JORNADA UNISAL / UNICAMP DE PEDAGOGIA SOCIAL: RUMO AO III CIPS (CONGRESSO INTERNACIONAL DE PEDAGOGIA SOCIAL) Campinas, maio de 2009. EM CENA: CIDADÃOS ARTEIROS DA CASA GUADALUPANA Marina Moreto1 Rogério Adolfo de Moura2 ONDE ESTAMOS? QUANDO CHEGAMOS? A Casa Guadalupana é um setor da Instituição Padre Haroldo, que desenvolve um trabalho junto a meninos e meninas em Situação de Rua, assim como com suas famílias. Recebemos financiamento da Secretaria Municipal de Cidadania, Assistência e Inclusão Social (SMCAIS), da Prefeitura Municipal de Campinas. Por isso, integramos a Rede de Enfrentamento à Situação de Rua de Crianças e Adolescentes deste Município. Nosso trabalho está organizado em quatro vertentes: - Educação social de rua e arte educação na rua, desenvolvido por uma equipe de 10 educadores sociais de rua, que realizam atividades lúdicas diárias em praças, semáforos, esquinas, cruzamentos de avenidas, pontos de cultura, com os meninos que estão pedindo, ou fazendo “rodinho”, ou apenas perambulando. A demanda é espontânea. Os educadores participam de discussão de casos, espaços de debate de políticas públicas junto aos adolescentes; - Oficinas internas de Arte Educação, desenvolvida por um oficineiro contratado e uma voluntária oficineira. São realizadas oficinas diariamente no período da manhã, e a demanda é espontânea; - Acompanhamento Psicossocial, desenvolvido por duas assistentes sociais e dois psicólogos. Os profissionais fazem acompanhamento das famílias, atendimentos 1 Mestranda da Faculdade de Educação Unicamp – Laboratório de Estudos sobre Arte, Corpo e Educação (LABORARTE). Atua profissionalmente como Coordenadora de Projeto na Casa Guadalupana – Instituição Padre Haroldo. 2 Professor Doutor da Faculdade de Educação da Unicamp – Laboratório de Estudos sobre Arte, Corpo e Educação (LABORARTE). aos meninos, orientação técnica à equipe de educadores, estudo dos casos junto aos educadores, participação em Conselhos Municipais, discussões em rede; - Acompanhamento Jurídico, desenvolvido por uma advogada, que acompanha os processos de situação de ato infracional na Vara da Infância e Juventude. A Casa Guadalupana nasceu em 1989 por iniciativa de Pe. Haroldo em assistir crianças e adolescentes que usavam drogas e perambulavam pelas ruas do centro da cidade. Desde então a metodologia de trabalho foi se transformando, até que em 2003, a Instituição, a Prefeitura e o projeto de extensão da Unicamp Mano-a-Mano se juntam para desenvolver um trabalho de arte educação com os meninos e meninas na rua. OS MENINOS, AS CALÇADAS, A RUA E,... A BRINCADEIRA! Pedagogia Social. Drogas. Arte educação. Situação de Rua. Pobreza. Vitrines. Roubo. A Casa Guadalupana se estarrece com olhar de menino atento a desenho de casinha no farol habitado por transeuntes, carros, buzinas, pedra de calçada, pedra de crack e moleque sujo de tanto não tomar banho. Que pedagogia é essa que prevê o não-formal como momento tão solene? O encontro brincante (VAISBERG, 2002) de menino com educador é quase uma celebração de dois mundos antes surdos agora “escutantes”. A educação não-formal é formalizada pela humanização do encontro educadoreducando. O educador procura criar um ambiente suficientemente bom, onde um suporte sustentado é facilitador de confiança, mergulho e possibilidade de criar um mundo particular, transicional. “Winnicott denomina de ambiente suficientemente bom o viver cotidiano de um bebê que goza de cuidados de uma mãe também suficientemente boa, devotada, que ‘possibilita ao bebê alcançar, a cada etapa, as satisfações, ansiedades e conflitos inatos e pertinentes’3 Considerando-se, então, que as crianças e adolescentes em Situação de Rua, de alguma maneira, não vivem e/ou viveram em um ambiente suficiente bom, que suas mães (por motivos diversos) não 3 WINNICOTT, D. W. “A Preocupação Materna Primária”. Textos Selecionados: da Pediatria à Psicanálise. