O autor
Jorge de Palma é filho de Carmo de Palma e
de Adelina Candian de Palma. Nasceu em
Iracemápolis-SP, em 20 de dezembro de 1952.
Trabalhou muitos anos como jornalista,
atuando nos jornais Diário de Limeira, Diário
de Pernambuco, Diário de Americana, O
Liberal (Americana) e Tododia (Americana),
entre outros.
Reside em Americana-SP.
O autor escreveu esta estória quando tinha
17 anos.. A primeira edição foi publicada há
mais de 30 anos.
Contato pelo e-mail:
[email protected]
Dois olhos, duas vidas
I - Estes olhos
Ele havia chegado de manhã e durante todo o dia
ficou sentado, chorando, à beira de um túmulo. Estava
em total desânimo. Não teria mais que quinze anos.
As pessoas que entraram no cemitério naquele dia
viram a mesa cena e o fato acabou chegando aos
ouvidos do pároco da cidade. Assim, quando ia
anoitecer o menino ainda estava lá e o padre resolveu ir
conversar com ele. Talvez a sua presença pudesse
consolá-lo e resolver seus problemas.
Do portão do cemitério via-se o menino de costas. O
padre aproximou-se devagar e perguntou:
-Posso conversar com você?
No início o menino pareceu surpreso, mas depois
concordou.
-Sim padre, eu quero confessar e comungar, pois nesta
noite eu morro.
-Ora, não diga isso - exclamou o padre, admirado você ainda é jovem e tem muito o que viver. Conte-me
os seus problemas.
-Eu vou contar, padre - e o menino pôs-se a falar - o
senhor está vendo estes olhos? Estes olhos que me
fazem ver toda poesia e beleza e toda a maldade da
terra? Estes olhos que e guiaram até esta sepultura, que
já fizeram parte de outro ser, estes olhos, eu sinto
vontade de arrancá-los. Eu não sei se devo odiá-los,
todavia eu tive um grande amor por uma parte destes
olhos! O bom padre não entendeu o que o menino
queria dizer. Contudo, abraçou-se a ele e ajudou-o a
levantar-se. Depois, convidou-o:
-Vamos, vamos para a minha casa e lá você me contará
toda essa história.
Um tanto contrariado, o menino que se chamava
Ricardo, abençoou-se diante do túmulo, murmurou
algumas palavras e seguiu junto ao padre.
II - Quando tudo era belo
Eu adorava a nossa fazenda. De manhã, bem cedo,
quando tudo era silêncio lá nas goiabeiras e os pardais
ainda estavam dormindo, eu me levantava e, depois de
tomar café, ia para o estábulo buscar o Veloz. Era o meu
cavalo mais estimado. Era marrom, bem clarinho e
todas as manhãs ele percorria a fazenda levando-me em
seu dorso. Assim eu passava as primeiras horas. Depois
pegava meu estilingue e ia atirar pedras nos pardais.
Gostava das andorinhas. Dos pardais, não.
Papais me dissera que, quando ele era jovem, milhares
de andorinhas viviam no velho engenho até que
chegaram os pardais. Eles multiplicaram-se rapidamente
e acabaram expulsando as andorinhas. Por isso eu não
gostava deles e, quando estavam fazendo festa lá nas
goiabeiras, eu lhe atirava pedras com o meu estilingue.
Gostoso também era trepar na jabuticabeira, chupar as
frutinhas e depois mergulhar nas águas do ribeirão que
passava quase embaixo da formosa árvore.
Todavia, não era só de divertimento que eu vivia.
Ajudava a tirar leite das vacas, tratar dos animais e, às
vezes até ia cortar cana juntamente com outras pessoas
da fazenda.
Quando a tarde caia, aprontava as lições da escola e
meu pai me levava para o ginásio da cidade próxima.
Mais tarde, meu pai, ou o Juca, meu irmão, ia me buscar
na cidade.
