A adolescência de cada um de nós Lucy Linhares de Fontoura “Más companhias” (Mauvaseis Fréquentations), direção Jean-Pierre Améris, França, 1999, 98 min. Delphine é uma jovem de 15 anos, de uma família de classe média/alta, pai médico, mãe marchand, um irmãozinho, numa cidade grande, na França.A abertura no filme já situa a perspectiva da narrativa: sobre o fundo de um poprock animado, Delphine no banheiro, frente ao espelho, rosto de menininha, ajeitando o cabelo, ora em trancinhas, ora em outros arranjos, troca de roupa repetidas vezes. O pai apressado para o trabalho, abre a porta abruptamente, cobrindo os olhos, desculpando-se e retirando-se em seguida.Logo comenta com a mulher, em tom queixoso, a interminável duração dessas toaletes, que interditam o banheiro familiar, ao que esta o acalma com cara de “há que se ter paciência...coisa de adolescente”. De saída, pelo desempenho extraordinário da jovem atriz Maud Forget, o espectador vai percebendo o mal-estar da pequena Delphine: mal –estar vago e indefinível, num contexto onde não há conflito explícito- família normalmente estruturada, escola idem. Delphine quieta, como a procurar resposta para questões imprecisas. Eis que surge Olívia, colega de aula, alta, longos cabelos frisados com continhas, maquiada, cheia de endereços, falante, atitude agressiva e hostil a tudo e a todos,cuja redação sobre o sentido da vida e a morte a professora faz ler em voz alta- e Delphine ouve ali o eco de sua insatisfação solitária. Tornam-se amigas e Olívia a introduz no mundo das festas e dos garotos.Ambas começam a namorar uma dupla de amigos. Para Olívia, mais um relacionamento sem maiores conseqüências; para Delphine, a descoberta do amor, do sexo e da independência. Por isto, parece coerente que ela aceite a proposta do namorado de fazer sexo oral nos meninos do colégio, para obter dinheiro para uma viagem à Jamaica. (O filme é baseado em fatos reais da crônica policial de Grenoble, na França). Com este argumento- que daria margens para abordagens muito diversas, o cineasta realiza um filme tocante e generoso , conseguindo encontrar o tom exato: nem cinismo, nem moralismo, nem melodrama. Ali estão os dilemas parentais entre a proteção e a liberdade para os filhos que vão necessariamente se tornando independentes da família, as diferentes versões dos contextos familiares, a gradativa ascensão da importância das relações entre pares em detrimento das relações familiares, o estabelecimento de laços de amizade e lealdade, a descoberta do amor e da sexualidade hoje, também em sua s diferentes versões e, principalmente, a resposta particular e individualizada que o posicionar-se subjetivamente e de forma sexuada no mundo requer. Assistimos, então às grandes diferenças entre Olívia e Delphine. Aquela problematizada por uma identificação maciça à irmã suicida, no que se pode ver um luto patológico evidente, que a amarra a um destino de repetição e niilismo. O contexto familiar é aqui marcado pela atribulação no trabalho; do pai, que constitui outra união e outra família, a cujo abandono Olívia atribui a culpa do desmoronamento da família, o que a impede de acolher suas tentativas de aproximação e amparo. À Olívia restam os pares, as relações transitórias fugazes com o semelhante, o sexo tomado na dimensão de um encontro fortuito de prazer sem envolvimento. Para Delphine, a família está em lugar diverso. Os pais acompanham ao primeiro programa fora da família, quando ela vai passar a noite na casa da amiga, se interessam por ela, observam quando um garoto ainda não conhecem começa a lhe telefonar, autorizam, com alguma hesitação, seu primeiro reveillon fora do circuito familiar. Quando a amiga se machuca, Delphine apela para o pai médico. Mesmo assim, assistimos à inevitável distância entre pais e filhos, que tão dramaticamente se coloca na adolescência (e que o filme apresenta magistralmente), mostrando a distância entre as gerações é necessariamente correlativa ao posicionamento como sujeito – ao exercício da sexualidade e à construção de uma certa autonomia. À medida que a separação da família vai se caracterizando, a mãe tenta conversar com ela, com cuidado e respeito, mas... não é possível, Delphine permanece muda e inacessível, as palavras não saem. Aí parece o lugar de um outro adulto – no caso, uma avó, com quem, dentro de certos limites, Delphine consegue enunciar algumas de suas interrogações acerca do amor e do desejo, ouvindo dela seu testemunho acerca de como foi para ela esta experiência. E é dessa experiência – extraordinária, pessoal e intransferível, que se trata para Delphine. Ela se apaixona por um menino cujo discurso e atitudes evidenciam uma posição de cinismo e ausência de laços significativos, para quem ela é apenas mais um relacionamento.Com ele vai construindo uma experiência verdadeira, que o toca também, mas que não é suficiente para desloca-lo de uma posição que parece se delinear hoje em dia como efeito do declínio do pai em nossa cultura. O psicanalista Jean-Jacques Rassial, examinando o fenômeno moderno do “bando” entre os jovens, avalia que este não define mais uma fraternidade ofensiva contra o pai, mas uma fraternidade defensiva sem o pai, que visa sustentar o sujeito num lugar qualquer, uma vez que o pai se ausentou.Nesta perspectiva o “inimigo” é o próximo, o vizinho de quem gostamos.Assim não há incoerência, para este garoto, entre reconhecer o afeto verdadeiro que Delphine lhe dedica e prostitui-la para juntar o dinheiro necessário para uma viagem à terra de seu ídolo, Bob Marley - onde ele, quem sabe, encontrará um lugar. Delphine sai da experiência com marcas, é claro, mas sem desestruturar-se, sendolhe possibilitado, pela “retirada acolhedora” dos pais ( ela vai passar uma temporada na casa da avó) um espaço/ tempo de elaboração. O filme aposta nas possibilidades de construção/reconstrução subjetiva via laços. A amizade entre as duas meninas tão diferentes se afirma e, auxiliada por um acidente feliz, resgata Olívia de seu destino trágico, desta vez. A visita do amigo tímido, apaixonado por Delphine, é uma doce promessa. Para finalizar, tomo de empréstimo as palavras de um comentário não assinado acerca do filme, publicado no semanário portoalegrense “E aí?”. “Deixar de ser criança e assumir o controle da própria vida é um processo muito complicado. O nome dele é adolescência , e um adolescente é capaz de coisas incríveis e erros sérios em nome da afirmação de que sabe o que quer.(...) Ao término do filme, é provável que o espectador enxergue no rito de passagem de Delphine um espelho para os erros que cometeu na adolescência, todos provavelmente perdoados ou esquecidos, em nome do amadurecimento”.