dizia o título de uma canção de James Brown, “it’s a man’s man’s man’s world”. Sobrevivência do modelo clássico – agora globalizado Em Gran Torino, não é exatamente claro o objetivo final do(s) personagem(ns) central(is). Sue precisa educar Walt para que Walt possa educar Thao para que ele herde os valores de um capitalismo em colapso. O jovem hmong está em ritual de passagem da puberdade à idade adulta (representada pela conquista amorosa e pelo direito a possuir o carro). Walt, por outro lado, encontra-se no ritual final, ao encarar a morte e procurar por um herdeiro, além da redenção de seus pecados (nesse sentido, torna-se central a presença da igreja católica, também signo da permanência de certo estado de coisas). Gran Torino define-se, portanto, como uma espécie de “linha de chegada” muito associada à persona fílmica do ator-realizador: os ideais de Dirty Harry não encontram mais lugar, assim como a lógica da vingança já não encontrava lugar em Os imperdoáveis (The Unforgiven, 1992). Também os valores da ética do trabalho parecem anacrônicos frente à lógica do capitalismo tardio, mas sobrevivem como souvenires de um outro tempo, talvez meras ruínas. Assim também o modelo da narrativa clássica, que não parece mais capaz de dar conta do cenário contemporâneo. Apesar de apresentar sinais de crise, também há sinais de renovação nas estruturas lineares em que personagens “aprendem” com sua história e tentam superar desafios específicos. A 288 narrativa clássica sobrevive como souvenir (nostalgia) ou como ruína. Porém, aproveitando os mesmos “resíduos” da globalização, a própria indústria de cinema encontra outras saídas. No plano que encerra o filme, o Ford Gran Torino avança enquanto Thao e sua namorada reencenam o sonho do American way of life. A máquina estadunidense, mesmo antiga, ainda funciona à perfeição. Porém, os velhos valores americanos não parecem mais suficientes; é necessário uma outra sensibilidade ao volante – uma sensibilidade (que poderia ser feminina, como, para ficarmos na metáfora dos automóveis, na Furiosa de Mad Max: Fury Road), mas que é apenas estrangeira. Hollywood vive a diluição das fronteiras entre nacional e estrangeiro, o que pode ser comprovado na constante importação de profissionais de outras partes do planeta, que revela um intenso movimento de “globalização” que, entre outras coisas, coloca em cheque a ideia das cinematografias ditas “nacionais”. Também nesse sentido, não deixa de ser interessante notar que o mais importante prêmio da indústria norteamericana, o da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Los Angeles, tenha sido vencido, em suas últimas cinco edições (entre 2012 e 2016), por diretores oriundos de países de língua não-inglesa (um francês, um taiwanês, dois mexicanos, um deles premiado duas vezes). As oposições operadas em Gran Torino (masculino e feminino, Ocidente e Oriente, capitalismo industrial e capitalismo tardio) são a tônica do cinema contemporâneo. Apesar do filme de Clint Eastwood apontar para o passado (sendo assim, mais um réquiem do que qualquer outra coisa), ele deixa ver, em seus interstícios, as tensões históricas que serão decisivas na definição das narrativas do futuro. Referências Bibliográficas BORDWELL, David. “O cinema clássico hollywoodiano: normas e princípios narrativos”. tradução: Fernando Mascarello. In: RAMOS, Fernão Pessoa (org.). Teoria contemporânea do cinema, vol. 2: documentário e narrativa ficcional. São Paulo: Senac São Paulo, pp. 277-301, 2005. “Detroit: a city in decline – in pictures”. The Guardian. Londres, 19 jul. 2013. disponível em: http://www.theguardian.com/world/gallery/2013/jul/19/detroit-goes-bankrupt-in-pictures FIELD, Syd. Manual do roteiro: os fundamentos do texto cinematográfico. Rio de Janeiro: Objetiva, 1995. HUPPES, Ivete. Melodrama: o gênero e sua permanência. São Paulo: Ateliê Editorial, 2000. JAMESON, Fredric. “Pós-modernidade e sociedade de consumo”. tradução: Vinicius Dantas. In: Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, nº 12, pp. 16-26, jun. 1985. McKEE, Robert. Story: substância, estrutura, estilo e os princípios da escrita de roteiro. Curitiba: Arte & Letra, 2006. VOGLER, Christopher. A jornada do escritor: estruturas míticas para contadores de histórias e roteiristas. Rio de Janeiro: Ampersand Editora, 1997. 289 XAVIER, Ismail. “Melodrama, ou a sedução da moral negociada”. In: Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, nº 57, pp. 81-90, jul. 2000. Filmografia Citada Perseguidor implacável (Dirty Harry, dir.: Don Siegel, EUA, 1971). Impacto fulminante (Sudden Impact, dir.: Clint Eastwood, EUA, 1983). Os imperdoáveis (The Unforgiven, EUA, 1992). Dívida de sangue (Blood Work, dir.: Clint Eastwood, EUA, 2002). Gran Torino (dir.: Clint Eastwood, EUA, 2008). Mad Max: Fury Road (dir.: George Miller, EUA, 2015) 290 O espectador decifrador: reflexões acerca da produção de sentido do filme “Matou a Família e foi ao cinema” (1969) de Júlio Bressane. Ana Beatriz Buoso Marcelino – Unesp – [email protected] Resumo: O presente estudo propõe-se a analisar alguns dos processos de produção de sentido gerados pelos elementos audiovisuais e narrativos contidos no filme “Matou a Família e foi ao Cinema” (1969) de Júlio Bressane, parte do escopo do chamado Cinema Marginal. Contudo, a complexidade dos elementos narrativos e estéticos presentes no filme, caracterizado principalmente pela fragmentação, tanto da narração quanto de sua forma, vêm a afetar o entendimento linear das ações trazendo à tona a ideia de uma possível postura decifradora do espectador em anteparo à transmissão da mensagem, gerando pistas e sugerindo possíveis caminhos de significação norteados pela análise estruturalista e etnológica do olhar do espectador. Palavras-Chave: Recepção; Sentido; Cinema Marginal; Júlio Bressane. Abstract: This study aims to examine some of the meaning production processes generated by visual and narrative elements contained in the movie "Killed the Family and went to the Movies" (1969) by Júlio Bressane, comes from the purpose of so-called Marginal Cinema. However, the complexity of the narrative and aesthetic elements in the film, mainly characterized by fragmentation of both, narration as its form, comes to affect the linear understanding of actions bringing up the idea of a possible decoder posture of the viewer screen in the message transmission, generating clues and suggesting possible significance paths guided by structuralist and ethnological analysis of the viewer eye. Keywords: Reception ; Sense ; Marginal Cinema; Júlio Bressane . Introdução O filme “Matou a família e foi ao Cinema” (1969) de Júlio Bressane representa uma forma complexa e inovadora de se fazer cinema, seja por seu caráter precário de produção, marcado muitas vezes por uma estética tosca, ou mesmo pela adoção de uma narrativa fragmentada que acabam por desafiar o entendimento do espectador, marcas estas, peculiares e características do Cinema Marginal ou underground brasileiro. Contudo, o olhar do cineasta parece entrar aqui em conflito com o olhar do espectador, pois, ao mergulhar no universo de significações proposto pelo filme, tem-se a possibilidade de sistematizar os processos de produção de sentido presentes, que acabam por se desdobrar em rotas complexas e variadas de significados através da análise de seus elementos audiovisuais e narrativos, ampliando-se, portanto, as possibilidades de fruição. Para tal iniciação, entretanto, torna-se pertinente entender o âmbito contextual que abarca a época em que o filme foi produzido. 291 Em meio a um cenário explosivo cultural marcado por fortes conflitos políticos e ideológicos, como a Tropicália82 e demais movimentos engajados, o Cinema Marginal aparece como uma nova vertente do cinema brasileiro moderno, considerado outra fase do Cinema Novo, nitidamente inspirado no cinema underground americano aliando a invenção estética ao debate político, somando-se a outras tradições como o cinema de Mário Peixoto, Orson Welles, Godard e a Chanchada, junto à literatura de Lima Barreto e Machado de Assis, além do cancioneiro popular dos anos 30. Tal ousadia gerou um rompimento radical com o público, acostumado ao distanciamento do espetáculo, com o exclusivo objetivo de provocar e promover o ato reflexivo, como uma espécie de espectador ativo que tenta juntar as peças de um quebra-cabeça em princípio sem nexo. O impulso emergente de artista experimental de Júlio Bressane questiona a própria forma de fazer cinema, um suposto cinema de invenção (Ferreira, 2000), acentuado pelo ajuste formal e o tratamento dado às cenas que indica ao telespectador o avesso de soluções, prejudicando um entendimento linear das ações, direcionando caminhos de leitura e apreciação, um estilo marcado pela heterogeneidade e disjunção (Xavier, 2012), uma espécie de “olhar corrosivo” que percorre livremente os espaços e cria seu próprio interesse. Dessa forma, esta dialética de fragmentação intenciona a suspeita de uma possível crise formal, pois o olhar da câmera de Bressane é como uma máquina que tudo observa a seu próprio tempo, uma câmera que está longe de ser “tranquila”. Suas imagens trazem uma dimensão polêmica, intertextual, e a recusa de envolvimento sob uma imobilidade que pode ser considerada dialógica. A liberdade da câmera de Bressane traz à tona uma diegese, enunciadora de um espaço off de reflexão independente das ações, com um olhar amplificador enriquecido pela disjunção. A parataxe, entretanto, aparece como elemento crucial para a diacronia das cenas. Sem encadeamentos ou subordinações, as séries são descontínuas e nem sempre olhar e objeto se encontram. Sendo assim, cada sequência é um recomeço através da liberdade do olhar a princípio sugerindo ser arbitrário, mas que no conjunto da obra produzirá sentido. Contudo, o fluxo de estímulo das ações é desencadeado fazendo com que o espectador tome uma postura ativa, de decifrador da mensagem. Um olhar fragmentado Júlio Eduardo Bressane de Azevedo, nascido no Rio de Janeiro em treze de fevereiro de 1946, é considerado um dos principais nomes do cinema nacional, de reconhecimento internacional. Iniciou sua carreira com a segunda geração do Cinema Novo, e foi precursor do Cinema Marginal ou Cinema underground brasileiro. No final dos anos de 1960 junto a Rogério Sganzerla germina os principais conceitos do Cinema Marginal e em 1970, fundam a Belair filmes, produtora responsável pela confecção de filmes marginais, capaz de executar seis longas-metragens em apenas seis meses, denunciando assim o caráter precário e improvisado deste novo estilo. Nas décadas seguintes, o cineasta desenvolve um rico acervo de filmes, e é reconhecido por seu caráter inventivo, poético e ensaísta, ganhador de diversos prêmios nacionais e 82 Vale observar a perspectiva adotada por Favaretto (2000). 292 internacionais, além de importantes indicações em eventos sobre cinema que se seguiram ao longo dos anos até os dias de hoje. A ousadia de Bressane em romper com o olhar hegemônico e domesticado do público (Xavier, 2014) teve como precursores os pensamentos de Jean-Luc Godard, Jean-Marie Straub, e Bertold Brecht, que propuseram o rompimento total da quarta parede, elegendo as ações cotidianas da realidade dentro de um laboratório estético como matéria-prima para a criação, fazendo com que o espectador se tornasse ativo e em exercício contínuo de reflexão. Tal caráter marcado pela experimentação fez com que Bressane questionasse a própria forma de se fazer cinema, bastante semelhante à atitude de Marcel Duchamp, nas artes visuais e o movimento anti arte83, no início do século XX. Tal invenção acentuada pelo ajuste formal e o tratamento dado às cenas indica ao telespectador o avesso de soluções, prejudicando um entendimento linear das ações, como nos aponta Xavier (2012, p. 330): “Bressane recusa a expressividade da câmera entendida como um imitar emoções, chegar perto para abraçar valores das personagens. Está ausente a fusão entre consciências: personagens, autor, espectador.” O autor também argumenta que o mundo diegético de Bressane é fragmentado, atingindo um nível radical de resíduos: A câmera, em Bressane, diverge. (...) Mesmo quando mais encorpado, ele não “segura” a câmera, pois esta busca outras paragens e produz material para interpolações (...). Ela perambula, cria seu próprio interesse, ou se assume como extensão do corpo. (Xavier, 2006, p. 9) Assim, Bressane nos dá outras possibilidades de olhar sobre novas perspectivas, com base num movimento de liberdade de pensamento, como uma espécie de espectador interativo e coautor do sentido de sua obra. O olhar caleidoscópio do espectador A etimologia nos ajuda a pensar no complexo percurso que o olhar do espectador traça ao se deparar com o filme em questão, um olhar ativo, pensante e construtor de significados. Chauí (1988) define o olhar sensível sobre um objeto a partir dos pensadores gregos, cujo olhar do espectador pode ser entendido como aquele que conhece, pois “... ver é olhar para tomar conhecimento e para ter conhecimento. Esse laço entre ver e conhecer, de um olhar que se tornou cognoscente e não apenas espectador desatento, é o que o verbo grego eidô exprime”. (CHAUÍ, 1988, p 35). Então temos: eidô: ver, observar, examinar, fazer ver, instruir, informar, conhecer, saber – do latim, da mesma raiz, vídeo: ver, olhar, perceber – e viso: visar, ir olhar, ir ver, observar, 83 O conceito anti-arte apoia-se na ideia dadaísta da determinação do valor estético não como procedimento técnico, mas como um puro ato mental, uma atitude diferente em relação à realidade: “Com suas intervenções inesperadas e aparentemente gratuitas, o Dadaísmo propõe uma ação perturbadora, com o fito de colocar o sistema em crise, voltando para a sociedade seus próprios procedimentos ou utilizando de maneira absurda as coisas a que ela atribuía valor.” (ARGAN, 1999, p. 356). O estilo inventivo e provocativo de Duchamp chamou a atenção da crítica pelo caráter enigmático de suas obras, consideradas quebracabeças desafiadores a estudiosos e o grande público: “Precisa-se apenas de virar o caleidoscópio da interpretação para descobrir que os fragmentos da vida de Duchamp e da sua obra, formaram um novo padrão.” (MINK, 2000, p.8). 293 examinar. Specto: ver, olhar, examinar, ver com reflexão, provar, ajuizar, esperar; Species: forma das coisas exteriores, figura, aparência, forma e figura formadas pelo intelecto, esplendor, formosura, semelhança (corresponde a eidós, a ideia). Spectator: o que vê, espectador; Speculatio: sentinela, vigia, estar em observação, pensar vendo; Spectio: a vista, a inspeção pelos olhos, a leitura de agouros. Todavia um olhar que sente, vê, percebe, conhece, sabe, intui e pensa: Esse olhar que se apercebe, atento, penetrante, atravessador e reflexivo é o de um olho perspicax (perspicaz, engenhoso) que vê perspicue (claramente, manifestamente, evidentemente) porque dotado de uma qualidade fundamental que reencontra no visível e que, dalí, por mutação, transmite ao espírito e ao intelecto: a perspicuitas, clareza e distinção do transparente. Esse olhar é o único capaz de vidência perfeita, a evidentia, posta como marca distintiva do verdadeiro.” (Chauí, 1988, p. 37) Dessa forma, entende-se que os pares: eidô-eidós, specto-species, spectio-speculatio, definem o ato de conhecer (intelectual) a partir da visão (sensível). Do olhar nasce o pensar, um outro olhar ou um modo peculiar de olhar. Segundo a autora, a espiritualidade da visão não seria apenas descoberta do olho, mas também do olhar poético, criador de todas as artes, responsável pela passagem das “artes mecânicas” à dignidade de “artes liberais”. Entretanto, o olhar do cineasta e do espectador parecem adentrar um território conflituoso e transformador de significados exponenciais. Nem sempre o que um artista materializou de seu pensar pode ser o que se contempla ou vice-versa. O processo de fruição artístico é em demasia complexo por sua natureza, de caráter imprevisível, multidirecional, dinâmico e auto transformável. Pensar um objeto artístico, contudo, parece traçar um itinerário libertador e independente, marcado por impressões arbitrárias de livre pensar. Esse caráter “interminável”, de seguir percursos imprevistos e conclusões inusitadas, como se o espectador não obtivesse o controle, permite a ampliação de possibilidades e um enriquecimento da compreensão, com crescente proporção do entendimento, um pensamento que infla em anteparo à burocracia do saber permeada por paradigmas fixos e regras ortodoxas, como um caleidoscópio de ideias sensíveis e inteligíveis. Alguns sentidos de “Matou a família e foi ao cinema” (1969) A presente obra foi filmada e montada em apenas 15 dias, concomitante à filmagem de outro filme de Bressane “O anjo nasceu” do mesmo ano. Na época, em meio à Ditadura Militar o filme chegou a ser retirado de cartaz acusado de ser subversivo. O roteiro se baseia na história de um moço ocioso de classe média baixa carioca que, em meio a suas frustrações assassina seu pai e sua mãe. Depois disso vai ao cinema assistir ao filme “Perdidas de amor” que conta a história de Márcia, jovem de classe média alta, casada e frustrada, que decide aproveitar uma viagem do marido para ficar em uma casa de campo em Petrópolis. Sua mãe pede para que Regina, sua amiga, vá até ela e converse sobre as dificuldades de um possível divórcio. Enquanto isso, um homem mata sua mulher dentro de um barraco, aos olhos curiosos dos vizinhos. Em outro ponto da cidade uma mulher deflagra a infidelidade do marido, enquanto que em outro local duas adolescentes que se amam são subjugadas pela mãe de uma delas e acaba sendo morta pela filha. Em meio à narrativa fragmentada de “Perdidas de Amor”, um 294 homem é cruelmente torturado até desfalecer. Também outro homem bêbado e pobre assassina a mulher e filho por causa de uma crise financeira e possível infidelidade da esposa. Em meio a tudo isso, as duas amigas em Petrópolis recordam o tempo do colégio, conversam sobre homens, casamento, festejam, fazem bagunça em vários cômodos da casa, se acariciam, trocam beijos e finalmente se matam em um tiroteio emblemático com as armas do marido de Márcia. Ao final de “Perdidas de Amor” duas amigas conversam sobre ter assistido a esse mesmo filme. No total são nove narrativas, baseadas em tragédias de jornais cariocas sensacionalistas da época, como homicídios passionais, traições, tortura física e lesbianismo, todas filmadas pelos mesmos atores, que acaba por dificultar um entendimento lógico. O filme possui uma série de características cruciais ao olhar sensível e ativo do espectador. Uma delas, bastante pontual, é a narrativa fragmentada, que acaba confundindo todo o processo de apreciação e entendimento da história. Júlio Bressane trabalha com essa ruptura de modo escancarado, fazendo com que o espectador se admire ao ver aos inesperados assassinatos brutais, em debate através da ironia provocada por outros elementos presentes do filme, como os efeitos sonoros utilizados, sempre sugerindo sentidos ambíguos, como uma alegre marchinha de carnaval para um corpo assassinado. Dessa forma, mergulhando-se no universo estrutural dos planos podemos traçar um mapa de itinerários possíveis. Na cena em que o filho manipula a navalha, encenando o assassinato dos pais, por exemplo, ele passa a lâmina afiada em seu rosto, nos olhos, na língua, gerando um efeito de sentido de provocação sinestésica ao espectador, como a aflição, ou medo. A câmera nesta cena está posicionada por trás da porta, evidenciando seu caráter voyeur, e depois em close up, de modo a enfatizar as emoções. O silêncio acentua o tom realista e de suspense, enquanto o personagem se vê no espelho - cujo reflexo curiosamente não aparece - denotando a ambiguidade de sua personalidade. Enquanto o ator gesticula a navalha com o sinal da cruz, aparece em seguida um plano com um quadro de Jesus pregado na parede, sugerindo ironicamente paganismo e subversão, temas pertinentes ao cenário político e ideológico da época. No plano sequência do assassinato dos pais, o filho caminha lentamente por trás do sofá, passa a mão sobre a cabeça do pai, puxa seu cabelo e lhe deflagra a navalha no pescoço. O pai grita curtamente. Depois o filho sai do enquadramento e ouve-se em off um grito de horror feminino, sugerindo a morte da mãe. Com a tomada em close up, sempre perambulando, a câmera segue o personagem que limpa a navalha suja de sangue no sofá e sai do enquadramento, o sangue traça uma linha vertical ao escorrer lentamente pela superfície, acentuando a dramaticidade da ação. Toda sequência de planos aparece ao som da TV, produzindo o sentido de ironia. No plano que segue, o personagem caminha na rua até parar, comprar um bilhete e entrar num cinema. Na narrativa seguinte, Márcia aparece sentada cabisbaixa num ambiente externo, junto ao marido que manipula uma de suas armas de fogo, atirando para um alvo enquanto comenta sobre sua viagem de negócios. Pensando-se na simbologia pode-se afirmar que a arma representa a extensão do falo, o poder relacionado ao marido da qual a esposa está farta. Na sequência, Márcia aparece em outro plano com expressão séria, ouve-se o ruído do avião a decolar, denotando sentido de algo desagradável que se soma à expressão do rosto de Márcia, 295 como o tédio. O contrário acontece na casa de campo, com ambientes amplos, abertos, onde se vê tudo limpo, organizado, farto, com água escorrendo pela torneira, ou seja, sugerindo fluidez e leveza. A personagem nada, faz ginástica e canta introspectivamente. Quando sua amiga Regina chega, se cumprimentam e entram nos aposentos. No plano seguinte se ouve em off o som de uma descarga, enquanto a câmera se posiciona entre a porta do que parece ser um banheiro, onde Márcia ajeita-se no espelho. Nessa sequência de planos o sentido sintagmático em evidência é o de eliminação de todas as impurezas físicas, de Regina, assim como as psicológicas, de Márcia. No fragmento narrativo seguinte, a câmera solta focaliza e uma mulher morta, de bruços sobre o sofá, jorrando sangue pelo ferimento nas costas. Em travelling de 360º, a câmera segue até focalizar um homem cabisbaixo sentado em uma poltrona, de frente para o sofá, com uma faca na mão. O mesmo repete pausadamente e com clareza: “Matei por amor” insistentemente por nove vezes. O plano todo ao som de um samba antigo com letra romântica, enquanto olhares de crianças, adultos e idosos espiam curiosos pela janela do escuro casebre. O sentido discursivo apresenta a intenção voyeur do ser humano, até mesmo da câmera, e consequentemente do telespectador. Além disso, o assassinato somado à condição precária do ambiente e a ironia acentuada pela música e dança, caracterizam ainda mais o conceito marginal e reflexivo desse filme, com certo ar de deboche. Esse caráter voyeurista da câmera é uma marca constante. As próprias tomadas, por detrás de portas ou janelas sugerem esse sentido ao espectador, como na cena em que as duas adolescentes se acariciam, onde a câmera adota uma postura “bisbilhoteira”. De volta aos aposentos da casa de veraneio as duas amigas aparecem sentadas, uma de frente para a outra, conversando sobre o casamento. A postura de Regina, à direita é mais ereta que a de Márcia, que parece se dissolver pela poltrona. No cenário aparecem dois quadros ladeados por dois abajures, por trás das duas poltronas, sugerindo a dubiedade, a dúvida, as relações em pares, a cumplicidade, tanto dos casamentos quanto das amizades – posteriormente serão cúmplices criminais. Em outro momento, uma mulher descobre um bilhete na carteira do marido, da qual se ouve a voz em off, enquanto conversam numa mesa de refeição. Novamente a posição da câmera está no corredor, entre portas, daí a ideia de distanciamento e separação entre eles, além do caráter bisbilhoteiro da câmera, trazendo em evidência o sentido de phatos, apontado por Greimas e Fontanille (1993). O plano seguinte, todavia, a mulher atravessa a rua e dirige-se a uma grande casa seguida pelo travelling da câmera, adentra aos cômodos por um corredor comprido e sombrio até espiar por uma porta entreaberta, volta seu rosto para a câmera, com olhar para baixo e expressão séria, sugerindo uma possível traição do marido. Toda sequência ao som de um jazz com notas alegres, confirmando mais uma vez o teor irônico e profano da sequência. A narrativa proposta a seguir trata da relação entre duas adolescentes focalizadas no centro do plano com acentuado distanciamento, em leve contra-plongé, na rua, sobre uma ponte de linha férrea, cujo diálogo resume-se em se matarem caso algo as impeça de ficarem juntas, ao fundo uma paisagem sonora bastante ruidosa com veículos passando, intensificando o dinamismo da cena. No plano seguinte aparece a mãe, recolhendo roupas num varal no quintal do que parece ser um casebre no meio de uma favela. A mãe resmunga sobre os fuxicos dos 296 vizinhos em relação a sua filha, ameaçando castigá-la, se necessário. Na sequência, ambas, mãe e filha, aparecem sentadas numa mesa comendo. A mãe questiona a filha que retruca e leva um tapa na face. A câmera que estava posicionada na porta do cômodo se distancia em travelling out até sair do cômodo e focalizar em close up um vaso com flores artificiais de papel, sobre uma mesinha. Essas flores, entretanto, denotam certo valor simbólico, como algo que dificilmente se estraga - diferente das flores naturais, de durabilidade limitada - além de estarem associadas à ideia de feminilidade e de resistência do relacionamento entre as meninas. No plano seguinte em plongé de 50º, as meninas são focadas conversando ao pé da porta de fora da casa, gerando o sentido de pressão e achatamento da imagem, assim como a situação entre elas. Na sequência aparece uma composição equilibrada com uma pequena janela destacada, em meio à parede negra, estão as duas meninas se acariciando enquanto a iluminação cai numa escuridão total. Esse recurso tonal sugere que o romance está às escuras. No plano seguinte a mãe deflagra o romance entre as duas adolescentes, ao entreabrir a porta do quarto, voltando e abaixando sua cabeça. Na sequência um corte para a cena em que a filha estrangula a mãe, batendo sua cabeça no chão, enquanto a amiga aparece sentada numa cadeira, atrás da ação, lixando sua unha. A mãe desfalece e surge uma música carnavalesca de Carmem Miranda cuja estrofe diz “Oh, que terra boa pra se farrear...”. A música é tocada na íntegra adentrando uma cena marítima, com um homem sentado folheando um jornal. O mesmo joga o jornal e sai do enquadramento. O jornal é levado pelo vento em meio ao trânsito do cenário urbano, como se as notícias ali pautadas estivessem soltas, vulneráveis e disponíveis aos olhos de qualquer leitor. Inicia-se agora uma sequência de cenas que descrevem a farra das duas amigas na casa de veraneio, as mesmas nadam, cantam, dançam em ritmo frenético, ao som de um foxtrot, simulam alegoricamente tocar instrumentos. Ambas finalizam adentrando cenicamente as cortinas fechadas de um cômodo, abrem-na e depois fecham juntamente com o tom final da música. Bressane une esse sentido de “entre cortinas”, como algo obscuro, vedado, com o plano seguinte da tortura de um homem, amarrado seminu numa cadeira, posicionada ao centro de uma sala obscura, cuja claridade centra-se apenas nele, seu torturador apaga o cigarro em seu corpo, já com a respiração ofegante e o sangue escorrendo por seu corpo é esbofeteado por outro homem enquanto uma silhueta de outro homem ao fundo observa tudo. Os poucos claros e muitos escuros escancarados intensificam o caráter dramático das ações. Depois, amarrado a uma mesa horizontal, o torturado recebe choques até desfalecer. A composição horizontalizada da cena lembra o significado da morte, algo que já não pode mais ficar ereto. Seu corpo aparece no plano seguinte agonizando no chão, em posição fetal, com a boca e nariz congestionados pelo sangue. A sequência toda ao som de gritos e gemidos que tencionam a sensação de dor e aflição ao espectador. A câmera focaliza novamente a mesa de tortura com os três torturadores ao redor do corpo exausto do homem, em contra-plongé, engrandecendo a postura dos torturadores que executam a última ação até que o homem perde seus sentidos. De volta à Petrópolis, ao som de uma música de piano doce e melancólica a câmera perambula pelos cômodos captando as ações triviais das amigas até encontrar a coleção de armas do 297 marido de Márcia. As armas são focalizadas em travelling in lentamente, por detrás de uma porta. Novamente o caráter voyeurista da câmera e a ironia causada pelo contraste dramático entre imagem e áudio se confirmam. Continuando a sequência, as moças começam a bagunçar a casa, jogando almofadas, pulando na cama, no sofá, engatinham pelo chão, como se voltassem à infância. Como num ritual mitológico Regina distribui flores no cabelo de Márcia, traz uma galinha e caem na banheira, esfregando as flores sobre o tecido molhado das roupas coladas em seus corpos, num misto entre o bizarro e o erótico. Essas ações remetem à mitologia grega que se reconhece através da iconografia das deusas representadas pelos grandes mestres da pintura, como o renascentista Sandro Botticelli84, assim como ao misticismo, já que os elementos simbólicos: flores brancas e a galinha branca são inerentes ao Candomblé, cujo ritual religioso parte do princípio da purificação através do banho com essas plantas e da mandinga com a galinha. Essa referência de Bressane à cultura afro-brasileira ratifica sua raiz tropicalista, além de provocar polêmicas ao telespectador mais conservador. A galinha, entretanto, também lembra uma cena de Cabiria (1957) de Frederico Fellini, que conta a história de uma jovem inocente e ingênua que se prostitui para sobreviver, da qual é elegantemente resgatada por Bressane. Voltando-se ao filme em questão, ao som off de um choro de bebê, um homem bêbado chega em casa e discute com a mulher, saca o revólver e a mata, depois se vira e atira duas vezes para o lado. O som é cessado sugerindo a morte da criança. A câmera perambula pelo ambiente e mostra duas manchas de sangue sobre a manta do bebê e a mulher caída no chão. O homem se agacha com a arma na mão, e paralelamente surge uma música carnavalesca da Chanchada cujo refrão diz “Rasguei a minha fantasia...” que vai aumentando de volume fazendo-o levantar e dançar cambaleando com os braços erguidos, sugerindo o sentido de ironia e deboche como uma solução cruel em anteparo à situação. Frente a um gramado, duas outras amigas, representadas pelas mesmas atrizes, conversam sobre terem assistido ao filme “Perdidas de amor”. Uma delas debocha por se tratar de cinema nacional. Essa narrativa dá o sentido de metalinguagem crítica à própria obra, enquanto que, também, uma forma de se firmar como udigrudi nacional85, um cinema de autor, altamente reflexivo, que não precisava de recursos tradicionais ou mesmo luxuosos para serem legítimos. Por fim, a cena do tiroteio emblemático entre as amigas em Petrópolis, que remete à tragédia “Antígona” de Sófocles86, uma tentativa de se resgatar o caos anterior à ordem. As duas portando as armas do marido de Márcia atiram uma na outra em meio a uma mise-en-scène de subir e descer escadas, dançar, cambalear e rastejar. No meio dessa encenação há o corte para o plano da cama, onde as mesmas se acariciam, sugerindo uma relação sexual. 84 No mito grego as Três Graças ou Cárites aparecem mais frequentemente pelo trio: Tália, a que faz brotar flores, Eufrosina, o sentido de alegria e Aglaia, a claridade, representam o encanto, gratidão, prosperidade familiar, sorte, concórdia. No renascimento se tornaram símbolo da idílica harmonia do mundo clássico. Nas representações aparecem jovens, sempre juntas, dançando ou de mãos dadas, ora vestidas, ora desnudas, ou seminuas como em “Primavera” (1482) de Sandro Botticelli. 85 Apelido dado por Glauber Rocha ao Cinema Marginal. 86 Tragédia mitológica escrita por volta de 342 a.C. que conta o assassinato mútuo dos filhos de Édipo, Etéocles e Polinices, em busca do reinado de Tebas. 298 Num outro plano, a câmera centraliza um vaso de flores naturais sobre a mesa do jantar, que diferente da narrativa das adolescentes lésbicas, representam flores perecíveis, assim como a suposta relação etérea entre Márcia e Regina. No plano seguinte, Regina morre no chão da sala, em meio aos pés dos móveis. A câmera a focaliza em close up com seu rosto tomando quase toda a tela, sangrando o enquadramento com a arma direcionada horizontalmente em seu pescoço. Essa expressão da câmera intensifica as emoções possíveis de serem lançadas pelo espectador. Márcia, por sua vez morre caída com a cabeça no primeiro degrau e os braços abertos, numa composição simétrica, equilibrada e harmoniosa, que chama a atenção para o detalhe da mancha de sangue como elemento principal da fruição da imagem. Essa posição assemelha-se a algumas representações de Cristo ao longo da história da Arte, como em uma das perspectivas de Pietá (1499) do renascentista Michelangelo. Também lembra à serigrafia que Hélio Oiticica fez em homenagem ao bandido “Cara de Cavalo”, em 1968, que morreu assassinado em uma emboscada policial, considerado um anti-herói, conforme o emblema gravado: “Seja marginal, seja herói”. Essas duas referências dão sentidos complementares ao filme, sugerindo no plano discursivo a ideologia implícita, como forma de engajamento. Toda a sequência final é ainda tensionada pelo áudio, que se inicia com o próprio som ambiente, dos tiros, gritos e risadas, porém, após a morte inicia-se a canção de Roberto Carlos “Ninguém vai tirar você de mim” que fala sobre amor e perda. No final da música, a câmera focaliza os pés de Regina à direita da composição, os pés dos móveis na parte superior, uma mancha de sangue no chão à esquerda e duas flores brancas no centro, formando um triângulo composicional. Essa composição, no plano do conteúdo, somada à repetição de 22 vezes do refrão “Em te perder”, último verso da música, sugere o sentido antagônico de vida e morte, as flores, posicionadas no ápice do triângulo, denota purificação, feminilidade, vida, mas também morte, por seu caráter fúnebre, que somadas à mancha de sangue e aos pés imóveis de Regina acentuam ainda mais o caráter mórbido do filme, entre os opostos vida e morte, que sustentam toda a narrativa. Considerações Finais Em meio à complexidade apresentada pela obra, tais apontamentos de sentidos sugerem alguns caminhos de significação através da apreciação dos elementos audiovisuais e narrativos presentes neste filme, capazes de apontar possibilidades de produção de sentido, fazendo com que as peças fragmentadas da(s) narrativa(s) se encaixem num todo, metonimicamente, somando itinerários de significação e clarificando as possíveis conclusões de um espectador sensível, ativo e pensante, digno e decifrador da mensagem. Sendo assim, o filme de Bressane parece passar pelo filtro de um caleidoscópio, quantificando um exponencial semântico ao espectador, investindo em sua elaboração perceptiva, crítica, sensível e inteligível. REFERÊNCIAS ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna. São Paulo: Companhia das Letras,1999. BERNADET, Jean-Claude. O voo dos anjos: Bressane e Sganzerla. São Paulo: Brasiliense, 1991. CHAUÍ, Marilena. Janela da Alma, Espelho do Mundo. In NOVAES, Adauto (1988). O Olhar. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. 299 FAVARETTO, Celso. Tropicália: alegoria e alegria. Cotia: Ateliê editorial, 2000. FERREIRA, Jairo. Cinema de invenção. São Paulo: Limiar, 2000. GREIMAS, Algirdas Julien; FONTANILLE, Jacques. Semiótica das Paixões. Trad. Maria José Rodrigues Coracini. São Paulo: Ática, 1993. MINK, Janis. Marcel Duchamp 1887-1968: A Arte como Contra-Arte. Köln: Taschen, 2000. XAVIER, Ismail. Alegorias do Subdesenvolvimento. São Paulo: Cosac Naify, 2012. ____________. O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência. São Paulo: Paz e Terra, 2014. ____________. Roteiro de Júlio Bressane: apresentação de uma poética. In: Alceu, v. 6, n. 12. São Paulo, jan. jun. 2006. p. 5-56. 