Geralmente, retirava livros da biblioteca e levava para
ler sob a sombra de um maravilhoso pé de ipê amarelo.
Tudo era belo e calmo. O vento balançava as florzinhas
amarelas e algumas caíam sobre o livro aberto em
minhas mãos. Mas então, quando amava toda aquela
natureza, que ela ameaçou desaparecer para sempre de
minha vida. Foi então que caiu sobre mim a ameaça de
ficar cego.
III - E eu conheci Estela
O pátio do hospital também era bonito. Tinha árvores
e passarinhos. De certo modo compensava a manhã que
tinha perdido de passar na fazenda. O que estava
faltando ali era o meu estilingue. Se estivesse com ele,
aqueles pardais não estariam fazendo aquela festa e todo
aquele barulho. Mas também até que era bom vê-los
cantando e voando de um lado para outro, pois o que
seria dos doentes que estavam naqueles quartos se não
pudessem escutar o gorjear dos pássaros?
Foi então que me entristeci. O que poderia fazer se
ficasse cego. Como iria atirar pedra nos pardais? Como
iria cavalgar o Veloz? Era certo que os livros, o Juca
poderia ler para mim, mas de que adiantaria isso se eu
não pudesse mais ver e sentir a poesia da própria
natureza?
Aquele temor me assaltava. Para não ficar em pânico,
desviei a atenção para as árvores e os pardais. Mas nem
aquilo veria mais se a minha doença não fosse curada.
Justamente quando nada mais conseguia me entreter,
surgiu no pátio, como por encanto, aquela maravilhosa
menina de cabelos dourados e olhos azuis. Então o
milagre aconteceu. Esqueci de minha doença e a
imagem dela tomou conta de meus pensamentos.
Ela veio devagarzinho e arriscou com delicadeza:
-Bom dia
-Bom dia! - respondi admirado. Era a primeira vez que
ia via Estela e então iniciava a nossa primeira conversa.
-Você mora aqui na Capital?
-Não - respondeu ela - moro no interior, mas como
estou doente, meus pais me trouxeram para fazer uma
consulta médica e você?
-Meu caso é o mesmo, mas espere ai, eu ainda não seu
o seu nome - disse ao mesmo tempo perguntando.
-Estela - respondeu a menina e com um sorriso
replicou:
- E o seu nome, eu posso saber?
Mas é claro que ela poderia saber e a todas as
perguntas que me fez, respondi com satisfação. O
mesmo se deu com ela.
Estela falou-me de sua doença, mas eu desviei logo a
conversa para um assunto mais alegre. Falei-lhe sobre a
minha vida e sobre toda a beleza e poesia de nossa
fazenda. Notava nos lidos olhos azuis a satisfação que
ela sentia e percebi também que tudo o que eu lhe
contava fazia surgir nela o desejo de conhecer a fazenda
de meus pais.
Conversávamos animadamente quando meu pai
apareceu. Notei que ele estava preocupado, contudo
forçou um sorriso quando me viu. Tão logo ele se
aproximou, apresentei-lhe Estela.
-Ah então você é a Estela - disse meu pai - eu já
conheço seus pais. Eles me falaram de você enquanto
estávamos na sala de espera do hospital. É um prazer
conhecer a filha de tão distinto casal.
Papai continuou conversando conosco. Falamos de
diversas coisas e então ele surpreendeu a mim e a Estela
dizendo:
-Estela, você gostaria de passar uns dias em nossa
fazenda?
- Oh sim! - respondeu Estela surpresa e feliz - mas não
sei se meus pais deixarão.
-Certamente que deixarão - assegurou meu pai.
-Mas eu estou doente - replicou Estela.
Meu pai é determinado. Quando punha alguma coisa
na cabeça, insistia e insistia mesmo!
-Uns dias na fazenda vão lhe fazer bem. O ar do
campo é bom para a saúde. Pode ficar sossegada que eu
falarei com seus pais.