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988. desempenharam o papel da mãe dedicada e devotada, reside a intenção da Casa Guadalupana em desempenhar a arte educação na rua, as oficinas e o atendimento psicossocial, buscando justamente proporcionar um ambiente saudável, criativo, lúdico e completo, para que os meninos e meninas resgatem em si algo de essencial e íntegro.” (PENTEADO, A. T. & MORETO, M., 2007, p. 149) POR UMA SOCIEDADE... NECESSÁRIA... Há um projeto nessa pedagogia. Há uma compreensão de mundo explícita e concreta. A realidade brasileira é estabelecida entre mundos. Mundo de desigualdades sociais estarrecedoras. Mundo de informalidade na relação homem-dinheiro, homem-homem. Mundo de formalidades nos contratos sociais, uns frágeis, outros duros. Mundo de jeitos facilitadores de se chegar àquilo que se quer. Mundo de contradições. Mundo neoliberal. É discutida em fóruns sociais, acadêmicos e informais (como as mesas de bar, almoços de família, pontos de ônibus) a vergonha social brasileira e a pequena contribuição da maioria da classe política em diminuir o abismo social entre as classes de alta e baixa renda – ou melhor, da classe dos sem nenhuma renda. Mas, de fato, onde está a população? Nestes mundos tão diversos e que contêm todos os cidadãos? A Constituição Federal de 1988 prevê a criação de meios de garantir a democracia no Brasil. No Estatuto da Criança e do Adolescente, de 1990, Art. 88, são descritas as diretrizes da Política de Atendimento, e uma delas é a criação dos Conselhos Municipal, Estadual e Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA), onde é prevista a participação popular nas discussões, aprovações e fomentação de políticas públicas. A democracia brasileira criou os Conselhos como espaços legítimos de controle social, visando a “participação popular paritária por meio de organizações representativas, segundo leis federal, estaduais e municipais” (ECA, 2006, Art. 88, II). Mas, onde estão os usufrutos da democracia no Brasil? Onde está o cidadão descontente com seu bairro, sua escola e seu centro de saúde? Não basta discutir tais assuntos apenas nos fóruns informais. Temos que nos apropriar dos espaços onde podemos fazer com que o conceito de cidadania aconteça, se espalhe e se perpetue. Não considero o exercício da cidadania apenas participação em Conselhos e o sufrágio universal. A cidadania é um conceito amplo. No entanto, para o cidadão lutar pelos seus direitos nestes Conselhos, será obrigatória a rediscussão do papel do Estado brasileiro, como mínimo ou socialmente justo. Os Conselhos Municipais cabem a todos, devem ser preenchidos pela participação popular, e este dever/direito não distingue cor, credo, raça, condição social ou partido político. Por experiência na participação de alguns Conselhos, reconheço que são espaços não completamente agradáveis. As pautas são extensas, geram tensão entre as pessoas, a linguagem nem sempre é simplificada, leva um tempo para o cidadão se familiarizar com a organização das reuniões e são espaços propícios para que a politicagem invada a nobre política. Entretanto, uma vez que os Conselhos foram criados prevendo a participação popular no fazer do poder público, é legítimo a mesma população propor mudanças na metodologia das discussões destes espaços. Pode-se propor a simplificação da linguagem, um maior tempo de discussão para as pautas, visitas dos Conselhos aos bairros, discussões itinerantes, assembléias amplas, em espaços abertos, fóruns de discussões e sugestões via internet e etc. Com a mobilização social, quase tudo, pode. Os Conselhos não são espaços fechados, e existem para ‘dar a cara’ da sociedade brasileira aos serviços oferecidos a ela própria. Acredito que quando a população se empoderar de seu papel na política pública e na construção democrática do território brasileiro é que teremos uma sociedade com justiça social. Por isso essa pedagogia é social, é necessária, é transformadora. Ao construímos experiências junto aos nossos atendidos na Casa Guadalupana, estamos fomentando, pouco a pouco, a conscientização crítica sobre sua condição de cidadão de direitos, deveres e que pode ocupar espaços para que sua voz ressoe alto e proponha uma vírgula nas agendas políticas. Ainda falta muito, este é um objetivo difícil de ser alcançado. O lugar social dos meninos em Situação de Rua é o da precarização da vida, visto