300 Ver e Tocar: O Dilema de Tomé no Filme Time de Kim-Ki-Duk. Patricio Dugnani, Universidade Presbiteriana Mackenzie, [email protected] Resumo Este trabalho tem o objetivo de analisar a questão da percepção de fenômenos pelos sentidos da visão e do tato, a partir das questões apresentadas de maneira poética no filme Time: O Amor Contra o Tempo, do diretor sul-coreano Kim Ki Duk. Levando em consideração a função poética que predomina no filme, partiremos da observação dos aspectos denotativos do filme, das qualidades puras apresentadas a partir da organização de seus significantes, que se projetam em seus significados e analisar as relações conotativas que constituem o seu discurso. Equipando-se destas teorias, apoiando-se em suas reflexões, apresenta-se este método híbrido, que servirá para a análise do filme Time, do diretor coreano Kim Ki Duk, pois estas reflexões desenvolvem um raciocínio que possibilita analisar fenômenos da comunicação na pós-modernidade. Palavras-Chave: Comunicação; Imagem; Semiótica; Semiologia; Iconologia. Abstract This work has the purpose of analyzing the issue of perception of phenomena by the senses of sight and touch, from the issues presented in the movie poetic way Time: love against time, the South Korean director Kim Ki Duk. Taking into consideration the poetic function that predominates in the film, we leave the observing the denotativos aspects of the film, the pure qualities presented from their significant organization, which protrude at their meanings and analyze conotativas relations that constitute his speech. Equipping of these theories, based on his reflections, this hybrid method, which will serve for the analysis of the film team, the Korean director Kim Ki Duk, because these reflections develop a rationale that makes it possible to analyze the communication phenomena in post-modernity. Keywords: Communication; Image; Semiotics; Semiology; Iconology. INTRODUÇÃO Ora, Tomé, um dos doze, chamado Dídimo, não estava com eles quando veio Jesus. Disseram-lhe, pois, os outros discípulos: Vimos o Senhor. Mas ele disse-lhes: Se eu não vir o sinal dos cravos em suas mãos, e não puser o dedo no lugar dos cravos, e não puser a minha mão no seu lado, de maneira nenhuma o crerei. (Jo, 24 – 25) Cada vez que retomamos a descrição de quando Tomé recusou-se a crer no que lhe contavam os discípulos e afirmou que apenas acreditaria se pudesse ver, e mais, pudesse confirmar sua visão com o toque, a tradição do debate sobre a verdade e a relação com a percepção é resgatada para o debate. E ainda sobre essa passagem, também é reafirmada a questão, que 301 mesmo para nossa percepção existem verdades que se impõem com mais legitimidade e verossimilhança que outras. Haja vista o longo debate sobre a verdade revelada pela visão e a revelada pelo tato. Ou seja a visão pode nos enganar e o tato me traz a verdade irrevogável da materialidade, como podemos concluir, talvez precipitadamente, a partir deste texto. Nesse sentido resgata-se todas as grandes 04 iconoclastias (MACHADO, 2001) que já levantaram as suas bandeiras quanto o aspecto ilusório da imagem: o pensamento platônico, os iconoclasmo bizantino, a teoria crítica e marxista da Escola de Frankfurt e o novo iconoclasmo da “superabundância de imagens” (2001, p.16) na pós-modernidade. De qualquer forma, a questão da percepção e suas formas causam debates desde a muito tempo, dessa maneira não se pretende nesse texto resolver uma questão tão ampla, mas sim, analisar de maneira semiológica, como a percepção da verdade e sua revelação, a partir da confusão entre os sentidos do tato e da visão, é tratada no filme Time (2006), do diretor sul-coreano Kim Ki Duk. O diretor, nesse filme, nos enreda em uma trama labiríntica, onde o tempo não mais se torna linear, mas cíclico e a diferença entre passado, presente e futuro são abolidas. O tempo e as personagens são lançadas em uma sequência de entrecruzamentos, onde acabam por perder sua identidade, se disfarçando através de novos rostos, produzidos artificialmente por sucessivas operações plásticas, vão constituindo novos sujeitos, rebatizados por novos nomes (muitas vezes próximos ao do original), mas que ainda, mesmo trocando o nome e a aparência, mantém amaldiçoadamente algo das antigas personalidades e acabam por retomar os mesmos equívocos. As ações das personagens vão se revezando e se trocando, onde embora as ações sejam as mesmas, são praticadas por outros personagens. Desta forma, além do tempo cíclico, metáfora do filme, o espelhamento, metáfora da aparência, conduz a trama. Então a partir dessas duas questões, ações cíclicas e espelhamentos é que vamos analisar a percepção tátil e visual e suas relações com a revelação do discurso, mais que a verdade. Método de Análise de Imagem As características principais que compreendem a expressão estética do pós-modernismo, e, consequentemente, o barroco, são os excessos expressivos de suas formas – seu aspecto decorativo; o uso intenso de estratégias intertextuais (citação, paródia); os jogos poéticos - as metáforas, as estruturas labirínticas (enigmas, emblemas, metatextos, os espelhamentos, as construções cíclicas, o ilusionismo, as personificações, as alegorias); as formas antitéticas - as contradições, por isso, seu ecletismo, sua multiplicidade, sua mistura de estilos; o uso do lúdico, a valorização do mito em detrimento da razão; o afastamento dos conceitos absolutos; a complexidade, o hibridismo, as incertezas epistemológicas, a vertigem, a irregularidade e o gosto pelo movimento, no sentido mais amplo, o movimento como mobilidade, o gosto pela mobilidade estética, formal, emocional, conceitual, social, cultural. Levando em consideração as características labirínticas e enigmáticas do filme Time, de Kim Ki Duk, além do fato de ser uma produção contemporânea, torna-se inevitável classifica-lo como uma obra que apresenta características pós-modernas. A partir dessa reflexão, toma-se a expressão pós-moderna, como um objeto que - assim como seu sujeito, segundo Stuart Hall (2004) – ganha uma complexidade, devido a carga de incertezas e de rompimentos com conceitos estabelecidos. A produção estética das imagens na pós-modernidade, apresenta um jogo constante de citações, intertextualidades, de mistura de paradigmas estéticos dos mais 302 díspares, e esse fator torna a análise do discurso visual um desafio constante, por isso, propõese um método híbrido de análise de imagem, baseado nos estudos da iconologia de Erwin Panofsky, da semiótica de Charles Sanders Peirce e da semiologia, principalmente, as análises de imagem realizadas por Roland Barthes. O primeiro conceito emprestado da semiologia, que será utilizado nesta análise, é o conceito de intertextualidade, de Roland Barthes (2004). A intertextualidade deverá guiar nossa observação da produção da imagem na contemporaneidade, pois esta estratégia se mostra uma constante em tempos pós-modernos. De acordo com a teoria da intertextualidade um texto, não necessariamente verbal, é feito de escrituras múltiplas, oriundas de várias culturas em diálogo entre si. […] um texto é feito de múltiplas escrituras, elaboradas a partir de diversas culturas e ingressante em uma relação mútua de diálogo, paródia, contestação; mas há um lugar em que esta multiplicidade é percebida, e este lugar [...] é o leitor: o leitor é o espaço em que se inscrevem, sem que nenhuma se perca, todas as citações que constituem a escritura: a unidade do texto não reside em sua origem, mas em seu destino, e este destino não pode ser pessoal: o leitor é alguém sem história, sem biografia, sem psicologia; ele é, simplesmente, um qualquer que articula, em um único campo, todos os traços a partir dos quais se constitui a escritura (BARTHES, 2004, p.64). Além do conceito de intertextualidade, a escolha da semiologia de Barthes se dá pela sua relação com a semiótica peirceana. A relação da análise dos signos visuais que compõem a imagem, tanto a semiótica, como a semiologia, parecem concordar que uma análise dos signos, e sua organização, deve partir de um campo mais concreto e objetivo, para um campo mais abstrato e representativo. Ou seja, se para Barthes a análise deve seguir do “óbvio” para o “obtuso” – da denotação para a conotação - a semiótica peirceana observa o signo, em suas categorias universais, que vão da percepção pura das qualidades, do signo icônico, até a representação e mediação, o signo simbólico, convencional. Para Barthes: Diremos, pois, que um sistema conotado é um sistema cujo plano de expressão é, ele próprio, constituído por um sistema de significação; os casos correntes de conotação serão evidentemente constituídos por sistemas complexos, cuja linguagem articulada forma o primeiro sistema. (BARTHES, 1992, p. 95) Barthes (1964c), por exemplo, distingue três tipos de mensagens na publicidade ilustrada. Apenas duas delas são codificadas. A primeira é a mensagem verbal, que depende do código da língua. Ela consiste no nome da marca e no comentário verbal das qualidades do produto. As duas outras mensagens são inseridas na imagem visual: uma é a mensagem icônica não codificada, da qual a imagem fotográfica denota analogamente os objetos “reais” de maneira que o significante e o significado são quase “tautológicos”, e a outra é uma mensagem icônica codificada (ou simbólica). De acordo com Barthes, a última inclui as conotações do quadro em que se forma a imagem específica do produto que deve ser transmitida aos consumidores. (NOTH e SANTAELLA, 2010, p. 81) Já a escolha da semiótica Charles Sanders Peirce e da iconologia de Erwin Panofsky se deu pelo fato de esses estudos convergirem ao analisar as artes visuais em três níveis. A Iconologia de Panofsky analisa significado nos seguintes níveis: significado primário ou natural, significado 303 secundário ou convencional e significado intrínseco ou conteúdo (PANOFSKY, 1976, p.50), separando, assim, o nível formal ou sintático (fundamental) dos níveis semântico (narrativo e histórico) e pragmático (discursivo). Isso nos deixa livre para analisar cada um deles distintamente. A iconologia trata do estudo dos significados das artes visuais, e vai “desde a identificação do tema pode ser feita uma leitura da obra que a liga à complexidade da cultura...” (CALABRESE, 1987, p.36). Esse método de análise das artes visuais pretende ampliar as possibilidades de interpretação dos fenômenos artístico-culturais. A interpretação iconológica exige o estudo de conceitos específicos retirados de fontes literárias. São documentos necessários para direcionar a escolha e a apresentação dos motivos, bem como a produção e a interpretação das imagens, histórias e alegorias. Esses fatores darão sentido às composições formais e aos processos técnicos utilizados. Porém é preciso estar atento para que a subjetividade não domine a análise, pois podemos confiar demasiado na intuição pura, interpretando os documentos de uma maneira não objetiva, deixando-nos levar por suposições particulares sem a devida comprovação e relação com a obra visual escolhida. Panofsky, como foi demonstrado, dividiu a sua análise em três níveis de significados ou temas básicos: tema primário ou natural, tema secundário ou convencional (iconografia) e significado intrínseco ou conteúdo. Justamente nesse ponto, é que a reflexão de Erwin Panofsky se aproxima da teoria geral dos signos - a semiótica de Charles Sanders Peirce – principalmente em seu arcabouço teórico e na estrutura de divisão triádica. Inclusive, devido a essa semelhança, Omar Calabrese, afirma que os estudos de iconologia de Panofsky, são uma semiótica das artes visuais (CALABRESE, 1987, p.41). Percebe-se melhor a afinidade das teorias de Peirce e Panofsky quando compara-se as suas estruturas. Em ambas percebe-se a predominância de um pensamento triádico, em que através de três categorias cria-se um mecanismo de entendimento dos fenômenos universais, sejam eles artísticos ou naturais. Para Peirce, “um signo ou representamen, é aquilo que, sob certo aspecto ou modo, representa algo para alguém. Dirige-se para alguém, isto é, cria na mente dessa pessoa, um signo equivalente, ou talvez um signo mais desenvolvido” (PEIRCE, 1977, p.46). O signo representa um objeto em um determinado aspecto, criando um signo, que por sua vez, cria outro na mente da pessoa. Esse segundo signo criado a partir de um primeiro é denominado interpretante. Essa relação triádica de signo, objeto e interpretante, permeia toda nossa percepção dos fenômenos que se apresentam à mente. Peirce elegeu três faculdades necessárias ao homem para a observação e compreensão dos fenômenos: a contemplação, a distinção e o julgamento. A partir dessas três faculdades chegamos às categorias que foram denominadas primeiramente como qualidade, relação e representação, substituídas posteriormente por qualidade, reação e mediação. Finalmente, as três categorias foram novamente batizadas dezoito anos depois, por Peirce, de primeiridade, secundidade e terceiridade. 304 A primeiridade está ligadas às noções de qualidade, possibilidade, consciência imediata. As idéias de secundidade estão ligadas às noções de existência, incompletude, ação e reação. As idéias de terceiridade estão ligadas a noções de generalização, convenção, representação, norma e lei. Percebemos, dessa maneira, que a síntese é uma preocupação comum tanto a Peirce como a Panofsky. Enfim, na análise de Panofsky encontramos, na divisão dos três significados, noções semelhantes às categorias universais de Peirce, demonstrando, assim, a adequação do método da iconologia à semiótica peirceana. Ao que parece, o teórico alemão, baseado em um pensamento tricotômico, que poderia ser a arquitetura filosófica peirceana, construiu um sistema de análise das obras de artes visuais. Esse mecanismo de leitura dos significados das artes, dividido hierarquicamente em três categorias - a eleição das formas puras (qualidades das obras); relação das formas puras com os textos que possam esclarecer seus significados; e mediação das formas puras com a relação entre os textos utilizados para descobrir seu valor. Equipando-se destas teorias, apoiando-se em suas reflexões, apresenta-se este método híbrido, que servirá para a análise do filme Time, do diretor coreano Kim Ki Duk, pois estas reflexões desenvolvem um raciocínio que possibilita analisar fenômenos da comunicação na pós-modernidade. Partindo-se dos aspectos concretos, formais, denotados e das qualidades puras da imagem, pode-se chegar à compreensão das relações entre os signos que constituem o campo da representação, do conteúdo, da conotação. Esta linha central de raciocínio é que será a base do método híbrido de análise de imagem nesta pesquisa. Do Filme Para entendermos esse debate, cabe conhecermos, primeiramente a história do filme. SehHee era noiva de Ji-Woo, mas após uma briga em um café que sempre frequentavam, ela some e resolve fazer uma operação plástica e mudar totalmente seu rosto. Sem avisar o noivo ela desaparece por meses, período em que Ji-Woo fica atormentado pela busca de compreender o motivo do sumiço de Seh-Hee. Após esse tempo Ji-Woo conhece uma garçonete, no mesmo café que brigara com sua noiva desaparecida, e passa a flertar com ela. Porém Ji-Woo não sabe que essa garçonete era sua noiva, agora com um novo rosto, tentando conquista-lo novamente. Basta de labirintos? Mas não é tudo. Sabe qual é o novo nome de Seh-Hee, a noiva desaparecida, disfarçada de garçonete? Ela se apresenta ao noivo como sendo See-Hee. Fica clara a estratégia do diretor em criar uma trama labiríntica? Porém as coisas podem ficar mais enredadas: pois Seh-hee, embora trocou de rosto, sua essência era a mesma e passa a cometer os mesmos atos que a levaram à desesperada ação de mudar de rosto. Novamente levada ao desespero, ela revela ao noivo o que aconteceu, em uma cena angustiante, quando ela, com o rosto que denominava See-Hee, faz uma máscara com a última foto do seu rosto original, veste-a e encontra com Ji-Woo, afirmando: “Não sou sua mulher do passado, sou sua outra mulher.” Ji-Woo, angustiado foge e depois segue Seh-Hee/See-Hee até a clínica de cirurgia plástica e após a saída dela, faz ele uma operação plástica para mudar de rosto. Este ato foi revelado a Seh-Hee/See-Hee pelo médico. A partir desse ponto, a história se repete, lugares e ações retornam, mas agora, em papéis trocados, a história sofre um espelhamento e SehHee/See-Hee, passa a agir como Ji-Woo, buscando encontrar o noivo. E uma de suas únicas 305 pistas, foi dada por uma cena onde Ji-Woo segura a mão de See-Hee e pergunta sobre o toque e ela responde: o encaixe perfeito. Dessa forma, Seh-Hee/See-Hee, durante a parte final do filme busca Ji-Woo, não mais com seus olhos, que seriam facilmente enganados pela aparência trocada, mas segurando nas mãos de vários rapazes, para tentar localizar, através do tato, seu amor: Ji-Woo. Da Visão e do Toque: Ver, Tocar e à Dúvida de Tomé A imagem do casal Seh-Hee e Ji-Woo sentados na escultura em forma de mão, sintetiza as questões do filme, uma foto de uma escultura que representa mãos. A representação da imagem que se entrega à visão e a escultura, que se entrega, não só à visão, como ao tato. A mão que revela o objeto pela materialidade do mesmo, a visão que apresenta o objeto a partir da luz que é refletida. Percepção tátil e percepção visual ligando-me ao mundo, aos fenômenos. Mas qual pode me trazer o real mais puro, à verdade à minha consciência? Será que algum deles pode fazer isso sozinho? E mesmo unidos, bastam os meus sentidos para que se conheça os objetos em sua complexidade? Essas são questões lançadas pelo filme, onde a visão é enganada por um ardil cirúrgico, uma intervenção artificial humana, e resta apenas o tato para guiar Seh-Hee, ou See-Hee – acredito que mesmo a personagem já não sabe quem é, ou pelo menos já está mergulhando em um fosso de dúvidas. Ela, como um cego, tateia pelo mundo em busca da revelação tátil que lhe restitua o reconhecimento de Ji-Woo. Precisamos nos habituar a pensar que todo visível é talhado no tangível, todo ser tátil prometido de certo modo à visibilidade, e que há invasão, encavalgamento, não apenas entre o tocado e quem toca, mas também entre o tangível e o visível que está incrustado nele. (MERLEAU-PONTY, 1971, p.131) A questão da imagem e da visão, sempre foi polêmica, como nos apresenta Arlindo Machado em sua observação sobre os “iconoclasmos” (MACHADO, 2001, p.16) da história. A visão nos surge muitas vezes como uma criadora de ilusão. Essa constatação não deixa de ter sua razão, quando percebemos que a todo momento precisamos compensar com o cérebro, a nossa percepção, que nos engana em uma perspectiva que desestrutura as relações de profundidade e dimensão. Basta imaginar que captamos objetos à distância, como se eles fossem menores do que são realmente. Porém, mesmo o tato, também pode nos iludir, a parábola dos ratinhos cegos, que encontram um elefante é um bom exemplo. Como não podem tocar simultaneamente todas as partes do elefante, cada um deles, ao toca-lo, fará um prognóstico do que seja: uma pedra, um coqueiro, uma cobra, etc. Dessa forma, tanto visão, como tato, não pode nos trazer a percepção total, ou a verdade absoluta. Essa será uma lição que SehHee/ See-Hee irá descobrir. Pois agora sem o auxílio do olhar, ela descobrirá que não consegue saber, através somente do tato, que é o Ji-Woo com sua nova aparência. Um momento interessante do filme que ilustra essa passagem é quando Seh-Hee/ See-Hee, toca mão de um rapaz e faz a mesma pergunta que fez outrora para Ji-Woo, antes da operação: “O que você acha do nosso encaixe das mãos? E Ji-Woo responde: Perfeita.” 306 Essa resposta foi dada por, aparentemente, um estranho, pois nessa fase do filme, para nossa visão, fica difícil identificar quem é quem. Por causa, mais da resposta verbal do rapaz, que foi similar à de Ji-Woo, do que pela percepção do tato, ela acredita que ele seria o parceiro operado e vai com ele até sua casa, onde ocorre um fato constrangedor, pois a visão revela que Seh-Hee/ See-Hee estava errada. Quando ela entra na casa do rapaz, observa fotos antigas do mesmo sobre a estante, o que comprova que o mesmo não é Ji-Woo. Nesse momento pode-se refletir sobre como nossos sentidos, não apenas estão relacionados à nossa percepção pura dos fenômenos, mas que nosso pensar, nossa cultura, nossa cognição interfere em nossa relação sensível com o mundo. Nesse momento o crer, o querer sentir o tato do parceiro perdido, iludiu o juízo de percepção de Seh-Hee/ See-Hee, pois o rapaz não era Ji-Woo. “Ser ou não ser”, como sentencia Shakespeare, em Hamlet, “eis a questão”. Essa é a dúvida que Seh-Hee/ See-Hee levaria até o final do filme, quando, presa em um mundo de dúvidas, em um labirinto de sensações, se entrega ao jogo do enigma e resolve fazer uma outra operação plástica e recomeça um novo ciclo, onde através de uma nova aparência, resolve recomeçar uma nova trajetória. E de uma maneira irônica, absurda, porém cheia de questionamentos, Kim Ki Duk, o diretor, faz com que ela se encontre com ela mesma, retornando como no ciclo das marés, ao inicio do filme. Nos deixando pensar que talvez essa história apenas se repita ciclicamente, sem que haja um final. Do Tempo Cíclico, do Espelhamento e Outras Estratégias Para chegar a esta confusão de sentidos, Kim Ki Duk utiliza diversas estratégias durante o desenvolvimento do filme. Começando pelo construção de uma narrativa cíclica, uma narrativa impossível cronologicamente, pois o filme termina exatamente onde começou, porém nos revelando que o encontro apresentado não é de Seh-Hee e uma estranha, mas sim de Seh-Hee com ela mesma, como se a cirurgia plástica pudesse constituir uma outra vida. Aparência e essência distinguindo os sujeitos. Um jogo surreal para confundir a percepção do observador. Esse fato, esse tempo cíclico é metaforicamente representado pela maré que obre a escultura da mão, uma das cenas finais do filme. Além do tempo cíclico, uma narrativa espelhada faz uma metáfora da questão, tanto da aparência como construtora de identidade, como do tempo cíclico, pois algumas ações de SehHee e Ji-Woo, na primeira parte do filme, são repetidas mas em papéis trocados. Ou seja, das dúvidas, a angústia, a busca de Ji-Woo em relação ao sumiço de Seh-Hee, são vividas por ela – Seh-Hee, agora transformada em See-Hee, na segunda parte do filme. Conclusão Espelhos, aparências, máscaras. Vaidade, identidade, verdade. Esses temas são os permeiam o filme de Time, de Kim Ki Duk. Temas que refletem a busca do próprio ser humano. A busca por ser reconhecido entre os outros: a busca pela diferença. A busca pela semelhança: por ter os mesmos direitos. A busca pelo amor, pela perenidade, pela constância, pela eternidade contra a passagem do tempo que a tudo corrompe. Essa busca que confunde a questão da essência eterna e a aparência transitória. A escultura com a sua solidez durável, revelada pelo tato, 307 contra a imagem, a aparência volátil. Esta verdade que nossos sentidos devem revelar, mas que nossa consciência deve entender é que estão em jogo nas armadilhas da percepção e da cognição que nos propõem o enredo do filme. Nem somente visão, nem somente tato, nem somente cognição são capazes de nos ajudar a conviver com a complexidade do mundo que vai das qualidades às representações. Sentidos e pensamentos, visão e tato esses sistemas integrados são necessários para revelar os fenômenos que nos rodeiam, sem hierarquia, mas com a certeza, que mesmo mantendo a integridade de nossa percepção, ainda sim, são fragmentos de mundo que buscamos organizar para nossa consciência. O que vemos só vale – só vive – em nossos olhos pelo que nos olha. (DIDIHUBERMAN, 1998, p. 29). (...) ver só se pensa e só se experimenta em última instância numa experiência do tocar.” (DIDI-HUBERMAN,1998, p. 31) E quando nos questiona René Magritte (1898 – 1967) em sua A Traição das Imagens (1928) nos apresentando um cachimbo e afirmando “Ceci n’est pas une pipe” (fig. 14), ou seja que aquela pintura não é um cachimbo, são estas perguntas que buscam ser respondidas por ciências da percepção, cognição e a semiótica, ou seja, quais são as relações entre fenômeno, sentidos, representação e qualidades e como os seres humanos relacionam esta imensa quantidade de informações e sensações em que estão submersos constantemente? Esta talvez seja a maior contribuição do filme Time, de Kim Ki Duk, para as reflexões científicas: quem somos, somos o que sentimos, somos o que pensamos, somos o que parecemos, somos o que vemos, ou o que tocamos? Ou mais, somos todas essas perguntas que vão do percepto ao juízo de percepção, da sensação à razão, do eu ao outro, a mediação... do signo ao objeto. Referências Bibliográficas BARTHES, R. O Rumor da Língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004. ____________. Elementos de Semiologia. São Paulo: Cultrix, 1992. CALABRESE, O A Linguagem da Arte. Rio de Janeiro: Globo, 1987. DIDI-HUBERMAN, G. O que Vemos, O que nos Olha. São Paulo: Ed. 34, 1998. HALL, S. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. Rio de Janeiro, DP&A, 2004. MACHADO, A. O Quarto Iconoclasmo e outros ensaios hereges. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001. MERLEAU-PONTY, M. O Visível e o Invisível. São Paulo: Perspectiva, 1971. PANOFSKY, E.. Significado nas Artes Visuais. São Paulo: Perspectiva, 1976. PEIRCE, C. S. Semiótica. São Paulo: Perspectiva, 1977. SANTAELLA, L. e NOTH, W. Estratégias Semióticas da Publicidade. São Paulo: Cengage Learning, 2010. 308 Capítulo 8 Documentário: Convenção e Contravenção Design de informação jornalística: ensaio sobre o Estadão Light Jaqueline Rodrigues Pereira87; Letícia Passos Affini88 Resumo O Grupo Estado de São Paulo foi o primeiro jornal brasileiro a desenvolver aplicativos para dispositivos móveis. A reformulação do jornalismo tem sido influenciada pela tendência dos usuários das Tecnologias de Informação e Comunicação, as TICs. O presente estudo é uma reflexão sobre o aplicativo denominado Estadão Light, versão compacta da edição diária. De modo ensaístico, observou-se a existência de características específicas da narrativa hipermidiática com a integração de conteúdos, formas e linguagem, e a possibilidade de acessar, simultaneamente, textos, imagens e sons, com destaque para a interatividade entre os elementos da mídia. O aplicativo atende as exigências de leitura digital caracterizada pela não-linearidade. Diante desse cenário verifica-se a tendência de um novo design de conteúdo jornalístico, o que requer do profissional de mídia, múltiplas habilidades sobre os modos de narrar, o uso da hipertextualidade, da multimidialidade, da interatividade, dos formatos e as maneiras de apresentar os conteúdos. Palavras-chave: jornalismo; mídia; audiovisual; tecnologia; estética Abstract The Group São Paulo was the first Brazilian newspaper to develop applications for mobile devices. The reformulation of journalism has been influenced by the tendency of users of the Information and Communication Technologies, ICTs. This study is a reflection on the so-called application Estadão Light, compact version of the daily edition. Of essayistic way, there was the existence of specific characteristics of hypermedia narrative with the integration of content, forms and language, and the ability to access both texts, pictures and sounds, especially the interaction between the media elements. The application meets the digital reading demands characterized by non-linearity. In this scenario there is the tendency of a new journalistic content design, which requires the professional media, multiple skills on the ways of narrating, the use of hypertextuality, the multimidialidade, interactivity, formats and ways to present content. Key words: journalism; media; audiovisual; technology; aesthetics Introdução 87 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Mídia e Tecnologia da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, câmpus de Bauru. E-mail: [email protected] 88 Professora Doutora no Programa de Pós-Graduação em Mídia e Tecnologia da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, câmpus de Bauru. E-mail: [email protected] 309 O cenário atual das novas tecnologias da informação e comunicação, as TICs, influenciou diretamente na mudança de mercado e dos hábitos de consumo de mídia. Em 2008, o relatório “Future of the Internet”, do Pew Internet & American Life Project, projetava que em 2020 os dispositivos móveis seriam a principal forma de acesso à internet. Naquele momento, o iPhone ainda era uma novidade e o iPad seria lançado apenas dois anos mais tarde. O que não se previa era que, menos de cinco após a divulgação do relatório, esses dispositivos despontariam como um mercado em potencial. Todavia, o fenômeno da convergência tem sido abordado sob diferentes perspectivas desde a década de 70. Ithiel de Sola Pool popularizou o termo a partir da publicação do livro The Techonologies of Freedom (1983), no qual estabeleceu a noção de convergência de todos os modos de comunicação a partir da tecnologia eletrônica. Nos anos 90, o digital passou a ser a matriz predominante, com a expansão das conexões em rede, dos computadores, do surgimento da web, das melhorias nas infraestruturas de acesso, até a atual fase da ubiquidade das tecnologias e das redes e dispositivos móveis. A convergência digital evidenciou-se em diversos aspectos, inclusive, culturais. Henry Jenkins (2008), assinala que a cultura contemporânea em si é a própria convergência. Esse fenômeno digital modificou as relações não apenas entre as tecnologias existentes, mas também entre indústrias, mercados, gêneros, audiências e consumo dos meios. Neste processo de expansão desencadeado a partir do século XIX, a tecnologia sempre foi um fator preponderante para o aprimoramento dos procedimentos da produção jornalística, do trabalho dos profissionais, da oferta informativa, dos modelos dos produtos e dos formatos dos conteúdos. Esta mudança de cenário permitiu que a circulação das notícias pudesse superar barreiras geográficas e temporais até chegar ao público, de forma a satisfazer as necessidades de informação da sociedade. Ao lado disso, evoluíram também os meios e as diferentes modalidades de jornalismo: da imprensa ao cinema, do rádio à televisão, até à internet e à web, na qual despontou a modalidade do jornalismo digital, também conhecida pelas terminologias jornalismo online, webjornalismo e ciberjornalismo. Esta evolução digital proporcionou aos cidadãos dispor cada vez mais de aparatos, que lhes permitam acessar com facilidade, conteúdos textuais, sonoros e gráficos. Com isso, as mídias foram obrigadas a buscarem alternativas para acompanhar as distintas tendências e modificar suas estéticas. Diante desse novo ecossistema midiático, as empresas jornalísticas precisaram mudar as prioridades a fim de conquistar e manter a audiência. O presente estudo verifica de forma ensaística essas transformações em um veículo brasileiro tradicional de mídia impressa, o jornal O Estado de São Paulo, que, influenciado pelas tecnologias da informação e comunicação, se remodelou de forma a evidenciar em subprodutos, como o Estadão Light, disponível apenas para tablets, as características existentes nas diferentes plataformas digitais, predominantes do novo design jornalístico. 310 Um novo ecossistema midiático A emergência dos dispositivos móveis tem influenciado o ecossistema midiático. Essas alterações têm impactado diretamente nos formatos, linguagens, distribuição e consumo de conteúdos jornalísticos. Atualmente, os espaços midiáticos vivem uma convergência entre as tecnologias, que oferecem comunicação audiovisual: telefone, televisão e computador. Esses três juntos ocupam cada dia mais o mesmo espaço. É comum no cenário atual ocorrer a integração entre as mídias, como o que ocorre com a televisão e internet, o computador e o telefone celular e, também a televisão e o telefone celular. Essa convergência de tecnologias resulta no que podemos chamar de mobilidade. Nos últimos anos, vimos celulares se tornarem cada vez mais fundamentais nas estratégias de lançamento de filmes comerciais em todo o mundo; como filmes amadores e profissionais produzidos em celulares competiram por prêmios em festivais de cinema internacionais. Foi uma poderosa demonstração de como os celulares se tornaram fundamentais no processo de convergência das mídias (JENKINS, H. 2008). Esse cenário tem influenciado também no comportamento do leitor, que deixa de ser passivo e se torna um receptor/usuário, que busca cada vez mais os espaços com possibilidade de leitura através de multilinguagem, seja na televisão, no cinema, na literatura ou na internet. Esse modelo de narrativa transmídia é considerado moderno no Brasil, porém o termo não é novo. A terminologia Transmídia foi proposta inicialmente por Stuart Saunders Smith em 1975 (Renó & Flores, 2012, pág. 63). Em seguida, o termo foi adotado para o campo da comunicação por Marsha Kinder (1991), denominando-a de intertextualidade transmídia. Atualmente, o termo ganhou uma nova vida a partir das palavras de Henry Jenkins (2009), que passou a difundir o conceito transmídia para justificar a distribuição de conteúdos diferentes, mas relacionados, por meios distintos, afim de construir uma nova mensagem. No artigo “Jornalismo Transmidiático ou Multimídia?”, Carlos Pernisa Junior aponta que, apesar de existir o conceito, ainda é difícil visualizar o jornalismo transmidiático na prática, pois na maioria das vezes, são os modelos de veículos analógicos sendo transplantados para o meio digital. Isso não facilita em nada a missão de se buscar um jornalismo que transponha os limites de um veículo para se fazer presente em vários deles, com conteúdos complementares. O jornalismo transmidiático deve apontar efetivamente para esta linha, fugindo da convergência para um único espaço e de um “uberjornalismo”, onde o repórter é o faz-tudo da empresa. (JUNIOR, C. 2010) Para o autor, o jornalismo transmidiático indica uma conexão de meios e não uma disputa pela sobrevivência entre eles, o que traz uma nova visão principalmente dos veículos impressos. “A busca por um modo de se fazer reportagens mais contextualizadas poderia render ainda um tempo de vida maior a este tipo de meio” (JUNIOR, C. 2010, pág. 4). E também, a vantagem de ele fazer parte de uma rede, já que poderia remeter a outros veículos e também ser indicado 311 por eles. O jornalismo transmidiático forma um universo de comunicação, no qual o usuário navega por diversas facetas do acontecimento, independente do meio em que elas estão. E, paralela a essa convergência midiática, a telefonia celular também tem influenciado na construção das narrativas. A ferramenta passou a ser fundamental para propiciar a mobilidade e a instantaneidade do processo. Este novo ecossistema midiático influenciado evidencia a migração, cada vez mais constante, dos meios jornalísticos para dispositivos móveis e da transformação provocada por tais mudanças tecnológica e de linguagem. Sendo assim, é expressamente válida e de fundamental importância conhecer as novas formas de produção de conteúdos jornalísticos para formatos cada vez mais imprevisíveis. Design da informação jornalística O novo modelo de narrativa transmídia, evidenciado pela migração de conteúdos jornalísticos para dispositivos móveis, tem potencializado a diferenciação desses produtos. Com novas formas de roteirização para as produções jornalísticas, os recursos empregados para a constituição de narrativas originais, buscam explorar uma maior integração entre os formatos utilizados, no desenvolvimento da hipertextualidade, da multimidialidade e, ainda, da tactilidade. Atualmente, os jornalistas necessitam preparar-se para o novo cenário da comunicação informativa. Além dos conhecimentos tradicionais, é preciso saber produzir conteúdos com estrutura transmídia para que a sociedade contemporânea possa navegar pelas informações intertextuais modernas (RENÓ, D., RENÓ, L. 2013). No Brasil, pesquisas realizadas pela International Data Corporation (IDC) comprovam que o mercado segue um ritmo de grande crescimento na venda de smartphones e tablets. De acordo com o estudo, em 2014, foram vendidos cerca de 54.5 milhões de smartphones, alta de 55% na comparação com 2013, quando 35.2 milhões de aparelhos foram comercializados no país. Isso fez com que o país fechasse 2014 na 4ª colocação entre os maiores mercados de aparelhos celulares do mundo, atrás da China, Estados Unidos e Índia. Para este ano, a IDC Brasil prevê, mesmo com a alta do dólar, 16% de crescimento do mercado de smartphones, com a venda de cerca de 63.3 milhões de aparelhos, sendo que, 30% desse total, seja de aparelhos com acesso a 4G. Apesar do aumento na venda de tablets em 2014, a IDC Brasil prevê uma retração em 2015. A justificativa é de que o aparelho não é mais novidade e a alta no dólar pode impactar negativamente. O mercado brasileiro encerrou 2014 com alta de 13% em volume de vendas de tablets, com a comercialização de cerca de 9,5 milhões de equipamentos. Neste ano, a consultoria prevê retração de 3% do mercado e vendas de cerca de 9,3 milhões de tablets. De forma a acompanhar esse cenário, o jornalismo cada vez mais tem se apoiado em plataformas móveis. Essa tendência chamada de jornalismo móvel se caracteriza pelo uso de dispositivos portáteis digitais como celulares, smartphones, tablets, notebooks, câmeras e gravadores digitais, aliados a conexões sem fio. 312 Atentas à evolução tecnológica, e também às formas de consumo de mídia, as organizações jornalísticas têm direcionado as estratégias para multiplicação de suas marcas em produtos multimídia com foco especialmente para as móveis. Concretiza-se cada vez mais o que apontou Rich Gordon há dez anos: a convergência fazendo emergir formas inovadoras para a produção e apresentação das informações jornalísticas a partir, principalmente, dos dispositivos móveis, dos computadores, além da televisão interativa. Agora, naquela que é a quinta fase de evolução para o jornalismo nas redes digitais, configurada por meio do continuum multimídia dinâmico de fluxo horizontal. (BARBOSA, S. 2013) Nos conglomerados midiáticos, tornou-se comum o upload em tempo real do material produzido com uso de textos, áudio, vídeos e fotos para postagem em blogs, sites jornalísticos ou, até mesmo, para uma edição impressa. Para otimizar essa produção, surgiram aplicativos apropriados para uma cobertura móvel como o Farcast Reporter e o Mobile Reporter que, entre outras funcionalidades, propiciam flexibilidade de upload por seção, data, horário e anexo do material que será publicado em real time. (RUBLESCKI, A., BARICHELLOO, E., DUTRA, F. 2013) É perceptível o interesse dos indivíduos pela comunicação móvel através de dispositivos como smartphones e tablets, como alternativas de entretenimento, informação, geração de conteúdo e fruição de notícias. Diante dessa mudança de comportamento do consumidor, que força uma reformulação dos meios e das mensagens, tornou-se expressamente necessária a estruturação da interface de forma a apropriá-la para este novo processo comunicacional do campo jornalístico e das práticas de comunicação. O que se tem verificado é que as empresas jornalísticas têm se adaptado para desenvolver formas de discurso para esta nova realidade de consumo e, que encontraram nessa evolução midiática, uma nova possibilidade de negócio, que, além de agradar ao consumidor, é uma solução em meio à crise econômica. Uma das remodelações evidenciadas pelos detentores da mídia é a de oferecer conteúdos exclusivos e diferenciados aos consumidores. O acesso não é gratuito e, os novos meios, são dimensionados para atender às demandas publicitárias, tornando-se um investimento rentável. Jornalisticamente o que tem sido feito é uma reinvenção do formato das notícias e diferenciação do conteúdo, além de personalizar a experiência de leitura em mobilidade. No Brasil, a exemplo dessa readequação ao mercado, o tradicional jornal O Estado de São Paulo foi o primeiro a inovar e investir nas plataformas móveis. A visão da empresa é a de que o leitor não se contenta apenas com o noticiário e, exige, cada vez mais, a interpretação e a análise dos fatos noticiados. Para atender às exigências desses consumidores, o grupo criou, em 2012, o Estadão Tablet, com versões exclusivas para os assinantes usuários de tablets, que diferentemente do impresso, traz análises de especialistas, comentários, fotos, áudios e vídeos sobre os conteúdos disponibilizados. Estadão Light – novo design de conteúdo jornalístico As mídias móveis, especialmente smartphones e tablets, são os novos agentes que reconfiguram a produção, a publicação, a distribuição, a circulação, a recirculação, o consumo 313 e a recepção de conteúdos jornalísticos multimídia. Esses novos formatos de mídia são propulsores de um ciclo de inovação, no qual surgem aplicativos jornalísticos para tablets e smartphones, produtos esses, potencialmente inovadores, e cujas aplicações são criadas de forma nativa com material exclusivo e tratamento diferenciado. Nesse cenário, o jornal O Estado de São Paulo desenvolveu uma versão do Estadão para tablet e iPad. O assinante pode baixar o aplicativo e ter acesso a conteúdos exclusivos: Estadão Premium, Estadão Light, Estadão Noite e Olhar Estadão. O Estadão Premium é o Estadão com o mesmo conteúdo e organização do jornal impresso, porém com recursos interativos, como vídeos, galerias de fotos, animações, interação com a redação e diversos recursos digitais. Já o Estadão Light é uma seleção das notícias do Estadão Premium, em formato especial para leitura em tablet, incluindo recursos multimídia e de interação. No Estadão Noite, o assinante tem uma seleção do noticiário do dia, com imagens que foram destaque, Giro 15 da Rádio Estadão e uma prévia da edição do jornal da manhã seguinte. Por último, o Olhar Estadão, é uma seleção das imagens que foram destaque no noticiário da semana. O presente trabalho foi realizado com base na metodologia ensaística, de forma a desenvolver um estudo formal, discursivo e concludente. Tal ensaio consiste em uma exposição lógica e reflexiva sobre as características predominantes no objeto da pesquisa, o aplicativo Estadão Light. Para tanto, a argumentação baseou-se em revisão bibliográfica de obras referências nos assuntos evidenciados. Diante do proposto, foram observadas as características predominantes no aplicativo, que o enquadram em um novo modelo de narrativa. Ressalta-se que a leitura digital é caracterizada pelo texto hipermídia, ou seja, de leitura menos sequencial e menos linear em relação ao impresso, que se ramifica de modo que o leitor tenha acesso a todos os outros textos ligados a eles. Segundo Santaella (2004, pág. 48), a hipermídia mescla textos, imagens, vídeos, sons e ruídos e, permite a interação do receptor. Além disso, quebra o fluxo linear de texto, próprio da linguagem impressa. Assim como Lévy (1993), que caracteriza hipertexto como um texto não-linear que existe apenas no computador, formado por sequência de informações como textos, imagens, sons e links variados. Para ele, o hipertexto é um conjunto de nós ligados por conexões. Os nós podem ser palavras, páginas, imagens, gráficos ou partes de gráficos, sequências sonoras, documentos complexos que podem eles mesmos ser hipertextos. Os itens de informação não são ligados linearmente, como em uma corda com nós, mas cada um deles, ou a maioria, estende suas conexões em estrela, de modo reticular. Navegar em um hipertexto significa, portanto, desenhar um percurso em uma rede que pode ser tão complicada quanto possível. Porque cada nó pode, por sua vez, conter uma rede inteira. A leitura digital exige, diante de tantos suportes eletrônicos, um leitor ainda mais dinâmico, ativo e que selecione melhor quantitativa e qualitativamente as informações. O trabalho de leitura de hipertextos exige que o leitor tenha intimidade com diferentes linguagens na composição do texto eletrônico, bem como os aparatos tecnológicos. Na leitura hipermidiática, o leitor é imersivo. Isso é possível devido à estrutura não-sequencial, que permite ao receptor se colocar na opção de co-autor e migrar para diferentes versões virtuais, 314 que são disponibilizadas durante a navegabilidade (SANTAELLA, 2004, pág. 49). Dessa forma, ele não age apenas como intérprete, mas decide o percurso e o caminho da leitura. Para Lévy, as características do texto hipermídia são definidas pela não-linearidade, volatilidade, espacialidade topográfica, fragmentariedade, multissemiose, descentralização ou multicentramento, interatividade e intertextualidade. Tais características foram utilizadas como base para analisar o objeto da pesquisa em questão. No estudo, foram observadas durante trinta dias, as publicações das edições do Estadão Light, com o objetivo de compreender a periodicidade e a dinâmica dos conteúdos divulgados. Por se tratar de publicações diárias, para este ensaio, foi selecionada uma amostragem de sete edições, que compreendem o período de 24 a 30 de agosto. Observou-se que, assim como o proposto pelo grupo Estado de São Paulo, o Estadão Light é uma seleção das notícias do jornal O Estado de São Paulo, em formato específico para leitura em tablet, tanto que, só é possível iniciar a leitura digital se o equipamento estiver na horizontal. Apesar da fácil navegabilidade, o aplicativo disponibiliza uma página contendo o passo-a-passo de navegação para o leitor. Imagens 1 e 2: print screen Estadão Light A proposta do Estadão Light, além da seleção das principais notícias, é oferecer aos usuários recursos multimídia e de interação, como identificado nos ícones da imagem 2. Nos botões disponíveis há opção de acessar o conteúdo na internet, link para outra notícia, áudio, vídeo, galeria de fotos, além do toque para ampliar o tamanho da imagem na tela. Porém, durante a observação das edições publicadas no período de 24 a 30 de agosto, pouca hipertextualidade foi identificada no aplicativo. As sete edições do Estadão Light possuem as mesmas editorias. Diariamente são disponibilizados para o leitor textos opinativos (colunistas) e conteúdos relacionados às editorias de política, internacional, metrópole, esportes, economia, caderno 2 e um caderno especial diferente em cada edição (disponível em 6 das 7 publicações). Além disso, na mesma periodicidade das publicações, há fórum de leitores, página explicativa de navegabilidade no aplicativo e expediente. Em nenhuma edição do período observado houve a disponibilização 315 de áudio, vídeo e/ou galeria de fotos. Sendo assim, as opções de interatividade disponíveis para o usuário entre os dias 24 a 30 de agosto foram apenas de hiperlink e amplitude da tela. Em todas as publicações observou-se a estética clean adotada pela empresa, com telas quem contém poucas informações e itens distribuídos de forma equilibrada, o que proporciona uma leitura dinâmica e de fácil compreensão. A presença dos hiperlinks tornam-se desnecessárias se considerar que o leitor não é direcionado para outra janela de interatividade. O botão de hiperlink existente nas páginas apenas altera o conteúdo disponível, sem necessidade de migração para outro ambiente, seja interno, ou externo, ao aplicativo. Imagens 3 e 4: print screen Estadão Light Na página inicial de todas as edições há o ícone Últimas Notícias, que direciona o leitor para o Portal de Notícias do Estadão no endereço eletrônico http://m.estadao.com.br. Esta é a única migração disponível ao usuário para um ambiente externo ao aplicativo e informações extras ao conteúdo disponibilizado no Estadão Light. Imagens 5 e 6: print screen Estadão Light Com relação à estrutura jornalística, as publicações seguem parâmetros tradicionais, que incluem a disponibilização de notícias acompanhas por títulos, linhas finas, fotos, legendas, olho, box e infográficos, itens básicos do jornalismo impresso. 