E falou mesmo!
IV - Quando tudo era mais belo
Três dias depois eu me encontrava embaixo do ipê
amarelo. Agora já não lia mais poesia e sim passava o
tempo compondo
versos. Para todos a fazenda
continuava bela, como sempre. Mas para mim estava
meio apagada. Parecia que estava faltando algo...
Faltava alguém cuja beleza excedia a toda a beleza da
fazenda.
Durante os três dias que passaram depois que voltei de
São Paulo, todas as manhãs eu montava o Veloz e
galopava com ele um bom trecho da estrada que
conduzia à cidade. Ia sempre com a esperança de
encontrar um carro, vindo para a fazenda, porém voltava
desanimado.
Esses dias passaram-se tristes para mim. Já não me
importava com os pardais. Meu estilingue jazia
esquecido em um canto.
É estranho, como uma simples conversa com alguém
pode mudar tanto a vida da gente! Assim, quando entrei
em casa naquela tarde, estava mais desanimado como
nunca.
Encontrei papai sorridente. Uma leve esperança
apossou-se de mim. Então eu não sei se ele deu a notícia
tão rapidamente ou se eu a ouvi antes dele dizer:
-Estela telefonou dizendo que virá amanhã,
-Eu, que já esperava alguma coisa assim, quase não
acreditei. Aquilo era ótimo, era bom demais. E tudo
transformou-se de repente. Eu estava novamente feliz.
No dia seguinte, horas antes dos pardais cantarem nas
goiabeiras, eu já estava acordado. Para dizer a verdade,
pouco dormira durante a noite e ainda assim sonhara
com ela.
Por fim, o sol sorriu para tudo e quando isso se deu eu
já estava junto ao Veloz. Pouco depois íamos pela
estrada.
Tudo parecia mais belo e os pensamentos me saiam
pela boca como se não coubessem dentro de mim:
Vai, Veloz, vai galopando
Vai, Veloz , cortando os campos
Vai no seu dorso levando
Uma alma cheia e encantos
Vai, Veloz, vai galopando
Que tem fim a primavera
Mas o ipê ainda espera
Conservando as suas flores
Para ofertar para Estela
Vai, Veloz, vai galopando
Que a tristeza já tem fim
E os campos estão belos
E conservam-se assim
Esperando por Estela
Esperando por Estela".
Todos nós estávamos esperando. Parecia que até o
Veloz estava feliz. Certamente a minha alegria o estava
contagiando, ou não sei se era impressão minha, mas
tudo era mais belo.
Então, ao longe, divisei uma poeira. Era a poeira
levantada pelos pneus de um automóvel.
V - Dias Felizes
Estela chegou! Estela chegou! Eu via tudo gritando
estas palavras. O vento, as árvores, as flores, os
passarinhos. Tudo para mim gritava: Estela chegou!
Como ela estava linda! E como eu estava feliz! Mais
ainda fiquei ao saber que ela ia ficar três dias na
fazenda. Aqueles foram os dias mais felizes de minha
vida. Meu programas diário mudou completamente. Já
não tinha hora para fazer nada e sim fazia tudo o que
Estela queria. E ela nem era exigente.
Eu lhe mostrei o rio onde eu nadava, os versos que fiz
enquanto esperava por sua vinda, o pê de ipê e tudo de
belo que havia na fazenda.
-Ricardo - Você gosta mesmo de mim, ou você é
poético assim com todo mundo! - Ela me fez esta
pergunta depois que lhe entreguei uma rosa vermelha.
Segurei as mãos dela e respondi:
-Estela, você leu os versos que fiz depois de conhecêla. Você não viu como eles demonstram a tristeza e
ansiedade que passei depois que a conheci no hospital?
-Sim, Ricardo, eu também ansiei o momento de
conhecer a sua fazenda, eu também estou feliz... eu
também gosto de você...
