Um ganso no meio de uma guerra verbal
Irene Bazinger
Tradução: Fabio M. Said
Sem noção e com medo: “Uma parte do ganso”, peça de Martin Heckmanns, estreia no
Deutsches Theater de Berlim
Por que alguém que não sabe cozinhar convidaria seu potencial futuro chefe para jantar em
casa? Como esperar que o ganso assado saia no ponto e o suflê não murche? E como esperar que, mesmo assim, o sujeito lhe ofereça um emprego? É nesse conflito cotidiano entre
burrice e medo – ou seja, entre um assado carbonizado no forno e uma casa própria cujas
prestações pagas nem chegaram à metade – que vivem Bettina e Victor. Os dois estão juntos há dez anos e só não se casaram porque não têm dinheiro para fazer uma festa de casamento em alto estilo. Apesar de sua falta de noção, eles são simpáticos, não fazem mal a
ninguém e se comportam como pessoas absolutamente normais.
É em torno de Bettina e Victor que se desenvolve a nova peça de Martin Heckmanns, jovem
dramaturgo alemão nascido em Mönchengladbach, em 1971, dono de uma retórica dos gestos milimétricos e de estilo sempre um tanto absorto. A peça, intitulada Uma parte do ganso
– Ein Teil der Gans, no original, brincadeira com as palavras Gans (ganso) e ganz (todo) –,
teve estreia no teatro da companhia Deutsches Theater de Berlim, sob a direção de Philipp
Preuss. O jovem diretor começa com um experimento quase sobrenatural: quatro cadeiras
de madeira arrumadas ao redor de uma mesa comprida, em cujo centro encontra-se uma
montanha transbordante de uvas brancas. No meio das uvas, encontra-se uma faca grande
em posição vertical.
Embora a peça seja uma comédia, o cenário parece estar preparando para um sangrento
ritual de sacrifício. O espectador deve ter isso em mente alguns momentos depois; quando
Victor, encarnado pelo ator Ernst Stötzner, esse sensacional virtuose minimalista, entrar na
sala pavoneando-se no melhor estilo do teatro de bulevar – e de cueca, porque não se deu
conta de que os convidados já chegaram. Ou então quando todos estiverem bebendo limonada em pequenas garrafas de plástico porque Victor não tinha comprado o vinho. Ou ainda
quando a namorada de Vitor, interpretada pela exuberante Katharina Schmalenberg, ficar
cheirando constantemente as axilas para ver se estão com odor de suor. Os dois estão totalmente assoberbados, enquanto Amin, o hoteleiro latino interpretado por Gabor Biedermann, e Tara, sua esposa supostamente asiática interpretada por Nora von Waldstätten,
obviamente não recebem grande atenção, pois a comida é imprestável, a conversa é tediosa; e a situação, confusa. Por isso, o grupo passa o tempo fazendo zombarias, ofensas e
provocações. Victor é surpreendido quando Tara flerta com ele, enquanto Amin elogia as
pinturas de Bettina quando, no fundo, acha-as horríveis. Mais tarde, as mulheres partem
para cima uma da outra com sapatos de salto alto, e os homens brigam com suas opiniões
diversas sobre a democracia.
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Além disso, há também Max, que espera debaixo de chuva no terraço. Esse skinhead com
ares suspeitos, vivido por Henning Voigt – que, aliás, estiliza o personagem como um malicioso mascador de chiclete – supostamente teve um problema com seu carro. Victor o deixa
entrar para ter um amigo a quem recorrer e ainda o chama de “meu camarada”. Bettina,
incomodada com a presença desagradável e amedrontadora do careca skinhead, exige que
ele seja mandado embora. Mas o jantar acontece no dia de São Martinho, o santo que costumava dividir seu manto com um mendigo. O que fazer? Martin Heckmanns consegue criar
uma diversão inteligente ao carregar a peça com cada vez mais associações e tocar em temas delicados – seja refugiados do terceiro mundo, estratégias de exploração praticadas
pelo Ocidente ou padrões de pensamento racistas. Em algum momento, a coisa fica feia; e
os convidados acabam se revelando como os mesmos “estrangeiros asquerosos” sempre
mencionados pelos anfitriões com temor e clichês e exigem sua parcela de felicidade. Destroem-se paredes, derrubam-se móveis, disparam-se tiros. De repente, em vez de um coral
infantil típico das festividades do dia de São Martinho, surge no palco um coro de cerca de
vinte africanos, o “Bonisanani Spirituals”, que canta sem qualquer ironia: “We are the champions.” Como que liberados, Bettina e Victor dançam e se esquecem do campo de batalha
que era sua casa até poucos minutos atrás.
Pelo menos por alguns instantes, eles não fazem nenhuma reclamação, nem xenofóbica,
nem de qualquer outra natureza. E, graças à direção cômica de Philipp Preuss, o público
também não tem do que reclamar: o ganso assado de São Martinho cumpriu bem sua missão!
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