316 Imagens 7 e 8: print screen Estadão Light Apesar de ser notória a escassez de interatividade e hipertextualidade, as características presentes nas edições do Estadão Light, permitem que a leitura seja caracterizada como digital, já que, proporciona uma leitura não-linear, o que é o principal diferencial entre as formas de leituras. A caracterização como leitura digital, faz com que o aplicativo se enquadre em um novo formato de mídia. Conclusão De modo ensaístico, observou-se nas edições do Estadão Light no período de 24 a 30 de agosto, a existência de características específicas dos novos modelos de narrativa, sendo evidenciados recursos multimídia como hiperlinks e as possibilidades de ampliação de imagens e textos. Diante das análises compreendeu-se que o aplicativo é caracterizado pela leitura digital, já que adequa-se às condições de hipertexto propostas por Lévy. Apesar de nas edições observadas estarem ausentes os áudios, vídeos e galerias de fotos, existem características que comprovam a possibilidade de leitura não-linear e interatividade, como hiperlinks, imagens cinéticas, navegabilidade, touch-screen e possibilidade de ampliação da página. Além disso, há volatilidade, que é característico do próprio suporte. A questão da espacialidade topográfica também se enquadra nas publicações do Estadão Light, vez que, o espaço de leitura e escrita não é hierarquizado. Assim como, a fragmentariedade do hipertexto, sendo que não existe um único centro. Apesar de não haver efeitos sonoros nas publicações analisadas, a multissemiose é notada diante da disponibilização de textos, diagramas, ícones, tabelas, entre outros aportes sígnicos e sensoriais. O fato de ser multicentralizado intensifica a característica de não-linearidade, sendo que, o deslocamento é indefinido. E, a interatividade é visível entre o usuário e o equipamento, o que reitera a característica da hipertextualidade, assim como, da intertextualidade, em que é possível o acesso a outros textos potenciais. Conclui-se, dessa forma, que o aplicativo estudado atende às exigências de leitura digital caracterizada pelo texto hipermídia e a não-linearidade. O Estadão Light possui uma estrutura não-sequencial, o que permite uma leitura dinâmica e a imersão do leitor. Sendo assim, o usuário tem a possibilidade de selecionar tanto em quantidade como em qualidade, as 317 informações às quais quer ter acesso. A leitura imersiva e ativa é característica da leitura digital. Com a disponibilização dos hiperlinks, a leitura se ramifica de tal modo que o leitor consegue navegar por diferentes versões e se aprofundar no assunto diante da disponibilidade de textos relacionados ao mesmo. Ação essa, que é característica da leitura digital. Diante disso, ele não age apenas como um mero leitor e sim como um co-autor, já que decide o trajeto da leitura. O texto não-linear, hipermidiático, é caracterizado pela combinação de variados elementos informativos como textos, imagens, vídeos, sons e links. No objeto de estudo em questão, apesar de não haver, no período analisado, a existência de sons e vídeos, os demais elementos estão visíveis e compõe a estrutura da notícia, o que permite a interação com o leitor e rompe o fluxo linear da leitura. Diante desse cenário, verificou-se com base em revisão bibliográfica e de forma ensaística, que o aplicativo Estadão Light atende às características predominantes da leitura digital e acompanha, assim, a tendência de um novo design de conteúdo jornalístico. Referências Bibliográficas ARANHA, G. Narrativas transmídias e novos esquemas cognitivos: evolução e adaptação nos sistemas da escritura. Curitiba: UFPR, 2011. BARBOSA, S. Jornalismo convergente e continuum multimídia na quinta geração do jornalismo nas redes digitais. In CANAVILHAS, J. (Org). Notícias e Mobilidade. O Jornalismo, na Era dos Dispositivos Móveis. Covilhã, PT: Livros LabCOM, 2013. Disponível em: < http://www.livroslabcom.ubi.pt/book/94>. Acesso em: 15 de julho de 2015. BELOCHIO, V. C. Convergência e a atualização do contrato de comunicação de veículos noticiosos multiplataforma: buscando marcas no dispositivo jornalístico. In: Revista Intexto (UFRGS). Julho de 2012. Estudo da IDC Brasil aponta que, em 2014, brasileiros compraram cerca de 104 smartphones por minuto. Disponível em: <http://br.idclatin.com/releases/news.aspx?id=1801>. Acesso em: 20 de julho de 2015. Estudo da IDC Brasil registra alta de 13% no mercado brasileiro de tablets, em 2014. Disponível em: <http://br.idclatin.com/releases/news.aspx?id=1785>. Acesso em: 20 de julho de 2015. JENKINS, H. Cultura da convergência. Tradução Susana Alexandria. 2ª edição. São Paulo: Aleph, 2009. JUNIOR, C. Jornalismo transmidiático ou multimídia? In: Revista do Programa de PósGraduação em Comunicação e Linguagens Universidade Tuiuti do Paraná, 2010. Disponível em: <http://interin.utp.br/index.php/vol11/article/view/35/28>. Acesso em: 15 de julho de 2015. LÉVY, P. As tecnologias da inteligência. Tradução de Carlos Irineu da Costa. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1993. LÉVY, P. Cibercultura. Tradução de Carlos Irineu da Costa. São Paulo: Editora 34, 1999. 318 LÉVY, P. O que é o virtual. 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São Paulo: Paulus, 2004. 319 Metanarrativa entre a realidade e a ficção: efeitos de sentido presentes na construção de narrativas em mockumentaries Guilherme Profeta, Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), [email protected] Resumo O hábito de estruturar o pensamento em forma de narrativas é uma tendência constante para a espécie humana, que permite ao narrador transmitir àquele que lê algum tipo de lógica sobre o mundo. Conduzir uma narrativa pode direcionar o entendimento do leitor, guiando não só seu olhar, mas a perspectiva da qual se olha. A narrativa pode se utilizar de uma grande variedade de elementos, os quais, quando analisados em conjunto, servem ao propósito de criar uma metanarrativa – um tema central, em outras palavras, ou mesmo uma “moral da história”. Para a análise da narrativa, quando focada em seus aspectos estruturais, os textos podem ser verídicos ou ficcionais, ou mesmo formas híbridas entre a realidade e a ficção, como mockumentaries, ou pseudodocumentários. Esse gênero particular de narrativa, que mistura fontes documentadas à pura ficção, por estar entre a “verdade” e a “mentira”, apresenta casos ideais para serem estudados tanto do ponto de vista estrutural quanto metanarrativo. Palavras-chaves: metanarrativa, teoria da narrativa, análise pragmática da narrativa, mockumentary, pseudocumentário Abstract The habit of structuring thoughts as narratives (or simply stories) is a constant tendency for the human species, which allows the narrator to transmit to the one who reads some sort of logic about the world. To lead a narrative can direct the reader’s understanding, guiding not only his or her sight, but also the perspective from where he or she looks. Narratives can apply a large variety of elements that work together in order to create a metanarrative (or grandnarrative) – in other words, a central theme, or even the “lesson of the story”. To the analysis of narratives, when focused on its structural features, texts can be truthful or fictional, or even hybrid forms between reality and fiction, such as the mockumentaries. This particular genre of storytelling, which mixes documented sources with pure fiction, for being among the “truth” and “lies”, provides ideal cases to be studied both from the structural and metanarrative points of view. Key words: metanarrative, narrative theory, pragmatics of narrative analysis, mockumentary, pseudo-documentary 320 Introdução Não há homem que saiba quando foi o exato momento em que alguém narrou pela primeira vez uma história. Podemos imaginar, talvez, um grupo de nossos ancestrais reunidos ao redor de uma fogueira, sob a noite da aurora dos tempos, nos primórdios do desenvolvimento da linguagem, compartilhando com os demais os feitos da última caçada. Talvez eles usassem as histórias para ensinar os pequenos o que deve e não deve ser feito, utilizando de forma inata a estrutura narrativa para compreender o mundo e passar essa compreensão adiante. Talvez as primeiras histórias, completadas pelos hiatos de linguagem primitiva por gestos e expressões faciais, não passassem de uma forma de passar o tempo. A imagem parece nítida, mas não deixa de ser mera especulação. Não há registros, afinal, da primeira narrativa, pois o próprio registro compreenderia um paradoxo: a narrativa que narra a si mesma não poderia ser a primeira. Psicólogos culturais afirmam que a nossa tendência para organizar a experiência de forma narrativa é um impulso humano anterior à aquisição da linguagem: temos uma predisposição primitiva e inata para a organização narrativa da realidade (BRUNER, 1998 apud MOTTA, 2005, p. 2). Assim, a narratividade continua sendo uma presença constante na história humana, existente supostamente desde o começo dos tempos, a partir do primeiro momento em que um de nossos ancestrais numa savana primitiva precisou encadear algum tipo de informação com começo, meio e fim, colocando as informações em relação uma à outra. Da fogueira ancestral às ondas de rádio que cruzam latitude e longitude de norte a sul, as narrativas abarcam um vasto rol de apresentações possíveis – e novas surgem diariamente conforme os meios dos quais o homem se utiliza para se comunicar são ampliados. Inumeráveis são as narrativas do mundo. Há em primeiro lugar uma variedade prodigiosa de gêneros, distribuídos entre substâncias diferentes, como se toda matéria fosse boa para que o homem lhe confiasse suas narrativas: a narrativa pode ser sustentada pela linguagem articulada, oral ou escrita, pela imagem, fixa ou imóvel, pelo gesto ou pela mistura ordenada de todas estas substâncias; está presente no mito, na lenda, na fábula, no conto, na novela, na epopéia, na história, na tragédia, no drama, na comédia, na pantomima, na pintura, no vitral, no cinema, nas histórias em quadrinhos, no fait divers, na conversação. Além disso, sob estas formas quase infinitas, a narrativa está presente em todos os tempos, em todos os lugares, em todas as sociedades... internacional, trans-histórica, transcultural, a narrativa está aí, como a vida. (BARTHES apud D’ONOFRIO, 1983, p.27) Nessas diferentes apresentações, roupagens variadas para uma mesma intenção intrinsecamente humana, que é a de compreender o ambiente caótico que nos cerca, as narrativas exercem o papel de categorizar acontecimentos em modelos que permitam àquele que narra transmitir a seus ouvintes e leitores algum tipo de lógica sobre o mundo. Todavia, a simples sequenciação em começo, meio e fim, a qual fundamenta as bases de qualquer teoria literária e a estrutura de três atos do cinema – que serão abordadas em mais profundidade na sequência – pode ser suficiente para identificar o que é uma narrativa num primeiro momento, mas nem de longe dá conta de toda a análise possível e desejável. O que faz com que determinado conteúdo seja considerado uma narrativa, no fim das contas? 321 Todorov propôs uma distinção entre história e discurso (v.): a história corresponderia à realidade evocada pelo texto narrativo (acontecimentos e personagens), o discurso ao modo como o narrador dá a conhecer ao leitor essa realidade. [...] S. Chatman desenvolve a dicotomia história vs. discurso, identificando o nível da história com o conteúdo (conjunto de eventos, personagens e cenários representados) e o nível do discurso com os meios de expressão que veiculam e plasmam esse conteúdo. (REIS; LOPES, 1988, p. 49) Percebe-se, assim, no decorrer dessas definições, que as histórias são formadas não só por uma série de acontecimentos encadeados, mas por um discurso que constrói esse conteúdo. Não bastam os fatos colocados em ordem cronológica, mas determinados elementos precisam ser trabalhados de forma estruturada para criar no ouvinte, no leitor ou no espectador a experiência de uma narrativa. Ao estudo desses elementos, grosso modo, dá-se o nome de narratologia: “o estudo da forma e funcionamento da narrativa” (PRINCE, 1982 apud REIS; LOPES, 1988, p. 79) Observando que as narrativas são compostas de elementos organizadores do discurso e considerando especialmente o fato de elas serem muito relevantes para a maneira como o homem constrói e transmite interpretações sobre o mundo que nos cerca, justifica-se a importância de entender seu funcionamento. Afinal, apresentar uma narrativa pode direcionar o entendimento do leitor sobre o mundo em si, guiando não só seu olhar, mas a perspectiva da qual se olha. O narrador não só vira o pescoço do leitor para a direção que deseja, mas mostra para onde ele deve olhar e que percepção ele deve ter sobre aquilo que está olhando. Isso vale para a realidade, para a ficção e para todas as áreas cinzentas entre as duas coisas. Análise pragmática da narrativa & análise das partes do roteiro Para identificar os elementos estruturadores que dão a um texto a sensação de narratividade, a análise pragmática da narrativa, conforme proposta por Motta (2005), prevê uma série de movimentos a serem seguidos para que seja possível isolar os elementos que, quando orquestrados em conjunto, criarão no leitor a experiência de uma história sendo contada. O método foi idealizado para a análise da narrativa jornalística, mas pode ser aplicado, teoricamente, a qualquer narrativa, uma vez que a aceitação de um amplo espectro de material como objeto de estudo da análise pragmática da narrativa fornece uma série de teorias periféricas que se mostrarão úteis em qualquer análise. Paralelamente à análise pragmática em seis movimentos proposta por Motta, a análise das partes dos roteiros de cinema proposta por Howard e Mabley (1999) oferece uma série de conceitos complementares para a análise de narrativas, sejam elas jornalísticas, ficcionais ou híbridas. A análise pragmática começa, basicamente, pela recomposição da intriga, ou pela recomposição do(s) acontecimento(s). Em outras palavras, neste primeiro movimento o “analista precisará recompor retrospectivamente o enredo completo da história.” (MOTTA, 2005, p. 4) O primeiro movimento encontra correspondente na análise de material audiovisual no paradigma dos três atos, que consiste em analisar as subdivisões da narrativa em começo, meio e fim. 322 Empregamos o paradigma dos três atos porque é o mais simples de entender e o que mais de perto se ajusta às fases da vivência que o público tem da história. O primeiro ato envolve o espectador com os personagens e com a história. O segundo ato o mantém envolvido e aumenta seu comprometimento emocional. O terceiro ato amarra o enredo e leva o envolvimento do espectador a um final satisfatório. Em outras palavras, uma história tem um começo, um meio e um fim. (HOWARD; MABLEY, 1999, p. 54) Já no segundo movimento, identificam-se os conflitos, já que o conflito “é o elemento estruturador de qualquer narrativa.” (MOTTA, 2005, p. 5) Por conflito, entende-se qualquer ruptura ou anormalidade que surja para quebrar uma situação estável de equilíbrio, ou o status quo. Essa situação estável (1), por sua vez, é a primeira função literária que o analista deve buscar na narrativa, seguida por complicação (2), clímax (3), resolução (4), vitória (5), desfecho (6), punição (7), recompensa (8) e assim por diante. No terceiro movimento, identificam-se os personagens. “Por força de sua intervenção na história, as personagens podem ser identificadas como protagonistas, antagonistas, heróis, anti-heróis, doadores, ajudantes, etc.” (MOTTA, 2005, p. 6) Uma vez identificado o personagem, pelo contexto, pode-se identificar as funções que eles desempenham. A maioria das histórias [...] gira em torno de um personagem central: o protagonista [...]. Mesmo nas histórias com muitos personagens, e com estrutura diferente [...], cada subenredo dentro da história principal tem seu protagonista. Na circunstância dramática básica de ‘alguém quer alguma coisa desesperadamente e está tendo dificuldade em obtê-la’, o que ‘alguém’ é o protagonista. (HOWARD, 1999, p. 58) Em seguida, no quarto movimento, Motta (2005) defende que devem ser identificadas as estratégias comunicativas da narrativa, que estão divididas em estratégias de objetivação, ou recursos de construção dos efeitos de real, e estratégias de subjetivação, ou recursos de construção de efeitos poéticos. As estratégias de objetivação podem ser percebidas pelas citações frequentes, que deslocam a defesa da verdade para um personagem em vez do narrador, usando elementos linguísticos que fazem referência àquele que fala; pela identificação de lugares e instituições com correspondentes no mundo alheio à narrativa, que conferem precisão àquilo que se diz; pela datação, que confere referenciais temporais. Todas essas estratégias tornam a narrativa aparentemente objetiva, tirando do autor a responsabilidade pela narratividade. São essas estratégias de objetivação que constroem um cenário plausível onde a ação pode se desenvolver. Já as estratégias de subjetivação residem na criação de relações catárticas entre os personagens e o leitor: afeto, repulsa, questionamentos, surpresa, ênfase. Para quem analisa o texto propriamente dito, elas estão... ...nas escolhas léxicas, no uso de verbos prospectivos, verbos de sentimento, verbos negativos, verbos de conselho, de advertência, etc.; no uso de adjetivos afetivos, potenciais ou adjetivos de possessão; no uso de substantivos estigmatizados como terroristas, radicais, pivetes, etc. Estão nas exclamações, interrogações [pontuação], comparações, ênfases, repetições e reticências, mais comuns no noticiário que se pensa. Estão nas 323 figuras de linguagem (metáforas, sinédoques, sinonímia, hipérboles). Estão nas ironias e paródias, que abrem âmbitos de significação. Estão nos conteúdos implícitos... (MOTTA, 2005, pp. 11-12) O quinto movimento, por sua vez, é o contrato cognitivo, o qual, basicamente, consiste numa análise que visa identificar qual é relação entre o público e o texto. Por fim, o sexto movimento compreende a identificação dos “significados de fundo moral ou fábula da história” (MOTTA, 2005, p. 14), as metanarrativas, que podem ser compreendidas como a narrativa por trás da narrativa,o sentidos maior por trás da história, a verdadeira intenção não dita do narrador. De ambos os movimentos finais este artigo tratará antes do fim, já que esses são movimentos extranarrativa, que presumem um mundo exterior ao cenário em que se passam os acontecimentos narrados. A perspectiva contratualista e as zonas cinzentas Existem muitos tipos de narrativas: há lendas, contos, e fábulas; há tragédia, drama e comédia; há o conto e há romances extensos divididos em episódios; há pinturas e vitrais nas paredes de igrejas. As possibilidades são muitas, mas em todas elas, independentemente da forma e de suas características reais ou ficcionais, existe uma relação de confiança entre o autor e o leitor. No caso dessa perspectiva contratualista... ...vigora um acordo tácito entre autor (v.) e leitor (v.), acordo consensualmente baseado na chamada ‘suspensão voluntária da descrença’ e orientado no sentido de se encarar como culturalmente pertinente e socialmente aceitável o jogo da ficção. Daqui não decorre obrigatoriamente uma postulação essencialista e autotélica da ficcionalidade; o contrato da ficção não exige um corte radical e irreversível com o mundo real, podendo (devendo, até, de acordo com concepções teórico-epistemológicas de índole sociológica) o texto ficcional remeter para o mundo real, numa perspectiva de elucidação que pode chegar a traduzir-se num registro de natureza didática. (REIS; LOPES, 1988, p. 44) Portanto, mesmo as narrativas que fazem referência ao mundo real, e que não podem ser chamadas de ficcionais de acordo com uma concepção pura, demandam um contrato cognitivo em que a suspensão da descrença deve ser aceita pelo leitor. Ao ler um romance, o leitor aceita por um recorte determinado de tempo, que dura o período da leitura em si, a realidade apresentada pelo narrador. Ao ler um jornal, especialmente, o leitor aceita a realidade apresentada como a própria realidade do mundo em que vive. Em ambos os casos, a descrença é suspensa, por um ou outro motivo. Seja real ou ficcional, toda narrativa tem uma lógica interna e uma lógica externa. A lógica interna compreende as bases de sentido construídas pela narrativa em si: o que é possível dentro daquela narrativa? Uma ficção tem seu próprio conjunto de regras internas que criam a lógica daquele cenário. Outras narrativas, por sua vez, acontecem não num cenário fictício ou fantasioso, mas num mundo que é tido como o mundo real: acontecem em São Paulo, no Rio de Janeiro, em Nova Iorque; acontecem no nosso mundo geográfico e no nosso tempo. A realidade vira cenário, e essa transformação é o ponto fundamental das narrativas que se dizem “reais” ou “documentais”. 324 Uma notícia de jornal, por exemplo, só é válida como narrativa por representar a realidade, diferentemente de um romance fictício. Ao representar a realidade, por outro lado, a narrativa cria um paradoxo em si mesma, pois o cenário deixa de ser a própria realidade, já que “a narração tem início, meio e fim, o que estabelece os limites entre a narrativa e o mundo, e marca sua oposição em relação ao mundo ‘real’.” (DALMONTE, 2010, p. 220) A realidade, obviamente, é um processo contínuo que possibilita inúmeras interpretações, e é daí que emergem os questionamentos sobre a capacidade de apresentá-la. Contudo, ainda que a reflexão crítica em relação à construção de narrativas possa ser uma realidade para determinados públicos, como os acadêmicos da comunicação, é muito provável supor que muitos dos leitores típicos tomarão as palavras publicadas em narrativas sobre a realidade (como as notícias publicadas por um jornalista ou um vídeo divulgado em formato de documentário, por exemplo) como verdadeiras e, ao menos num primeiro momento, incontestáveis. Talvez um dos maiores problemas na análise do jornalismo seja a confusão, a mistificação e até mesmo a ingenuidade que cercam a discussão sobre a ‘verdade’. O senso comum vê a realidade como definitiva, pensa a existência de um mundo único e de uma verdade inquestionável. No entanto, qualquer aspecto da realidade é muito mais complexo do que podemos dar conta. [...] O problema maior é que cada pessoa acha que seu direcionamento, que sua limitação na maneira de interpretar a realidade, é a própria realidade. (HERNANDES, 2006, p. 18) Essa suposição absoluta, dessa forma, pode causar equívocos de interpretação quando uma narrativa é construída de modo a parecer documental, mas traz em sua estrutura elementos ficcionais. É o caso dos mockumentaries, narrativas que estão entre a ficção e a realidade, de modo que o limite entre a lógica interna e a lógica externa é muito difuso. O mockumentary trata-se... ...de uma espécie de ‘filho bastardo’ do documentário e da ficção, um híbrido muitas vezes renegado entre os estudos mais puristas. Falamos do mockumentary, fake documentary ou, em português, pseudodocumentário: uma obra de ficção enunciada de forma a emular um filme documentário. (SUPPIA, 2013, p. 60) O gênero, apesar de ter sido popularizado recentemente, é mais antigo do que se pode imaginar. A adaptação do romance A guerra dos mundos, de H. G. Wells (1939), para o rádio é certamente um dos exemplos mais famosos. Na ocasião, o romance serviu de inspiração para uma narrativa em forma de noticiário transmitida nos Estados Unidos. As pessoas, inadvertidas sobre o caráter da produção, julgaram que o que estavam ouvindo era, de fato, um noticiário, e que o planeta estava realmente sendo atacado por alienígenas. A ficção foi transformada em realidade. Já nos pseudodocumentários com raízes em fatos reais (ou ao menos nas situações em que parte da informação é considerada verídica), ocorre uma estratégia que Suppia (2013) chama de deslocamento de discurso, ou descontextualização. Ou seja, as informações têm o contexto deslocado e são aplicadas num novo cenário, causando outros tipos de interpretação. É o caso, por exemplo, do filme Distrito 9 (2009), dirigidos por Neil Blomkamp, que usa o apartheid sulafricano como mote para uma história em que alienígenas pousam na terra e, sem ter como 325 retornar aos seu mundo, são brutalmente discriminados pelos seres humanos. A metanarrativa (ou a moral da história) é clara: os alienígenas são representações viscerais dos refugiados negros no sul da África. A realidade foi transformada em ficção. Outro exemplo contundente é o mockumentary Mermaids: The Body Found, exibido pela primeira vez em 27 de maio de 2012. Segundo o release oficial (MERMAID, 2014) da Animal Planet Media (APM), a obra é baseada em dois eventos reais: 1) testes de sonares executados pela marinha estadunidense que teriam acarretado na morte em massa de baleias e 2) uma gravação não identificada gravada pela agência governamental National Oceanic Atmospheric Administration (NOAA), que, dadas suas características, pode ter sua origem a partir de uma criatura desconhecida que habita o oceano pacífico. A partir desses eventos reais e de uma teoria científica que formula como hipótese uma ligação entre o homem contemporâneo e um primo evolutivo que teria migrado para os oceanos em vez de viver na terra, o mockumentary narra uma trama em que um grupo de cientistas descobre a existência de um ser até então tido como mitológico: a sereia, uma criatura saída das fábulas que aqui é retratada como uma espécie de carne e osso, capaz de organizar-se socialmente em grupos complexos, comunicarse através de um nível altamente sofisticado de vocalização e confeccionar ferramentas – um primo legítimo do homem, com o qual nós somos capazes de nos identificar, e que está sendo ameaçado pela presença humana nos oceanos. No decorrer do filme, variados efeitos de sentido se prestam ao objetivo de construir uma narrativa que ora se apresenta ficcional, ora documental, sem jamais delimitar em si mesma essas fronteiras, e o próprio mockumentary, durante seus créditos de encerramento, admite por meio de um disclaimer discreto, que “nenhuma das instituições ou agências que aparecem no filme são afiliadas ou associadas a ele de forma alguma, ou aprovaram seu conteúdo” e que “qualquer semelhança com pessoas reais, vivas ou mortas, é inteiramente incidental.” Todos os exemplos anteriores denotam uma característica básica dos mockumentaries: a linha divisória entre ficção e realidade, que nesse gênero é perturbadoramente tênue, um fenômeno que “diz respeito a particularidades da manipulação da ironia no discurso audiovisual.” (SUPPIA, 2013, p. 63) Segundo Nichols, o momento inicial é de indecisão, em que o espectador primeiramente assiste a um mockumentary sem saber que se trata de um pseudodocumentário. Nichols observa que a ironia confunde o que os psicólogos cognitivos chamam de esquema ou schemata. Instala-se, nesse fenômeno muito sutil, subjetivo e particular, o suposto "encanto" do mockumentary, algo que Nichols traduz como uma espécie de ‘efeito Magritte’ – a ideia inquietante de que ‘C'est n'est pas une pipe’. (SUPPIA, 2013, p. 63) C'est n'est pas une pipe (Isto não é um cachimbo) é a pintura célebre de René Magritte, que retrata um cachimbo com a frase que dá título à obra logo abaixo. Como pode um cachimbo criteriosamente representado não ser, de fato, um cachimbo? A chave da resposta está justamente na representação: não se trata de um cachimbo porque é apenas a pintura de um cachimbo. A representação não é a própria realidade, jamais. Assim como o cachimbo representa a realidade, os mockumentaries “enquadram a ideia dos documentários, aquilo que desejamos encontrar num documentário” (SUPPIA, 2013, p. 63), criando a experiência de um documentário – para não chamar, tendenciosamente, de ilusão. 326 Considerações finais: a verdade importa? Vimos que, numa narrativa, os elementos têm papéis predefinidos. O cenário situa o leitor e apresenta as regras do que é possível, o protagonista cria identificação entre o leitor e o seu objetivo, os diálogos expositivos afirmam conceitos importantes para que se mantenha a lógica interna, os conflitos conferem carga dramática (ou efeitos catárticos) à trama, o antagonista oferece oposição e dificuldade para justificar uma recompensa ao final, e por aí vai. Tudo isso, por sua vez, quando combinado e analisado do ponto de vista conceitual, serve também a um propósito que está além da narrativa. À identificação desse propósito, Motta (2005), em sua análise pragmática, deu o nome de sexto movimento, ou a identificação do fundo moral por trás da história, as metanarrativas. Sob a perspectiva da roteirização, Howard e Mabley (1999) chamam este elemento da narrativa de tema: Pode-se definir o tema como sendo o ponto de vista do escritor em relação ao material. Uma vez que é praticamente impossível escrever um roteiro, por mais frívolo que seja, sem que se tenha uma atitude em relação às pessoas e às situações criadas, toda história precisa ter um tema de algum tipo. E existe um lugar, no roteiro, onde esse tema pode invariavelmente ser percebido: na resolução. É ali que o autor revela, talvez até inconscientemente, qual a interpretação que ele ou ela deu ao material. (HOWARD; MABLEY, 1999, p. 95) O tema é o ponto de vista do escritor. É a ideia que ele defende através de um complexo arsenal de elementos narrativos, que se prestam a um papel. Os próprios personagens, tão importantes dentro do contexto narrativo, são personagens-texto, ou seja... ...a personagem, no caso, se confunde com o próprio fazer textual e não com o fazer de um ou de vários agentes, uma vez que os predicados de ação da obra se conjugam para traçar e revelar o comportamento de um texto que se define agora como o palco e o ator, o processo e o produto de um agir metalinguístico. Estamos, pois, diante de uma personagem-texto, ou de um novo sincretismo actancial, cujo objetivo agora não é o de englobar dois ou mais actantes num só ator, mas sim o de submeter os vários atores da obra à funcionalidade básica de um texto-actante, ocupado em compor a trama e a história de seu fazer textual. (SEGOLIN, 1978, p. 78) Esses personagens, cenários e acontecimentos, mesmo que façam referência a eventos reais e tenham correspondentes históricos, são aquilo que Motta (2005) chama de “figuras de papel”. Significa dizer que não importa se eles existem de fato ou não, pois sua existência na narrativa tem um objetivo metanarrativo determinado por quem escreve. Organizar uma narrativa, afinal, não é um processo aleatório, ainda que possa ser intuitivo. Aquilo que eu digo, muitas vezes, diz mais sobre mim e sobre minhas próprias intenções do que sobre quem eu digo. Existe imparcialidade? Enquanto houver escolhas a serem feitas, ao menos do ponto de vista de quem escreve, é seguro dizer que não. E no caso de um pseudodocumentário entre a realidade e a ficção, escolhido intencionalmente por sua característica dúbia, não deixemos que as possíveis implicações éticas de um contrato cognitivo entre a “verdade” e a “mentira” turvem nossa análise. Para a compreensão da narrativa em si como estrutura, não importa se ela é aquilo que as pessoas chamam de 327 “realidade” ou “ficção”. Essa conceituação, por si só, depende de uma série de escolhas, arbitrárias ou não, e variam dependendo do olhar do observador. Para a narrativa, as implicações externas daquilo que é narrado pouco importam, pois as histórias são mundos em si mesmas, e as metanarrativas – a moral da história ou a verdadeira intenção do autor – são elementos de coesão que, em maior ou menor escala, também se prestam a um papel. Afinal, como bem disse Motta: “Quem narra tem algum propósito ao narrar, nenhuma narrativa é ingênua.” (MOTTA, 2005, p. 3) Artigo produzido com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Referências DALMONTE, Edson Fernando. Narrativa Jornalística e Narrativas Sociais: Questões acerca da Representação da Realidade e Regimes de Visibilidade. In: FERREIRA, Giovandro Marcus; HOHLFELDT, Antonio; MARTINO, Luiz C.; MORAIS, Osvando J. de (orgs.), Teorias da Comunicação: trajetórias investigativas. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2010. D’ONOFRIO, Salvatore. 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Quando a realidade parece ficção, é hora de fazer mockumentary. Cienc. Cult. [online]. 2013, vol.65, n.1, pp. 60-63. ISSN 0009-6725. 328 Autobiografias do presente - Entre-Lugares de performance e enunciação em documentários contemporâneos Márcio Henrique Melo de [email protected] Andrade, Doutorando em Comunicação (UERJ), Resumo Este artigo expõe um projeto de pesquisa em andamento, que investiga como as narrativas autobiográficas no documentário contemporâneo configuram-se em relação às marcas de enunciação de seus realizadores e na presença do autor diante da câmera, compreendida como performance. Na enunciação, propõe-se um diálogo entre os estudos de autoria de Barthes (2004), da narrativa cinematográfica de Gaudreault e Jost (2009) e da opacidade de Xavier (2008), unidos pela compreensão deste conceito como explicitação da subjetividade e do processo de criação no uso de uma linguagem. Em relação à performance, procura-se uma confluência dos estudos de Klinger (2008) e Brasil (2010): no caso da primeira, como um trânsito do autor, narrador e personagem; e o segundo, como um “devir” que retroalimenta real e artificial. Ao analisar Isto não é um filme, Elena e A Imagem que Falta, pretende-se como resultado entender como estas obras imbricam as instâncias de autor, narrador e personagem de formas distintas. Palavras-Chave Documentário Autobiográfico; Enunciação Fílmica; Performance. Abstract This article presents a research project in progress, which investigates how autobiographical narratives in contemporary documentary shape in relation to enunciation marks of their directors and in the author's presence before the camera, understood as performance. In the enunciation, we propose a dialogue between authorship studies from Barthes (2004), the film narrative studies from Gaudreault and Jost (2009) and the film opacity from Xavier (2008), united by the understanding of this concept as explanation of subjectivity on the use of language. Regarding performance, we look up a confluence of studies from Klinger (2008) and Brazil (2010): in the case of the first, as an confluence between author, narrator and character; and second, as a "becoming" that feeds back real and artificial. By analyzing In film nist, Elena and L’Image Manquante, it is intended as a result understand how these works overlap the author of instances, narrator and character in different ways. Keywords Autobiographical Documentary; Filmic Enunciation; Performance. Introdução 329 O boom das tecnologias digitais vem favorecendo uma espetacularização intensa da intimidade em blogs, flogs, vlogs e redes sociais que funcionam como espaços de exposição e formação de subjetividades em formas narrativas, que ganha diversas alcunhas – narrativas e escritas de si, autoficção, autorretratos, ego-escritos etc. – em diversas vertentes artísticas – como nas graphic novels Retalhos (de Craig Thompson) e Maus (de Art Spiegelman), em livros como Berkeley em Bellagio (de João Gilberto Noll) e Stella Manhattan (de Silviano Santiago) ou no teatro com Ficção (da Cia. Hiato) e Um Torto (Grupo Magiluth). Na imbricação entre autor e personagem, estas produções dialogam com dois aspectos basilares para esta pesquisa: a enunciação fílmica e a performance. A respeito da enunciação, propõe-se, inicialmente, um diálogo entre os estudos de autoria de Barthes (2004), da narrativa cinematográfica de Gaudreault e Jost (2009) e da opacidade de Xavier (2008), unidos pela compreensão deste conceito como explicitação da subjetividade e do processo de criação da própria obra, imbricado na existência da obra e do homem por trás da mesma. Em relação à performance, procura-se, inicialmente, uma confluência dos estudos de Klinger (2008) e Brasil (2010), tangenciando textos de Sibilia (2008a; 2008b), compreendendo, inicialmente, performance como uma representação de si em um feedback entre real e artificial através de uma presença ou recriação corpórea. Estes autores aproximam performance e autoficção ao tratar da representação de si como um lugar de trânsito do autor, narrador e personagem e um ato que revela um “devir” que retroalimenta real e artificial (BRASIL, 2010) e uma necessidade de uma “autoconstrução” na visibilidade (SIBILIA, 2008b), como os documentários autobiográficos. Para esta pesquisa, optou-se focar em como se manifestam os aspectos de enunciação fílmica e de performance em documentários contemporâneos – Isto não é um filme (In Film Nist), de 2011, de Jafar Panahi e Mojtaba Mirtahmasb; Elena, (idem) de 2013, de Petra Costa; e A Imagem que Falta (L'Image manquante) de 2014, de Rithy Panh – a fim de investigar as estratégias dos autores-personagens para contar suas histórias. Acredita-se que estes filmes empregam estratégias distintas que evidenciam suas marcas de enunciação e aspectos de performance, absorvendo aspectos de artifício ao representar e experimentar com o real. Eu(s) diegético(s) – Contextualizando as nuances autobiográficas no cinema e as tênues fronteiras entre real e ficcional As chamadas “narrativas de si”, ao envolverem a reflexão “sobre o que fazemos com nós mesmos, e o que deixamos de fazer conosco” (SCHOLZE, 2007, p. 62), unem “a experiência íntima e a exposição pública, a ânsia de extravio e o rigor do compromisso com a verdade” (LEROUX, 2010, p. 260) através da linguagem. Definido inicialmente como “relato retrospectivo em prosa que alguém faz de sua própria existência” (LEJEUNE, 1998 apud PACE, 2012, p. 56), este gênero atravessa a História e abraça, hoje, tessituras que privilegiam a metamorfose e a imprevisibilidade, reconstruindo a intimidade como imagem, influenciando os trânsitos entre artifício e real. No cinema, a subjetividade e a autobiografia flertam com os “filmes-diários” de Jonas Mekas [Walden: diaries, notes and sketches (1969)], com as temáticas feministas de Su Friedrich [Sink or Swin (1990)]; e, mais recentemente, em As Praias de Agnès, 2008, Agnès Varda; Tarnation 2003, Jonathan Caouette; Uma Passagem para Mário, 2014, Eric Laurence; Os dias com ele, 330 2014, Maria Clara Escobar; dentre outros. Na ficção, Allen, Truffaut e Fellini ressignificaram reminiscências em A Era do Rádio (1987), Os Incompreendidos (1959), 8 e ½ (1963) e, no Brasil, André Novais Oliveira realiza Fantasmas (2011) e Pouco Mais de Um Mês (2013). A autobiografia no cinema enfrenta os debates sobre subjetividade no documentário e suas distinções em relação à ficção: Nichols (2005), por exemplo, considera documentários os filmes que oferecem um retrato reconhecível e intervêm nas representações do mundo, enquanto Ramos (2002) abrange as proposições lógicas e a leitura do público que definem seu “conteúdo de verdade” (p. 6) e Melo (2002) assume o equilíbrio entre subjetividade e objetividade ao definir como seus elementos fixos o discurso sobre o real, o registro in loco e o caráter autoral. Mais recentemente, Carroll (2005) concebe o termo “cinema de asserção pressuposta” como subcategoria do documentário, em que a intenção afirmativa e de sentido do cineasta reconhecem certa elasticidade no uso de estratégias como encenação, animação, materiais de arquivo etc.. Esta elasticidade relaciona-se à ficcionalização em documentários ensaísticos, mockumentaries, filmes de found footage etc. que problematizam as estratégias narrativas, a leitura do receptor etc. Se a ficção se apropria dos registros do “real” e os relatos “reais” usam do artificial, revelando cada vez mais esse espaço “êxtimo” (SIBILIA, 2008a; 2008b), nas narrativas autobiográficas, algum nível de ficcionalização emerge ao se oferecer um retrato artístico da própria existência, sendo nossa intenção tratar das imbricações entre o autor fora do filme – evidenciado nas marcas de enunciação – e o personagem que este cria de si – manifestado em uma performance. (In)Visível? – Das noções de autor e das instâncias de enunciação fílmica na autobiografia cinematográfica Nas pesquisas cinematográficas, os estudos sobre autoria e, em outro campo, enunciação fílmica resvalam em um aspecto útil neste projeto: na evidenciação da “figura do autor” dentro da própria obra. Contudo, se os estudos sobre autoria tratam mais de recorrências temáticas e estéticas em uma filmografia, a chamada enunciação fílmica apropria-se de conceitos lingüísticos para se referir à manifestação de elementos que tornam o objeto fílmico perceptível como tal ao público, ao invés do ilusionismo completo diante da tela – linhas teóricas que tangenciam estudos sobre a figura do autor em Barthes, Foucault e Bakhtin. Bakhtin (2003) percebe as incongruências entre a figura do autor – um ser em constante transformação – e o herói (personagem) – que vive uma história com início e fim: se o autor “introduz nele [o personagem] princípios de acabamento” (p. 40), no caso do herói/personagem autobiográfico, este, em teoria, permaneceria em constante construção, desviando-se da determinação. Foucault (2001), nos estudos sobre discurso, traz o conceito de função-autor como um espaço de atuação da função-sujeito, em que a autoria apresenta gradações e instâncias e resulta “de uma operação complexa que constrói um certo ser de razão que se chama autor” (p. 277. Grifo no Original), compreendido como a origem do ato criativo. Já Barthes (2004) aproxima-se do que entendemos como enunciação fílmica ao crer que autor e obra se criam ao mesmo tempo, já que “a enunciação não tem outro conteúdo (outro enunciado) para além do ato pelo qual é proferida” (p. 59), agregando ao ato criativo aspectos de performance. 