E assim dizendo, ela deu um beijo na rosa e colocouse sobre o peito, enfiando-a no bolso de sua blusa
branca.
Era um contrate maravilhoso. Dai então
conversávamos mais frequentemente. Falávamos de
tudo e de todos.
No segundo dia em que estava na fazenda, fui esperála junto ao rio e fiquei atirando pedras nos pardais. Dali
a poucos instantes ela chegou. Usava uma bluza azul e
calças compridas. Estava linda, maravilhosa.
Ela aproximou-se de mim e tomou o meu estilingue,
dizendo:
-Ora, Ricardo, ontem você estava tão poético! Por que
hoje você está atirando pedra nos passarinhos?
-Não são em todos os passarinhos, que eu atiro pedras.
Eu só não gosto dos pardais.
-Mas por que? - replicou ela - Eles também não têm
uma vida como os outros? Eles também não tem
filhotinhos para tratar?
Acabei concordando com ela. Como não iria
concordar? Está bem, Estela, vou aposentar o meu
estilingue.
Mas a alegria durou pouco. Os três dias passaram
rápidos demais. Como foi triste aquela partida!
Foi então que comecei a pensar: Como os últimos
acontecimentos havia modificado a minha vida! Todavia
tudo fora tão fácil, tão espontâneo! Bastou uma
conversa de meu pais com os pais dela para que eles
deixassem ela vir passar uns dias numa fazenda de
estranhos. Tudo bem que agora não éramos mais
estranhos, mas e antes? Por fim, deixei de pensar nisso.
Contudo não sabia da estranha e triste verdade...
VI - Dias Negros
Nos primeiros dias depois que Estela partiu, caiu
sobre a fazenda um vê de tristeza. Não me sentia bem
em lugar algum. Nem as poesias me interessavam mais.
Não tinha mais inspiração. Como se não bastasse a
tristeza pela ausência de Estela, veio o que eu mais
temia! Vieram os dias mais negros de minha vida!
Algum tempo depois que Estela foi embora, quando
caminhava próximo do rio, tropecei e cai. Quando tentei
me levantar, tive a maior surpresa de minha vida. Tudo
estava escuro, negro como a mais negra das noites.
Sentia dor nos olhos e na cabeça.
-Estou cego! Estou cego! - Eram as únicas palavras
que conseguia articular.
Tentei andar, mas para onde?:
-Pai, mãe, me acudam. Estou cego...
Gritava desesperado, porém o tempo passou e, só
depois de uma hora é que fui encontrado. Levaram-me
imediatamente para São Paulo, no mesmo hospital onde
eu havia visto Estela pela primeira vez.
No outro dia, bem cedo, estava ainda mais triste.
Ouvia apenas o cantar dos pássaros lá fora e, de vez ou
outras, a conversa de alguém que passava pelo corredor
do hospital.
Que solidão. Ah se ao menos pudesse ouvir a voz de
Estela...
Súbito alguém entrou no quarto. Devia ser a
enfermeira e ela anunciou:
-Visita para você, Ricardo.
Instantes depois, mais alguém entrou no quarto e,
minha mãe, que estava junto de mim, falou:
-Advinha quem é, Ricardo.
-Não sei, não sei não - resmunguei baixo, como se a
falta de visão tirasse também a minha voz.
Então ouvi aquela voz maravilhosa:
-Oi Ricardo.
Meu coração saltou no peito e antes de tomar
conhecimento já estava sentado na cama. Era Estela!
Era Estela! Só podia ser ela. Aquela voz meiga e calma
eu a reconheceria no meio de mil.
Ah! Que falta me fazia a visão naquela hora! Eu não
podia ver aqueles lindos olhos azuis e o seu sorriso
maravilhoso.
-A sua visita me deixa muito feliz. Estou muito
agradecido - falei.
