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O enorme aparelho preto e anguloso da secretária eletrônica
permaneceu apertado contra seu peito durante todo o trajeto
até a passagem das Petites-Écuries, onde ficava o consultório
de sua psicanalista. O único ponto em comum entre esse bairro
e o do escritório de Virgile era a grande quantidade de passagens que davam a possibilidade de escapar da rua muito movimentada. Os moradores da passagem das Petites-Écuries
tinham instalado cadeiras e uma mesa de jardim branca; um
casal de aposentados cuidava de algumas roseiras, uma bicicleta de criança podia ser vista solta por ali. O cantinho da doutora
Zetkin ficava empoleirado no terceiro andar do prédio, na quina do pátio. Vigas verticais, horizontais e diagonais ficavam
aparentes na fachada, formando uma espécie de tela de fios
grossos marrons; no alto, podiam-se ver as calhas que impediam a água da chuva de se infiltrar na madeira e no estuque.
Na sala de espera, uma jovem (com calça e paletó pretos,
os cabelos presos num rabo de cavalo), última paciente do dia,
folheava uma revista. Parecia inquieta diante da figura de Virgile apertando uma secretária eletrônica contra o peito; optou
por mergulhar na publicação. A porta do consultório se abriu;
a mão da doutora Zetkin apareceu, convidando a jovem a entrar.
Virgile cantarolou o último jingle que ouvira na agência.
A melodia da publicidade, que vendia os benefícios de uma
compota de frutas para a saúde, o acalmou. Normalmente ele
fazia um repasse de suas angústias de momento; relacionava
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os assuntos a ser abordados, definia uma retórica infalível e
preparava respostas bem argumentadas para as prováveis réplicas da doutora Zetkin. Mas, naquela circunstância, preferia abster-se de usar o cérebro. Depois de vinte minutos, a jovem saiu.
A doutora Zetkin era uma mulher de seus cinquenta anos,
tinha cabelos grisalhos e óculos de tartaruga com lentes verdes;
usava um colete de lã fina de cor violeta sobre uma blusa creme, um colar de pérolas e anéis com jade e âmbar incrustados. O lapsang souchong impregnava o ar do consultório. Esse
chá era forte demais para o paladar de Virgile, mas ele o associava tanto às suas sessões que bastava o seu aroma para que
ele sentisse um bem-estar imediato.
– Olá, doutora.
– Você não tem sessão hoje.
Fez um gesto convidando-o a entrar. Sentaram-se cada
um de um lado da escrivaninha. Uma chaleira vermelha de
ferro fumegava sobre uma mesinha perto da biblioteca. A agenda enorme de capa preta aberta diante da doutora fazia lembrar
a forma de uma ave de rapina em pleno voo. A página daquele
dia estava cheia de nomes, mas o de Virgile não figurava ali.
Segunda-feira não era dia de sessão com ele.
Virgile já tinha superado a fase de transferência, portanto,
não tinha ciúme dos outros pacientes da doutora Zetkin. Ao
contrário, raciocinava, sua clientela numerosa permitia a ela
constatar que ele era o mais interessante de toda aquela horda
de neuróticos comuns. A relação que se tem com um analista
não pode se desviar; se for um bom profissional, ele jamais
aceitará os convites que você fizer para irem juntos a uma
exposição. Não será amigo nem inimigo. Falando claramente,
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ele não é um ser humano. “Deem-me um ponto de apoio e
eu moverei o mundo”, dizia Arquimedes, desafiando os seus
amigos de Siracusa. No caso, para Virgile, tratava-se de se mover acima de suas neuroses, com sua psicanalista, único elemento estável em seu universo, desempenhando o papel de
ponto de apoio.
– Acabo de ter um acidente – disse Virgile.
– Ah. Que tipo de acidente?
– Um acidente com a realidade.
Mais do que as agressões, as doenças e os acidentes automobilísticos, a realidade é a grande provedora de feridas, danos e sofrimentos. Virgile pôs a secretária eletrônica sobre a
mesa. A doutora Zetkin piscou os olhos e cruzou os braços.
Virgile não respeitava as regras. Ele deveria se deitar no divã.