331 Sobre o autor no cinema, nos anos 50/60, nasce a chamada politique des auteurs, com intelectuais (Truffaut, Godard, Jacques Rivette e André Bazin, críticos da Cahiers du Cinèma) interessados no cinema como arte e na figura do diretor (STAM, 2003) e suas recorrências estilísticas e temáticas. O crescimento desta “política” ao status de “teoria” gera críticas de Bazin (1985) sobre seu caráter valorativo e, por vezes, tendencioso, e de Caughie (2007), que, ao contrapor as visões francesa e de Bordwell sobre autoria, acredita que esta diversidade teórica evidencia justamente sua evolução. Sarris, por sua vez, contextualiza o “conjunto de forças que condicionam o artista individual” (SARRIS, 1962 apud BUSCOMBE, 2005, p. 286), Buscombe (2005) relativiza a relevância dos critérios de autoria como valor e Wollen (apud BUSCOMBE, 2005) alia a autoria aos seus estudos sobre “estruturas inconscientes”. Outros autores, como Heath (2005), compreendem o filme como discurso e arte coletiva, dialogando com a Collaborative Theory e a autoria “descentralizada” (SELLORS apud TREDGE, 2013). No documentário, a complexidade aumenta ao lidar com a auto-mise en scène dos sujeitos filmados e do cineasta com a câmera (FREIRE, 2009) e a fragilidade de critérios de “reconhecimento autoral” (SERAFIM, 2009). Todavia, para esta pesquisa, a autoria que se procura refere-se à evidenciação do sujeito criador dentro do próprio filme, identificando-se as fronteiras entre a instância autoral (entendida como enunciação) e a performance. Os relatos autobiográficos questionam cada vez mais o processo criativo: “uma relação constante é estabelecida entre o passado e o presente, e a escritura é colocada em cena” (LEJEUNE, 1998 apud PACE, 2012, p. 59), flertando com a autoficção (KLINGER, 2008) que expõe seu work in progress e “denuncia” suas marcas de enunciação. Advindo da linguística, a enunciação ganha certa complexidade na sua tradução para os estudos cinematográficos, como no caso de Bordwell (1985), que traz Wayne Booth, na literatura, e seu “implied author” para conceituar “the invisible puppeteer, not a speaker or visible presence but the omnipotent artistic figure behind the work” (p. 62), definido, no cinema, por Albert Laffay como le grand imagier, influenciando os estudos de Browne sobre o ponto de vista e de Genette sobre a “voz narrativa” e os graus de presença do narrador na diegese. Partindo do pressuposto de que não existe “narrativa sem que haja uma instância que narre” (GAUDREAULT; JOST, 2009, p. 57), o termo “grande imagista” designa o “narrador invisível” que conta uma história com imagens e sons, evidenciando sua presença mais ou menos explicitamente. Entendida como a explicitação de uma subjetividade no uso da linguagem, a enunciação fílmica aparece quando o “efeito-ficção” oferece lugar à percepção da linguagem, trazendo o autor-narrador à diegese por “vestígios linguísticos do comentador no seio de seu enunciado” (KERBRAT-ORECCHIONI apud GAUDREAULT; JOST, 2009, p. 59). Neste caso, o autor é compreendido como um “enunciador fílmico” (GADIES apud GAUDREAULT; JOST, 2009) que manipularia as “diversas matérias da expressão fílmica” (p. 74), diferente de Metz (apud GAUDREAULT; JOST, 2009), que aponta para o próprio filme como enunciador, gerando nomenclaturas distintas sobre “aquele” que olha: “Bellours answers: the subject producing the discours. Ropars: the narrator. Nash: the author. Sometimes this figure is described in linguistic terms – the ‘enunciator’ (Bellour), a ‘voice’” (Ropars) (BORDWELL; 1985, p. 24). Xavier (2008) contrapõe os conceitos de transparência – o ilusionismo do cinema clássico – e opacidade – a percepção do objeto fílmico – para tratar do apagamento ou evidenciação da instância enunciativa, mostrando o objeto fílmico como discurso e trazendo em si as marcas da sua 332 criação. Este pensamento dialoga com as proposições sobre autoria de Barthes e, certamente, apresenta muitas convergências com a escrita fílmica contemporânea que, cada vez mais, expõe sua própria carpintaria. Esta reflexividade contemporânea evidencia a “particularização do enfoque” (MESQUITA, 2007), as narrativas mais “imediatas” (BRASIL, 2010) e certa desconfiança sobre a veracidade das imagens (FELDMAN, 2008) como características de um diálogo entre documentário e ficção em que artifício e realidade parecem se entranhar mais do que se estranhar. Mesmo que o documentário, por si só, exiba marcas de enunciação mais evidentes que o cinema ficcional, o documentário reflexivo explicita o cineasta como um observador do real e o filme como representação (NICHOLS, 2005). A revelação do dispositivo (LINS, 2007; MIGLIORIN, 2005) fílmico, ao provocar acontecimentos para serem registrados pela câmera, caracteriza certa recusa do que é “representativo” de maiorias com o foco na singularidade (LINS; MESQUITA, 2008) e uma “particularização do enfoque” (MESQUITA; 2007, p. 13). Nos documentários selecionados, as marcas de enunciação evidenciam-se de formas distintas, imbricando a existência da narrativa e do homem que a cria - “dizer que quer escrever, eis, de fato, a própria matéria da escrita” (BARTHES, 2004, p. 17). Em A imagem que falta (2014), os precários e imóveis bonecos de barro reconstituem os anos de comando do Khmer Vermelho explicitando certo anti-naturalismo; em Isto não é um filme (2011), temos o exercício de criação de imagens mentais pela leitura e representação de um roteiro cinematográfico; e, em Elena (2013), as poéticas locuções em off da diretora narram uma busca que se mostra plot do documentário permeado de imagens de arquivos familiares. Performances na e para a imagem – Sobre a criação de um personagem de si mesmo no cinema autobiográfico Esta profusão de narrativas autobiográficas desvela e alimenta a formação de subjetividades num exercício de se “autoconstruir” na visibilidade: “hoy la esfera íntima se convierte em uma espécie de escenario donde cada uno debe montar el espectáculo de su propia personalidade” (SIBILIA, 2008b, p. 35). Representa-se cada vez menos o coletivo diante da quantidade imensa de informações, restando as experiências particulares com o mundo e a aproximação entre arte e vida. No documentário, compreendê-lo como experiência influencia na tentativa de obter novos “efeitos de verdade” (FELDMAN; 2012, p. 21) ou “efeitos de real” (JAGUARIBE, 2007 apud SILVA, 2013) mais conectados à nossa “desconfiança” sobre a imagem: ensaísmo, uso de imagens amadoras, valorização do processo, abertura da cena à sua não-realização, práticas confessionais, autoficção, performance de si, dentre outras. Esta tendência influencia na concepção de personagens de si em obras autobiográficas, apresentando aspectos diametralmente opostos a definições anteriores. Durante muito tempo, os romancistas desenvolviam personagens com contornos mais definidos em relação ao caos da vida. Esta tradição do personagem como modelo a ser imitado data desde as teorizações aristotélicas até a Idade Média, evoluindo, na Modernidade, para uma “visão psicologizante” (BRAIT, 1985, p.38) do indivíduo comum. No cinema, a narrativa clássica ficcional foca em princípios totalizantes como a criação de vida interior e exterior, ação, ponto de vista etc. (FIELD, 2009) e, no documentário, a criação do personagem a partir do entrevistado enfatiza a indeterminação e fragmentação (PINTO, 2006). Em documentários 333 subjetivos, a “pessoa” do cineasta se mistura à “personagem” criada pelo documentarista, manifestando três versões de si (LINS; MESQUITA, 2008; AVELLAR, 2007), questionando o processo criativo e a representação pelo filme. A nomenclatura de Nichols (2005) de documentários performáticos abrange “licenças poéticas, estruturas narrativas menos convencionais e formas de representação mais subjetivas” (p. 170) em contraponto à representação dita realista – mas crê-se necessário delimitar melhor o conceito de performance que se evidencia nestas definições que se pretendem abranger. Na criação de um personagem de si, estas indeterminação, “inacabamento” e fragmentação se mostram basilares para uma maior adequação às demandas de “verdade” contemporâneas. Klinger (2008) aproxima a autoficção à performance – nas teorias do teatro e artes cênicas, por exemplo, significando “atuação”, “desempenho” etc. –, alimentando as indistinções entre real e ficcional como um lugar de trânsito do autor, narrador e personagem numa mesma “figura”. Aparecendo, em alguns autores, em suas relações com o corpo e suas possibilidades poéticas, a performance pode ser tanto compreendida como “ação oral-auditiva complexa, pela qual uma mensagem poética é simultaneamente transmitida e percebida” (ZUMTHOR, 1993, p. 222) como se relacionar aos gestos e ações cotidianas dos sujeitos com o espaço da “cena”, o mundo “real” em volta e suas instâncias de encenação – além das múltiplas configurações entre um extremo e outro. Ao denunciar o sujeito enunciador e um constante “inacabamento” artístico, o caráter performático na autobiografia a transforma “numa forma discursiva que ao mesmo tempo exibe o sujeito e o questiona” (KLINGER; 2008, p. 26). Diante da saturação de representações mediadas, este questionamento valoriza as experiências vividas e as estéticas fragmentadas e “sujas” dos relatos amadores (SILVA, 2013). Esta gradativa indistinção entre os limites entre pessoa e personagem evidencia também um “apelo realista” (FELDMAN, 2008) que simboliza a tentativa de “reengajamento” e “reintegração” dos sujeitos à realidade, reduzida, contudo, a uma “performance comportamental” (p. 66) tornada capital pessoal a ser administrado, atualizado e tornado visível. Reality shows, vídeos amadores, vlogs, flogs etc. caracterizam a performance como uma reinvenção dos sujeitos em um espetáculo aberto ao descontrole do real. Ao “colocar a vida em jogo”, as imagens tornam-se lugares de experiências aparentemente reais e imediatas (instantâneas e sem mediação) que absorvem o artifício e tornam-no “real”, alinhado às potencialidades de existência como forma de “concretizar” este desejo de vir a ser (BRASIL, 2010). Nos documentários em análise, sua instância enunciativa e a performance como um espaço de formação de subjetividades em transformação aparecem de formas distintas: enquanto Elena (2013) permeia imagens amadoras e performance de si; L’Image Manquante (2013) envolve práticas confessionais aliadas a reconstituições com bonecos (que podem ser questionados como performance); In film nist (2011) mescla performance de si, abertura da cena à sua nãorealização a um relato do presente e ficcional. Metodologia Para esta pesquisa, procura-se uma abordagem qualitativa imbuída da visão do pesquisador (TRIVIÑOS, 1987), um enfoque fenomenológico, descrevendo e interpretando o fenômeno em um contexto mais imediato e um método observacional num nível exploratório que considere 334 métodos mais flexíveis de pesquisa (GIL, 1989). Quanto ao tipo de pesquisa, escolhe-se o “modelo clássico de pesquisa” (idem, p. 46) equilibrado entre objetividade e subjetividade, empregando estudo comparativo de casos e suas relações de aproximação e distanciamento (TRIVIÑOS, 1987). Para a análise e a interpretação, pretende-se usar as bases da análise fílmica (VANOYE; GOLIOT-LÉTÉ, 1994; AUMONT; MARIE, 2004), cruzando-a à especificidade da análise de imagens em movimento (ROSE, 2008), nas seguintes etapas: a) Seleção – construção de amostra; b) Transcrição – descrição das amostras; c) Codificação – definição das características dos objetos de acordo com indicadores; d) Apresentação das informações – descrição, interpretação e generalização das informações. Resultados esperados Como resultado, espera-se obter uma análise sobre as aproximações e distanciamentos entre as evidenciações das marcas de enunciação e aspectos de performance nos documentários com nuances autobiográficas, compreendendo como estes absorvem aspectos de artifício em suas propostas de representar e experimentar com o real, explicitando a figura do autorpersonagem e seu processo criativo no próprio filme. Em seu alinhamento a estudos mais “clássicos”, este projeto procura aprofundar aspectos dos modos performático e reflexivo de Bill Nichols, dos autorretratos de Raymond Bellour e, tangencialmente, das fronteiras entre documentário e ficção de Fernão Pessoa Ramos. Além destas teorias já sedimentadas, este projeto encaixa-se em uma série de estudos ainda em processo realizados em artigos, dissertações e teses que fazem emergir panoramas temáticos e estéticos do documentário contemporâneo (FELDMAN, 2012; SILVA, 2013); estudos sobre documentários de dispositivo (LINS, 2007; MIGLIORIN, 2005), a profusão de imagens amadoras (BRASIL, 2010; FELDMAN, 2008) e a autobiografia no documentário (FREIRE, 2003; TEIXEIRA, 2003), por exemplo. Neste contexto, pretende-se conceber um estado da arte sobre autobiografias no cinema e analisar os tangenciamentos entre a enunciação fílmica e a performance – recortes pouco explorados em comparação aos estudos que se sustentam na autobiografia literária, no ensaísmo e no dispositivo, por exemplo. Em relação à relevância deste estudo, sua verticalização em aspectos macro do documentário contemporâneo pode contribuir na categorização de marcas da enunciação e da performance e possibilitar novas taxionomias, debates e a compreensão de outras recorrências temáticas e estéticas através de prismas ainda em fase embrionária de análise. Quanto à originalidade, crêse que, a partir de autores pouco citados em conjunto (Barthes, Xavier, Klinger, Brasil etc.) e da análise de um objeto em constante transformação, este foco exibe aspectos distintos nos estudos fílmicos, narratológicos e autobiográficos sobre documentário a partir de filmes que representam olhares recentes sobre um gênero que se reinventa em suas ficcionalizações mínimas e máximas. Referências AUMONT, Jacques; MARIE, Michel. A análise do filme. Lisboa: Edições Texto e Grafia, 2004. 335 AVELLAR, José Carlos. A realidade como crítica de cinema – O cinema como crítica da realidade. In: Roberto Moreira S. Cruz. (Org.). 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Petra Costa, Brasil, 2013, DVD. 338 O Cine-Olho e sua pertinência contemporânea Flávia Campos Junqueira, Doutoranda da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), [email protected] Resumo Em 2014 o filme Um homem com uma câmera, de Dziga Vertov (1929), foi eleito o melhor documentário de todos os tempos pela revista britânica Sight & Sound. Mas por que tal obra pode ser ainda pertinente quase um século depois? Mais que surpreender olhares acostumados a efeitos computacionais, sua montagem nos ajuda a observar que características pensadas inicialmente como recursos estéticos de uma linguagem artística podem extrapolar o campo da arte e transformar nossa forma de perceber o mundo. Se Vertov afirma que graças ao Cine-Olho podíamos construir o homem ideal, adaptado à realidade à sua volta, hoje a tecnologia digital nos permite construir quantos eus quisermos, adaptados a qualquer situação. Embasados nos conceitos de dispositivo e contemporâneo de Giorgio Agamben, pretendemos discutir como a ideia de montagem, levada a cabo no cinema, foi radicalizada e tornou-se uma forte característica na subjetividade contemporânea. Palavras-chave: Cine-Olho; Montagem; Vertov; Dispositivo; Contemporâneo; Abstract In 2014 Dziga Vertov’s film, ‘Man with a movie camera’ (1929), was named best documentary of all time by the british magazine Sight & Sound. But why such a work can be still relevant nearly a century later? More than surprise looks accustomed to computer effects, its editing helps us to see that features, initially thought as aesthetic features of an artistic language, can extrapolate the field of art and transform the way we perceive the world. If Vertov says that thanks to the "Kino-Eye" could build the ideal man, adapted to the reality around him, today the digital technology allows us to build as many selves as we want, adapted to any situation. Founded on Giorgio Agamben ‘s concepts of Dispositif and Contemporary, we plan to discuss how the editing was radicalized and became a strong feature in contemporary subjectivity. Keywords: Kino-eye; Editing; Vertov; Dispositif; Contemporary; Introdução Construímos, contemporaneamente, nossa compreensão do mundo por meio de ferramentas que permitem basicamente uma busca não-linear a partir de diferentes fontes, que podem ser verbais, audiovisuais, materiais ou virtuais. A formação intelectual de hoje vem não apenas dos livros pedagógicos, mas também da televisão, da internet ou de videogames. O conhecimento nasce a partir da construção dos dados oriundos de diferentes meios e, com isto, o receptor 339 seleciona o que lhe é ou não interessante, acumulando ou eliminando dados de acordo com sua seleção. Desta forma, nossa percepção se configura como alinear e dispersa, fragmentada. A navegação abstrata em paisagens de informações e conhecimentos, a criação de grupos de trabalhos virtuais em escala mundial, as inúmeras formas de interação possíveis e os mundos virtuais criam uma enorme quantidade de desempenhos inovadores. O virtual hoje não seria mais um mundo paralelo, no qual “entramos”, mas que está projetado na realidade. Vivemos rodeados pela web, nossa comunicação hoje se dá quase toda por meio dela; a todo tempo informações são enviadas e o retorno é instantâneo. A escolha de Vertov se justifica pela ainda atual importância do filme Um homem com uma câmera, de 1929. Em 2014 ele foi eleito o melhor documentário de todos os tempos por um júri de especialistas, entre cineastas, curadores e críticos de cinema, reunidos pela revista britânica Sight & Sound do British Film Institute89. Dos trezentos integrantes do corpo jurado, cem votaram em Um homem com uma câmera. Esta foi a primeira vez que a Sight & Sound, que tradicionalmente elege os melhores filmes, fez uma pesquisa específica para este gênero. Até então o filme de Vertov aparecia entre os dez primeiros da lista. Fato é que a quase centenária obra parece estar ainda très-em-forme, não só para o cinema, mas também para tomarmos um olhar mais distanciado sobre o contemporâneo e a subjetividade fragmentada. A Modernidade, a montagem e o olhar construtor Entre os séculos XIX e XX, diversas mudanças puderam ser observadas decorrentes da industrialização e urbanização que avançavam a todo vapor. Enquanto as fábricas produziam bens de consumo em larga escala, as cidades atraíam trabalhadores do campo que vislumbravam melhores perspectivas de vida. A velocidade da produção fabril ecoava nas ruas com os primeiros automóveis e bondes elétricos, assim como as informações ressoavam por todos os lados por meio de jornais ilustrados, cartazes publicitários, da fotografia e do cinema. Neste contexto, a atenção da população obrigatoriamente teve de se tornar mais perspicaz. Georg Simmel (1979), Walter Benjamin (1994) e Siegfried Kracauer (2009) entendiam a modernidade como um momento em que a experiência subjetiva foi fortemente intensificada por estímulos. As cidades eram então repletas de imagens, cartazes, jornais ilustrados, além da velocidade que se impunha sobre a população através de seus bondes elétricos e logo depois os automóveis. Compartilhamos com Ben Singer o pensamento de que prevaleceram três ideias de modernidade: Como um conceito moral e político, a modernidade sugere o “desamparo ideológico” de um mundo pós-sagrado e pós-feudal no qual todas as normas e valores estão sujeitos ao questionamento. Como um conceito cognitivo, a modernidade aponta para o surgimento da racionalidade instrumental como a moldura intelectual por meio da qual o mundo é percebido e construído. Como um conceito socioeconômico, a modernidade designa uma grande quantidade de mudanças tecnológicas e sociais que tomaram forma nos últimos dois séculos e alcançaram um volume crítico perto do fim do século 89 Sight & Sound. British Film Institute. Disponível em: <http://www.bfi.org.uk/sight-sound-magazine/greatest-docs>. Acesso em: 06 jul. 2015. 340 XIX: industrialização, urbanização e crescimento populacional rápidos; proliferação de novas tecnologias e meios de transporte; saturação do capitalismo avançado; explosão de uma cultura de consumo de massa e assim por diante. (SINGER, 2004, p. 95). Para Simmel, Benjamin e Kracauer, porém, havia uma quarta definição, que seria uma “concepção neurológica da modernidade” (Ibid.). Para eles, a modernidade traduzia um novo registro da experiência subjetiva, desenvolvido em meio aos choques90 vividos nas cidades naquele período. Para melhor embasar nossa escolha pela linguagem cinematográfica, recorremos a Benjamin, que viu o cinema como a característica marcante do século em que a reprodutibilidade gerou novos conceitos para a obra de arte e permitiu mudanças na cognição do homem no início do século XX. O filme serve para exercitar o homem nas novas percepções e reações exigidas por um aparelho técnico cujo papel cresce cada vez mais em sua vida cotidiana. Fazer do gigantesco aparelho técnico do nosso tempo o objeto das inervações humanas – é essa a tarefa histórica cuja realização dá ao cinema o seu verdadeiro sentido (BENJAMIN, 1994, p.174). A ideia de montagem veio primeiro da indústria, das linhas de produção. Apesar de estar presente em outras artes, no cinema a montagem é um procedimento essencial, e a passagem de uma imagem à próxima, ou seja, a diferença entre um plano e outro pode ser enfatizada a fim de criar tensões (XAVIER, 2005). Nesse contexto a montagem tornou-se para muitos vanguardistas um campo livre, aberto a experimentações, e podemos dizer que Vertov foi um dos expoentes com sua montagem por associações e contrastes, conectando imagens como um princípio musical e, desta maneira, criando tensões. Montar significa, para ele, organizar os pedaços filmados (as imagens) num filme, ‘escrever’ o filme por meio das imagens filmadas, e não escolher pedaços de filmes para fazer ‘cenas’ (desvio teatral) ou pedaços filmados para construir legendas (desvio literário). Todo “Cine-Olho” está em montagem desde o momento em que se escolhe o tema até a edição definitiva do material, isto é, ele é montagem durante todo o processo de sua fabricação (VERTOV, 1983, p. 263)91. Não podemos falar do cinema russo de experimentação deixando de lado o momento histórico no qual está inserido. O período era de transição do regime capitalista para o comunista e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) preocupava-se com a estruturação de uma sociedade mais igualitária. O país estava conturbado pela Primeira Guerra Mundial e empenhava-se em sua reconstrução. A cultura foi decisiva para a difusão das ideias partidárias (FIGUEIRA LEAL e PEQUENO, 2009, p. 37). Lênin viu no cinema o meio ideal para propaganda política, visto que era extremamente popular e, principalmente, atingia a todos sem exclusão, pois o índice de analfabetismo no 90 Assumimos a ideia benjaminiana de vivência de choque. Para Benjamin, nas palavras de Leo Charney (2004, p. 323), “a irrupção da modernidade surgiu nesse afastamento da experiência concebida como uma acumulação contínua em direção a uma experiência de choques momentâneos que bombardearam e fragmentaram a experiência subjetiva como granadas de mão”. 91 O Cine-Olho (Kino-glaz no original) foi expressão criada por Vertov a partir de uma combinação de palavras. Em 1922, ele, a montadora e também sua esposa, Elizaveta Svilova, e seu irmão Mikhail Kaufman deram origem ao “Conselho dos três”, no qual propuseram o manifesto Kinoks: uma revolução. A expressão Kinoks também seria derivada da combinação de Kino – cinema ou filme – e oko – termo poetizado para olho. 341 período era grande. Além disso, a ideia do cinema como um meio essencialmente moderno também ajudava no discurso de desenvolvimento industrial, contra uma Rússia atrasada. O Estado, portanto, investiu altos recursos na produção cinematográfica do país. Movido por tais ideias, Vertov percebeu a montagem como o lugar no qual a experimentação da linguagem cinematográfica poderia ser plenamente desenvolvida. Benjamin (1994, p. 178) chega a dizer que o cinema enquanto obra de arte surge por meio da montagem, “na qual cada fragmento é a reprodução de um acontecimento que nem constitui em si uma obra de arte, nem engendra uma obra de arte, ao ser filmado”. Para Dziga Vertov, a montagem é a expressão máxima da construção do comunismo, da vida moderna e do olhar sobre sua nova realidade. Lev Manovich coloca a montagem como o que constitui o próprio método do filme. Sobre a obra Um homem com uma câmera, Manovich (2000, p. 210) afirma que Vertov, por meio da montagem, criou relações entre as tomadas, ordenando e reordenando a fim de criar uma nova perspectiva para o mundo. O retrato da vida moderna se constrói a partir de arranjos de imagens captadas no cotidiano, tornando-se, mais do que isso, um argumento da vida do período. O processo de montagem para Vertov, que se dava em todas as etapas da realização do filme, era pensado pelo princípio do Cine-Olho, que seria “a possibilidade de tornar visível o invisível, [...] a fusão de ciência e de atualidades cinematográficas” (VERTOV, 1983, p. 262). Ainda que tivesse o cinema como um instrumento técnico para construção social, o engajamento dos artistas na construção do novo estado, no entanto, extrapolou sua dimensão prática e tornouse questão estética e conceitual. A ideia de construção lançou-se num projeto maior, deixando de ser apenas um mero recurso retórico e tornando-se o movimento estético que moldou a nova cultura soviética durante os anos 20. As artes diversas possuíam um idioma comum “que refletia a necessidade de reconstrução do todo do organismo social, estabelecendo um forte equilíbrio entre arte e sociedade” (VIEIRA, 2004, p. 19). O movimento de ruptura aos padrões clássicos da arte proposto pelas diversas vanguardas do período crescia em diferentes frentes ao mesmo tempo – como o Futurismo e o Dadaísmo, por exemplo – e da apologia à velocidade e ao ritmo intenso da cidade surgiu o Construtivismo. Com uma vocação tecnológica, o Construtivismo tinha o cinema como o meio de representação e expressão da vida moderna, capaz de levar ao homem uma nova percepção de mundo, condizente com o cotidiano que agora o circundava. A ideia de construção estava também na nova política socialista e na reconstrução econômica e industrial pós-Primeira Guerra. O país tinha que concentrar suas forças na geração de energia elétrica, na construção de linhas de trens, e no fortalecimento da agricultura a partir de sua mecanização, investindo na produção do maquinário necessário para isto. João Luiz Vieira (2004, p. 20) nos explica que foi “dentro desse panorama geral que se desenvolveu o trabalho cultural, e artistas, escritores e cineastas, num esforço inédito e coletivo, dirigiram suas atenções e energias para a construção da então nova sociedade”. O papel do artista ganhou novos contornos pela ideia de “artista-engenheiro”, delineando a síntese entre arte e tecnologia. 342 Vertov contemporâneo e o cinema como dispositivo Ao propor um manifesto em 1922, Dziga Vertov afirmou que com o Cine-Olho era possível construir o homem ideal, em compasso com seu tempo. Hoje podemos construir múltiplas identidades, que são continuamente transformadas em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam (HALL, 2006). Podemos dizer que a ideia de montagem fragmentada de Vertov, foi radicalizada e tornou-se uma forte característica na subjetividade coeva, fazendo com que sua obra permaneça atual. Para embasarmos a ideia de Vertov contemporâneo, lançamos mão do conceito trabalhado por Giorgio Agamben. A contemporaneidade é, para o filósofo italiano, uma singular relação com o próprio tempo, que pega-se a este e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias. Embasado em Nietzsche, ele diz que: mais precisamente, essa é a relação com o tempo que a este adere através de uma dissociação e um anacronismo. Aqueles que coincidem muito plenamente com a época, que em todos os aspectos a este aderem perfeitamente, não são contemporâneos porque, exatamente por isso, não conseguem vê-la, não podem manter fixo o olhar sobre ela (AGAMBEN, 2009, p. 59). Agamben aprofunda a definição explicando que, para ser contemporâneo, é fundamental manter o olhar fixo em seu tempo para perceber justamente seus pontos nebulosos, ou em suas palavras “perceber o escuro”. Tal percepção é igualada a um ato de coragem, visto que necessita de uma habilidade particular do sujeito, para “perceber neste escuro uma luz que, dirigida para nós, distancia-se infinitamente de nós. Ou ainda: ser pontual num compromisso que se pode apenas faltar” (AGAMBEN, 2009, p. 65). Ao trazer esta poética definição, ele mesmo reconhece que não é uma tarefa fácil e, justamente por isso, os contemporâneos são raros. Perceber no escuro o devir que ao mesmo tempo já foi, “reconhecer nas trevas do presente a luz que, sem nunca poder nos alcançar, está perenemente em viagem até nós” (AGAMBEN, 2009, p. 66). Tomados por tais perspectivas, podemos dizer que o cineasta Dziga Vertov trazia as questões de um homem contemporâneo em um momento em que a modernidade implicava grandes transformações práticas e que, além de tudo, ele era plenamente consciente de que a relação do homem com o cinema levaria a transformações ainda mais profundas. Um homem com uma câmera, seu mais conhecido filme, permanece contemporâneo ao identificarmos nele, mais que as questões vividas nas cidades em sua montagem fragmentada, uma relação com nossa subjetividade atual que o coloca “na forma de um limiar inapreensível entre o ‘ainda não’ e um ‘não mais’ (AGAMBEN, 2009, p. 67). Vertov sabia que a relação do homem com sua nova realidade levaria a uma mudança na sua percepção. Ainda com Agamben, o autor apresenta duas definições de dispositivo e ambas são importantes para compreendermos a contemporaneidade de Vertov. Primeiro, baseado em Foucault, o autor italiano afirma que todo dispositivo cumpre uma função estratégica para responder a uma urgência do momento histórico e que, por isso, estaria sempre inserido num jogo de poder. Resumindo três pontos principais sobre dispositivo em Foucault, Agamben coloca: 343 a. É um conjunto heterogêneo, linguístico e não-linguístico, que inclui virtualmente qualquer coisa no mesmo título: discursos, instituições, edifícios, leis, medidas de polícia, proposições filosóficas, etc. O dispositivo em si mesmo é a rede que se estabelece entre esses elementos. b. O dispositivo tem sempre uma função estratégica concreta e se inscreve sempre numa relação de poder. c. Como tal, resulta do cruzamento de relações de poder e de relações de saber (AGAMBEN, 2009, p. 29). Revisitando o que falamos até aqui, mantemos em mente que o cinema seria o meio que melhor representaria o momento de crescimento das cidades, captando o ritmo frenético ao qual nossos sentidos não estavam acostumados até então. A montagem ajudava na construção do homem ideal, política e socialmente falando. Fica clara a função estratégica que Vertov dá ao cinema, colocando-o como dispositivo. Dando sequência ao pensamento, Agamben propõe vermos os dispositivos em relação com os seres viventes e, como resultado, enxergaremos o sujeito. Este segundo ponto de vista é possível graças a um movimento necessário de afastamento. Quase um século depois do manifesto dos Kinoks, temos uma multiplicidade infinitamente maior de dispositivos, e podemos perceber como marcas da subjetividade contemporânea, características que antes estavam apenas no campo estético. E como afirmamos acima, Vertov sabia que as consequências de sua obra poderiam ser bem mais profundas. Em suas palavras notamos como ele associa a importância da linguagem assumida por ele a um novo olhar: “O meu caminho leva à criação de uma percepção nova de mundo. Eis porque decifro de modo diverso um mundo que vos é desconhecido” (VERTOV, 1983, p.256). Como afirma Agamben (2009, p. 41), um mesmo indivíduo pode ser lugar dos múltiplos processos de subjetivação. Com a pluralidade de dispositivos, a ideia de montagem foi radicalizada e podemos construir diversas identidades, de forma totalmente fragmentada. E retornamos a Benjamin para lembrar que a montagem no cinema foi fator responsável pela reestruturação do olhar à medida que a imagem no filme [...] não pode ser fixada, nem como um quadro, nem como algo de real. A associação de ideias do espectador é interrompida imediatamente, com a mudança da imagem. Nisso se baseia o efeito de choque provocado pelo cinema, que, como qualquer outro choque, precisa ser interceptado por uma atenção aguda. O cinema é a forma de arte correspondente aos perigos existentes mais intensos com os quais se confronta o homem contemporâneo (BENJAMIN, 1994, p. 192, grifo do autor). Benjamin falava da vivência do choque, reproduzida visualmente no cinema através da montagem descontínua e do tempo fragmentado dos filmes de vanguarda, como experiência moderna por excelência. Mas o que queremos dizer quando afirmamos que nossa subjetividade está transformada e nossa identidade fragmentada? A conexão possibilitou novas formas de interação e comunicação com o mundo. Temos hoje diferentes formas de “estarmos presentes” virtualmente por meio dos perfis criados, seja em aplicativos, redes sociais, conta de e-mail ou simplesmente em um cadastro de site notícias, estamos constantemente construindo uma identidade múltipla, que talvez dificilmente poderá ser vista por completo, pois nunca cessará de expandir. 344 Podemos agora compreender melhor porque voltamos quase cem anos no tempo para debater uma questão que se iniciou ao falar sobre a atualidade. Vertov, com a obra Um homem com uma câmera, foi um dos “artistas-antena” de sua época que melhor captaram o rumo que a arte tomava diante do avanço material. Ele conseguiu, no calor das transformações, perceber o cinema como meio moderno por excelência e, principalmente, experimentar todos os seus recursos, construindo uma linguagem própria e condizente com seu tempo. Aprofundando mais a questão, o distanciamento de Vertov, a consciência da potencialidade estética do cinema e a noção de que toda obra de arte é manipulada foi essencial para que lidássemos hoje com a ideia de obra potencialmente manipulável, não só pelo autor mas por qualquer pessoa ou por softwares. Consideramos, portanto, que a linguagem criada por Vertov atravessou gerações até encontrar na tecnologia digital um meio no qual suas possibilidades são radicalizadas e suas principais características deixaram de ser um privilégio artístico e se tornaram usuais no cotidiano da população, como uma percepção consolidada. Considerações finais Podemos afirmar então que, no auge da modernidade, o sujeito pós-moderno foi percebido, avant la lettre, por homens, acima de tudo, contemporâneos, cada um em seu tempo e dele distanciados. Aqueles que procuraram pensar a contemporaneidade puderam fazê-lo apenas com a condição de cindi-la em mais tempos, de introduzir no tempo uma essencial desomogeneidade. Quem pode dizer: “o meu tempo” divide o tempo, escreve neste uma cesura e uma descontinuidade; e, no entanto, exatamente através dessa cesura, dessa interpolação do presente na homogeneidade inerte do tempo linear, o contemporâneo coloca em ação uma relação especial entre os tempos (AGAMBEN, 2009, p. 71). A contemporaneidade, para Agamben, tem uma relação especial com o passado, e também com o futuro, o lugar do “não mais” e do “ainda não”. Por estar nesta posição, ela lança mão do passado a todo momento, reaproveitando-o da maneira que melhor convém, e depositando no presente a inevitável presença do arcaico, como um movimento que nunca cessará. Se a contemporaneidade é assim definida, podemos concordar com a afirmação de que, ser contemporâneo é, portanto, perceber os vestígios do arcaico no moderno (AGAMBEN, 2009, p. 69), mas também ter em mente que nossa relação com tais vestígios, ressignificados, influenciará nossa percepção do mundo, implicando um vínculo também com o futuro. No fim do texto, coroando a assertiva do Benjamin contemporâneo, o autor italiano afirma que: o contemporâneo não é apenas aquele que, percebendo o escuro do presente, nele apreende a resoluta luz; é também aquele que, dividindo e interpolando o tempo, está à altura de transformá-lo e de colocá-lo em relação com os outros tempos, de nele ler de modo inédito a história, de “citá-la” segundo uma necessidade que não provém de maneira nenhuma do seu arbítrio, mas de uma exigência à qual ele não pode responder. [...] É algo do gênero que devia ter em mente Michel Foucault quando escrevia que as suas perquirições históricas sobre o passado são apenas a sobra trazida pela sua interrogação teórica do presente. E Walter Benjamin, 345 quando escrevia que o índice histórico contido nas imagens do passado mostra que estas alcançarão sua legibilidade somente num determinado momento de sua história (AGAMBEN, 2009, p. 72). Pelo mesmo viés, podemos dizer que Vertov, consciente das potencialidades do cinema, utilizou seus recursos ao máximo, criando com uma linguagem própria um novo olhar sobre seu tempo. Em outras palavras, ele transformou seu tempo ao colocá-lo em relação com o futuro e permanece, portanto, contemporâneo. Por enquanto, fica a admiração ainda atual por Vertov, muito mais que sobrevivente, contemporâneo de seu tempo. Referências bibliográficas: AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Tradutor Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó, SC: Argos, 2009. BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: ______, Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras escolhidas v.1. São Paulo: Brasiliense, 1994. CHARNEY, Leo. Num instante: o cinema e a filosofia da modernidade. In: ______ e SCHWARTZ, Vanessa R. O cinema e a invenção da vida moderna. São Paulo: Cosac & Naify, 2004. FIGUEIRA LEAL, Paulo Roberto; PEQUENO, Laura. Vertov: política e cinema na URSS do anos 1920. In: PERNISA JUNIOR, Carlos. Vertov: o homem e sua câmera. Rio de Janeiro: Mauad X, 2009. HALL, Stuart. Identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2006. KRACAUER, Siegfried. O ornamento da massa. São Paulo: Cosac Naify, 2009. MANOVICH, Lev. The language of new media. Cambridge, Mass: Mit Press, 2000. SIMMEL, Georg. A metrópole e a vida mental. In: VELHO, Otávio Guilherme. O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979. SINGER, Ben. Modernidade, hiperestímulo e o início do sensacionalismo popular. In: CHARNEY, Leo e SCHWARTZ, Vanessa R. O cinema e a invenção da vida moderna. São Paulo: Cosac & Naify, 2004. VERTOV, Dziga. Nós – variação do manifesto. In: XAVIER, Ismail. A experiência do cinema. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1983. VIEIRA, João Luiz. Vanguarda cinematográfica: Eisenstein, Vertov e o construtivismo cinematográfico. Recine: Revista do Festival Internacional de Cinema de Arquivo, Rio de Janeiro, ano 1, nº 1, p. 16-25. Setembro de 2004. XAVIER, Ismail. Especificidades da montagem. 2005. Disponível <http://heco.com.br/montagem/entrevistas/05_02.php>. Acesso em: 21 abr. 2010. 