Estela conversou comigo mais algum tempo, mas eu
notei que a voz dela tinha um tom de fraqueza. Mas
mudei logo de pensamento, pois devia ser impressão
minha.
-Logo que ficamos sabendo, papai me trouxe para cá,
para vê-lo - comentou.
Contudo parecia que estava sendo forçada a dizer
aquelas palavras. Será que era porque ela estava triste e
surpreendida com aquele acontecimento? Sim, deveria
ser isso.
-Você vai ficar bom, Ricardo, vai voltar a ver as
maravilhas de sua fazenda, vai voltar a ver...
Aí ela parou. Tive a impressão que desviou a atenção
para outra coisa
Voltei a ouvir novamente sua voz:
-Bem, Ricardo, eu tenho que ir - segurou minha mão e
continuou: Tchau e felicidades...
E saiu, devagarinho do quarto.
-Tchau! - murmurei e minha mão ficou estendida na
cama como que querendo alcançá-la.
Ouvi um soluço atrás de mim. Será que minha mãe
estava chorando? Eu não compreendia aquilo... O que
será que Estela não terminara de falar? Será que ela ia
dizer que eu voltaria a vê-la novamente?
Que eu voltaria a enxergar parecia ser certo, porque os
médicos iriam fazer em mim um transplante de córneas,
mas e Estela, será que voltaria a vê-la novamente?
Continuei por muito tempo na escuridão. Até que um
dia soube que os médicos havia encontrado as córneas
que seriam transplantadas em mim e a cirurgia foi
marcada imediatamente.
VII - A verdade
Passaram-se dez meses. Já me encontrava novamente
na fazenda. Via tudo novamente, mas me faltava algo.
Faltava o essencial, faltava Estela.
Os dias transcorriam sem novidade. Quando me atrevia
a perguntar sobre Estela, meu pai respondeu:
-Naquele dia em que o visitou, ela ia mudar-se para
Minas Gerais.
-Criei coragem e insisti:
-Mas por que a família dela ia mudar para tão longe?
-Por que o pai dela é gerente de banco e ele foio
transferido para Belo Horizonte.
Aquilo tinha lógica, mas eu não me conformava. Por
que é que Estela não havia me falado nada?
Como que adivinhando meus pensamentos, meu pai
continuou:
-Estela não lhe falou nada porque você deveria passar
pela cirurgia ela queria que você estivesse feliz e
esperançoso.
Meu pai estava com um tom estranho na voz. Contudo
eu concordei com ele. Estela me fizera um favor.
Deixara-me preparado para vencer a batalha que eu teria
que travar até deixar o mundo das trevas. E tudo teria
acabado assim, se ninguém tivesse falado mais nada.
Todavia a verdade era completamente outra. Estela me
deixaram muito mais que saudades e lembranças.
Passava horas no meu quarto, escrevendo versos,
exprimindo a minha dor. Foi quando a verdade veio à
tona.
Um dia, sai para dar uma volta na fazenda, mas já não
sentia o prazer de outrora. Faltando Estela, faltava tudo.
Regressei triste para casa, pensando. Quando tiver mais
idade, vou procurá-la.
Quando entrei no meu quarto, vi minha mãe chorando
com uns papeis nas mãos. Naqueles papéis estavam os
meus versos mais tristes. Então, eu não me contive e
falei sem parar:
-Mãe, porque você está chorando? Por que você
chorou também naquele dia em que Estela foi me visitar
no hospital? Por que Estela parou de falar e foi embora?
Eu preciso saber a verdade.
Dei-me conta que estava gritando. Mamãe dava
profundos soluços.
-Perdoe-me mãe, perdoe-me, eu não queria gritar com
a senhora, mas eu sinto que alguma coisa está errada...
Eu preciso saber a verdade.
-Ricardo - era meu pai e ele falou-me brandamente:
-Esta bem Ricardo, você já não é mais criança, você já
é um moço. Eu vou lhe contar tudo o que aconteceu.