Não se sentar. Não afetar a geografia de sua mesa. Virgile sabia
que a doutora Zetkin via o seu comportamento como um sintoma. Não podia criticá-la por isso, pois ele mesmo sempre
dizia que toda ação humana (a respiração, por exemplo) era
um sintoma.
– Ah – disse ela.
Como sempre, seu rosto não expressava nada. Mas Virgile
conseguia captar nuanças em sua neutralidade facial. Havia o
neutro curioso, o neutro frio e o neutro tranquilizador. Além
disso, a doutora Zetkin tinha um grande talento para os “ahs”.
Eram a base de seu vocabulário. Às vezes usava outras palavras, como “bem”, “como assim?”, “sim”, “você se esqueceu
de me pagar”. Essa mulher sobrevivia na sociedade e se destacava na sua área com uma dezena de expressões que utilizava
moderadamente.
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Depois de desligar da tomada o abajur da mesa para ligar a
do aparelho da secretária, Virgile apertou o botão de leitura. A
mensagem apareceu.
– Então essa mulher o deixou – disse a psicanalista.
– Não exatamente.
– Mas ela disse isso claramente. Você é que não está aceitando.
A doutora Zetkin acreditava ter posto o dedo na ferida.
Afinal de contas, os dois conheciam a situação da vida sentimental de Virgile: que ele provocasse a ruptura por parte de
alguém era algo bastante plausível. Como os fenômenos das
marés ou da migração das aves selvagens, fazia parte da ordem
natural das coisas. Virgile sentia-se quase feliz por poder contradizê-la e, pelo menos uma vez, com razão.
– Nós não estávamos juntos. Nem sequer a conheço.
A doutora Zetkin segurou os óculos entre os dedos e começou a limpar as lentes. O caso a interessava. Após uma
jornada inteira ouvindo neuroses clássicas, não tinha nada a
opor a um pouco de fantasia. Recolocou os óculos e afastou
as mãos num gesto de interrogação.
– E como você interpreta isso?
– Não quero interpretar. Quero entender.
– Ah, é?
Virgile estava num ambiente seguro. As maiores produções
da psicanálise ocupavam as estantes da biblioteca; uma foto de
Freud apontando o dedo na janela de um trem que chegava a
Paris em 1938 estava afixada atrás da mesa; uma cópia da primeira página manuscrita de seu estudo sobre a Gradiva de Jensen
estava emoldurada na parede; sobre a mesa, espalhavam-se revistas especializadas em francês e em espanhol. Virgile gostava
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de acreditar que espíritos anímicos contidos nas relíquias tornavam o local um santuário. Podia abrir a tampa de seu cérebro
sem medo.
– Não pode se tratar de um engano – disse ele. – Ela disse
o meu nome.
Virgile não tinha um nome muito comum, e teve a oportunidade de se dar conta disso já no pátio de recreio da escola.
– Talvez seja um trote – prosseguiu ele.
– E por que uma mulher que você não conhece passaria
um trote em você?
O celular de Virgile tocou. Preocupado demais com o caso
em pauta, esquecera-se de desligar o aparelho. Chegara a tal
ponto no desrespeito às regras da análise que decidiu atender.
Era Faustine, uma velha amiga.
– Faustine, não posso falar agora, estou na minha análise.
O quê? Eu lhe telefono.
E desligou. As coisas não iam bem. Olhou para a foto de
Freud. Suas mãos estavam úmidas, os ouvidos se tapavam,
sua saliva adquirira um gosto de metal. Tinha dificuldade para
respirar. Sentia-se como um acidentado, vítima de uma trombada com alguma força invisível.
– Já lhe falei de Faustine?
– É uma das mulheres por quem você já se apaixonou e
que depois virou sua amiga.
Virgile não sabia por quê, mas para ficar amigo de uma
mulher ele primeiro precisa se apaixonar por ela.
– Ela acaba de saber que Clara me deixou. E me convidou
para jantar para me reconfortar um pouco.
– Pense bem: tem certeza de que nunca conheceu nenhuma Clara?
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A doutora observou Virgile, os olhos semicerrados. Teria se
rompido a tênue fronteira entre ficção e realidade? Virgile
se concentrava num exercício de respiração que aprendera na
ioga.