346 em: SESSÃO 2 - PAINEL DE GRUPOS DE PESQUISA Painel1 - Pesquisadores e Grupos de Pesquisa do GERE [Núcleo de Estudos de Gênero, Raça e Etnia] no VI Seminário de Roteiristas da Universidade Presbiteriana Mackenzie Questionamentos Para Um Sistema De Poder: Permanências e Continuidades Aluno: Guilherme Franco Pinto (graduação), [email protected] Orientador: Prof.ª Drª. Rosana Schwartz Resumo Este ensaio visa discutir estereótipos e preconceitos permanentes inseridos na sociedade atual. Refletir a partir do clipe musical da banda Arcade Fire: “We Exist”, polêmicas acerca do ator/personagem que participou do clipe e o contexto social em que ele está inserido. Debater questões de gênero, relações de poder e a continuidade de comportamentos preconceituosos construídos pelo processo civilizatório de cada sociedade. Palavras-chave: preconceito; estereótipo; filosofia; Arcade Fire; música. Introdução Por que somos preconceituosos? Nunca nos perguntamos qual o sentido em ter esse comportamento. Impostos culturalmente dentro das relações de poder e seguimos o fluxo. Quando crianças não há questionamentos, apenas aceitamos relações de gênero criados e recriados durante a história de cada sociedade, grupo ou indivíduos. Acabamos por entrar no cruel sistema de divisão sexual, do menino tem que ser isso e a menina tem que ser aquilo. Não há espaço nem tempo para derivar, o ciclo da escravidão de estereótipos permanente na vida cotidiana. É muito forte e cômodo não questionar e manter o poder, do que tentar transformar-se e entender a realidade de outro. PODER Acredito que o ser humano, por meio de seu comportamento cotidiano revela processos colonizadores e impositores. Tem a sina de viver para – e por - adquirir poder, inserir no social e manter estruturas construídas no passado/presente. Podemos observar a todo instante como vivemos em função da relação de superioridade. Invariavelmente queremos a melhor qualidade de vida, melhores produtos, melhor reputação, ser desejável e sensual, para podermos mostrar que somos superiores e adaptados ao sistema. Por meio do contexto midiático social em que vivemos, a hipermodernidade, entre açougues de beleza e caçadores de prazer, questiona-se dois 347 problemas: poder ser “quem quiser” e estar perto de todos mas longe ao mesmo tempo. Com isso, o superficialismo, o efêmero, a liquidez da modernidade, e o controle da realidade acabam se inserindo cada vez mais em meio à nossa vivência. O ser humano hipermoderno perdeu a capacidade do toque e do relacionamento social do passado. A cada dia transformamos nossas sociabilidades. O antissocial e neurótico se concretiza, a maioria das pessoas, segundo o professor David Schlesinger, consegue se concentrar em um mesmo assunto por no máximo 45 minutos a uma hora. Queremos tudo para agora e do jeito osmótico que nos é imposto pela grande massa técno-comunicativa. Cada vez mais nos inserimos num sistema de existência linear, constante e subjugado, mesmo vivendo em um mundo de hiperlinks. A maior parte da população não quer um relacionamento sério ou um contato emocional, são carentes, mas carentes de uma lógica. “O amor líquido visava junto à modernidade líquida.” (BAUMAN). A tecnologia e o contexto midiático e comportamental imposto a nós por nós mesmos nos coloca facilmente manipulados e sem a criação de uma opinião subjetiva. Será que voltamos para o status anterior do ciclo de alienação? Estamos no Planeta Terra há mais ou menos 500 mil anos e não conseguimos viver em um ambiente harmônico e de igualdade, insistimos na vivência em meio a guerras e lutas por controle, sempre há uma classe dominante. Será o “Homem o lobo do Homem”, como Hobbes afirmou no longínquo século XVII? (Estar em um ambiente de justiça e equidade emocional são argumentos muito fracos para a conjuntura humana atual.) “Aquietar-se” em uma isonomia social é uma utopia para os habitantes desse planeta. É necessário nos reconhecer como sujeitos dotados de políticos e assim interferir e inferir no meio no qual estamos supostamente presentes. “Dependentes emocionais somos todos nós, homens e mulheres, quer nas relações amorosas, quer nas relações de amizade.” (SAFFIOTI, 1999, p.1) O ser humano precisa entender a sua complexidade e usar a individualidade para seu crescimento e transformar padrões preconceituosos estabelecidos pelo tempo. Se padrões foram construídos, eles podem ser desconstruídos. Dessa forma, complementar, feminino e masculino podem ser modificados. QUESTIONAR E DESCONSTRUIR Com a imposição do comportamento social de que é necessário “ser isso ou aquilo”, acabamos sem o trabalho emocional e afetivo, crescemos e nos tornamos fracos para conviver na sociedade, uma auto cilada desse sistema de construção de autoridade. É necessário ensinar a questionar e não simplesmente aceitar padrões tradicionais que foram criados na e pela história, portanto passíveis de transformação. Questiona-se um relacionamento tradicional. Ser gay ou transexual é “estranho” e “pecado”? É necessário desconstruir o entendimento do fixo, e não somente na visão de um, mas sim a conduta e visão do máximo possível de pessoas, um transexual pode não ter nascido mulher, mas pode se tornar mulher e, acima disso, entender que o fato de haver tido a Redesignação Sexual não diminui em nada o fato de ser humano. “Ninguém nasce mulher, torna-se mulher.” (BEAUVOIR, 1949) 348 O sistema de dominação tirou o direito de escolha de animais escravizando-os e inserindo-os no processo da indústria da carne e fizemos isso com nós mesmos, com relações que não são um compartilhamento de sentimentos e vitórias, mas sim uma relação de dono e produto. Impomos e sofremos com padrões. Vivemos na cultura do “não pode ter cabelo colorido”, “não pode ter tatuagem”, “não pode aquilo, não pode isso” e, assim, nos tornamos mais controláveis, organizáveis e disciplinados. Vivemos em meio a um turbilhão de afazeres e esquecemos de tentar sentir a poesia que existe no cotidiano em que estamos. Quando surge um problema, o que fazemos é tentar resolvê-lo da forma mais prática e rápida. Encarar o público LGBTT como um desvio e assim ignorar o fato de que eles são pessoas comuns, e que também existem, é mais ou menos como as mulheres eram colocadas, antigamente, em hospitais psiquiátricos com tratamento de choque por suas ideias “revolucionárias”. Precisamos do diálogo! Sair do pensamento de senso comum e de coisas que como “futebol e religião não se discutem”, tudo é discutível; é necessário haver uma desconstrução de paradigmas e, antes disso, a aceitação dessa desconstrução. Muitos pais não aceitam a homossexualidade, e mais difícil ainda é a transexualidade, não devemos virar as costas e deixar o indivíduo perdido em meio ao caos. Já é complexo o processo de autodescoberta quando somos diferentes do que é visto como comum, e sem o apoio das pessoas mais próximas o caminho torna-se ainda mais árduo. O próprio movimento LGBTT é muito desunido, muitas vezes não há a aceitação de transexuais, o “gay afeminado” é visto como inferior e assim menosprezado pelo outro que sente-se superior pelo simples fato de trazer mais traços masculinos do que um perfil feminino; mas quem luta e até muitas vezes sofre o preconceito direto e descarado é este “afeminado”, que encara deboches e outros tipos de escrachos diariamente para trazer benefícios a toda comunidade LGBTT. ARCADE FIRE X LARA JANE GRACE Uma das grandes discussões em torno do clipe “We Exist” - que foi questionada primeiramente pela cantora Lara Jane Grace - é o uso de um ator que não é trans, Andrew Garfield, para um papel que supostamente deveria ser de algum ator transexual. Ela critica que o clip é chamado “We Exist” e ela não vê, literalmente, sinais dessa existência representada; em sua opinião, deveria chamar-se “Eles existem” ao invés do título usado. Já o vocalista da banda Arcade Fire defende que, para um jovem gay jamaicano, ver o ator que interpretou o homem-aranha nos filmes se travestindo é muito poderoso e, com a internet, isso torna-se de fácil acesso a todos. Já Lara ainda diz que na cidade aonde estão (Kingston) tem comida e tolerância, ao contrário da Jamaica, então lá eles não têm facilidade de acesso a materiais como esse e ainda se pergunta o porquê da personagem chorar enquanto corta o cabelo para depois colocar uma peruca loira. Questionamentos como esse são necessários para entender o porquê de tal questão. É muito injusto, sem a visão do artista, impor algum significado para determinada situação e tirar conclusões imaturas acerca de determinada intertextualidade simbólica. 349 CRÍTICA DO CLIP Apesar de toda a discussão acerca de qual público o clipe atingiria, não houve o questionamento para esse público e, além disso, é necessário a ajuda social para quem está em estado de sofrimento. Não podemos negar que a interpretação de Andrew Garfield está convincente, mas poderia ter feito um processo mais aprofundado da personagem do clipe, entretanto, o ator conseguiu trazer - dialogando com a letra da música - a ingenuidade com que nossa protagonista se encontra: a solidão e as dúvidas em meio a um mundo de possibilidades, a vontade de exteriorizar seu sofrimento por meio de uma dança cotidiana, mas expressiva e irônica. Como uma figura da vida real, que se perde em meio a tantas dúvidas, com a não aceitação da família, ele(a) sai em busca de uma compreensão com alguém exterior; em meio a um processo de irrupção, vemos nossa heroína desvaecer por conta da agressão e transfobia e ressurgir em um suposto paraíso metafórico com homens de roupas curtas e barba dançando. Em seguida, como que ao sair do purgatório, entra pelo corredor do show da própria banda Arcade Fire e sobe ao palco com a máscara rosa ao redor dos olhos, como que em um processo de coroação, e dança em frente a milhares de pessoas, como que após tudo isso, um período de glória a estivesse esperando. Um ponto em que podemos dialogar com religião é no verso: “Not the first betrayed by a kiss”, onde há uma clara referência à Judas e seu beijo em Jesus. A letra da música desenrola-se acerca de um tratamento do suposto pai da personagem, a “traição” de seu genitor em virar as costas e começar a tratá-lo de maneira diferente, denotando assim um reflexo da realidade, pois em muitos casos, após se abrir com a família, o LGBTT é expulso e não aceito mais no meio comum e na comunhão familiar, são crucificador por algo que não é opção e sim uma imposição, talvez natural ou comportamental, mas não escolha, algo que não conseguimos aceitar e somente julgar. Para transformar é preciso desconstruir, pois como já diziam os dadaístas, é por meio da destruição que conseguimos algo novo, e cada vez mais se vê necessária a evaporação de preconceitos sólidos e a construção do argumento de que, como algumas campanhas de publicidade exploram, ser diferente é ser normal. Em sua entrevista ao Advocate.com, Win Butler, da banda Arcade Fire, disse que foi até a Jamaica e que, para eles, uma conversa com os pais sobre o assunto acaba trazendo um núcleo emocional. Mas repensando, é meio utópico que em um país onde se tem uma cultura antigay, um gay falando a seu pai sobre aceitação será realmente bem quisto. Outro ponto de discussão na entrevista é a comparação do uso de Andrew Garfield com o de atores brancos com a pele pintada para representar negros na Hollywood antiga. A defesa é de que, quando eles ligaram para o ator, ele demonstrou muita paixão e exatamente por isso foi escolhido. Podemos também questionar as manchetes com que os veículos de comunicação colocaram a manchete: “Andrew Garfield does drag in the Arcade Fire video for ‘We Exist’” (Andrew Garfield fez uma drag no novo video de Arcade Fire), escreveu The Huffington Post. 350 “Andrew Garfield plays trans woman in new video”, (Andrew Garfield interpreta uma mulher trans em novo video), escreveu The Independent. Com isso podemos ver como a sociedade não tem conhecimento dos conceitos de gênero, muitos, além de não aceitar, acham estranho um transexual, travesti ou drag queen por inúmeros motivos, como o preconceito e a luta contra a inserção de pessoas LGBTT’s na sociedade ou o kit gay nas escolas. Considerações finais Chegar a uma conclusão de como definir e acabar com essa disputa de egos é muito complicado e é algo que leva tempo. O processo de desconstrução de preconceitos e estereótipos demanda aceitação e novas perspectivas, mas continuemos a agir e incentivar a paz, que é o que todos precisamos. Referências bibliográficas ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Sejamos todos feministas. São Paulo: Companhia das Letras. 2014 BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Zahar, 2004. 190 p. FIRE, Arcade. We Exist. Álbum: Reflektor. 2014 David Wilson SAFFIOTI, Heleith I. B. Primórdios do conceito de gênero. In caderno pagu (12) 1999: pp.157163 São Paulo. 351 Painel 2 - "Artemídia Atraente" Pesquisadores e Grupos de Pesquisa do Artemídia Videoclip no VI Seminário de Roteiristas da Universidade Presbiteriana Mackenzie Trilho do trem 3D Mônica de Moraes Oliveira – Grupo de Pesquisa ARTEMÍDIA E VIDEOCLIP (DGP – CNPq/UNESP) – e-mail: [email protected] Pelópidas Cypriano PEL – Prof. Dr. Livre-docente do Instituto de Artes da UNESP e líder do Grupo de Pesquisa ARTEMÍDIA E VIDEOCLIP (DGP – CNPq/UNESP) – e-mail: [email protected] Resumo Este artigo tem como objetivo fazer uma reflexão sobre o trabalho desenvolvido por uma pesquisadora da área de Comunicação, um animador 3D e um artista-pesquisador da área de Artes, em busca de uma linguagem videográfica artística. A intenção inicial era gerar imagens animadas de um trem e de uma estação (como ambiente) para serem desenvolvidos trabalhos posteriores. Ao fazermos um vídeo como forma de expressão artística, tivemos como referência dois filmes (A chegada do trem na estação, dos irmãos Lumière, e O homem com uma câmera, de Dziga Vertov). Metodologicamente, este primeiro protótipo foi realizado com base em conceitos de Zamboni (2001) em Pesquisa em Arte e nos conceitos de livre expressão e de trabalho cooperativo de Freinet. Nosso intuito foi avaliar processos e procedimentos artísticos para a elaboração do roteiro e do vídeo, utilizando conhecimentos sincréticos para depois chegarmos aos conhecimentos sintéticos. No evento, ao aplicarmos o método de avaliação proposto por Frascara (2011), como resultado, percebemos deficiências técnicas que dificultaram a compreensão da história proposta inicialmente. Palavras-chave: Artemídia; Animação 3D; Roteiro; Trem. Abstract This article aims to reflect on the work of a researcher of Communication area, a 3D animator and an artist-researcher of Arts area in search of an artistic video language. The original intention was to generate animated images of a train and a station (as environment) to be developed later works. In making a video as a form of artistic expression, we as a reference two films (The arrival of the train at the station, by Lumière brothers, and Man with a camera, by Dziga Vertov). Methodologically, this first prototype was based on concepts by Zamboni (2001) about Research in Art and the concepts of free expression and the cooperative work of Freinet. Our aim was to evaluate artistic processes and procedures for the preparation of the script and video, using syncretic knowledge and then we get to synthetic knowledge. At the event, to apply the evaluation method proposed by Frascara (2011), as a result, we noticed technical deficiencies that hampered the understanding of history originally proposed. Key words: Artmedia; 3D Animation; Script; Train. 352 Introdução O presente artigo tem como objetivo descrever uma experiência de trabalho desenvolvido por uma pesquisadora da área de Comunicação, um animador 3D e um artista-pesquisador da área de Artes, em busca de uma linguagem artística para filmes de animação 3D, fazendo uma breve reflexão sobre os elementos que envolveram o protótipo didático (em vídeo) elaborado. Este foi preparado para ser apresentado no VI Seminário Histórias de Roteiristas, realizado dias 17 e 18 de setembro de 2015 no Mackenzie, no painel do Grupo de Pesquisa Artemídia e Videoclip. O objeto de estudo são os processos e procedimentos artísticos para desenvolver uma linguagem videográfica artística. O problema desta pesquisa vincula-se à dificuldade para se estabelecer parâmetros que definam um vídeo como obra de arte. Por ser uma pesquisa em Artes, seguimos, em termos metodológicos, os conceitos de Zamboni (2001), daí termos como produto final uma produção artística (o vídeo). Daí decorrem questões como: quais os processos e procedimentos para se chegar a uma linguagem videográfica artística e não apenas a uma linguagem de vídeo não artístico? O que transforma o vídeo em uma obra de arte? Como transformar um texto escrito (argumento e/ou roteiro) em uma linguagem videográfica artística? Seria só uma questão de adaptação ou há recursos específicos na animação 3D que possibilitem dar um caráter artístico ao vídeo? Seria possível e viável criar um cenário com base em uma obra de arte (desenho, pintura, escultura, etc.) para chegarmos a essa linguagem pretendida? Retomamos a linguagem cinematográfica tendo como base, de modo especial para esse primeiro momento da pesquisa, experimentos realizados nos primórdios do cinema. Com esse resgate procuramos uma linguagem artística para aplicá-la em um vídeo de um minuto (animação 3D). Nós nos baseamos: 1) No filme francês de 1895 A chegada do trem na estação, dos irmãos Lumière que tem duração de aproximadamente 50 segundos (Figura 1), considerado como uma experiência de uso da câmera para registrar eventos cotidianos. Figura 353 1 – Cena do filme A chegada do trem na estação. Fonte: https://kinodinamico.wordpress.com/tag/cinematografo/ 2) Em cenas do filme Um homem com uma câmera (de Dziga Vertov) – filme russo de 1929. Figura 2 – Cena do filme Homem com uma câmera Fonte: http://moviemicah.blogspot.com.br/2013/07/man-with-movie-camera-1929.html O primeiro filme pode ser enquadrado como um “gênero cotidiano, uma forma popular de espetáculo”. Tem uma linguagem própria do século XIX, caracterizada pela conceituação do cotidiano e pelo “reconhecimento da vida diária como um objeto válido de investigação científica” (COHEN, 2001, p. 317). O segundo filme tem um caráter diferente do primeiro, busca uma linguagem cinematográfica. Como afirma Dias (2007, p. 200), nele Vertov retrata um dia de Moscou, apresentando a realidade “como verdade imposta pelo cinema enquanto tecnologia”. Evitando manipular sentidos da imagem, esta depura-se formalmente na crença da sua própria verdade. Vertov não associa sentidos, antes compõe formas e sequências, uma “organização da percepção” e não uma “estrutura”. (...) Vertov repete planos, retomados em associações novas, porque não encerrados num novo sentido resultante do choque entre planos. (...) A sua montagem está colada ao instante e ao imprevisto, à multiplicidade de fenómenos e à abertura de cada momento, ou seja, à mudança. Vertov disponibiliza a fragmentação e a montagem para uma abertura em cada momento. (DIAS, 2007, p. 201) Como poderíamos reproduzir algo semelhante ao “choque de planos” de Vertov? Nessa cena, um trem se aproxima do cineasta que se posiciona nos trilhos e, posteriormente, aparece a imagem do trem visto por baixo. Tentamos reproduzir com animação uma cena que remetesse a essa ideia para desenvolvermos a linguagem pretendida originalmente em nossa pesquisa. O tema proposto para gerar o roteiro foi “trem”, pois a intenção inicial era criar um banco de imagens animadas de um trem e de uma estação (como ambiente) para serem desenvolvidos estudos e trabalhos posteriores. Esse tema se relaciona a pesquisas feitas sobre um bairro da 354 zona norte de São Paulo, Parada Inglesa, que teve sua origem relacionada à linha de trem da Estrada de Ferro Cantareira. Com base nas primeiras imagens geradas foi construído o protótipo com um minuto de duração, com a finalidade de desenvolver uma equipe de trabalho especializada em animação 3D. Este foi chamado de didático por se tratar de uma experiência em que os integrantes da equipe puderam desenvolver conceitos e aplicá-los de forma sincrética para posteriormente sintetizá-los, baseando-nos nas concepções de Célestin Freinet. Dessa forma, cada um realizou suas propostas de trabalho com base em conhecimentos adquiridos em suas vivências anteriores. Para percebermos as impressões de espectadores, apresentamos o vídeo no Seminário Histórias de Roteiristas e posteriormente para mais algumas pessoas, seguindo técnicas de Design de Informação baseadas em Jorge Frascara (2011). Depois do evento procuramos sistematizar os pontos abordados para darmos prosseguimento a esta pesquisa. Elaborar este protótipo foi importante para revermos os conceitos fundamentais sobre roteiro e sobre animação. Uma nova proposta foi então realizada em busca do cumprimento de nosso objetivo geral a ser realizada em momento futuro. Materiais e métodos Decidimos trilhar caminhos “próprios”, construir nosso modo de trabalhar sem termos preocupações extremas com a busca de referenciais teóricos, ainda que isso pudesse parecer algo contra o que rege o mundo acadêmico, dada a vasta literatura sobre roteiro e animação. Esse método de trabalho baseia-se nas teorias de Célestin Freinet (2004). Precisávamos estabelecer nosso ritmo de trabalho e nosso protocolo de comunicação. O importante foi termos liberdade para fazermos nossa pesquisa, sem cobranças, sem pressa, construindo e estabelecendo modos de trabalho com base na frase “A vida prepara-se pela vida” (FREINET, 2004, p. 23). Iniciamos o trabalho desenvolvendo o cenário tendo como referencial fotos da antiga estação de trem “Parada Inglesa”, utilizando programa de modelagem e animação 3D. Foi criada uma história curta tendo como ponto de partida cinco cenas apresentando um trem chegando em uma estação (de vários ângulos), imagens geradas com o cenário criado. A base de referência para a elaboração dessas cenas foi o filme A chegada do trem na estação (ver Figura 1). A intenção era pensar em uma história apenas apresentando o cenário, ou seja, sem personagens. Para isso, a câmera subjetiva procurou dar a impressão de que o espectador está na cena criada. Assim, partimos do seguinte texto, considerado como argumento: Caminhava, lentamente, pela linha do trem. Buscava uma direção, um sentido para sua vida. Não enxergava nada, seguia cabisbaixo... sentia um grande vazio. De repente ouviu o apito do trem. Assustou-se. Entrou em estado de choque, não conseguia reagir. O trem foi se aproximando, chegando cada vez mais perto, mais perto, mais perto. 355 Escuridão e silêncio. Quando voltou a si, percebeu que tinha desmaiado e caído. Abriu os olhos, tinha recuperado a visão, viu seu mundo transformado. A ideia era adaptar o argumento para um vídeo de um minuto. Optamos por fazer as cenas iniciais da animação em preto e branco, em traços simples para contrastar com a cena final que seria colorida. Em busca de uma linguagem videográfica artística, imaginamos que esses efeitos teriam função dramática. Para darmos a sensação de que o espectador seria a personagem com problemas visuais que caminha pela linha do trem (câmera subjetiva), as imagens foram desfocadas. A aproximação do trem foi baseada na cena do filme O homem com uma câmera (Ver Figura 2). Na sequência, foram colocadas as cenas relacionadas à estação (o trem continua seu trajeto), as quais tinham dado origem ao argumento. Na cena final, criamos um cenário colorido para transmitir a ideia de “recuperação da visão” da personagem. Pronto o protótipo, seguindo as concepções de Frascara (2011, p. 18) a respeito de Design de Informação centrado no usuário, partimos para a etapa da avaliação, feita apresentando-se o vídeo para algumas pessoas. Esse é o momento de “avaliar se o protótipo funciona, em que medida funciona e identificar aspectos a melhorar”. Resultados Procuramos adaptar o argumento, planejando as cenas e calculando tempos para cada uma. O vídeo foi produzido com 64 segundos de duração – apesar de a proposta inicial ter tido como parâmetro 60 segundos exatos –, pois houve erros na renderização e finalização. No dia 18 de setembro, durante as apresentações de trabalhos do Painel Artemídia Atraente, do Grupo de Pesquisa Artemídia e Videoclip, foi mostrado o vídeo e as discussões geradas apontaram elementos positivos e negativos de seu processo de elaboração e de produção. Os participantes do evento falaram o que compreenderam e os aspectos que ocasionaram dúvidas. Durante a apresentação no evento, os efeitos sonoros não foram bem reproduzidos por problemas técnicos, ponto que prejudicou bastante a compreensão do vídeo. As batidas do coração ficaram muito baixas, acabando por só ser ressaltado o apito do trem (som que, por sua vez, foi muito rápido). Tínhamos como proposta elaborar uma trilha sonora própria para o vídeo, contando com a cooperação de um músico, no entanto, não foi possível nesse primeiro momento. Decidimos, então, que seriam utilizados recursos sonoros captados da internet (basicamente: sons de batida de coração; de trem em movimento, seu apito e freada). A personagem andando sobre o trilho do trem foi percebida, mas não as possíveis razões para isso. A questão da cegueira não foi mencionada por nenhum dos espectadores, ou seja, o efeito colocado não produziu os resultados esperados. Em termos das ações, no enredo o trem seguiu seu curso, chegando à estação, mas isso não foi bem compreendido. Na discussão sobre o vídeo foi abordada a questão de uma quebra de eixo, pois foram colocadas três cenas com o trem chegando à estação. 356 No cenário final um efeito fez com que as pessoas vissem água nos trilhos do trem, o que provocou certa confusão na compreensão do enredo. Não houve a percepção de que a personagem estava nesse cenário e que o que estava sendo mostrado era seu ponto de vista. Discussão Com os resultados obtidos com a primeira experiência foi possível fazer avaliações de nossas práticas sincréticas, buscar mais informações e embasamentos teóricos para construir o conhecimento sintético. Esta primeira experiência foi importante para fundamentarmos nossas bases teórico-práticas e formarmos uma equipe de trabalho, ajustando pontos de entendimento entre seus integrantes. Depois dos comentários feitos sobre a apresentação deste primeiro protótipo didático, a equipe passou a retraçar objetivos e a reestruturar cenas, planos, tempos e efeitos. Foi realizada uma decupagem mais específica do argumento, o que serviu como ponto de partida para discussões sobre o que deveria ser alterado. Chegamos à conclusão de que o roteiro não foi cumprido por problemas técnicos, tais como: mau posicionamento de câmera; falta enquadramento; falta de adequação às imagens nos tempos previstos; trilha sonora mal selecionada. Os efeitos sonoros prejudicaram a compreensão do vídeo, por serem a base para a narrativa. Sons de batida do coração, de passos, do apito do trem, sobretudo, compõem o panorama sonoro da história, uma vez que não há personagens explícitos. Decidimos que a trilha sonora para um próximo vídeo será produzida por músicos, especialmente planejada, a fim de podermos associar sons e imagens com mais sincronia. Assim, para a caracterização da personagem (pessoa andando no trilho do trem), os sons de batidas do coração deverão ser acentuados. A eles serão associados sons de respiração (normal no início e, posteriormente, ofegante) e de passos (que cessarão depois do apito do trem, para indicar que a pessoa parou com o susto que levou). Pretende-se que este vídeo seja veiculado pela internet (Youtube) e, para isso, o som deve estar adequado a equipamentos de recepção comuns (computadores e celulares). Retirar sons da internet não produziu efeitos desejados, pois as batidas do coração, por exemplo, não foram ouvidas. Há vários aspectos cinematográficos a serem alterados, sobretudo para gerarmos a sensação de o trem estar chegando perto do espectador com o intuito de fazê-lo sentir-se a personagem (câmera subjetiva) que anda sobre os trilhos. Esse protótipo não atingiu seus objetivos completamente por falhas técnicas e isso impossibilitou chegarmos a possíveis respostas para nossas questões iniciais relacionadas aos processos e procedimentos para se chegar a uma linguagem videográfica artística. Os recursos de modelagem e da animação 3D não foram utilizados de forma a se chegar à linguagem inicialmente planejada. Pretende-se que o próximo vídeo tenha aspectos artísticos em termos de imagem (desde a modelagem) e de som (trilha sonora específica a ser realizada por compositores). 357 Referências bibliográficas COHEN, Margaret. A literatura panorâmica e a invenção dos gêneros cotidianos. In: CHARNEY, Leo; SCHWARTZ, Vanessa R. (orgs.). O cinema e a invenção da vida moderna. São Paulo: Cosac & Naify Edições, 2001. pp. 315-349. DIAS, Fernando Paulo Rosa. As vanguardas russas e o cinema: plano e montagem. In: TAVARES, Cristina Azevedo; DIAS, Fernando Paulo Rosa. Artes visuais e as outras artes: as primeiras vanguardas. Lisboa: Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, 2007. p. 193-204. FRASCARA, Jorge. ¿Qué es el diseño de información? 1a ed. Buenos Aires: Infinito, 2011. FREINET, Célestin. Pedagogia do bom senso. 7a. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004. ZAMBONI, Sílvio. A pesquisa em arte: um paralelo entre arte e ciência. Campinas: Autores Associados, 2001. 358 Roteiro para transmídia Entrefilmes Rogério Corrêa da Silva – Mestrando em Artes Visuais, Instituto de Artes, UNESP, Grupo de Pesquisa ARTEMÍDIA E VIDEOCLIP (DGP – CNPq/UNESP) – e-mail: [email protected] Pelópidas Cypriano PEL – Prof. Dr. Livre-docente do Instituto de Artes da UNESP e líder do Grupo de Pesquisa ARTEMÍDIA E VIDEOCLIP (DGP – CNPq/UNESP) – e-mail: [email protected] Resumo Este artigo é uma das "histórias de roteiristas" envolvendo encanto e conhecimento nos processos e procedimentos artístico-científicos de roteiros para peças artemidiáticas. Tem como objetivo difundir o processo de roteirização de transmídia Entrefilmes para concepção de Realização Audiovisual a ser apresentada como Trabalho Equivalente e respectivo Relatório Circunstanciado na defesa de mestrado em Artes. A metodologia utilizada é inspirada nas práticas pedagógicas freinetianas, nos processos de comunicação e controle da cibernética, no conceito de serendipidade. É apresentada reflexão sobre os resultados esperados na pesquisa de mestrado no Programa de Mestrado e Doutorado em Artes do Instituto de Artes da UNESP. A discussão sobre a realização audiovisual na contemporaneidade da integração das artes e das mídias poderá ter impacto no tripé indissociável ensino-pesquisa-extensão, por exemplo, em Cursos Superiores de Artes Visuais, Cinema, Audiovisual, Rádio e TV, em Programas de PósGraduação, no Ateliê-Laboratório de Imagem Cinética Eletrônica, em Apresentações Artísticas Audiovisuais. Palavras-chave: Artemídia; Roteiro para artemídia; Roteiro para transmídia; Cinema e Artes Visuais; Realização Audiovisual Introdução São vários os autores que tocam na contaminação do Cinema Novo pelo Neo-realismo, entre eles Paulo Emilio Salles Gomes (1) e Jean Claude Bernardet (2). Ladrões de Bicicletas (3) não é o início do movimento italiano, mas é um dos seus principais filmes ao lado de Paisá (4) e Roma, Cidade Aberta (5), ambos de Roberto Rossellini. Mais do que os filmes de Rossellini, a obra-prima de De Sica se tornou o principal símbolo do Neo-realismo no mundo. 359 Imagem 1: Ladrões de Bicicleta, de Vittorio de Sica (internet) Já o filme de Nelson é considerado um precursor do movimento brasileiro ao lado de Agulha no Palheiro, de Alex Viany, mas Rio 40 Graus (6) se presta mais à comparação com a obra italiana devido à presença de crianças como personagens principais. Imagem 2: Rio 40 Graus, de Nelson Pereira dos Santos (internet) O filme contemporâneo que tomarei como exemplo é de minha autoria, No Olho da Rua, que se aproxima dos citados anteriormente pelo olhar crítico e humanista sobre a sociedade, numa linguagem que flerta com o documentário. Outra característica que justapõe as três obras é o tema do desemprego ou do subemprego. 360 Materiais e Métodos Minha primeira proposta era fazer um paralelo entre os dois movimentos e verificar sua influência na escritura do roteiro Cinzas de um Sonho, projeto do meu segundo longa metragem. Mas, segundo meu orientador Prof. Pelópidas Cypriano de Oliveira, isto acarretaria num vínculo entre a UNESP e o trabalho que poderia gerar conflito de direitos patrimoniais. Desta forma, por sugestão dele, resolvi transformar minha pesquisa na produção de clips em vídeo para exibição na internet, tendo como protagonista o personagem Algodão, de No Olho da Rua. Esta figura, a de um realizador de cinema que se torna amigo de Oton e passa a documentar a vida do metalúrgico desempregado, continuará seu documentário depois da “morte” do operário registrando opiniões ou histórias sobre o desemprego. Para tanto, ele utilizará as características estilísticas dos dois movimentos, atualizando-os e fazendo ecoar suas heranças na produção audiovisual contemporânea. Este projeto de Trabalho Equivalente toma como base o movimento italiano que surge ainda durante o final da Segunda Guerra quando Rossellini, diretor com alguma experiência dentro da produção fascista, realiza Roma, cidade aberta (1945) cujo tema é a resistência ao regime de Mussolini. O cineasta pioneiro abdica da maioria dos equipamentos e estúdios que utilizava para fazer os melodramas que lhe garantiam a sobrevivência e parte para uma aventura militante apoiada pelo Partido Comunista, onde só o essencial tem lugar: uma câmera, locações reais e atores não profissionais, narrando uma história que assume o lado dos pobres no enfrentamento das injustiças sociais. Com uma linguagem simples, que se assemelha àquela do documentário, surge um cinema autoral numa Itália destroçada pela Guerra. Em 1948 Vittorio De Sica realiza Ladrões de Bicicleta a partir de um roteiro escrito por ele e mais cinco colaboradores, onde se destaca a figura de Cesare Zavattini, que assina diversos títulos importantes do movimento e se torna o principal parceiro do diretor. A obra-prima de De Sica segue o mesmo modelo de Rossellini, mas atinge um público muito maior, tendo até recebido um Oscar especial, já que ainda não havia sido criada a categoria de melhor filme estrangeiro. A história simples de um homem que perde o emprego, a duras penas conseguido, porque tem sua bicicleta roubada, é uma profunda reflexão sobre a Itália no pós-guerra. No longo percurso pela cidade à procura do instrumento de trabalho ele é acompanhado pelo filho, ainda um menino. Com um roteiro extremamente elaborado, De Sica se equilibra entre a crueza e a ternura e atinge um grau de maestria raramente igualado na história do cinema. Este modelo inspira, em 1955, Nelson Pereira a escrever e dirigir seu primeiro longa metragem, Rio 40 Graus, que narra a história de alguns garotos que moram na favela e trabalham vendendo amendoim na zona sul carioca. O filme mescla uma visão documental com elementos ficcionais de várias sub-tramas que se organizam harmoniosamente. 361 O Brasil encontra-se numa fase de liberdade política e comportamental em que o futuro é sinônimo de esperança. No cinema brasileiro é a época dos estúdios Vera Cruz e Maristela cuja produção tenta copiar a linguagem convencional do cinema americano para atingir um padrão internacional de qualidade que possa dar retorno comercial. Eles são adeptos de equipamentos grandes e pesados, filmagem em interiores e atores conhecidos do grande público, para narrar histórias brasileiras de forma acadêmica e com um ponto de vista que procura reforçar a posição conservadora da classe dominante. Nelson segue os neo-realistas e com uma câmera na mão e uma idéia na cabeça realiza um filme despojado, mas visceral, que faz questão de descobrir o que é o país e o que ele tem de sublime e desumano. Ele assume o olhar dos personagens do povo e mostra as dificuldades por que passam para sobreviver, embora ressalte a alegria e a esperança que os contagia e dão força para prosseguir. A estréia de Nelson é incensada por dois críticos paulistanos, Francisco Luiz de Almeida Sales (7) e Paulo Emilio Salles Gomes (8), além do cineasta Rudá de Andrade, que estudara no Centro Sperimentale de Cinematografia de Roma. Esse trio é responsável pelo ânimo que toma conta de uma geração de realizadores, que até 1968, data do Ato Institucional n° 5, irá produzir alguns dos mais significativos filmes brasileiros e se constituir no movimento, saudado internacionalmente como uma revolução estética: Cinema Novo. Embora o Cinema Novo tivesse no seu nascedouro a proposta majoritária de ser também uma reflexão política sobre o país, um dos principais estudos sobre o movimento, Brasil em Tempo de Cinema (8), de Jean Claude Bernardet, caracteriza o conjunto da obra daquele período como sendo de jovens de classe média que lançam seu olhar sobre o Brasil profundo, visão esta limitada pela classe de origem. No Olho da Rua (2011), produzido e dirigido por mim a partir de um argumento de minha autoria, procura mimetizar a linguagem neo-realista e cinemanovista. A obra quer fazer uma reflexão e ao mesmo tempo emocionar. É um filme despojado em termos de realização no qual a história, os personagens e a direção são mais determinantes que o valor de produção. É ambientado no Brasil contemporâneo onde as mudanças no perfil industrial eliminam postos de trabalho e deixam desempregados milhares de pessoas que viveram por anos dentro de uma estrutura bem definida. Sem preparo para a mudança repentina, muitos trabalhadores perdem a identidade, por vezes chegando a atitudes desesperadas. É o caso de Otoniel Badaró, protagonista vivido por Murilo Rosa, que volta à fábrica da qual foi demitido depois de 20 anos de serviço, faz o gerente de recursos humanos refém e é eliminado diante de colegas e do amigo Algodão, que o acompanhava com sua câmera com o objetivo de narrar a situação de um desempregado. Resultados Esta pesquisa tem o significado de aprofundamento de meu trabalho de quarenta anos como realizador de cinema e dá sequência a um longo relacionamento que tenho com a cultura italiana. Sou ligado à Itália por descendência familiar e frequentei o Colégio Dante Alighieri (SP) onde estudei o idioma por sete anos. 362 Vivi em Roma durante o ano de 1979 e fui estagiário voluntário como segundo assistente de montagem de som no filme La Luna, de Bernardo Bertolucci, e Oggetti Smarritti, de Giuseppe Bertolucci. Ainda considero válidos os conceitos que estão por trás de grande parte dos filmes neorealistas e cinemanovistas, de que a realidade de um país pode ser mudada para melhor na medida em que o espectador, ao mesmo tempo em que frui esteticamente, se conscientiza dos problemas. Sempre pautei meus filmes a partir de uma visão que tenta preservar certa semelhança com Ladrões de Bicicleta, Rio 40 Graus e os filmes dos movimentos a que pertencem, tentando atualizá-los e ir sempre além. Imagem 3: A partir da esquerda, Murilo Rosa (OTON) e Leandro Firmino da Hora (ALGODÃO) em No Olho da Rua, de Rogério Corrêa (Leão Filmes) Discussão O projeto de realização dos clips com Algodão tem como objetivo caminhar no mesmo sentido de No Olho da Rua, mas pretende dar vários passos rumo ao desconhecido. Tenho a intenção de superar definitivamente os laços com os mestres e dar início à criação de uma assinatura, que me permita construir uma verdadeira obra. Para isso acredito ser indispensável esgotar minha relação com os estilos que me formaram e dar vazão a um modo pessoal como diretor, ainda que errante. Nos clips, Algodão, depois da “morte” de Oton, discute a situação do desemprego no país através de depoimentos de personagens variados e coloca na internet. O personagem, que no filme é “formado” em letras na USP, agora faz mestrado em Artes Visuais na UNESP. Com sua câmera na mão, ele entra no Instituto de Artes contando em off um pouco de sua trajetória, refere-se à “morte” de Oton, personagem principal do seu documentário sobre o desemprego, e diz que vai continuar discutindo o tema. 363 Ele entrevista as seguintes pessoas em seus ambientes de estudo: – ALUNA de Artes Cênicas – ALUNO de Artes Cênicas – ALUNA de Música – ALUNO de Música – ALUNA de Artes Visuais – ALUNO de Artes Visuais E também MULHERES e HOMENS, nas imediações da estação Barra Funda. Os clips serão editados em diversos formatos, indo do depoimento único àquele que mistura várias entrevistas, podendo também variar em duração e estilo. A proposta é que se tornem peças de um mosaico e sejam combinadas de infinitas formas, resultando em inúmeros sentidos. Eles serão postados na internet por um largo período com a intenção de provocar uma discussão não apenas sobre o tema desemprego, mas também sobre o cinema que procura retratar o fato social e político. Referências [1] GOMES, Paulo Emílio Salles. “Ladri di Biciclette”. O Estado de São Paulo. São Paulo, 18 fev. 1950. [2] BERNARDET, Jean Claude. “Vicissitudini Ideologiche del Neorealismo in Brasile”. In: Il Neorealismo e la critica: materiali per uma bibliografia. Quaderni della 10ª Mostra Internazionale del Cinema di Pesaro, 12/19 setembre, 1974. Jean-Claude Bernardet. pp. 197201. [3] Ladrões de Bicicletas, (Ladri di Biciclette), direção Vittorio de Sica, produção PDS, preto e branco, 93’, Itália, 1948. [4] Paisá, (Paisà), direção Roberto Rossellini, produção OFI, preto e branco, 125’, Itália, 1946. [5] Roma, cidade aberta (Roma, città aperta), direção Roberto Rossellini, produção Excelsa Film, preto e branco, 103’, 1945. [6] Rio, 40 Graus, direção Nelson Pereira dos Santos, produção Moacyr Fenelon, 100’, preto e branco, Brasil, 1955. [7] SALES, Francisco Luiz de Almeida. Cinema e verdade. São Paulo: Cia das Letras, 1987. [8] BERNARDET, Jean Claude. Brasil em Tempo de Cinema. São Paulo: Civilização Brasileira, 1967. [9] No Olho da Rua, direção Rogério Corrêa, produção Leão Filmes, cor, 100’, Brasil, 2011. 