a mercantilização da mesma em todas as esferas sociais. O menino de rua é o delinquente social. E essa delinquência tem um papel em sua vida, podemos dizer, segundo Winnicott (2005), inclusive, que essa delinquência é uma esperança em termos psíquicos. Para Winnicott (2005): “Quando existe uma tendência anti-social, houve um verdadeiro desapossamento (não uma simples carência); quer dizer, houve perda de algo bom que foi positivo na experiência da criança até uma certa data, e que foi retirado; a retirada estendeu-se por um período maior do que aquele em que a criança pode manter viva a lembrança da experiência. /.../ A criança que furta um objeto não está desejando o objeto roubado, mas a mãe, sobre quem ela tem direitos. /.../ Uma criança sofre privação quando passam a lhe faltar certas características essenciais da vida familiar. /.../ A tendência anti-social caracteriza-se por um elemento nela que compele o meio ambiente a ser importante. /.../ A tendência anti-social implica esperança. /.../ No período de esperança a criança manifesta uma tendência anti-social. Isso pode ser constrangedor para a sociedade em geral e para você, se a sua bicicleta é que foi roubada, mas aqueles que não estão pessoalmente envolvidos podem discernir a esperança subjacente na compulsão para roubar. /.../ Existe uma relação direta entre a tendência anti-social e a privação. /.../ Em resumo, o tratamento da tendência anti-social não é a psicanálise. É o provimento de cuidados à criança, que podem ser redescobertos pela própria criança e nos quais ela pode experimentar de novo os impulsos do id, com possibilidades de testa-los. /.../ É o ambiente que deve dar nova oportunidade à ligação egóica, uma vez que a criança percebeu que foi uma falha ambiental no apoio ao ego que redundou originalmente na tendência anti-social.” (WINNICOTT, 2005, págs. 138 à 147) Às famílias de meninos em Situação de Rua muito lhes foi privado. A sociedade colhe os frutos ainda verdes – daqueles que amarram a boca – de sua alta reprodutividade técnica, consumista e segregadora. Esses frutos verdes perambulam sujos, roubam, usam drogas e “enfeiam” a cidade. E suas famílias, também as julgaremos culpadas pela privação a seus filhos? São multidões de privados nesse Brasil da miséria, da des-educação, da venda fácil ao projeto estrangeiro. Precisamos de um projeto nosso, que cuide das privações, que não estigmatize o que ressoa de mais podre de nossas próprias produções. Neste aspecto, a pedagogia social, o levar a sério e a cabo Paulo Freire e os educadores sociais e populares que saem da periferia é um caminho bastante propício para tal transformação. Esse caminho é longo, mas quem tem preguiça de caminhar? Comecemos pelo começo, e caminhemos juntos, sempre é mais reconfortante e lúdico! Nós não conseguimos, ainda, levar efetivamente os meninos para os Conselhos. É um projeto, que não morre nunca. Já conseguimos a participação deles em outros espaços. “Eureca”4! São espaços mais lúdicos e interativos. Aí está. Adolescência, privação de direitos, pouco acesso a uma boa educação, saúde sempre precária, esgoto a céu aberto, falta de comida em casa, violência doméstica intensa, precária organização emocional, tráfico na porta, na esquina e dentro de casa, vitrines do centro lotadas de incentivos para ser mais “bonito”. Como organizar toda essa gama de valores sociais, criticá-la, transformá-la e proporcionar a menino de rua uma vida mais saudável? Tarefa complexa e árdua. Menino de rua leva um tempo para chegar à reflexão de que o sistema de consumo gera a pobreza, a desigualdade, e que a droga não resolve nenhuma de suas angústias. Menino de rua quer consumir também. E entende que “Zé Povinho” pode comprar outro celular se for roubado, e menino de rua, não, ele não tem nenhum, mora na rua e precisa pagar a “pedra”. Ora, como resolver a questão? Se de assalto vem: Mão-na-cabeça-olhar-ferozsimulador-de-arma-no-peito-e-passa-o-celular! E vamos embora para a “biqueira”. Mas, voltando ao Eureca. O lúdico interessa aos meninos. Há fascinação nos filmes, desenhos, teatros de bonecos, maracatu, pintura em tela, música, ai a