E dos lábios de meu pais, de um rústico fazendeiro,
saíram as palavras que jamais poderia imaginar:
-Ricardo, Estela é um anjo, Estela é um símbolo da
pureza de coração, é um símbolo da bondade e do amor.
Estela é a luz de sua vida. As córneas transplantadas nos
seus olhos, são dos olhos de Estela. É triste, mas Estela
está morta.
Não era possível! Não era possível que meu pai
estivesse falando aquilo. E minhas mãos dirigiram-se
para meu olhos. Eu iria arrancá-los se meu pai,
adivinhando minhas intenções não me segurasse.
Derramando lágrimas, ele continuou:
-Deixe seus olhos em paz, Estela queria assim. Ela
queria assim...
Aos poucos fui me acalmando e em meu cérebro
surgiram as perguntas: Por que? Como?
Papais olhou para minha mãe e deu-lhe um sinal.
-A carta? - peguntou ela.
-Sim, a carta - afirmou ele. Instantes depois minha
mães voltava com um envelope que me entregou.
Angustiado eu o abri e comecei a ler.
"Ricardo,
Minha doença é fatal. Era por isso que ultimamente
meus pais faziam tudo o que eu pedia. Foi por isso que
eles me deixaram ir passear na fazenda. Logo depois
que voltei, a doença piorou e fui internada no mesmo
hospital em que nos conhecemos. No dia em que você
chegou, duas pessoas entraram no meu quarto e,
pensando que eu estivesse dormindo, comentaram:
pobre menina, tão jovem e condenada a morrer assim.
Foi naquele momento que fiquei sabendo a verdade
sobre a minha doença. Desesperada pedi a meus pais
para chamá-lo. Assim eles foram obrigados a me contar
que você estava no hospital. Disseram-me que você
estava cego e esperando para fazer um transplante de
córneas, mas estavam faltando o doador.
Insisti e consegui que eles me deixassem ir visitá-lo.
Quando entrei no seu quarto, a fraqueza estava me
dominando. Conversei só um pouco com você porque a
enfermeira me chamou e tive que ir-me. Ao voltar ao
meu quarto, já havia me decidido. Iria me suicidar.
Escrevi esta carta para você e outra aos médicos do
hospital para que, quando eu estivesse morta, meus
olhos fossem transplantados em você. Compreenda
Ricardo, que de todo modo eu iria morrer mesmo. Não
queria ver meu corpo se deteriorando. Fazendo isso, eu
deixaria mais do que uma lembrança para você. Algo de
meu próprio corpo, algo meu, viveria sempre em você.
E continuaria vendo o mundo da forma maravilhosa que
você vê. Seja feliz, Ricardo. Adeus".
Terminei de ler a carta. Papai olhou para mim e
concluiu:
-Sim Ricardo, Estela suicidou-se
-Onde ela está enterrada, pai?
-No cemitério de sua cidade.
-O senhor tem razão, pai, Estela é um anjo!
VIII - Eu vou dormir
Ricardo terminou sua narrativa e acrescentou:
-Então padre, hoje bem cedinho eu fugi e vim para este
cemitério, para ficar junto ao túmulo de Estela. Meu
desejo é morrer para ficar com ela.
O padre esforçou-se para ficar sereno.
-Ora, Ricardo, você não vai morrer não. O tempo
apaga tudo, durma ali naquela cama e amanhã, quando
você estiver bem, eu o levarei para a fazenda de seus
pais.
Ricardo quase não ouvia a voz do padres. Sua atenção
estava voltada para o passado.
- Na sua casa tem telefone? - A pergunta do padre fez
com que ele voltasse à realidade.
-Tem sim, padre, por que?
-Vou ligar para seus pais, para tranquilizá-los.
-Está bem padre, eu vou dormir. E foi dormir o jovem
e tristonho poeta, pensando que um dia lá no céu,
cantaria seus versos para um anjo.
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