364 365 Roteiro para flanar no bairro de Parada Inglesa Taísa Nogueira Silva – Mestranda em Artes Visuais, Instituto de Artes, UNESP, Grupo de Pesquisa ARTEMÍDIA E VIDEOCLIP (DGP – CNPq/UNESP) – e-mail: [email protected] Pelópidas Cypriano PEL – Prof. Dr. Livre-docente do Instituto de Artes da UNESP e líder do Grupo de Pesquisa ARTEMÍDIA E VIDEOCLIP (DGP – CNPq/UNESP) – e-mail: [email protected] Resumo Este artigo é uma das "histórias de roteiristas" envolvendo encanto e conhecimento nos processos e procedimentos artístico-científicos de roteiros para peças artemidiáticas. Tem como objetivo difundir o processo de roteirização do flanar no bairro de Parada Inglesa para concepção de Interferência Artística Urbana a ser apresentada como Trabalho Equivalente e respectivo Relatório Circunstanciado na defesa de mestrado em Artes. A metodologia utilizada é inspirada nas práticas pedagógicas freinetianas, nos processos de comunicação e controle da cibernética, no conceito de serendipidade. É apresentada reflexão sobre os resultados esperados na pesquisa de mestrado no Programa de Mestrado e Doutorado em Artes do Instituto de Artes da UNESP. A discussão sobre a interferência artística urbana na contemporaneidade da integração audiovisual poderá ter impacto no tripé indissociável ensino-pesquisa-extensão, por exemplo, em Cursos Superiores de Artes Visuais, Arquitetura, Audiovisual, Design, em Programas de Pós-Graduação, no Ateliê-Laboratório de Imagem Cinética Eletrônica, em Apresentações Artísticas Audiovisuais. Palavras-chave: Artemídia; Roteiro para artemídia; Roteiro para Flanar; Arquitetura e Artes Visuais; Interferência Artística Urbana Introdução Este artigo tem como objetivo principal apresentar e difundir um processo de roteirização do flanar no bairro de Parada Inglesa visando analisar a relação do espaço perceptivo entre os usuários e a cidade. O processo de elaboração do trabalho se pauta num processo criativo englobado pelo conceito de ARTEMIDIA, grupo pertencente da pesquisa. O projeto objetiva analisar a modificação perceptiva e como tais procedimentos artísticos podem colaborar para a apropriação de novos conhecimentos, possibilitando um estudo da percepção artística como instrumento didático-metodológico. O roteiro apresenta alguns resultados obtidos no Grupo de Pesquisa ARTEMÍDIA e VIDEOCLIP (WIP Work In Progress), sob a orientação do Prof. Dr. Pelópidas Cypriano. O projeto se pauta na elaboração de um Trabalho Equivalente de Intervenção Urbana por meio de estudo perceptivo para o entendimento da cidade, a partir de reflexões em áreas urbanas consolidadas com "case Parada Inglesa", bairro da Zona Norte (SP) e seus desdobramentos sob os aspectos artísticos e arquitetônicos. 366 Será elaborada uma revisão bibliográfica a respeito dos conceitos de percepção espacial, propondo a criação de roteiros por meio de mapeamentos perceptivos, partindo de autores como Kevin Lynch, para quem “As imagens ambientais são o resultado de um processo bilateral entre o observador e seu ambiente, ou seja, a imagem de uma determinada realidade pode variar entre observadores diferentes.” (LYNCH,1960, p.6). Esse autor propõe o estudo das relações entre o observador e as imagens públicas, ou seja, imagens mentais comuns a vastos contingentes de habitantes de uma cidade, áreas consensuais que possibilitam a interação de uma única realidade física. As pesquisas de Kevin Lynch sobre a percepção do espaço estão relacionadas a conceitos de legibilidade, reconhecimento e organização num modelo coerente pela escala urbana, ou seja, um processo de orientação do indivíduo para o reconhecimento espacial e a construção da imagem perceptiva (idem, p.11). Fig. 01 – Mapa Mental elaborado pelos moradores de Jersey City (LYNCH, 1980). Métodos A metodologia utilizada é inspirada nas práticas pedagógicas freinetianas, nos processos de comunicação e controle da cibernética, no conceito de serendipidade, considerada uma forma especial de criatividade ou uma de muitas técnicas de desenvolvimento do potencial criativo, que alia perseverança, inteligência e senso de observação. O trabalho WIP (Work In Progress) tem se configurado sob vários aspectos. Primeiramente, o projeto visa formular, metodologicamente, por um roteiro, um procedimento artístico de intervenções urbanas por meio do flanar. Deste modo, foram elaborados alguns “roteirosmapas mentais” antes do estudo em campo, visando a compreensão da área anterior as experiências com mapas e a produção de imagens mentais, apenas com referências “neutras”. 367 O material foi arquivado como "estaca zero" (Fig. 02) e estão sendo incorporados outros desenhos e relatos para no final ser avaliada a transformação do mapa mental sobre a Parada Inglesa. Fig. 02 – Releitura e Mapa Mental “estaca zero” elaborado dia 20/06/2015. O orientador plotou 4 ocorrências notáveis no mapa e a equipe saiu para o flanar. Seguindo conceitos do Flanar e do Estudo do Meio para reconhecimento da área de estudo (Parada Inglesa - Zona Norte-SP), pudemos exercitar a contemplação e estabelecer relações (cheiro, barulho, cores, desenhos, massas) com o lugar (Fig. 3). 368 Fig. 03: Roteiro do Flanar / Estudo do Meio no Bairro da Parada Inglesa. O trecho em destaque: 3km de caminhada. Fonte: GoogleMaps A partir da criação das imagens (por meio de fotografias e desenhos – ver Fig. 04), pretende-se desenvolver uma proposta de intervenção urbana. Segundo Del Rio (1990), a análise da imagem urbana configura a base mais importante para o desenvolvimento do conceito de desenho urbano. A percepção das configurações urbanas permanece sujeita a certas leis de conformação, tais como de proximidade, semelhança, coesão, pregnância, entre outras, que condicionariam os conceitos “gestálticos” estáticos e dinâmicos (envolvimento, alargamento, acentuação, emolduramento, etc.). Fig. 04. Imagem obtida no Flanar da Parada Inglesa (Av. Tucuruvi) vista para a região central da cidade de São Paulo. A escolha do local de pesquisa e a intervenção urbana na Parada Inglesa cumpre o imperativo metodológico por ser uma área de fácil acesso aos dados da pesquisa e ao tratamento adequado dos respectivos dados a serem levantados, além de ser um local sem uma definição geográfica precisa, ou seja, um lugar inexplorado sob a ótica da percepção ambiental e onde será aplicada uma metodologia didático-pedagógica. Um segundo aspecto a ser abordado é o roteiro sob a ótica dos moradores: os aspectos históricos serão abordados por meio de histórias contadas por eles. A antiga estação de Parada Inglesa (Fig. 05), que deu nome ao bairro a sua volta, não ficava no mesmo local da atual estação de Metrô. O nome refere-se ao inglês William Harding (Fig. 06), proprietário da gleba por onde passava a linha do trem da Cantareira com destino ao Guapira. Em 1927 foi inaugurada a referida estação. 369 Fig. 05. Foto da antiga Estação Parada http://www.estacoesferroviarias.com.br/p/paringlesa.htm Inglesa. Fonte: Fig. 06. Foto de William Harding. Fragmento do vídeo “Parada Inglesa e Tucuruvi – História do Bairro de São Paulo/SP” (3:10´) Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=Lh6cQMNi3u0 Pretende-se sintetizar as análises dos processos de produção artística contemporânea, tendo como objetivo produzir um recorte metodológico e experimental das manifestações artísticas urbanas. Na terceira e última etapa de roteirização, pretende-se sintetizar as análises dos processos de produção artística contemporânea, tendo como objetivo produzir um recorte metodológico e experimental das manifestações artísticas urbanas. O roteiro da Intervenção Urbana: a instalação passa a ser encarada como o reflexo (resultado) de um método de produção artística, ou seja, um procedimento que busca a sensibilização da população para o meio ambiente urbano por meio de diversas abordagens. A Intervenção Urbana tem como referência visual projeções de luz. Foi elaborada uma série de pesquisas na web sobre o tema, em diversas aplicações, nacionais e internacionais, de referências sobre Intervenção Urbana. Intervenções urbanas são trabalhos que lidam com “impermanência” material, efemeridade do fenômeno artístico, onde a própria cidade é entendida como suporte para visualização dos trabalhos. ARTEMIDIA ATRAENTE: Roteiro Para Instalação O roteiro para instalação passou por um brainstorm, buscando diversas mídias e suportes para a apropriação artística. Parte de uma elaboração com referências metodológicas por meio de “insights performáticos” em Joseph Beuys e Marina Abramovic, passando por projetos de Helio Oiticica (Galeria Cosmococas em Inhotim) até a materialidade em “Wire Sculptures” de Alexander Calder e instalações de artistas como Anthony Gormley. 370 Fig. 07 e 08: Imagem da escultura em arame em processo de concepção (2,5m). Foi elaborado um protótipo tipo WireFrame Man de 2,5m de altura, buscando criar uma proposta de materialidade da obra (Figs. 07 e 08). O protótipo, batizado de FRED, visa auxiliar na compreensão perceptiva do espaço por meio da serendipidade. O foco principal do estudo é a projeção de luz e sombras no objeto, criando novas formas a serem apropriadas pelo espaço. O protótipo FRED foi apresentado na exposição L.O.T.E. 2015 (Lugar, Ocupação, Tempo, Espaço) promovida no Instituto de Artes (UNESP) entre os dias 20/09/2015 a 15/10/2015. (Figs. 09 a 12). A obra intitulada Palimpsesto (do Grego palin, “para trás”, e psen, “esfregar suavemente”) pertencente ao Grupo Coletivo Artemidia Equivalente, como conceito, é definida por camadas de interação dos artistas/fruidores nos diversos eventos de exposição. 371 Fig. 09 e 10: Imagem do FRED: escultura em arame e projeção de luz. Fig. 11 e 12: Imagem do FRED na exposição L.O.T.E. 2015 (IA – UNESP) A proposta de instalação na praça é um “start” de ação temporária, que se utiliza de cabos tensionados, panos esticados e a figuração do protótipo FRED, com projeções de luz indireta por meio de dois refletores LED com baterias próprias (Fig 13). Por meio de formas diagonais, 372 buscando um olhar diferenciado do expectador na praça a proposta visa uma intervenção e enfatiza a ocupação da praça, tendo como base os estudos da modificação perceptiva da cor (por meio da iluminação LED). Esta intervenção prevê a “visibilidade” vertical da projeção da escultura de arame na praça. Fig. 13: Imagem preliminar do projeto de implantação da Praça Nsa. Sra. dos Prazeres no bairro de Parada Inglesa (SP). O trabalho foi apresentado à Subprefeitura Santana-Tucuruvi, intitulado “Esculturas em Arame” com o intuito da aprovação de intervenções na Praça Nsa. Sra. dos Prazeres (Parada Inglesa), juntamente com as artesãs da feirinha “Encantos da Cantareira” que acontece periodicamente aos domingos. A intervenção aconteceu dias 03 e 04 de outubro de 2015, promovendo uma ação “start” que visa indicar por meio de um roteiro inicial a relação dos usuários com a praça e um novo objeto inserido. 373 Fig. 14: Instalação do FRED da Praça Nsa. Sra. dos Prazeres - Parada Inglesa (SP) dia 03/10/2015. Resultados O roteiro de flanar no bairro de "Parada Inglesa" em processo WIP está aderido ao Grupo de Pesquisa ARTEMÍDIA E VIDEOCLIP e pretende-se estudar as relações entre o observador e as imagens públicas, ou seja, imagens mentais comuns de uma cidade, áreas consensuais que possibilitam a interação de uma única realidade física. O Trabalho Equivalente se pauta numa intervenção urbana que tem como intenção se configurar numa função didático-metodológica, ou seja, a proposta tem por finalidade propor um método de sensibilização artística que possibilite a criação de site specific buscando uma função social da arte. O trabalho experimental se iniciou numa busca perceptiva do ambiente urbano, por meio de imagens mentais e um protótipo de arame que possibilitaram consolidar uma proposta de 374 intervenção urbana. Os estudos perceptivos por meio de diversos suportes de modo ARTEMIDIÁTICO estão possibilitando explorações interessantes, diversas interpretações e abordagens do tema. As intervenções artísticas viabilizam a capacidade de catalisar e promover novas dinâmicas, adequados à inserção espacial, contemplando os anseios e expectativas da população. Fig. 15: Instalação do FRED da Praça Nsa. Sra. dos Prazeres no bairro de Parada Inglesa (SP). Discussões Os estudos perceptivos por meio de diversos suportes de modo ARTEMIDIÁTICO estão possibilitando explorações interessantes, diversas interpretações e abordagens do tema. As intervenções artísticas viabilizam a capacidade de catalisar e promover novas dinâmicas, adequadas à inserção espacial, contemplando os anseios e expectativas da população. A cidade, para Argan (1998), é entendida como Gestaltung, que em alemão significa em formação (processo em construção) e não como Gestalt, ou seja, como uma forma definida. Portanto, a forma da cidade é o resultado de um processo cujo ponto de partida não é uma forma pré-estabelecida. Segundo esse autor, só a história como a vivência da sociedade e dos indivíduos constitui a mutável imagem da cidade. Analisar a cidade de São Paulo e a relação dos usuários com o espaço construído significa compreender suas influências nas interações sociais, tendo como foco principal a utilização dos espaços públicos, bem como a falta de identidade local promove a degradação (ou subutilização) local. Portanto, é necessário o entendimento da memória do lugar, a importância do estudo histórico para compreender o espaço urbano, além de um diagnóstico atual das deficiências e indicando potencialidades a serem intervidas e como criar estratégias/diretrizes de requalificação cultural para essas áreas. Referências 375 ARGAN, G. C. Historia da arte como história da cidade. trad. Píer Luigi Cabra, 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. CULLEN, Gordon. Paisagem urbana. Lisboa: Edições 70, 1971. DEL RIO, Vicente. Introdução ao desenho urbano no processo de planejamento. São Paulo: Editora Pini, 1990. LYNCH, Kevin. A imagem da cidade. Lisboa: Edições 70, 1980. WHITE, E. O Flaneur (2000) por meio do template sugerido pelo orientador. Artigo em link: http://www.outrostempos.uema.br/OJS/index.php/outros_tempos_uema/article/viewFile/45/ 32; Ver em: ims/index.php/CSO/article/viewFile/775/786; https://www.metodista.br/revistas/revistas- http://www.estacoesferroviarias.com.br/p/paringlesa.htm Vídeo “Parada Inglesa e Tucuruvi – História do Bairro de São Paulo/SP”. https://www.youtube.com/watch?v=Lh6cQMNi3u0 376 Fonte: SESSÃO 3 - ARTIGOS LIVRES Temas propostos em debates Debates "Reflexões sobre audiovisual contemporâneo" Mediação Luciano Vaz Ferreira Ramos Alice Aquém Da Fantasia: O País Das Maravilhas Na Vida Real. Por Luciano Vaz Ferreira Ramos A CARNE E O OSSO DA FANTASIA Tratado geralmente como um conto de fadas, no filme “Alice no País das Maravilhas” o diretor Tim Burton transforma a narrativa fantástica do livro num discurso crítico sobre a história econômica da Inglaterra. Se não fosse assim, por que motivo ele atribuiu à protagonista a idade de 20 anos, colocando-a como herdeira de um poderoso empresário de comércio internacional? E por que, na última cena, ela toma um navio mercante em direção à China, no comando de uma missão de negócios? Essas surpresas fazem parte de uma complexa estratégia que ele adotou para adaptar o livro do inglês Charles Dodgson (1832-1898), publicado sob o pseudônimo de Lewis Carroll em 1865 – esse, o ano exato em que se iniciou uma guerra de 4 anos entre a China a Grã Bretanha, que ficou conhecida como a Segunda Guerra do Ópio. Falando nisso, o que era mesmo aquilo que a lagarta azul fumava de um narguilé, sentado num cogumelo? Transformada pelo roteiro em comerciante internacional, o que a jovem heroína interpretada por Mia Wasikovska iria comprar e vender lá na China? Naquela época, os britânicos 377 importavam da China seda, porcelana e chá – bebida da qual a Rainha Vitória era dependente, junto com a totalidade de seus súditos. Em meados do século XIX o ópio representava o grosso das exportações britânicas para o Império chinês, porque era a mercadoria que mais interessava aos consumidores no extremo oriente. Assim, quando a sua importação foi proibida pela dinastia Qing, os britânicos declararam guerra. Produzida em alguns locais da Índia e do Oriente Médio, que na época era ocupado pelo Império Otomano, a droga era fornecida aos chineses por mercadores ingleses que a trocavam basicamente por seda, porcelana e chá. Será por acaso que esses produtos dominam a cena de Alice, por meio do Chapeleiro Louco e seus comensais? No livro, o nome original do país com o qual a menina Alice sonhava todas as noites desde os 6 anos, aliás, era simplesmente “Under Ground” – instância social em que se situavam as transações mercantis envolvendo o produto aspirado pela Lagarta Azul. Aliás ao fim da história, a lagarta “morre” para se transformar em borboleta da mesma cor. Aí a simbologia se completa: ao longo da história econômica, os ingleses trocam o comércio subterrâneo de escravos e drogas por mercadorias mais nobres, como tecidos e outros produtos manufaturados. Na versão de Tim Burton, antes de recusar o pedido de casamento feito a ela pelo filho de um Lorde, a Alice de 20 anos cai na toca do Coelho e experimenta na carne as mesmas aventuras com as quais sempre sonhara. É importante notar que, no filme, essa queda se prolonga por vários minutos e, ao seu término, a personagem cai sentada sobre o teto de uma sala, com os cabelos para cima. Ao olhar em torno, ela depara com um candelabro em que as velas se acham com a chama virada para baixo e, aí sim, cai ao chão. Isso indica que o fundo da toca coincide com um local antípoda à Europa, ou seja, o extremo oriente do planeta, onde se localiza a China. Após o término da movimentada aventura transcorrida no mundo subterrâneo, ao sair do buraco, ela encara o mundo real: recusa o pedido de casamento e chama o pai do noivo para 378 uma conversa privada. É quando ela propõe ao empresário sociedade num empreendimento comercial no extremo oriente. A protagonista deve ter vislumbrado retalhos de uma realidade futura por trás dos símbolos contidos naqueles sonhos recorrentes desde a infância. Numa premonição, observou um confronto interno entre brancos e vermelhos. Brancos, como era designado o próprio chá chinês obtido da camellia sinensis – o "chá branco". Vermelhos, como é a bandeira da China e, que na tradição da marinha britânica, também é a cor da bandeira que representa guerra. Há finalmente uma batalha na qual ela defende um dos lados: imitando São Jorge, de espada e armadura, a moça chega a matar um dragão, numa referência explícita à tradição inglesa. Aliás, os ocidentais venceram a Guerra do Ópio. Em resultado, a China abriu 50 de seus portos para o comércio com estrangeiros e a Ilha de Hong-Kong permaneceu sob o domínio inglês até 1997. Para a sua versão de Alice, Tim Burton e a roteirista Linda Woolverton desenvolveram duas histórias, uma recheando a outra. Desta forma, no primeiro ato, vemos a história real de uma menina rica que vai ser pedida em casamento por um aristocrata; no segundo, ela cai num buraco e vive (ou sonha de novo com) toda aquela fantasia com que sempre sonhou; e o terceiro ato conclui a história esboçada no primeiro, ou seja, ela volta para a realidade, recusa o pedido de casamento e tem um insight que a leva a embarcar em viajem mercantil para a China. Na cena, ela aparece usando uma gravata, numa clara alusão aos papéis reservados para as mulheres no futuro. Tim Burton e os executivos da Disney podem ter decidido essa linha para poder trabalhar com dois níveis de dramaturgia, fazendo com que o plano do discurso realista valorize a narrativa fantástica transcorrida no País das Maravilhas. Foi, aliás, o mesmo estratagema de Guillermo Del Toro em “O Labirinto do Fauno” (El Laberinto del Fauno, 2006). 379 Mas falta pensar sobre o que significa esse o Chapeleiro Louco, sempre com um dedal de costura no dedo? Na passagem em que ele participa mais ativamente da trama, está criando e costurando chapéus para a Rainha Vermelha que irá experimentá-los um a um. Naquela parte do século XIX, ainda não existia a indústria de confecção e as roupas ainda não se identificavam por meio de marcas para o mercado consumidor. E esse personagem vivido por Johnny Depp talvez possa ser visto como o protótipo de um estilista de moda, um designer excêntrico, sempre em conflito com a padronização. Talvez seja o símbolo da manufatura de roupas e tecidos que se tornaria o carro chefe da industrialização inglesa e o núcleo de seu comércio exterior. Mais do que a própria Alice, quem sabe o Chapeleiro seja a figura central desta alegoria onírica sobre o colonialismo britânico, em busca das maravilhas da China. Em suma, essa estrutura de roteiro é um enigma que Tim Burton submete ao público, equivalente aos que o próprio Lewis Carrol inventava e com os quais os personagens do livro desafiavam uns aos outros. Luciano Ramos (11)3237-2352 (11)99274-7336 culturafm.cmais.com.br/cinema-falado _____________________________________________________________________________ Cinema como perseguição. Por Diogo Vasconcelos Barros Cronemberger Diogo Cronemberger, Columbia University, [email protected] Em entrevista a David Brady publicada na New York Times Magazine em 29 de outubro de 1950, Alfred Hitchcock afirmou que a perseguição seria a expressão mais acabada do meio cinematográfico, que talvez a própria forma dramática consistisse em uma perseguição. Os estudos do pesquisador canadense André Gaudreault, editor de American Cinema, 1890-1909: Themes and Variations, oferecem uma justaposição interessante: estaria nos primeiros filmes de perseguição do início do século XX (1904-5) a transição entre o cinema de atrações e o cinema narrativo. Para Hitchcock, se tratava, em última instância, de alguém correndo em direção a um objetivo, frequentemente com o movimento reativo de alguém fugindo de um perseguidor. Vale ressaltar que, segundo ele, uma boa perseguição seria reveladora de traços de personagens. De acordo com Gaudreault, os primeiros filmes de perseguição seriam narrações de séries de atrações. Uma explicação se faz necessária: o “cinema de atrações”, termo cunhado por Tom Gunning, caracteriza-se por seu caráter exibicionista, despertando e satisfazendo a curiosidade visual do público, provocando espanto e admiração em vez de suspense - um exemplo de atração é Electrocution of an Elephant (Edison, 1903), que mostra a elefanta de circo Topsy sendo eletrocutada. A temporalidade desses filmes, que dominaram a primeira década do cinema (considerando como início dessa história a primeira projeção 380 pública do cinematógrafo dos Lumière para um público pagante em 28 de dezembro de 1895), é a da presença e da ausência, em oposição à configuração temporal de uma história, em que eventos se desenrolam a partir de um enigma narrativo. Assim, os primeiros filmes de perseguição seriam, para Gaudreault, séries de espetáculos, havendo relações temporais de causa e efeito, os tableaux centrípetos começando a dar lugar aos planos centrífugos. Para Gunning, forneciam um modelo para a causalidade, a linearidade e a montagem em continuidade, como indica Flávia Cesarino Costa em O primeiro cinema. Sem nos esquecermos de filmes de história anteriores, como os de Méliès e Porter, e até mesmo de protótipos de perseguição, como Stop thief! (1901), de Williamson, reconhecendo a multiplicidade de histórias do cinema e a dificuldade de delinearmos fronteiras de gêneros com precisão, é importante destacar que, na visão de Gaudreault, os filmes que considera os primeiros de perseguição evidenciam a interseção entre atração e narrativa e, historicamente, a mudança de paradigma, com a interseção entre traços de personagem e narrativa: sem motivação, não há perseguição. Dessa forma, começou a se desenvolver o cinema narrativo-dramático. Em seu texto “Movies and the missing link(s)”, o pesquisador canadense aponta um exemplo fundamental e influente de filme de perseguição: Personal (1904). Com esse filme, segundo audaciosa reivindicação de Charles Musser, a Biograph Company foi a primeira produtora nos Estados Unidos, talvez no mundo, a fazer a mudança decisiva para filmes longos de ficção. Com os filmes de perseguição e o estabelecimento de espaços fixos para a exibição, os “nickelodeons”, começou o processo de institucionalização do cinema como arte (“respeitável”) e negócio tal qual conhecemos hoje (ou de sua domesticação, como diria Costa), que cerca de uma década depois teria como marco decisivo O nascimento de uma nação (1915), dirigido por Griffith. Personal, com 371 pés (113 metros) e um tempo de projeção de seis a sete minutos - o que é relevante para a mudança de paradigma verificada, conta a história de um francês recém-chegado aos Estados Unidos que coloca um anúncio no jornal para encontrar uma esposa. No local do encontro, uma mulher se aproxima, imediatamente seguida por inúmeras outras pretendentes. Ele foge, até que, no final, uma delas o alcança e, empunhando uma arma, o força a casar-se com ela. A estrutura é a mesma dos outros filmes de perseguição do período (em sua maioria, cômicos): um tableau inicial mostra a ruptura da paz e termina com uma fuga, os tableaux seguintes dão continuidade à ação e a perseguição chega ao fim quando o perseguido é alcançado e punido. Conforme explica Gaudreault, não há, nesse tipo de filme, rigidez na conexão entre os tableaux (ou planos, embora seja possível argumentar que estão mais próximos de quadros independentes que de fragmentos, prevalecendo o paradigma da autonomia do quadro). Assim, a ordem dos planos poderia até ser alterada, exceto nos casos em que o número de perseguidores aumenta de um plano para outro. Parênteses: já sabemos que o termo “plano” também poderia ser alterado, mas sua escolha não é fortuita. Em Personal, a perseguição se dá em oito dessas unidades que mostram basicamente a mesma ação: o homem correndo das mulheres. Considerando-se apenas o aspecto narrativo, oito é um número excessivo. A mesma ideia é repetida, não há necessariamente desenvolvimento da ação. Considerando-se as atrações, não são tão simples as questões que se impõem. Os oito planos, além de possibilitarem o prolongamento da ação e mais detalhes, oferecem uma série de espetáculos, próprios do modo de representação das atrações. O texto 381 de um boletim da Biograph é revelador nesse sentido, explicitando que uma senhorita usando meias brancas atrai atenção levantando sua saia ao perseguir o francês. Ao longo dos planos, mudam as locações (ruas, campos e até as proximidades de um rio) e as mulheres se comportam de forma nada convencional. Fazem o mesmo caminho do homem, que corre em direção à câmera e sai de quadro. As roupas são obstáculos para as mulheres e outros obstáculos surgem a cada plano, como uma ponte e uma cerca que todos pulam ou atravessam pelo meio. Há também um barranco íngreme. As mulheres pulam, de uma vez só ou não, às vezes caindo, as saias levantadas pelo vento, revelando os tornozelos. No plano seguinte, uma das mulheres cai e se torna o obstáculo, fazendo com que as outras tropecem. Uma festa de prazer visual para os homens que assistiam a esse cinema atracional-narrativo. Ao público, além do tênue fio de história, interessavam os espaços, a beleza, a excitação presente no que é mostrado - “mostração” é outro conceito-chave, parte da teoria narratológica de Gaudreault, também útil para a discussão do primeiro cinema porque se situa em campo quase oposto ao da narração. Em suma, ao público interessava o movimento em si, sua qualidade espetacular. A constatação dessa ambivalência e desse interesse do público nos leva sem muito esforço aos dias de hoje, em que são cruciais a mesma interseção entre narrativa e atração e o interesse pelo espetacular. Nos arrasa-quarteirões atuais, há um predomínio da atração sobre o fio narrativo, há um predomínio metafórico dos oito planos em que tudo, a não ser a história, se movimenta. Citar exemplos nem é necessário, pois se trata de uma espécie de regra hollywoodiana. Reina o espetáculo da ação sem limites dos super-heróis, das explosões abundantes, dos cada vez mais sofisticados efeitos especiais. Continuando com as metáforas e a ironia, outro paralelo é possível: poucas semanas depois do lançamento de Personal, Porter lançou quase uma cópia exata, a refilmagem How a French Nobleman Got a Wife through the New York Herald “Personal” Columns; hoje em dia, apesar da rígida regulamentação no que diz respeito a direitos autorais (cuja semente foi lançada com o surgimento da figura do distribuidor no período de transição abordado) e da impossibilidade de cópias (duplicadas ou refilmadas) como no primeiro cinema (a não ser nos infinitos casos sancionados pela indústria, os “remakes”, no de obras com licenciamento alternativo, em ambientes “underground” e na internet), é crescente o número de “cópias”. Além da cópia de Porter, houve outras, até na Europa. Voltemos ao espetáculo: é justamente para que os filmes viajem para a Europa e os demais continentes e consigam “se pagar”, devido aos custos exorbitantes não mais amortizados nos Estados Unidos, que Hollywood insiste nas atrações. Os diálogos e a narrativa têm sua importância diminuída diante da ávida perseguição aos mercados internacionais. Vale lembrar que, antes da Motion Picture Patents Company, companhias francesas, lideradas pela Pathé, dominavam o mercado estadunidense quando nascia a indústria. Voltemos a Hitchcock. Fazer paralelos entre o primeiro cinema e o audiovisual contemporâneo não é novidade, mas a lição do mestre, aliada ao que está aqui exposto, pode ser bastante útil: cinema como perseguição; ou melhor, cinema de personagens como perseguição - o retorno ao primeiro cinema, bem como faria um retorno às vanguardas, evidencia que o cinema como um todo é muito mais plural. A ideia de um cinema de personagens como perseguição, da forma mais concreta à mais abstrata, pode ajudar a criação e servir como um instrumento de análise e reflexão, mesmo em relação a filmes nada hitchcockianos. Se na obra por ele dirigida é privilegiada a narrativa dramática, sempre 382 acompanhada do espetáculo, e hoje a regra hollywoodiana é o espetáculo hipertrofiado, a ênfase no sensorial também se observa em muitos “filmes de arte” atuais, o espetacular dando lugar ao sensível sutil, que também remete ao primeiro cinema, o que ocorre no “cinema de fluxo”. Nele, os conflitos são em geral internos, mas é possível falar em perseguição ou fuga, com outra intensidade, sem a mesma urgência ou clareza. Por fim, as atrações nos ajudam a pensar as possibilidades do cinema, dentro e fora do que é institucional e hegemônico. “Mad Max: Fury Road”, um dos mais importantes filmes (de perseguição) de 2015, seria um excelente estudo de caso. Bibliografia: COSTA, Flávia Cesarino. O primeiro cinema: espetáculo, narração, domesticação. São Paulo: Scritta Editorial, 1995. GAUDREAULT, André (ed.). American Cinema, 1890-1909: Themes and Variations. New Brunswick, NJ: Rutgers University Press, 2009. GOTTLIEB, Sidney (ed.). Hitchcock on Hitchcock: Selected Writings and Interviews. Berkeley, CA: University of California Press, 1995. _____________________________________________________________________________ Considerações acerca de livros simultâneos ao filme: 2001: Uma Odisseia no Espaço. Por Camila Loricchio Veiga Camila Loricchio Veiga – Universidade Federal de Itajubá (UNIFEI), [email protected] Introdução 2001: Uma Odisseia no Espaço é um filme de 1968 dirigido por Stanley Kubrick e com roteiro do próprio Kubrick em colaboração com Arthur C. Clarke, autor de inúmeros livros de ficção científica como O Fim da Infância. Durante a longa pesquisa e produção do filme, teve-se a ideia de escrever um livro para dar suporte ao roteiro, esse escrito de forma simultânea. O interessante ao se analisar o livro é a divergência de intenções de explicações que o filme quis fornecer. Uma imagem permite manter o clima muito mais enigmático do que uma descrição em palavras, nesse caso, palavras auxiliam, traduzem, permitem que considerações e explicações sejam feitas de forma descritiva, já a imagem consegue mostrar e não mostrar ao mesmo tempo: intenção de Kubrick ao fazer o filme. Essas diferenças de possibilidades que um roteiro e um romance permitem são importantes para se entender como trabalhar as duas linguagens. 2001: Uma Odisseia no Espaço é um dos casos onde o livro homônimo foi escrito simultaneamente ao filme. Após assistir e ler ambos, foi intencionado traçar um paralelo etapa a etapa pensando nas diferenças e intenções que cada um, Stanley Kubrick e Arthur C. Clarke, tiveram ao compor coletivamente as obras, para assim tentar compreender possibilidades de cada linguagem (escrita e visual/auditiva). A construção de uma odisseia 383 O ano era 1964, o homem só iria à Lua anos depois, em 1969, e nesse ano Stanley Kubrick vai conversar com Arthur C. Clarke querendo fazer um “filme de ficção científica proverbial” (AGEL, 1972, página 9), na época a tendência em filmes de ficção científica era a de roteiros mais fracos e menos embasados na física realista, ainda mais sem levar em consideração as implicações que isso teria em todos os campos da sociedade, sua relação com a filosofia e a própria religião (AGEL, 1972). Kubrick sempre teve uma relação com o cinema de inovação, seja na questão cinematográfica ou de roteiros mais experimentais, seus trabalhos posteriores como Laranja Mecânica (1971) e O Iluminado (1980) sempre tiveram detalhes que inovaram na construção e no modo de “fazer filmes”, até seu filme anterior Dr. Strangelove (1964) (Dr. Fantástico, no Brasil), que tratava de uma sátira política pesada na forma de humor negro, mostram que o diretor sempre vagou por vários gêneros cinematográficos, seja ficção científica, terror ou até filmes melodramáticos (CURTAS VILA DO CONDE, 2013). Uma preocupação dos dois autores foi a de realmente criar um filme que não acabasse se tornando obsoleto em alguns anos, considerando a corrida espacial que ainda estava em progresso na época, e foi naquele momento que perceberam a necessidade de situar o filme num futuro distante o suficiente para que isso não ocorresse, mas que não fosse tão distante que impedisse a conexão com público de acontecer (AGEL, 1972). Então, ao escrever a nossa trama nos primórdios da era espacial, Stanley e eu tínhamos um problema de credibilidade; queríamos criar alguma coisa realista e plausível, que não se tornasse obsoleta com os acontecimentos dos anos seguintes. E, embora nosso primeiro título original fosse How the Solar System Was Won (…), o objetivo de Stanley era algo além de uma simples história de exploração. Como ele gostava muito de me dizer: ‘O que eu quero é um tema de grandeza mítica’. (CLARKE, 2013, p. 14) A reunião de Kubrick e Clarke ocorreu em 22 de abril de 1964, e havia uma tensão da parte de Clarke em relação ao livro no qual se basearia o filme, tanto que o escreveram durante dois anos antes de começarem a filmagem, o que subverte a questão usual de se fazer filmes. A maior parte é feita a partir de livros que já acabaram se tornando best sellers, outros filmes se baseiam apenas nos próprios roteiros, ou por vezes há as novelizações, onde se escrevem livros a partir de filmes (AGEL, 1972), novelizações essas que Clarke demonstra ter uma aversão imensa: mas por que escrever um romance, vocês podem se perguntar, quando nosso objetivo era fazer um filme? É verdade que novelizações (ugh) são, na maioria das vezes, produzidas depois; neste caso, Stanley tinha excelentes motivos para inverter o processo (CLARKE, 2013, p. 17) As intenções de Kubrick ao criar um romance inicialmente estavam nas possibilidades que isso fornecia. Para ele o “fazer” roteiros de criar os scripts traziam uma limitação ao escritor, tolhavam sua criatividade. Então, ao começar com um livro, a intenção era ampliar ao máximo suas ideias, sem restrições de detalhamentos extremos que ocorrem nos scripts cinematográficos, embora o que tenha realmente ocorrido seja que as mudanças de roteiro e 384 as mudanças no livro acabassem se intercalando, com pedaços de um sendo baseados em versões prévias e vice-versa (AGEL, 1972). Foi mais ou menos assim que funcionou, embora, mais para o final, o romance e o roteiro estivessem sendo escritos simultaneamente, com sugestões e comentários em ambas as direções.. Assim, reescrevi algumas partes depois de ver os copiões do filme - um método bem caro de criação literária, do qual poucos outros autores puderam desfrutar, embora eu não tenha certeza se 'desfrutar' seja a palavra certa. (CLARKE, 2013, p. 18) Mesmo que o livro estivesse sendo escrito pelos dois, bem como o script, a autoria do livro ficou apenas para Clarke (embora de acordo com o mesmo, fosse mais correto dizer que o livro foi escrito por “Arthur C. Clarke e Stanley Kubrick e o filme por Stanley Kubrick e Arthur C. Clarke”)(AGEL, 1972). E mesmo antes da produção começar já havia repercussões grandes referentes aos acontecimentos. As intenções das cenas e acontecimentos no filme e no livro também eram divergentes, para Kubrick não se deveria dizer o que estava acontecendo, pois geralmente os espectadores apenas “prestam atenção com os ouvidos e não com os olhos”, ele cita em The Making of Kubrick’s 2001 que alguns que assistiram o filme foram convencidos de que a reunião onde o Dr. Floyd comparece, na base Clavius, acontece em um planeta chamado Clavius, embora as imagens demonstrem que o local é a Lua. O que terminou por comprovar o ponto de Kubrick. 92 Um paralelo Nessa seção intenciona-se mostrar quanto de dedicação foi destinada à cada parte no filme e livro: Lançamento do livro e filme: 1968 Diferença de 3 meses entre o lançamento do filme e o do livro homônimo Livro com autoria de Arthur C. Clarke e filme com direção de Stanley Kubrick, roteiro com coautoria de ambos Livro: 299 paginas Filme: aprox. 2h30 Na tabela 1, pode-se visualizar um paralelo das partes dedicadas à cada meio, filme e livro. Livro (em páginas) Parte 1:Noite Primitiva Filme (em minutos) 35 p. Dawn of Men 15 min. 92 Recomenda-se para maior aprofundamento a leitura completa do The Making of Kubrick’s 2001, de 1972 por Arthur C. Clarke, onde são explicadas várias questões sobre a produção técnica do filme e processo criativo. Que por limitação de espaço não puderam ser adicionadas no presente artigo. 385 Parte 2: A.M.T.1 59 p. (Sem título) Parte 3: Entre Planetas 36 p. Parte 4: Abismo 60 p. Jupiter Mission 67 min. (Espécie de junção das partes 3, 4 e 5) Parte 5: As Luas de Saturno 43 p. Parte 6: Através do Portal de 37 p. Estrelas (Sem título) 35 min. 18 min. Tabela 1: Paralelo do tempo/páginas dedicado à cada parte do filme/livro, Fonte: Autor, 2015 No caso, apenas 2 títulos são expostos como tal durante a exibição do filme, Dawn of Men e Jupiter Mission, por isso na Tabela 1 constam como “Sem título”. Na próxima sessão se explana um pouco mais como as limitações em cada tipo de linguagem modificaram a própria história. Limitações e Variações A primeira limitação foi quanto ao planeta para onde a Discovery rumava. No livro a missão é ir até o planeta Saturno, mas por limitações de efeitos especiais (não conseguiam realizar os anéis de Saturno com realismo convincente)93, isso acaba modificando todo o roteiro da nave, que no livro tem seu encontro com Júpiter como manobra gravitacional e parte para uma das luas de Saturno. O próprio monólito foi uma modificação, o modo como se possibilita a descrição no livro e até a entender o que as personagens pensam auxilia na compreensão de sua verdadeira natureza. Uma modificação talvez também por impedimento de recursos, foi que na Parte 1 (Dawn of Men no filme) o monólito é descrito como transparente, no filme aparecendo preto. E muitas outras considerações conseguem ser tiradas do filme por meio da trilha sonora, a primeira trilha sonora (à exceção da do título) começa com a descoberta do monólito pelos Homens-Macaco, uma cacofonia que também é descrita no livro: Era um som macabro, pois não tinha nada a ver com o Homem. Era tão solitário e sem sentido quanto o murmúrio das ondas em uma praia, ou o estrondo distante do trovão além do horizonte (CLARKE, 2013, p. 149) No livro se compreende de outra forma todos os acontecimentos pelo leitor ter acesso “à mente” dos homens-macaco. Uma diferença grande também aparece na última parte, (parte 6 no livro e parte 4 no filme), na cena do quarto. O quarto no livro é descrito como um quarto de hotel, e vemos Dave experienciar todo o quarto, seus alimentos, suas possibilidades, numa linha temporal que se julga linear. 