Uma lembrança surgiu de repente. Acontecera cerca de
um mês antes, numa festa na casa de Maud. Todo fim de semana, esta se apossava do imenso apartamento dos pais para organizar alguma noitada. Sua principal qualidade era o nível
sonoro, que impedia a escuta das banalidades que o grande
número de convidados tentava trocar entre si. Virgile tinha
bebido. Faustine o puxara pela manga da camisa, queria lhe
apresentar uma garota. Agora ele revia a amiga pronunciando
o nome da outra agitando o seu copo enorme de coquetel:
Clara. Mas Virgile não se lembrava do seu rosto nem da conversa que tinham tido. Em todo caso, nada demais acontecera.
Virgile contou o episódio à doutora Zetkin.
– Talvez você a tenha beijado e ela interpretou o gesto
equivocadamente.
– Eu só troco um aperto de mãos com as mulheres. Principalmente quando bebo. Caso contrário, meus lábios tendem
a estalar pelo rosto inteiro delas. Será que eu poderia ter tido
um caso de amor com ela sem perceber?
– Você não é louco.
A afirmação abalou Virgile. De repente, sem nenhuma preparação, sua psicanalista, uma mulher com quem se encontrava
três vezes por semana havia cinco anos, apagava uma de suas
angústias.
– Não está dizendo isso só para me acalmar?
– Você me paga pela minha objetividade.
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O celular de Virgile tocou novamente. Era Nadia. A conversa foi rápida: Faustine contara a ela sobre a ruptura. Um
bipe indicou outra chamada. Ele colocou Nadia na espera.
Era Faustine de novo. Ele prometeu às duas amigas que telefonaria mais tarde. A doutora Zetkin fazia anotações.
– Não estou me sentindo muito bem – disse Virgile depois de desligar o telefone.
Sentia vontade de vomitar e de desmaiar ao mesmo tempo.
Alguma coisa estava errada, e ele não sabia o que era. Intuía que
era algo grave e que sua vida mudaria radicalmente.
– Vá descansar.
– Isso não resolve nada.
– Nada se resolve.
Não havia urgência. A doutora Zetkin achava que com o
tempo as coisas se esclareceriam. Virgile também aguardava
o desenrolar dos acontecimentos, mas ele não era simplesmente um espectador. A psicanalista batia com a sua caneta-tinteiro
na borda da mesa.
– Não sei se tem a ver – adiantou Virgile –, mas tenho
tido umas tonturas nos últimos tempos. Eu me sinto nauseado.
Ele precisava encontrar algum significado para aquilo que
lhe acontecia. A doença sempre fora um refúgio privilegiado
quando se sentia fora do controle.
– Você faz mesmo questão de ficar doente?
– Tento entender o que está acontecendo.
– Acha isso mesmo?
Virgile tinha a sensação de que seu sangue se congelara
nas veias. Manchas brilhantes flutuavam nos seus olhos.
– Por precaução – disse ele, engolindo saliva com dificuldade –, poderia me prescrever alguns exames?
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– Se é o que você quer.
A doutora registrou num formulário de receitas uma quantidade de palavras suficiente para perceber que não se tratava
apenas de alguns exames. Dentre os seus vários talentos, Virgile
tinha a rara faculdade de ler “tomografia” de ponta-cabeça.
– Uma tomografia? – perguntou Virgile.
– Não se preocupe.
“Não se preocupe” é certamente a frase mais preocupante
de toda a língua francesa. Virgile deu uma olhadinha pela janela. A passagem das Petites-Écuries estava mergulhada na escuridão. Não sentia vontade de ir embora, queria ficar naquele
lugar e se enrodilhar no divã. A doutora Zetkin abriu a porta.
Virgile saiu, os braços apertados contra o torso. Optou por
caminhar pelas ruas mais iluminadas e mais movimentadas;
passou pelos barzinhos da rua do Faubourg Saint-Denis para
aproveitar as luzes das lojas e o cheiro de fritura dos vendedores
de kebabs. Qualquer manifestação de vida lhe parecia valiosa.
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