93 Nesse caso foi uma excelente escolha, pois anos depois seria descoberto que os anéis não são sólidos e sim aglomerados de rochas e gelo, fato que tornaria o filme datado (CLARKE, 2013). 386 No filme, temos uma sequência de Dave envelhecendo e passando por várias fases da vida a cada corte. Como o fim de uma vida para o início em outra (ELIAS, 2011), culminando na cena final com o bebê vendo a Terra. Figura 5. Cena do quarto em 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968) Fonte: Print da tela do filme 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968). Toda a experiência de Dave é vivida de forma diferente quando se lê o livro, compreendendo toda a situação, entendendo o que ele sente e vê de seu próprio ponto de vista, do que quando se assiste à sequência de imagens. As conclusões que se consegue chegar são bem diferentes94. Considerações Finais Esse foi um recorte bem sucinto de vários paralelos que se pode traçar entre o livro e o filme de 2001: Uma Odisseia no Espaço, são vários as outras considerações e paralelos que são possíveis de serem feitos. A intenção desse artigo foi de mostrar como as possibilidades em duas linguagens diferentes, a escrita e a visual/auditiva (por conta da trilha sonora), promovem experiências bem diferentes e permitem que por vezes se chegue a conclusões completamente opostas. Nem sempre uma imagem te permite chegar mais longe do que uma descrição bem elaborada, ao mesmo tempo que uma imagem pode te permitir uma polissemia enorme de significados, como é o caso de 2001: Uma Odisseia no Espaço. No filme precisa-se pensar e tirar conclusões com muito mais frequência do que no livro, onde a intenção foi de esclarecer todas as questões e pontos. A partir disso seria interessante traçar paralelos entre outros casos similares para se compreender mais a fundo as possibilidades de se trabalhar com cada uma dessas linguagens, inclusive seus limites, se é que existem. Referências AGEL, J. The Making of Kubrick's 2001. The New American Library, Inc. 1970. 94 Também recomenda-se a leitura do depoimento da Srta. Stackhouse que, com 17 anos, enviou uma carta ao Kubrick na época do filme com suas considerações e opiniões, foi a que Kubrick considerou a melhor dentre todas que ele havia lido até o momento, é possível de ser vista no The Making of Kubrick’s 2001 (1972) a partir da página 201. 387 CLARKE, A. C. 2001: Uma Odisseia no Espaço. São Paulo: Aleph, 2013. ELIAS, P. R. 2001, Uma Odisseia No Espaço. março de 2011. <http://webinsider.com.br/2011/03/06/2001-uma-odisseia-no-espaco/> acesso em 9 de setembro de 2013 Curtas Vila do Conde. Sob Influência de Kubrick Artigo. <http://www.curtas.pt/solar/index.php?menu=537&submenu=550> Acesso em 9 de setembro de 2013 2001: Uma Odisseia no Espaço (2001: A Space Odyssey). Dirigido e produzido por Stanley Kubrick. EUA/Reino Unido: MGM, 1968. DVD. 142min. ______________________________________________________________ Cúmplices de uma alegoria: análise estilística do roteiro do primeiro capítulo da telenovela do SBT. Por João Paulo Lopes de Meira Hergesel João Paulo Hergesel95 Meu foco no doutorado é o SBT. Enquanto aluno do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Anhembi Morumbi, tenho como projeto de pesquisa principal a análise estilística de programas desenvolvidos pelo Sistema Brasileiro de Televisão. Embora meu objeto de estudo sejam os programas de auditório, formato que consagra a emissora, escolhi abordar a telenovela Cúmplices de um Resgate como recorte para uma das disciplinas eletivas, visto que o primeiro capítulo apresenta uma sequência inicial que recorre à narrativa alegórica. Escrita por Iris Abravanel – com colaboração de Carlos Marques, Fany Higuera, Grace Iwashita, Gustavo Braga e Marcela Arantes e supervisão de texto de Rita Valente –, a telenovela, que tem direção geral assinada Reinaldo Boury – em parceria com Luiz Antônio Piá, Mário Moraes, Ricardo Mantoanelli e Roberto Menezes –, conta a história de irmãs gêmeas separadas no nascimento. No ar desde 3 de agosto de 2015, trata-se de uma adaptação da novela mexicana Cómplices al Rescate, de autoria de Rosy Ocampo. Por se tratar de uma adaptação, elementos são adicionados e subtraídos do roteiro. Uma das problemáticas encontradas por Iris Abravanel é que, na versão original, a trama se inicia com as protagonistas já adolescentes, sem uma justificação introdutória de como as irmãs foram separadas. Desejando inserir uma passagem explicativa, mas preocupada com o público-alvo – considerando que poderia ser agressivo para crianças apresentar o sequestro de um bebê –, Abravanel optou por fazer uso da alegoria. 95 Doutorando em Comunicação pela Universidade Anhembi Morumbi (UAM) e bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (PROSUP/Capes). Mestre em Comunicação e Cultura e licenciado em Letras pela Universidade de Sorocaba (Uniso). Membro do Grupo de Pesquisa em Narrativas Midiáticas (Uniso/CNPq). Contato: [email protected]. Orientador: Prof. Dr. Rogério Ferraraz 388 Imergindo no mundo dos contos de fadas, Abravanel mostrou o sequestro da criança dentro de um universo mágico, proporcionado por um livro que a personagem Dóris lê na biblioteca, para depois estabelecer um diálogo com o que a diegese consideraria “vida real”. Coube a mim, portanto, analisar a alegoria, enquanto figura de linguagem e fenômeno da Estilística, como recurso condutor de uma narrativa infantojuvenil, movido pela inquietação em descobrir como a alegoria deu conta de exibir, de forma sensível e afetiva, a separação das gêmeas Isabela e Manuela, personagens vividas pela atriz Larissa Manoela. Dentre alguns teóricos que utilizo nos meus trabalhos e que, de certa forma, estão umbilicados a este início de análise são: Arlindo Machado, no que compete aos estudos televisivos; Silvia Maria de Sousa, nas discussões acerca do SBT; e Nilce Sant’Anna Martins, nas abordagens estilísticas. Com isso, procuro entender como a Estilística pode interferir na produção de roteiros de telenovela. Para isso, portanto, elegeu-se como corpus a sequência inicial de 11 minutos da versão brasileira de Cúmplices de um Resgate. Figura 1 – Personagens Manuela e Isabela, irmãs gêmeas interpretadas pela atriz Larissa Manoela, em Cúmplices de um Resgate. No meio, o cachorro Manteiguinha. Fonte: SBT – Divulgação. A sequência começa com Dóris folheando um livro e, enquanto a câmera mergulha em uma das ilustrações, que servirá de ambientação para a subdiegese (ou diegese da diegese), a garota faz a narração: “Em um reino não muito distante...”. A Floresta Encantada, com direito choupanas e palácios, entra no foco da narrativa, em possível alusão ao universo mágico proporcionado pela leitura. Nessa passagem, a abertura é marcada pela donzela plebeia que lamenta com a mãe a fuga do marido, mas mostra-se esperançosa por seu retorno. Também é mostrada a falsa gravidez da rainha má e pacto que o escudeiro paladino faz com o médico, nas trevas da floresta noturna, em troca de um baú cheio de tesouros. O desmaio da donzela durante o parto das gêmeas e o chamado de sua mãe, cerzideira, ao trabalho são elementos-chave para facilitar o roubo de uma das crianças pelo vilão. 389 No palácio, a rainha má aparenta estar descontente com o fato de o bebê ser do sexo feminino, mas o rei demonstra empatia por aquela que acredita ser sua filha biológica. A sequência se encerra congelando a imagem do rei abraçado com a princesa e a câmera se move em travelling, reforçando que saiu de dentro do livro. O último frame se transforma em ilustração, e Dóris encerra a sequência com a narração: “Orlando abraça a filha fortemente”. Em seguida, seu irmão, Mateus, interrompe sua leitura para chamá-la. É perceptível, na sequência do universo fantástico, que a heroína da narrativa foi retratada como a camponesa ingênua, enquanto a anti-heroína foi figurativizada pela imagem da rainha má. Configura-se, assim, a alegoria, isto é, uma espécie de metáfora continuada cuja consistência encontra-se na substituição do chamado pensamento em causa por um outro pensamento; este outro pensamento está ligado, numa relação de semelhança, ao primeiro pensamento. Em outras palavras e de uma maneira mais generalizada, a alegoria é a figura de linguagem que se caracteriza por um conjunto de metáforas, imagens e comparações, formando uma produção totalmente fantasiosa, sem vínculo explícito com a denotação. Diante disso, passei a me perguntar como a crítica de televisão, talvez o meio mais amplificado de se ter uma opinião geral acerca de um produto televisivo, enxergou esse aspecto estilístico. Patrícia Kogut, do Jornal O Globo, escreveu96: Cúmplices de um resgate” tem a seu favor a realização. No gênero, é bemdirigida e livre de efeitos toscos. Se o elenco conversa com flores cenográficas e contracena com baús repletos de ouro é porque a história pede. A novela lembra as montagens mais desprovidas de imaginação de “Branca de Neve”, mas por escolha artística, não por acidente. É essa mesma escolha que deverá acertar aquele público do SBT que acompanho com gosto “Chiquitas” (sic), “Carrossel” e afins. Essa trama, como as outras, equilibra bem a previsibilidade e as intrigas pueris. Existe uma menção ao recurso estilístico e sua suposta utilização: “por escolha artística”. No entanto, o roteiro é desconsiderado em sua relação com o sentido conotativo; a crítica foca-se na direção e na composição de cena, bem como no espectador idealizado e como esse públicoalvo receberia a mensagem, muito mais do que os enlaces da trama. Já Neuber Fischer, do Observatório da Televisão, resenha97: Com qualidade ímpar em cenografia, figurino, maquiagem, iluminação e sonoplastia, a nova novela adaptada por Iris Abravanel, guardadas as devidas proporções e limitações, é digna de produções hollywoodianas. Alegre, colorida, família, Cúmplices de Um Resgate [...] mistura a magia do conto de fadas, com a simplicidade do interior e elementos típicos de um 96 KOGUT, Patrícia. ‘Cúmplices de um resgate’: estreia leva espectador a embarcar num conto de fadas. O Globo (05/08/2015). Disponível em: <http://kogut.oglobo.globo.com/noticias-datv/critica/noticia/2015/08/cumplices-de-um-resgate-estreia-leva-espectador-embarcar-num-conto-defadas.html>. Acesso em: 18 ago. 2015. 97 FISCHER, Neuber. Cúmplices de Um Resgate mostra expertise do SBT em novelas infantis. Observatório da Televisão (04/08/2015). Disponível em: <http://observatoriodatelevisao.com.br/opiniao/2015/08/cumplices-de-um-resgate-mostra-expertisedo-sbt-em-novelas-infantis>. Acesso em: 18 ago. 2015. 390 dramalhão como gêmeas separadas da família ao nascer, príncipe (mocinho rico) e camponesa (mocinha pobre) que se apaixonam, bruxa (vilã e rica), que faz de tudo para atrapalhar a vida dos bons, entre outros clichês, que todo mundo adora. É notável que a crítica exalta os aspectos positivos, muitas vezes beirando a hipérbole, o exagero, como em “digna de produções hollywoodianas”. Também pode-se perceber que o crítico menciona sutilmente a presença da alegoria, pelo menos ao estabelecer as relações príncipe/mocinho rico, camponesa/mocinha pobre e bruxa/vilã e rica. Esse fenômeno estilístico, entretanto, não é explorado; a presença dos efeitos especiais chama mais a atenção do que as estratégias narratológicas. Outros críticos como Nilson Xavier, Maurício Stycer, James Akel, Flávio Ricco e José Armando Vanucci fazem abordagens comuns à produção audiovisual: direção, elenco, ângulos e posicionamento, figurino, cenografia e até mesmo autoria. Contudo, o roteiro e suas artimanhas deixam de ser destaque – ou até mesmo de ganhar uma nota de rodapé. Críticos como Fabíola Reipert e Odair Braz Jr., comuns por estabelecerem comentários sobre telenovelas, não escreveram nada sobre o respectivo programa. Perante o exposto e do material analisado, foi possível chegar às seguintes considerações: em geral, não se discute o que está além da mise-en-scène; apenas uma crítica menciona, de fato, os aspectos estilísticos, sem se aprofundar no assunto, dando ao gênero – ou até mesmo à história – relevância maior que à trama; não há apontamentos da novela como constructo social, pois ela é praticamente tratada como obra per se; tampouco existe relação entre o remake e a obra original, dando àquela o caráter de produto inédito, sem dependências ou até mesmo recriação. _______________________________________________________________ Da tela para o livro. Por Graciene Silva de Siqueira Graciene Silva de Siqueira98 Assim como livros, contos, peças teatrais, entre outros, podem inspirar um produto audiovisual (para TV ou cinema), de igual forma um produto feito inicialmente para essas duas mídias pode resultar em um livro, em processo denominado por Gérard Genette de narrativização. Ela ocorre com menos frequência, em comparação à adaptação literária, e para Gennete esse pequeno interesse em narrativização se dá por ser comercialmente mais atraente levar uma narrativa para o palco (ou para a tela) do que o contrário. Constatamos isso em breve pesquisa sobre o tema, na qual identificamos pouco mais de uma dezena livros, produtos de narrativização. Entre os filmes que migraram das telas para as páginas impressas podemos citar Star Wars (1977), Alien (1979), Resident Evil (2002), Branca de Neve e o caçador (2012), O Exterminador 98 Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Letras da UPM e bolsista do Programa RHInteriorização da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (Fapeam). 391 do Futuro (1984), Os gonnies (1985) e A garota da capa vermelha (2011). Em terras brasileiras temos O invasor (2002), de Marçal Aquino, pensado inicialmente para livro, mas que chegou primeiramente às telas, para então depois ganhar versão impressa. São obras oriundas de filmes que obtiveram bons resultados nos cinemas, o que nos leva a concluir que a narrativização nesses casos é atraente comercialmente, ampliando os ganhos do produto audiovisual, ao mesmo tempo em que fideliza os fãs. São vários os trabalhos que analisam a adaptação da obra literária para o cinema, mas poucos que fazem o caminho inverso, o que pode ser explicado até mesmo pelo pequeno número de livros, como vimos, que originam do produto audiovisual. Essa lacuna que impulsionou a elaboração do presente estudo, uma análise comparativa entre o episódio Blood da série Arquivo X, exibida na década de 1990, e o livro originado do produto audiovisual, escrito por Les Martin. O seriado e o livro O seriado Arquivo X, criado por Cris Carter, estreou na TV americana em 10 de setembro de 1993. Exibida pela Fox, a série acompanha as investigações dos agentes do FBI Fox Mulder e Dana Scully, que trabalham em um departamento responsável por casos considerados estranhos, os X-Files. A série teve nove temporadas, totalizando 202 episódios, com o último exibido em 2002. O sucesso da série rendeu dois filmes para o cinema: Arquivo X: o filme (1998) e Arquivo X: Eu quero acreditar (2008) e dois spin-offs99 The lone Gunman (2001) e Millenium (1996-1999). Na TV brasileira aberta, foi exibida pela Rede Record. A série ganhou adaptação em HQs, de 1995 a 2009, pela Comics e Mythos. O artigo analisa o terceiro episódio da segunda temporada da série, Blood, baseado em história de Darin Morgan, com direção de David Nutter, e escrito por Glen Morgan e James Wong. A história se passa na cidade de Franklin, Pensilvânia (EUA), onde algumas pessoas, consideradas até então pacatas, tornam-se assassinos violentos após receberem mensagens via aparelhos eletrônicos. Originalmente exibido em 1994, o episódio tem 45 minutos de duração. No Brasil, o livro escrito por Les Martins ganhou o título de Sangue e foi lançado no Brasil em 1997 pela editora Mercuryo, responsável pela edição de outros episódios da série. Entre os livros, há três com histórias originais que não existem em versão para a TV. Análise comparativa Norteamos nossa análise a partir dos estudos de Gérard Gennete sobre hipertextualidade, relação de transformação ou imitação que um texto mantém em relação a um texto anterior, abordada em sua obra Palimpsestos: a literatura de segunda mão. Neste trabalho, o texto anterior, denominado de hipotexto, é o episódio do seriado e o texto derivado, chamado de hipertexto, o livro. 99 Série derivada de outra série. 392 Ao discorrer sobre como a hipertextualidade pode se manifestar no texto, Genette destaca as transformações quantitativas – operações de redução e adição. E cada uma dessas apresenta subdivisões. Neste estudo, identificamos o processo de adição, por meio da expansão. “Digamos por caricatura que esse procedimento consiste em dobrar ou triplicar a extensão de cada frase do hipotexto” (2010, p.107). Na narrativização de Blood, percebemos essa extensão em relação à história dos personagens, cujas motivações são mais desenvolvidas, em comparação ao episódio. O livro traz ainda mais informações sobre os personagens, dando a eles um passado, como no caso do personagem Ed Funsch. Na série o que sabemos sobre ele é que trabalha no Serviço Postal Americano, acabou de ser despedido, tem alucinações e pavor de sangue. No livro, descobrimos que ele acha o trabalho extremamente aborrecido (o que não fica claro na série) e temos uma maior descrição do seu estado mental, sua perturbação diante das alucinações. Houve também ampliação dos diálogos, que passam a ser usados para acrescentar informações que na série eram apenas mostradas ou descritas por meio das imagens. Les Martin usou como base o texto do roteiro, que tende a ser enxuto, a não entrar em explicações, como observado por Syd Field, consultor de roteiros em Hollywood, em sua obra, Manual do Roteiro. “O roteiro é uma história contada em imagens, diálogos e descrições, localizada no contexto da estrutura dramática” (2001, p.2). Como sua principal função é contar uma história, o que vai prevalecer no roteiro são informações visuais. Assim, pensamentos e intenções de personagens são indicadas em suas ações e nos diálogos, enquanto no livro isso ocorre na mente dos personagens, revelados por um narrador. A ordem cronológica da história do episódio manteve-se no livro, assim como quase 100% do conteúdo – o mesmo enredo, personagens e situações. O escritor buscou ainda manter a linguagem própria do meio audiovisual. No episódio, uma cena onde Mulder analisa os arquivos de um assassino contém inserções de imagens de Scully lendo o relatório escrito por Mulder, numa montagem paralela100. As imagens se alternam, o que o escritor também faz no livro, intercalando trechos de Mulder escrevendo e Scully lendo. Uma mudança substancial no episódio é o corte de uma cena onde Mulder, em sua corrida matinal, percebe um caminhão no bairro lançando inseticidas na grama. No livro, Mulder apenas refere-se a ela, como algo passado, mas que não é exposto na narrativa. Aparentemente não houve perda para a compreensão da história no livro, mas o fato é que na série trata-se de cena importante, pois mostra uma das características principais de Mulder, sua capacidade de observação. É a partir desse momento que ele consegue solucionar o caso. A cena também é visualmente interessante. Ao se aproximar do lugar onde foi lançado o inseticida, Mulder percebe vários insetos mortos e pega um deles entre os dedos. A seguir temos um plano detalhe101 da mosca na mão de Mulder. A câmera então se afasta em um zoom out102 e mostra que a mosca não está mais na mão de Mulder, mas na de um cientista, 100 Alternância entre ações simultâneas Plano próximo que mostra parte do corpo do personagem ou apenas um objeto 102 Movimento de câmera que afasta imagem antes próxima 101 393 amigo dele. O plano detalhe permitiu a mudança de ambiente, da calçada ao ar livre para um laboratório, ondem tentam descobrir a causa da morte do inseto. O texto também tem suas vantagens, assim como a imagem. Em uma cena do episódio em que o xerife Spencer está ao telefone conversando sobre os resultados dos exames de sangue feitos com a população, a câmera mostra o ambiente em um movimento panorâmico, aproxima-se do xerife que está ao telefone (ouvimos sua conversa) e depois acompanha-o até um quadro onde estão Mulder e Scully. No livro, ainda que não consiga expressar essa experiência visual, obtemos informações mais detalhadas do ambiente, do material de investigação que está anexado ao quadro e das ações da polícia na tentativa de encontrar um possível suspeito. Por fim, no livro ocorre uma mudança na sequência final, que não se trata de redução ou adição, mas de dar um novo sentido ao enredo. No seriado, após a polícia levar um atirador que tentara matar várias pessoas durante coleta de sangue, Mulder decide ligar para Scully e antes de conseguir falar com ela, lê no visor do celular as palavras “Tudo acabado” e “Adeus”, a exemplo do que ocorria com os personagens que recebiam mensagens por meio de aparelhos eletrônicos com ordens para matar. Enquanto Mulder tenta compreender o que está acontecendo, ouvimos a voz de Scully ao telefone, sem obter resposta de Mulder. A tela escurece, ouvimos Scully chamando por Mulder, em tom preocupado, e entram os créditos, encerrando o episódio. No livro, Scully está com Mulder. Enquanto ela decide ir para o hospital com o Xerife, Mulder fica na cena do crime. Ele pega o celular e digita um número (no livro não especifica para quem) quando vê no visor os dizeres “Tudo acabado” e “Adeus”. Mulder apenas olha para o visor e responde “Isso é o que vamos ver”. Em nossa opinião, o final do episódio televisivo é mais coerente com o programa, pois suscita vários desfechos: Afinal, Mulder está sofrendo alucinações? Foi severamente atingido pelo gás tóxico? Ele também vai se tornar um assassino, como as demais vítimas das mensagens subliminares? Mistério esse que não se sustenta no livro. Considerações Grande parte do conteúdo do livro é o que se encontra na série e as mudanças feitas tiveram como objetivo dar maior densidade aos personagens e aos eventos. Do ponto de vista do texto, este ficou ao roteiro, com alguns acréscimos, como observado por Gérard Genette, e cujo objetivo foi triplicar a extensão do texto já existente. Por outro lado, no processo de narrativização percebe-se que não houve preocupação com a construção de um texto mais elaborado. Podemos atribuir o texto mais simples do livro ao fato dele ter sido baseado no roteiro, cujo conteúdo tem como propósito, principalmente, fazer indicações técnicas aos realizadores do filme, sobre como deve ser montado o cenário, qual o figurino e quais as ações (e expressões) dos personagens. ______________________________________________________________ 394 Cinema, uma arte (só) do diretor? - Evidências de Autoria no Roteiro Cinematográfico Márcio Henrique Melo de Andrade, Doutorando em Comunicação (UERJ) Este artigo almeja problematizar as noções de autoria na criação cinematográfica, explicitando a figura do roteirista e as recorrências temáticas e estéticas ao longo de suas obras. A maioria dos estudos e publicações sobre autoria no cinema envolvem o diretor, como a politique des auteurs dos críticos da Cahiers du Cinèma. Contudo, autores como Sarris, Buscombe, Wollen, Heath e Tredge, por exemplo, desconstroem essa ideia e contextualizam a diversidade de autorias que compõem a narrativa e o discurso fílmico. A partir da minha experiência como roteirista, além de acompanhar a carreira de roteiristas (como Kaufman, Wilder, Allen, Sorkin etc. que possuem especificidades autorais), percebo que alguns escritores exibem evidências de autoria a partir de três aspectos – Imaginário, Narrativa e Linguagem, que podem ser destrinchados. Ao debater e traçar indicadores destas evidências, pretende-se imaginar métodos de criação e formação e valorizar o status do roteirista nos estudos de autoria. Introdução Movie opens. Charlie Kaufman, fat, old, bald, paces. His voice-over carpets the scene. "I am old. I am fat." Na metade do filme Adaptação, roteirizado por Charlie Kaufman e dirigido por Spike Jonze, vemos o sofrido Charlie carregando a cruz de escrever um roteiro inventivo para adaptar um livro “sem narrativa”: O Ladrão de Orquídeas, de Susan Orlean. E, sem aviso, percebemos que se trata do processo criativo do filme que já estávamos assistindo uma hora antes. Nesse ourobouros que desvela véus de autoria que confunde ao mesmo tempo que inspira, Charlie Kaufman, literalmente, expõe a si mesmo e os dilemas da criação. Corta para. Uma folha em branco. Uma máquina de escrever. Um sujeito com uma angústia atroz. Roteiristas, escritores, dramaturgos em crise são personagens constantes na história do cinema: Barton Fink, Tiros na Broadway, Garotos Incríveis e outros tantos títulos versam sobre as distintas maneiras de atravessar o exercício da criação, complexo por natureza. Com minha experiência no exercício do roteirismo, já atravessei várias delas e de diversas formas, com soluções dignas (e outras nem tanto). Muitas estas representações exibem o roteirista como figura arredia, pouco afeita ao contato pessoal e que possui certa integridade artística ao não se “vender para a indústria”, mas sabemos que existem roteiristas de todos os tipos e personalidades. Focando neste aspecto da integridade artística, acredito que, mais do que ser um sujeito que tenta resistir o máximo que pode às mudanças que ferem seus princípios e modus operandi, os roteiristas (ou alguns deles, ao menos) serpenteiam brechas para evidenciar ao mundo suas ideias mais particulares. Contudo, quando se estuda o exercício da autoria no cinema, a figura do diretor termina sendo valorizada (em demasia, talvez?), ignorando-se as criações que envolvem a centena de profissionais que adentram o processo, como compositores, diretores de arte, figurinistas, 395 designers de som e de créditos etc. e, no meio deles, os roteiristas. No início da Era de Ouro de Hollywood, os roteiristas eram considerados verdadeiros autores dos filmes, quando alguns deles, como Billy Wilder, por exemplo, possuíam imenso prestígio junto aos estúdios. Porém, com a ascensão da politique des auteurs, que, claro, teve amplas contribuições na valorização do status artístico do cinema e da figura do diretor, os roteiristas terminaram perdendo este posto. Corta para. Greve de roteiristas nos EUA. Organizada pela Writers Guild of America (WGA), começou no dia 5 de novembro de 2007 e findou em 12 de fevereiro de 2008, gerando quedas de audiência, prejuízos financeiros e paralisação de produções em cinema, rádio e televisão. Com esta interrupção nas atividades, tornou-se perceptível a importância dos roteiristas no processo criativo da maquinaria cinematográfica estadunidense, gerando favorecimento no lucro dos produtos concebidos com as ideias de seus autores. Mas que, conexões podemos ver entre a autoria e as exigências sindicais? Valorização das contribuições seminais de uma categoria e de um status artístico de que muitos diretores gozam, mas poucos roteiristas possuem. Quantas pessoas conhecem nomes como Steven Spielberg, Christopher Nolan e David Fincher e desconhecem Aaron Sorkin, Tina Fey ou Guillermo Arriaga? A política (ou teoria, para alguns) do autor termina negligenciando uma das figuras mais relevantes para a construção de histórias na arte cinematográfica e, através deste artigo, pretende-se iniciar, a partir de algumas elucubrações a respeito do que vem caracterizando minha análise sobre meu próprio processo criativo, do que poderia envolver o que, provisoriamente, intitulo Evidências de Autoria no Roteiro Cinematográfico. Os indicadores que compõem estas evidências serão destrinchados posteriormente, a partir das temáticas e critérios que vêm sendo estudados sobre autoria no cinema, aliando a especificidades que envolvem o ofício do roteirismo. Autoria no Cinema Uma diversidade de teóricos já escreveu sobre a arte da autoria (no cinema e em outras artes), tentando compreender como acontece a gestação de uma obra, os métodos percorridos e os significados mais amplos que se desenhavam ao longo de suas carreiras. Se os cineastas e críticos da Cahiers du Cinéma Truffaut, Godard, Jacques Rivette e André Bazin estavam interessados na valorização do cinema como arte e da figura do diretor, teóricos como Bazin, Caughie, Sarris, Buscombe, Tredge e Heath criticavam fortemente os textos provenientes da politique des auteurs por seus critérios de caráter valorativo e, às vezes, tendencioso, assim problematizavam não somente o fato de ser uma criação de organização individual, mas com colaborações coletivas, mas também consideram um conjunto de forças que criam as condições para que esse artista individual emerja. Ampliando esta lógica mais estruturalista, que tentava perceber uma linha mestra que guiava as obras de diretores como Hitchcock, Renoir, Polanski e outros tantos, alguns estudos cinematográficos estão oferecendo olhares mais diversos e complexos sobre a questão da autoria. Contudo, o que se procura neste artigo é tentar compreender como autor e sua obra se criam ao mesmo tempo, como os roteiristas concebem, ressignificam e recriam imaginários, narrativas e linguagens no processo criativo. Não se procura pressupor que o autor é uma 396 instância externa, etérea e una, mas solidificar a ideia de que esse atravessa vivências externas ao processo criativo que nele influenciam. Para identificar estas evidências, mostra-se necessário destrinchá-las em indicadores. Evidências de Autoria no Roteiro Cinematográfico A partir da experiência como roteirista e de minhas reflexões sobre como me envolvia no processo criativo, delineei três indicadores destas chamadas Evidências de Autoria no Roteiro Cinematográfico: Imaginário, Narrativa e Linguagem, que se encontram segregados por pura didática, mas que se mostram imbricados enquanto o autor concebe sua obra. Quanto ao que chamo de Imaginário, pode ser definido como conteúdo cultural, os modos de ver e existir do autor, as histórias que já ouviu e que gostaria de contar, os personagens que gostaria de conceber, as mensagens que gostaria de comunicar. De início, denominava este indicador como Repertório Cultural, mas, a fim de trazer uma percepção menos técnica, pragmática e até limitada do ofício do roteirista, pareceu-me interessante e amplo lidar com a ideia de imaginário. Se repertório parece se conectar mais à diversidade de produtos e experiências com que entramos em contato durante a vida – livros, filmes, programas de televisão, programas radiofônicos, expressões do dia a dia, experiências de vida, conversas com pessoas de diversas origens e áreas etc. –, a ideia de imaginário me permite refletir sobre ideias, sentimentos, narrativas, construções ideológicas etc. que envolvem as práticas cotidianas e como essas podem ser distorcidas nas ficções que criamos. Quanto à narrativa, apesar de partir do clássico modelo de Introdução, Desenvolvimento e Conclusão e suas variáveis, considera-se narrativa os modos de organização da experiência, independente de sua lógica se der de forma linear, não-linear, experimental etc. Considera-se essencial neste aspecto os modos de organização dos eventos que compõem a narrativa do autor, como as ações dos personagens (ou modos de subjetivação ou corpos-situação para roteiristas que não trabalham com personas como as conhecemos), tempo, ambiente etc.. Além disso, neste indicador, mostra-se necessário compreender como os autores concebem o vínculo com seu público: se por uma identificação de linha mais aristotélica ou de distanciamento mais épico, digamos assim. Quanto à linguagem, inicialmente, considera-se os modos de articulação dos eventos através das palavras e suas conexões com as imagens descritas nas rubricas do roteiro. Se nos veículos de comunicação audiovisual (programas de TV, rádio etc.), a linguagem mostra-se essencial para que uma mensagem seja compreendida pelo público, investe-se, muitas vezes, em uma linguagem simples, coloquial e direta – o que, muitas vezes, “despersonaliza” a forma que se deseja trazer à narrativa e ao imaginário pretendidos. Mas, mesmo diante destas pressões, como os roteiristas desenvolvem, através das palavras, as ações dos personagens e os modos como estes são percebidos pelo seu público? Estes três aspectos (ainda inicialmente delineados) foram conjeturados a partir da minha própria experiência ao refletir sobre meu processo de criação, mas, a partir do diálogo com outros roteiristas e teóricos relacionados a cinema, é possível destrinchar estes e outros 397 aspectos que não foram contemplados. Ao conceber estes aspectos, pretendo me distanciar de fórmulas que ditem o “sucesso para ser um autor (de verdade)” ou “descobrindo a autoria de (Fulano de Tal) em três passos”, mas investir na reflexão particular dos próprios roteiristas sobre os aspectos que atravessam suas próprias obras e como elas refletem suas próprias vivências, questões e prospecções de existência – e, assim, criar com mais consciência e inconsciência. Além disso, acredito que, ao compreender alguns dos aspectos que envolvem o autorismo no ofício do roteirista, é possível dar os primeiros passos rumo à uma maior valorização do seu espaço de criação dentro de uma indústria e de uma arte coletiva e colaborativa. Se Kaufman, Mantovani, Allen e Lacerda demarcaram, cada um à sua maneira, seu território, faz sentido acreditar que seja possível outros roteiristas encontrarem o seu a partir da reflexão sobre o que fazem. 398 Debate: "Meios e fronteiras da concepção audiovisual" Mediação José Carlos Sibila Projeção mapeada em cena - Estudo de caso. Por Ricardo Botini Salgado Apresentaremos um roteiro de concepção e produção de uma projeção de vídeo mapeada, como recurso cenográfico, para a peça de teatro intitulada "Quem disse que Inês é Morta?!". Um monólogo que aborda a vida da dama da corte portuguesa Inês de Castro, decaptada em 1355. No roteiro da peça, a história de Inês de Castro é contada por uma narrativa em off (parte ilustrada pelas projeções) e comentada por diferentes personagens que levantam temas relacionados a poder, amor, justiça, traição , etc. Nos trechos em que ocorrem as narrativas sobre a tragédia do amor de Inês, a ideia é que, como numa espécie de fantasmagoria, a projeção traga a presença de Inês e de seu universo de forma imaterial. Mais do que simplesmente fazer uma projeção "quadrada" sobre o palco, o esforço foi sempre buscar uma interação com elementos cênicos reais presentes em cena (trono e esferas) com uso de técnicas de mapeamaneto de vídeo com o software Modul8. Trabalhos do Artista/Diretor norte-americanoTony Oursler serviram como referencial na construção de imagens e projeções mapeadas para o espetáculo. Imagens de olhos e bocas isolados, separados de suas respectivas faces são projetadas em superfícies esféricas. Produção e Projeção de vídeo A produção audiovisual foi impactada nos anos 1960 com a disponibilização no mercado de câmeras de vídeo. Recursos até então dispendiosos e exclusivos de emissoras de TV, como a gravação em fita e imagem em tempo real, fizeram com que artistas de vanguarda passassem a ter o vídeo como um suporte de trabalho. Obras de Nam June Paik, junto ao grupo Fluxus, são referências históricas desse processo. Ao mesmo tempo que presente no cotidiano das pessoas por meio da transmissão televisiva, a imaterialidade do vídeo desafia e convida o fazer artístico a um diálogo constante. Para Philippe Dubois, esta é a situação do video "...que se movimenta assim entre a ordem da arte e da comunicação, entre a esfera artística e a midiática - dois universos a priori antagônicos."(DUBOIS, 2004) O salto tecnológico ocorrido pela revolução microeletrônica em meados dos anos 1970 trouxe, como consequência, um barateamento de equipamentos como projetores digitais. E a partir disso, é percebida a sua crescente utilização em shows e apresentações de teatro e dança como um recurso cenográfico. 399 Por conta da forma de sua apresentação e com um tipo de linguagem que possui mais traços comuns à Videoarte e às Artes do Vídeo do que propriamente ao discurso cinematográfico tradicional, este tipo de manifestação, ainda sim, percorre processos pertencentes ao fazer audiovisual, como roteirização (concepção), produção (realização) e exibição (projeção). Nas palavras do pesquisador Marcus Bastos, " Com a diversificação de formatos dos diferentes ciclos tecnológicos que se sucedem, os entendimentos mais heterogêneos, que percebem a cultura audiovisual em sua pluralidade e cruzamento de circuitos revelam-se mais adequados que aquele que desconsideram a hibridez dos processos em curso, ao defender a estabilidade de formatos ou gêneros."(BASTOS, 2015) Processo de trabalho O intento nesta apresentação é abordar mais incisivamente o processo de trabalho e o instrumental utilizado em cada uma das 3 etapas citadas acima; concepção, realização e projeção. - Concepção (Roteirização): Nesta fase, o roteiro da peça teatral é utilizado como referência do que deve ser produzido e quais serão as características e propriedades destas imagens. As narrativas em off são destacadas e a partir de cada trecho é imaginada uma situação ou imagem que trace um paralelo com a ideia principal do texto. - Realização (Produção): Esta etapa do processo é a que mais se aproxima das atividades da construção do audiovisual tradicional. Envolve gravação de personagens em estúdio (com fundo verde para posterior recorte em croma key)para a construção do espectro de Inês de Castro. Após a gravação em estúdio, são utilizados softwares de edição de vídeo (Final Cut) e videografismo (After Effects). - Projeção (Exibição): Esta etapa é o próprio mapeamento do vídeo e sua respectiva execução na forma de projeção. O software utilizado foi o Modul8. Mais do que cimentar regras e definir padrões, o intuito desta apresentação é criar um debate sobre métodos e processos de trabalho com a materialidade do audiovisual e a troca de experiências dentro deste contexto. Referências Bibliográficas: BASTOS, Marcos. Audiovisual ao Vivo. Feedbacks entre os Cinemas Experimentais, as Artes do Vídeo e o Audiovisual Contemporâneo. Revista ECO PÓS - Arte, Tecnologia e Medição. Vol. 18. N.1.Rio de Janeiro - UFRJ, 2015. DUBOIS, Philippe. Cinema, vídeo, Godard. São Paulo: Cosacnaify, 2004. 400 SESSÃO 4 - PALESTRAS Mitologia no cinema contemporâneo: Superman, Batman e Star Wars Carlos Pereira Gonçalves RESUMO O artigo pretende discutir sobre a permanência de comportamentos mitológicos no imaginário simbólico das sociedades contemporâneas refletidos no cinema. Para tanto aborda inicialmente a definição de mito e sua inserção nas culturas tradicionais e modernas; as estruturas, arquétipos e funções principais com base em autores como C. G. Jung, M. Eliade e J. Campbell e G. Bachelard. Para análise do material audiovisual foram interpretados filmes dos gêneros aventura, fantasia e ficção científica que iniciaram franquias a partir dos anos 1970, com o objetivo de delinear modelos de herói de características míticas a partir do cinema popular-massivo. Os longas-metragens selecionados foram - Superman (1978) e Batman (1989), cujos enredos foram baseados nas histórias em quadrinhos da editora norte-americana DC Comics, bem como a primeira trilogia do épico espacial - Star Wars (1977-80-83), criado por George Lucas. PALAVRAS-CHAVE: Mitologia. Cinema contemporâneo. Super-heróis. Gêneros ficcionais. A JORNADA MITOLÓGICA Nas sociedades tradicionais os mitos refletem o modo como homens e mulheres pensam/sentem o mundo ao redor e a si próprio. São observados na narrativa oral por meio de histórias imaginárias compostas de seres extraordinários em tramas de encanto e magia, uso de objetos simbólicos e experiência de ritos coletivos. Inserem-se no cotidiano dos povos primitivos e projetam anseios sociais e arquétipos do inconsciente coletivo que dizem respeito aos sentidos da vida, a noção do tempo, os ciclos da existência (infância, maturidade e velhice), a origem da comunidade, os mistérios da natureza e a morte. Edgar Morin (2009), em sua teoria da complexidade, afirma que tanto as culturas primitivas como as modernas possuem dois eixos fundamentais de dinâmica e estruturação do pensamento: o simbólico/mitológico/mágico e o empírico/técnico/racional. Se nas sociedades tradicionais o mito ou a religião são modelares na formação das mentalidades e movo de vida, a outra esfera é também essencial para a sobrevivência destas. Cabe considerar que os povos primitivos constituíram um sofisticado conhecimento técnico sobre a natureza. Em relação às sociedades contemporâneas, a razão e a ciência são os dínamos mais aparentes da cultura e economia, mas o outro lado do duplo, que define e modela a natureza humana desde os tempos pré-históricos, o simbólico/mitológico/mágico, também se sedimenta a despeito de sua condição subterrânea, camuflada ou metafórica, agindo tanto na conservação como na transformação do imaginário social. 401 A arte tem uma função especial para a permanência do mito no mundo moderno segundo Joseph Campbell (2002). O que ele chama de mitologia criativa. O autor discorre sobre certos artistas, como Thomas Mann e James Joyce, que escolheram trilhar um caminho criativo autêntico, que se situa, segundo sua própria opinião, no sentido contrário à ordem autoritária das religiões. Ao reforçar a importância do papel espiritual que a arte desempenha nas sociedades contemporâneas, afirma: os poetas de hoje são os profetas de ontem (CAMPBELL, 2002, p.117). A respeito da presença deles no cinema o autor comenta no conhecido livro O poder do mito que a narrativa elaborada em Star Wars por George Lucas havia imprimido “a mais nova e poderosa rotação à história clássica do herói” (CAMPBELL, 1990, p.214). Por sua vez, o notável mitólogo Mircea Eliade (1972), numa análise a respeito do mito e seu significado para a produção artística do século XX, notadamente em relação à produção popular-massiva, salienta que o romance e as histórias em quadrinhos vão retomar muito das questões ontológicas imersas nas narrativas mitológicas arcaicas. Em seu entender, a “prosa narrativa, especialmente o romance, tomou, nas sociedades modernas, o lugar ocupado pela recitação dos mitos e dos contos nas sociedades tradicionais e populares” (ELIADE, 1972, p.163). No mesmo sentido de conexões, Morin (1967, 1997) observa no cinema o poder da magia da imagem e sustenta que este construiu um novo Olimpo imaginário habitado por deusesestrelas, atores e atrizes carismáticos (Chaplin, James Dean, Marilyn Monroe) e que representam um heroísmo moderno de natureza mítica. Os grandes atletas do esporte, que se juntam às estrelas de cinema e aos astros musicais, são exemplos de um universo mitológico latente, cujas façanhas extraordinárias se ampliam com o desejo de busca de referências heroicas acomodadas nos arquétipos do inconsciente coletivo conforme concepção do fundador da psicologia analítica moderna Carl Gustav Jung (2000). Além disso, observa-se, em pleno século XXI, que as grandes religiões do planeta – cristã, mulçumana, budista e hinduísta –, todas de base mitológica, continuam a sensibilizar o homem no caminho da espiritualidade, e seus adeptos são ainda muito numerosos. Também produzem suas marcas profundas nos valores de comportamento e na identidade social não só nos grupos religiosos aos quais pertencem, mas na regulação normativa mais geral, bem como no imaginário contemporâneo (produção/recepção). Há um intenso fluxo simbólico entre tradição e modernidade. Exemplo disso pode ser notado na filmografia em análise. Adiante será demonstrado como a mitologia judaico-cristã molda as tramas narrativas de Superman (1978), Batman (1989) e Star Wars (1977). O ARQUÉTIPO CRIANÇA E A IMAGEM DE SALVADOR EM SUPERMAN O personagem Superman (Super-Homem) foi criado por Joe Shuster e Jerry Siegel em 1938 para a revista mensal Action Comics. Um ano depois Bob Kane cria Batman (Homem-Morcego) para a revista Dective Comics, ambas pertencentes à editora norte-americana DC Comics (GOIDANICH; KLEINERT, 2014). De imediato fizeram um grande sucesso e estão em posição de destaque no universo dos personagens criados na era de ouro dos quadrinhos nos EUA década de 1930 a meados de 1950. Essa visibilidade se potencializou ainda mais com as várias versões destes HQs adaptados para televisão e cinema em mais de 75 anos de existência (MORELLI, 2009). Superman e Batman são hoje ícones da cultura pop produção inserida no 402 contexto maior do que o sociólogo Renato Ortiz (1988; 1994) analisou como internacionalpopular ou mundialização da cultura, processo sociocultural observado com maior relevância a partir dos anos 1950. Com roupas colantes, capas aladas ou máscara, e habilidades de luta extraordinária, a serviço de causas cidadãs ou patrióticas, Superman e Batman compõem personagens-modelo do panteão mítico-pop dos chamados super-heróis originários das histórias em quadrinho (HQs) e adaptados à linguagem audiovisual do cinema e televisão a exemplo também de - MulherMaravilha, Lanterna Verde, Flash, Aquaman (da editora DC Comics); e - Homem-Aranha, Quarteto Fantástico, Hulk, Homem de Ferro e Thor (da Marvel Comics); entre outros. O jornalista Sérgio Augusto afirma que há uma influência direta da literatura de ficção científica, de recepção mundial ascendente a partir da década 1930, para o desenvolvimento das histórias em quadrinhos mencionadas acima e destaca a importância do modelo narrativo em torno do personagem homem de aço: Os super-heróis, sub-produtos da ficção científica, começaram a nascer ao findar a década 30, no lastro de Superman (1938), centro geográfico de três temas de S-f [Science-fiction]: fim do mundo=destruição do planeta Kripton, viagem interplanetária e poderes sobrenaturais e eixo vetorial, ao nível mitológico, de uma geração de seres anormais ad nauseam... (AUGUSTO, 1977, p.191). A primeira adaptação da história de Superman em versão longa-metragem para cinema foi realizada pelo diretor Lee Sholem em 1951, Superman e os homens toupeiras, e se transformando em seguida em série de televisão - 1952-58 (MORELLI, 2009). Contudo, a versão de Richard Donner lançada em 1978, quarenta anos após a criação do personagem, é um marco do cinema contemporâneo pautado pelos filmes blockbusters, grandes produções que se caracterizam pelo uso e abuso dos efeitos especiais para atrair o grande público. O ator Christopher Reeve está no papel de protagonista; Gene Hackman é o vilão Lex Luthor; Margot Kiddera, a repórter e namorada do super-herói e Marlon Brando o pai biológico, Jor-El. A história começa com o nascimento de Kal-el (nome original do homem de aço) no planeta Krypton. Como o astro natal estava condenado a desaparecer os pais o enviam a Terra. Adotado por fazendeiros Clark Kent passa a infância em Smallville, Kansas. Com a morte do pai adotivo, aos 18 anos, ele parte em busca de sua origem e na tentativa de desvendar o segredo de seus superpoderes que já haviam se manifestado parcialmente (sua capacidade de correr velozmente, por exemplo). O impulso para a jornada de iniciação ocorreu por conta de certo episódio mágico/místico. Numa noite durante o período de luto Superman acorda sobressaltado e sente um chamado. O sinal vem do paiol da fazenda. Ao levantar a palha do chão encontra acondicionado num fosso cristais luminosos esverdeados – kryptonitas, que estavam na nave que o trouxera a Terra e foram guardados pela nova família. A longa perambulação, seu rito de passagem, o faz atingir o Ártico. A pedra verde é lançada à ampla paisagem gelada e em seguida se ergue do solo uma estrutura montanhosa chamada Fortaleza da Solidão. Dentro parece uma grande gruta; suas paredes são constituídas de cristais brancos (a maioria), verdes e azul turquesa, que desenham formas como estalagmites e estalactites. No centro dela, por meio de cristais holográficos, seu pai surge e lhe conta toda a sua história a partir das perguntas do filho. Pleno de seus superpoderes ele sai do lugar 403 voando com suas roupas características até Metrópolis, onde começa sua carreira de repórter no Planeta Diário. Em certa ocasião, para salvar sua colega de trabalho Margot, ele revê-la seus poderes especiais que serão acionados em outras situações em que houver grande perigo para os habitantes da cidade. Descontente com o surgimento de um super-herói em Metrópolis, Lex Luthor (Gene Hackman), cientista e gênio do mal, o obriga a se desdobrar para evitar a morte de milhões de pessoas. Superman tem por base a mitologia judaico-cristã projetada na simbologia do justo redentor. Jung (2000) vê na figura do Salvador a imagem arquetípica da criança divina. Para o autor “o conceito arquétipo, que constitui um correlato indispensável da ideia do inconsciente coletivo, indica a existência de determinadas formas na psique, que estão presentes em todo tempo e em todo lugar” (JUNG, 2000, p. 87). A criança, o velho sábio, a sombra e o self (si mesmo) fazem parte também do imaginário primordial e são arquétipos. A imagem da criança aparece logo no inicio do filme em duas sequências marcantes; o superherói bebê está no berço feito por kryptonitas e cercado pelo pai Jor-El (a palavra semítica El significa Deus) e a mãe Lara Lor-Van, cena registrada pouco antes de ele ser enviado a Terra; quando é encontrado no campo de trigo pelo fazendeiro Jonathan e sua esposa Martha Kent. Ao contrário de notívago Homem-Morcego/Batman, Superman é um personagem solar e apolíneo. No universo mítico grego, Apolo, deus filho de Zeus, significa o princípio ligado ao elemento figurativo, racional, conceitual, à beleza da forma. Vale retomar as imagens da Fortaleza da Solidão e os cristais de kryptonitas; afinal são elementos simbólicos e narrativos importantes para compreensão de Superman como herói mítico. A Fortaleza da Solidão representa a simbologia de ascensão espiritual e expressa na figura sagrada da montanha cósmica encontrada em diversas construções mitológicas (MIRCEA, 2012). Ela projeta a união da terra e céu. Na trajetória do homem de aço significa o elo entre a vida nova terrena e sua condição alienígena sobrenatural. No centro dela uma caverna repleta de pedras mágicas. Bachelard (1990) afirma em A terra e os devaneios do repouso que as figuras – gruta, estômago, ventre, porão, desfiladeiro – trazem “a lei do isomorfismo das imagens da profundidade” (p. 195), retidas na imaginação material do elemento terrestre (o autor trabalha com a premissa de que o inconsciente é projetado nas imagens alusivas à água e também à terra). No coração/gruta da Fortaleza da Solidão, o herói encontra sua essência, experimentando o arquétipo self de modo transcendente. De acordo com o pensamento de Jung (2000) a formação da individualidade possui seu ápice quando da percepção e experiência do self, a unidade plena da psique, que simboliza o equilíbrio transcendente entre o inconsciente – pessoal e coletivo – e o consciente pessoal do homem com a natureza. O arquétipo si mesmo manifesta a imagem do centro, equilíbrio absoluto, projetado em símbolos e narrativas míticas como mandala, cruz, pedras/cristais, cálices, etc. Na versão de Superman (1978) realizada pelo diretor Richard Donner os cristais de kryptonita possuem a condição predominante de elemento benéfico ao herói. Elas estão ao seu lado na infância, em berço protetor, são objeto guia e pedra alquimista, pois lhe conectam ao passado 404 e o amplo conhecimento. Em outros filmes da franquia cinematográfica, e nas histórias de HQ (MORELLI, 2009), a kryptonita será mostrada principalmente como elemento de desestabilização e supressão de seus superpoderes, cobiça permanente do seu antagonista Lex Luthor. A história de Superman reatualiza o velho sonho do homem em voar. E também conecta outras camadas de imaginário simbólico. A imagem do céu, bem como a terra, é para Jung (2000) a projeção do arquétipo mãe. Por isso o aconchego de Superman ao voar. Mas o espaço sideral pode estar associado também ao arquétipo sombra expresso nos seres, astros e ambientes alienígenas maléficos típicos da ficção científica a exemplo do trio de vilões originário do planeta natal do homem de aço - General Zod, Ursa e Non, que aparecem no começo do filme antes de serem enviados ao Phantom Zone (Zona Fantasma). BATMAN, O SUPER-HEROI DAS SOMBRAS É quase sempre noite em Gothan City, a cidade-centro do universo mítico do HomemMorcego. Quando o iconoclasta diretor Tim Burton realizou o longa-metragem Batman (1989) o personagem multimídia das histórias em quadrinhos de referência completava cinquenta anos de existência e já havia sido adaptado ao cinema em diversas produções, bem como transposto para série de televisão das mais conhecidas no Brasil. Mesmo assim a versão surpreende especialmente pelo projeto visual contemporâneo e de grande beleza plástica. Relembrando a conhecida história de Batman, o órfão, solteiro e milionário Bruce Wayne (Michael Keaton) mora num elegante palacete da periferia de Gothan City, com extensa área arborizada de miragem florestal, e vive sob os cuidados do mordomo e tutor Alfred Pennyworth (Michael Gough). Existe um episódio marcante na vida Wayne que o motiva a virar o protetor mítico da cidade natal por meio da persona Homem-Morcego, na busca de justiça e sublimação da dor de sua orfandade: quando pequeno ele testemunhou o assassinato de seus pais numa rua escura. Sabe-se pela versão de Tim Burton que o assassino é Jack Napier. Este bandido entrará novamente na vida de Batman de modo inusitado. Na sequência em Napier está envolvido em outro crime, após ser atingido num tiroteio, o vemos cair num tonel contendo estranhas substâncias químicas. Sai de lá transfigurado na forma do palhaço psicopata Coringa (Jack Nicholson). Ele é o grande vilão deste filme; aparece em diversas tramas diabólicas criadas para aterrorizar Gothan City e luta com o herói mascarado até a batalha derradeira. Interessante notar que tanto para história do personagem Superman como Batman foram inventadas cidades fictícias próprias de identidade dos heróis, respectivamente, Metrópolis e Gothan City. Elas são a imagem metafórica do centro do universo. Pode-se refletir tal questão do ponto de vista ideológico e teríamos um campo muito fértil de interpretação. Mas vamos atentar para outra abordagem igualmente reveladora das narrativas cinematográficas. De acordo com o mitólogo Mircea Eliade as cidades da Idade Antiga, a exemplo de Jerusalém, Babilônia, Alexandria ou Tebas, também apropriavam semelhante concepção de centralidade para seus povos de pertencimento. Os templos ou monumentos nelas encontrados aludem à “Árvore Cósmica”, porta mágica, pois lá os deuses poderiam descer. Em Metrópolis ou Gothan City os arranha-céus realizam em parte essa função simbólica. 405 Mas Gotham City também reflete significados específicos associados diretamente ao protagonista da historia. A cidade de Batman é encenada como um filme noir. Afinal ele é um ser hibrido - humano e morcego - e como tal tem hábitos noturnos. Os morcegos são os únicos mamíferos que voam verdadeiramente; seu nome é derivado do latim muris (rato) e coegus (cego). Para se movimentarem eles emitem sinais de eco localização de orientação espacial. “No transcorrer da evolução, finas e elásticas membranas se desenvolveram entre seus dedos, alongando-se até parte distal de suas pernas, dando-lhes capacidade de manobras e tornandose grandes voadores” (REIS at al., 2007, p. 20). Na China os morcegos possuem uma simbologia positiva de felicidade e riqueza. Porém, no mundo ocidental, desde a Idade Média, eles foram idealizados muitas vezes a figuras maléficas devido, em boa medida, ao fato de que podem transmitir doenças endêmicas como a raiva, bem como certos morcegos são hematófagos, os chamados vampiros. Na literatura o vampiroDrácula (1897) de Bram Stoker colabora para criar as matrizes modernas do gênero horror. O expressionista Nosferatu (1922) de Murnau transporta essa visão negativa do mamífero voador com cara de rato para cinema em planos inesquecíveis (RODRIGUES, 2012). A história do herói de Gothan City se apropria dessa moderna tradição narrativa de ambiguidades, de tensão entre ciência e religião/mitologia, entre cultura e natureza, expressa na figura do morcego ou vampiro, uma dança simbólica de luz e sombra, bem e mal, vida e morte. Tim Burton cria um filme de herói soturno e angustiado mesclando gêneros diversos como fantasia, policial/noir, terror, ficção científica e melodrama. Do ponto de vista da concepção dos arquétipos de Jung a sombra é a parte inferior da personalidade. Todos os elementos pessoais e coletivos, não compatíveis com a forma de vida escolhida, que ganham uma personalidade própria. Ela se comporta de maneira compensatória à consciência. Campbell (2002) a compara com o inconsciente descrito por Freud. Batman se depara com as sombras tanto em situações de perigo confrontadas nas ruas, becos ou esquinas escuras e misteriosas de Gothan City como no aconchego materno e silencioso da caverna situada anexa ao palacete de residência, espaço físico de centralidade e experiência anímica do arquétipo si mesmo. A caverna abrigada seu inconsciente. Diferente de Superman que camufla sua real condição de vida sobrenatural apenas para se preservar no mundo terráqueo, o personagem Bruce Wayne (Homem-Morcego) deseja viver na fantasia do duplo (máscara ritualística) uma persona mágica que o leve a sua verdadeira essência. Sua missão heroica é salvar a cidade dos malfeitores que desejam destruí-la a exemplo do Coringa, e, internamente, sublimar o trauma de infância (orfandade) e superar os conflitos e complexos mergulhados no lago-noite do seu inconsciente. A FLORESTA SIDERAL DE STAR WARS Guerra nas estrelas (1977) é um grande clássico do cinema de ficção cientifica criado por George Lucas. Primeiro filme da série ele foi renomado posteriormente como Star Wars episódio IV: uma nova esperança. O longa-metragem conta a história do período pós-República marcado pelo quase extermínio da ordem Jedi (guardiões iluminados do bem, a chamada Força) e o apogeu dos Siths (guerreiros seguidores do lado mal do universo) durante o novo regime de poder - o Império Galáctico. 406 O protagonista da história é o jovem Luke Skywalker (Mark Hammil), filho do icônico vilão Darth Vader (um dos líderes Siths), nascido Anakin Skywalker. A aventura mítica de Luke começa por acaso; quando compra o robô (R2-D2) ele encontra uma mensagem da princesa Leia Organa (Carrie Fisher) para o Jedi Obi-Wan Kenobi (Alec Guiness) sobre os planos da construção da Estrela da Morte, uma gigantesca estação espacial de alto poder bélico. Luke é iniciado cavaleiro do lado bom da Força por Obi Wan Kenobi e ambos partem com o mercenário Hans Solo (Harrison Ford) para se juntarem aos membros do grupo de Resistência com o objetivo de destruir a grande nave do mal. Segundo o mitólogo Joseph Campbell (1990; 2008) a história de Luke Skywalker perpassa estruturalmente pelo chamado monomito – percurso padrão heroico: separação (partida), iniciação e retorno. Após recusa ao chamado (Luke não aceita de pronto a missão; Superman também resiste em viver seu mito), a iniciação ocorre com o auxilio sobrenatural – a Força, o treinamento militar e espiritual Jedi e o conhecimento do uso mágico do sabre de luz. É momento que o herói precisa se recolher e ativar seus arquétipos, seu inconsciente em busca do caminho, sua individuação. Esse limiar é momento em que o herói passa do "mundo comum" para o “mundo da aventura”, a passagem do campo real para o mágico e vice-versa: Quando assisti a esses filmes [a primeira trilogia], notei que Lucas usa sistematicamente os arquétipos que apreendeu nos meus livros – ele mesmo confirma isso (...). Então, no final de O retorno de Jedi é trabalhado de maneira bastante explícita o tema da reconciliação com o pai – é para isso que se encaminha a série. Na verdade ela é uma peça em três atos: o chamado à aventura, o caminho das provações, e a provação final, com a reconciliação com o pai e o retorno através do limiar (CAMPBELL, 2008, p. 155). Após a passagem pelo primeiro limiar mítico (a aventura mágica), o caminho de provações ocorre o momento do “ventre da baleia” (referência ao mito bíblico de Jonas/Moby Dick) ou a passagem para o reino da noite, com a “provação suprema”. Esta fase da jornada do herói está contida nessa sequência. A sua primeira aventura se encerra, parcialmente, com a vitória dos rebeldes frente ao inimigo Darth Vader (seu pai) e o primeiro retorno (final de Guerra nas estrelas/Star Wars episódio IV: uma nova esperança). Com a fuga deste antagonista, um novo ciclo da jornada do herói pode ser criado (o périplo continua; temos a sequência da trilogia - Star Wars episódios V e VI). Segundo Campbell (2013, p.67), o retorno e a reintegração à sociedade do herói é necessário “à continua circulação de energia espiritual no mundo”. Star Wars articula uma história com base na mitologia judaico-cristã e em religiões e tradições militares orientais. A ordem Jedi, os guardiões iluminados do bem, da Força, tem como referência principal os famosos guerreiros samurais. Eles foram uma casta miliar e social importante do Japão medieval, conhecidos por sua lealdade, coragem, honra, disciplina e conhecimento intelectual e espiritual. Seu código de conduta moral - bushidô (literalmente caminho ético) - possui três fontes religiosas: o budismo, xintoísmo e confucionismo. Para os samurais, a catana (espada) deve espelhar sua alma e a morte a sublime entrega ao bushidô (YAMASHIRO, 1987). 407 Darth Vader é o bíblico anjo caído (Lúcifer) e espelha a simbologia da sombra. Obi Wan Kenobi incorpora o arquétipo do velho (e mentor), o guardião do liminar mítico segundo Campbell. Luke Skywalker, o anjo bom, nasce e vive para redimir os pecados do pai (seu destino). A história de pai e filho - Luke e Darth Vader - articula densa narrativa psicológica de ativação dos arquétipos (Jung) e do complexo de Édipo (Freud). A máscara de Darth Vader não tem a mesma função simbólica encontrada em Batman. Enquanto para o Homem-Morcego ela é ritualística no sentido da transcendência anímica em Star War ela é persona icônica do mal e projeção de certas camadas do arquétipo sombra. A cortante luz do sabre que revela a Força divina, metáfora do fogo mágico, é apreendida em ato com o intenso treinamento militar e espiritual Jedi; ela repercute o processo de individuação do herói Luke Skywalker, sua jornada mítica. Vale comentar que para Bachelard o fogo, comparativamente aos quatro elementos da natureza e imaginação simbólica - além de terra, água e ar, é o mais dialético, ligado à profunda transformação, revelador da paixão da alma e corpo e vontade de conhecimento: O fogo é íntimo e universal. Vive em nosso coração. Vive no céu. Sobe das profundezas da substância e se oferece como amor. Torna a descer à matéria e se oculta, latente, contido como o ódio e a vingança. Dentre todos os fenômenos, é realmente o único capaz de receber tão nitidamente as duas valorizações contrárias: o bem e o mal. Ele brilha no Paraíso, abrasa no Inferno. (BACHELARD, 1994, p. 11). Os dois grupos guerreiros de luta antagônica na série Star Wars, Jedi (bem) e Siths (mal), compartilham da referida dialética do fogo. Ele está nas espadas de luz a laser de ambos, azul ou verde e vermelho, em armas diversas, na combustão das naves espaciais e pode ser observado na metamorfose espiritual de Anakin. Como um Frankenstein cibernético, seu corpo e a mente são transfigurados pelo fogo e se moldam na couraça negra do vilão Darth Vader. Contudo o mito se encerra com a vitória do fogo celestial; no último filme da trilogia, O retorno de Jedi, após a luta derradeira entre Vader e o filho, com arrependimento dos pecados por parte do vilão, Luke queima o corpo morto do pai em funeral junto à floresta num ritual de ressureição d´alma, de retirada da mácula do pecado original. Vê-se o elemento físico simbólico transformador também nas fogueiras festivas que celebram a vitória do herói. Luke observa, em aparição, seu pai ao lado de Obi-Wan Kenobi e Yoda. Ele pode agora repartir à comunidade o elixir do regresso - como Campbell (2013) define essa fase final do monomito, fazendo circular a energia espiritual mais elevada por conta da superação das provações de sua jornada heroica. CONSIDERAÇÕES FINAIS O presente artigo teve como foco uma leitura pautada pela antropologia visual sobre o cinema contemporâneo, ou seja, a produção realizada partir dos anos 1970, com o objetivo de identificar comportamentos, estruturas, arquétipos e funções principais dos mitos notadamente em filmes inseridos nos gêneros aventura, fantasia e ficção científica. Para circular no universo popular-massivo foram selecionados os longas-metragens - Superman (1978) e Batman (1989), cujos enredos foram baseados nas histórias em quadrinhos da editora norte-americana DC Comics, bem como a primeira trilogia do épico espacial - Star Wars (1977408 80-83), criado por George Lucas. Para tanto se utilizou de base teórica consolidada em pesquisas sobre o imaginário simbólico e mitos elaborados principalmente por C. G. Jung, M. Eliade e J. Campbell e G. Bachelard. As análises realizadas demonstram com certa nitidez que os filmes mencionados possuem diversas características e estruturas de narrativa mítica. Evidentemente não adquirem o mesmo papel social e simbólico inscritos nas culturas tradicionais uma vez que os atuais padrões societários se distanciam do universo totalizante do sagrado, e que diz respeito à primeira função dos mitos, de acordo com a concepção de Joseph Campbell: o aspecto místico ou metafísico (CAMPBELL, 2002, p.23). Se o metafisico não se revela de modo pleno nesses mitos modernos, contemporâneos, as histórias dos heróis pesquisados – Superman, Batman e Luke Skywalker, demonstram poderes extraordinários dos protagonistas e outros personagens que ultrapassam a capacidade de explicação da ciência mais avançada, se manifestando assim como fenômenos sobrenaturais ou mágicos. Além disso, ainda segundo a proposta de Campbell, as outras funções do mito (são quatro ao todo) - a cosmológica, a sociológica e a psicológica, são amplamente ativadas nessas narrativas heroicas oriundas das histórias em quadrinhos ou formuladas especialmente para o cinema. Vale comentar que a segunda função, a cosmológica, é aquela da formulação e apresentação de uma imagem do universo. Temos, por exemplo, na centralidade das cidades de Metrópolis (Superman) e Gothan City (Batman) - os HQs de base foram criados entre os anos 1930/1940, a projeção da sociedade capitalista moderna a partir da imagem coesa do Estado-nação. Por outro lado, a viagem sideral de Star Wars cria um novo campo de visão de mundo e espelha a sociedade global e digital de hoje. Temos simbolicamente uma conexão entre a segunda e terceira funções do mito – a cosmológica e a sociológica, de validação e manutenção da ordem social vigente. A quarta, a função psicológica, de abordagem ontológica, possibilita certamente o campo de análise mais complexo e mais sintonizado com as sociedades contemporâneas quando se observa o pêndulo da individualidade. Arquétipos do inconsciente coletivo como criança, velho, sombra e self (Jung) são profusamente ativados nas narrativas fílmicas pesquisadas e movem o eixo do indivíduo para o inconsciente coletivo a partir de um campo noturno, subjetivo, de duplos. Além disso, os elementos míticos da natureza, principalmente – terra, ar e fogo, da chamada poética do devaneio de Gaston Bachalard, são fundamentais para compor as histórias heroicas conforme as análises anteriores demostraram. Cabe ainda considerar que a mitologia judaico-cristã é preponderante e molda de modo estruturante as narrativas dos três filmes selecionados por meio da figura onipresente do Salvador inscrita na imagem da criança divina. A orfandade dos três heróis (Luke por parte da mãe) reforça a mediação com esse arquétipo e à imagem redentora de Cristo. Além disso as três histórias são mitos escatológicos e criam uma cosmologia própria de fim do mundo e de renascimento. Como disse CAMPBELL (1990, p.214), George Lucas havia imprimido em Star Wars “a mais nova e poderosa rotação à história clássica do herói”. A despeito do tempo transcorrido desde sua criação, Superman e Batman também continuam selando fortes 409 vínculos de identificação cultural e emocional com as novas gerações. Todos se mantem como ícones, Deuses do Olimpo, da chamada cultura pop-nerd. REFERÊNCIAS AUGUSTO, Sérgio. Space-Comics: um esboço histórico. In: MOYA, Álvaro de. Shazam!. São Paulo: Perspectiva: 1977. BACHELARD, Gaston. 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STAR WARS EPISÓDIO V: o império contra-ataca Direção: Irvin Kershner. EUA. 1980. DVD (124 min). STAR WARS EPISÓDIO VI: o retorno de Jedi. Direção: Richard Marquand. EUA. 1983. DVD. (134 min). SUPERMAN. 411 Direção: Richard Donner. EUA. 1978. DVD (143 min). SESSÃO 6 RODADA DE PROJETOS Reino Vazio Dados Técnicos série dramática de tv, duração do episódio 45 min com duração de 05 temporadas. Nome Autor (es) Claudio Alves Gomes Sampaio Resumo O desaparecimento dos animais, a perda de um sonho, o início de uma jornada, assim comela Reino Vazio – Blecaute o início de uma era sem a presença de todos os animais no planeta, deixando a raça humana desorientada e sem reação diante dessa grande catástrofe. Adalmiro, jovem morador do interior de Campinas/SP, sonha em se tornar um peão de boiadeiro, com muito esforço ele consegue sua sonhada chance, e exatamente no momento que a porteira é aberta, em que ele ia sentir a emoção do sonho realizado, acontece o evento que fica conhecido no mundo todo como O Blecaute, todos ao redor do planeta Terra ficam desacordados por 24 horas e quando despertam estão diante de um verdadeiro caos, acidentes por toda parte, várias pessoas mortas e estranhas manchas negras no chão exatamente no lugar onde estavam os animais antes do blecaute. Adalmiro desperta em cima de uma macha negra, que antes era o touro que estava montado, passado choque inicial ele encontra sua namorada Joana e o amigo dela Edmar e juntos partem para a fazenda dos seus pais, com muitas perguntas e nenhuma resposta, o trio caminha pela estrada observando cenas de horror e tragédia. Ao chegar na fazenda fica aliviado por encontra seus pais vivos, mas descobre que a fazenda também sofreu com o fenômeno, sobre muitas especulações, Adalmiro decide partir para o centro da cidade atrás do seu antigo amor, Ana, hoje uma estudante de biologia, com a certeza que achará as respostas que o ajudará a descobrir quem foi o responsável pela perda do seu sonho. Desaparecidos Dados Técnicos Características Técnicas: duração; técnica; gênero; mídia, etc.: Argumento de Série Nome Autor (es) Graciene Silva de Siqueira Resumo O projeto de série centra-se no drama de pais em busca de seus filhos desaparecidos. Cada episódio acompanha a investigação policial (assim como suas limitações) e o trabalho da fictícia ONG Desaparecidos, em São Paulo. Um dos personagens fixos é Suzana, que trabalha na 2ª Delegacia de Polícia de Pessoas Desaparecidas - Divisão de Proteção à Pessoa. Muitas vezes, sem poder seguir com a investigação, por conta do volume do trabalho ou porque seus superiores não consideram a 412 pista importante, a policial auxiliará a ONG Desaparecidos, orientando seus representantes quais caminhos seguir. Paralelamente ao trabalho na polícia, Suzana vai tentar resolver seus problemas pessoais como a morte suspeita do pai, também policial, e a tentativa de reaproximação de sua mãe, a quem não vê desde criança. Ainda na delegacia, trabalham Cavalcanti, delegado titular que terá embates com Suzana, especialmente por questões ligadas à ONG Desaparecidos que vai ficar no “pé” para cobrar investigações. Há ainda Roberto Dias, policial que trabalhará ao lado de Suzana em alguns casos e insistirá em um relacionamento com ela, e Félix Moura, policial corrupto, que busca vantagem em tudo. Diante das desconfianças de Suzana, vai tentar puxar o tapete dela na delegacia. Na ONG Desaparecidos temos como personagens recorrentes, a fundadora da instituição, Flávia Ribeiro, cujo filho de nove anos desapareceu a caminho da escola; Ana Fernandes, que dedica sua vida à procura da filha Vitória desaparecida aos quatro anos em frente à sua casa, e Júlio Cardoso, que luta para encontrar o filho que desapareceu em um parque. O drama dos pais, dos personagens fixos e das vítimas vão compor cada episódio. Outro aspecto a se destacar, é quanto à forma de lidar com os casos. A ideia é abordar a questão de forma mais realística possível, dentro do que é possível em se tratando de uma obra de ficção. Assim, nem sempre os “mocinhos” vão vencer, nem sempre os “bandidos” serão punidos ou os pais terão seus filhos de volta. Aliado a esse aspecto - que acredito ser o mais importante na produção da série - temos ainda o fato de lidar com casos envolvendo crianças e adolescentes. É um problema real que afeta famílias brasileiras, e possivelmente afetou alguém que conhecemos. De acordo com notícia publicada no Jornal O Dia (digital), em 24 de maio de 2015, a cada ano 250 mil pessoas desaparecem misteriosamente no Brasil. A estimativa do Ministério da Justiça é que entre elas, 40 mil sejam menores de idade. O público-alvo são especialmente fãs de seriados no estilo Lei e Ordem: Unidade de Vítimas Especiais, Criminal Minds, Cold Case, entre outros, nos quais me inspirei. Nicolau, deu pau Dados Técnicos Série de TV- Comédia- meia hora de Duração Nome Autor (es) Luciana do Valle Ribeiro da Silva Resumo Nicolau é um jornalista inteligente, porém muito crítico e orgulhoso, de 35 anos em crise financeira e de identidade. No início da série ele é demitido do jornal Notícia Fresca, em São Paulo, e é substituído por um publicitário, o que ele acha um absurdo porque tem preconceito com propaganda. Decepcionado com a carreira de jornalista e precisando de dinheiro para se manter, ele aceita a proposta do seu melhor amigo Tadeu, e passa a ajudá-lo como assistente de técnico de informática. Apesar de não entender muito de placa-mães, redes, e memórias 413 rãs. Atrapalhado, mas bem intencionado, Nicolau começa a anteder os clientes sozinhos, e se encanta pelo vê: seres humanos. Em cada episódio ele visita um cliente diferente, e se depara com todo tipo de gente. Clientes que não entendem nada de informática cujas perguntas são bem sem pé nem cabeça (perguntas muito básicas para qualquer amador) viram piada na série: mulheres carentes que dão em cima dele, casais que brigam no meio da visita, pessoas perfeccionistas, artistas, palhaços, vai aparecer de tudo. Além de trabalhar, Nicolau vai ter que visitar empesas, pessoas e lugares inusitados e aprender a conviver com isso. Mas como Nicolau não entende tanto assim de informática, muitas vezes ele liga às escondidas para pedir ajuda para Tadeu, que trabalha numa empresa de lixo eletrônico, reciclando computadores. Quando um liga para o outro eles trocam os diálogos, “Já sei Nicolau, deu pau.” que é respondido por Nicolau, “Isso mesmo Tadeu, fudeu.” No início da série Nicolau até tenta, por precisar da grana mesmo dar uma de malandro e cobrar mais pelas peças dos computadores que conserta, mas esta malandrice repentina não vai durar muitos minutos do episódio. Depois de entrar em contato com a vida dos seus clientes, ele se fragiliza com os dramas deles e mal consegue cobrar pelo seu próprio trabalho. A nova labuta de Nicolau vai colocar por terra muito dos seus preconceitos e transformar a vida dele e das pessoas que estão ao seu redor, depois de um tempo, para melhor. Os recém chegados Dados Técnicos Reality Show transmidia - 18 episódios Nome Autor (es) Karin Poljana do Vale Ludwig Resumo “OS RECÉM-CHEGADOS” é um roteiro transmídia feito para a Era da Convergência, permitindo transversalizar seu conteúdo em múltiplas plataformas, tais como: livro, games, jogo de tabuleiro, card game, guia turístico não convencional, reality show, série, etc. Para a mídia principal o projeto foi concebido no formato de um reality show cultural com 18 episódios, que mistura competição e confinamento. Usando elementos culturais como folclore, história e costumes, o reality “OS RECÉM-CHEGADOS” cobre temas das cidades do Brasil, possibilitando nacionais e estrangeiros conhecer a cultura de um país através do entretenimento. Além disso, o reality tem o atributo de promover grande interação entre o público e os meios de comunicação – tendência irreversível, tendo em vista os avanços tecnológicos. Envolvemos o público em todo o processo. São 16 participantes estrangeiros de diferentes países, recém-chegados ao Brasil que são alocados em hostels-sedes de várias cidades do país, de onde eles somente sairão para realizar provas. Eles enfrentam desafios ligados à cultura brasileira baseados na história, cotidiano, costumes e modo de vida do país. Como os participantes não poderão consultar internet, banco de dados ou livros, a primeira dificuldade será entender a linguagem coloquial dos moradores locais. O formato desenhado é para 18 episódios, com sugestões de 8 cidades, mas é possível fazer com apenas um local e adequar o formato de acordo com o orçamento e necessidade de cada projeto. É possível, por exemplo, transformá-lo num quadro dentro do 414 programa. Os participantes serão pessoas reais, comuns, não celebridades, mas aqui foram criados personagens com o intuito apenas de criar a atmosfera do reality e facilitar a organização da produção. Quarta parede Dados Técnicos Formato - Reality Show | Duração - 50min Nome Autor (es) Márcio Henrique Melo de Andrade Resumo Quarta Parede: expressão usada no meio cênico para nomear a parede imaginária que fica à frente do palco, por meio da qual a plateia assiste os eventos que acontecem na realidade que está sendo encenada. Inspirado no recurso do ator que, subitamente, começa a dialogar com a plateia para quebrar essa parede, este reality show almeja romper com a separação que existe entre um processo criativo e seu público: um grupo de atores e atrizes (entre iniciantes e profissionais) que não se conhecem recebem as conduções de um diretor para criar um espetáculo de um dramaturgo (nacional ou estrangeiro) pelos meses seguintes. A cada episódio, o público acompanhará o work in progress em cada uma de suas etapas: leituras, marcações, criação de figurino, iluminação, cenografia, trilha sonora, adereços etc.. Ao longo do programa, poderemos ver também alguns inserts de hiperlinks com informações breves sobre os termos da carpintaria teatral usados pela equipe (como boca de cena, solilóquio etc.) e informações sobre o dramaturgo e diretor, por exemplo. Mesclando às cenas dos ensaios e marcações, teremos depoimentos dos participantes do processo – atores, atrizes, diretor, técnicos, narrando sentimentos em relação ao trabalho, assim como suas experiências externas à criação. Além disso, ao longo da temporada, o público poderá estabelecer comentários (via redes sociais) sobre o processo e conferir ensaios abertos e a montagem final em eventos específicos. A cada temporada, o reality show pode variar o gatilho que dá início ao seu jogo e complexificar suas regras, mas precisará manter o formato inicial de acompanhar um work in progress de um espetáculo de formas variadas, como, por exemplo: 1. Acompanhar dois grupos (um iniciante, outro profissional) montando cenas de um único texto de um dramaturgo nacional ou estrangeiro, explicitando os diferentes modos de construir cenas de um mesmo espetáculo – como musical, comédia, performance, farsa, infantil etc.; 2. Acompanhar um grupo de atores e atrizes em um processo colaborativo sem texto como ponto de partida, mas de histórias concebidas ao longo dos ensaios; 3. Acompanhar um grupo de pessoas que nunca atuaram (com faixas etárias, classes sociais e regiões distintas) experimentando a arte de criar cenas de dança, teatro, circo etc. pela primeira vez; 4. Criar um espetáculo baseado em materiais de outras mídias – como textos literários, pinturas, filmes, músicas, histórias em quadrinhos, notícias, depoimentos de pessoas etc.; 5. Montar espetáculos (ou cenas) com outros tipos de artes cênicas, envolvendo linguagens de dança (clássica, contemporânea etc.), circo, ópera etc. e mesclando artistas de outras vertentes – como literatura, artes visuais, arquitetura, cinema, fotografia, graffiti, arte digital etc.. A partir destas estratégias, o Quarta Parede pretende não somente aumentar a visibilidade para as artes cênicas, mas trazer informações sobre vivências de um processo criativo a fim de formar 415 um público crítico e inventivo. 4º DP Dados Técnicos Seriado para TV Nome Autor (es) Sebastião Sidnei de Oliveira Resumo ARGUMENTO Dr. Pacheco delegado titular do 4° DP conduz ha anos, a sua delegacia com rigor e eficiência, tem orgulho de resolver todos os crimes no seu distrito, serio e de uma honestidade incontestável já tirou do seu quadro de investigadores policiais corrupto, hoje conta com um quadro de investigadores da sua confiança. Neste ultimo ano de trabalho ele terá de enfrentar e achar um assassino meticuloso que não deixa pista e mata suas vitimas todas as mulheres, além de resolver crimes do dia a dia de uma delegacia, com ajuda de duas equipes de investigadores da sua confiança, ale de informantes que ele recrutou nesses anos todos, pessoa comum que em sigilo manda informações a ele. Depois de encontrar o terceiro corpo na sua região, ele não consegue mais manter sigilo das investigações por se tratar de uma advogada separada e filha de um senador da republica. Assim que a impressa descobre a identidade da vitima o circo fica armado na frente da delegacia. Dra. Vera que faz parte do DHPP, e mandada pelo chefe de policia para auxiliar nas investigações, assim pai e filha vão poder trabalhar juntos pela primeira vez. Assim começa uma caçada a este assassino, as prostitutas da região são alvo fácil, desse maníaco, Dra. Vera não perde tempo e começa uma busca por imagens das câmeras perto de onde os corpos foram encontrados. Depois do primeiro corpo encontrado sem registro para ser identificado não se podia fazer muito coisa a respeito para esclarecer o caso, apenas o laudo do IML que descrevia que não a ferimentos da vitima. Mas DR. Pacheco ficou surpreso ao receber uma ligação na sua casa, outro corpo foi encontrado com as mesmas características ele não perdeu tempo e foi ao local a vitima estava com os mesmo traços de mutilação da primeira, isso fez com que ele com todo