música. Na capoeira, na dança, na brincadeira de rua. Como gostam de brincar essa molecada. Até são capazes de atrasar a ida à “boca” para brincar com o “tio” educador. Fazem Zine mês a mês, o “Meninos Românticos”, edições carregadas de poesia, desenho, desabafo e alegria. Parece, então, que há um indício de esperança para a mudança social. Será? Nossa experiência diz que sim. 4 Bloco Carnavalesco “Eu Reconheço o Estatuto da Criança e do Adolescente”, no qual a Casa Guadalupana participou este ano, ficando responsável pela bateria do Bloco, ao som de maracatu. O desfile aconteceu em Campinas, em fevereiro de 2009. O Bloco Eureca surgiu em 1992, em São Bernardo do Campo, organizado por diversas Instituições que lutam pela garantia de direitos das crianças e adolescentes. Os desenhos expressam um caminhão por dia de reflexões dos meninos. As músicas são as lágrimas choradas da desgraça e as alegrias da cultura da rua. Mas existem outras músicas, e como eles gostam de conhecer outras melodias! A capoeira fala pelo berimbau aquilo que eu nunca sabia falar. Os passarinhos saídos do papel quadradinho voam alto e me levam com ele. E como é bom soltar pipa. Ai, e batucar alfaia pelas ruas de Campinas, então... Será que algo mais singelo, profundo e verdadeiro que a arte proporciona tamanho prazer, descontração e suporte para si mesmo? Quem descobrir que me conte! A Casa Guadalupana não propõe a arte como “instrumento” para sedução de menino. A Casa Guadalupana vive a arte como a vida acontece. Organizar os projetos, pensar em atividades, direcionar fazeres, estimular o uso de certos tipos de materiais faz parte de nossa metodologia de trabalho, que não se engessa nem nos faz reprodutores de desenhos e canções. “Do ponto de vista winnicottiano, e na nossa maneira de ver, a cura não é o resultado final do processo psicanalítico, porque não se trata de curar um tipo específico de quadro psicopatológico. Trata-se, outrossim, da ocorrência de momentos mutativos quando, graças ao manejo psicoterapêutico, o paciente consegue retomar seu potencial criativo e espontâneo e, desta feita , dar um sentido único e verdadeiro à sua existência”. (VAISBERG, 2002, pág 8). Não somos psicanalistas na Casa Guadalupana, somos educadores com potencial humano criativo. Reconfiguramos cada linguagem artística. Buscamos que cada menino e cada educador façam da atividade a “sua” atividade. As técnicas artísticas existem e as ensinamos aos meninos. A partir de então, a liberdade acontece de outra forma. A partir do momento que tomamos conhecimento técnico de algo, as possibilidades do fazer se ampliam, nossos horizontes se alargam. Temos, então, muitas possibilidades na mão: podemos usar o recurso técnico, podemos descartá-lo, brincar com ele, distorcê-lo, refazê-lo. Eu crio aquilo que estava ali para ser encontrado, como diz Winnicott (1975), eis aqui o grande paradoxo para a aceitação da realidade. A apresentação de mundos por alguém que me cuida expande minha possibilidade de criação Se conheço só pássaros azuis, como pensá-los brancos? Ora, pinte um que o verá! Apresentemos, então, lápis coloridos e papéis aos meninos e meninas. BIBLIOGRAFIA Brasil. Lei nº 8069, de 13 de Julho de 1990. Estatuto da Criança e do Adolescente. Comissão de Educação, Cultura e Esportes – Câmara Municipal de Campinas, 2ª edição, 2006. GRACIANI, Maria Stela S. Pedagogia Social de Rua. São Paulo: Ed. Cortez: Instituto Paulo Freire, 1999. PENTEADO, A. T. & MORETO, M. A interação de crianças e adolescentes em Situação de Rua com a Casa Guadalupana e com a rua. Anais do VIII Simpósio CEFAS e Jornada Flapag, p. 147-156, 2007. Disponível em: http://www.cefas.com.br/publicacoes/VIII_simposio.pdf VAISBERG, T. M. J. A. Ser e Fazer: interpretação e intervenção na clínica winnicottiana. São Paulo: “Ser e Fazer”: Laboratório de Saúde Mental e Psicologia Clínica Social do IPUSP. Mimeo, 2002. VON SIMSON, Olga R. de Moraes, PARK, Margareth B. & SIEIRO, Renata F.(org) Educação não-formal: cenários da criação. Campinas: Ed. da Unicamp, 2000. WINNICOTT, D. W. O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975. _________________. Privação e Delinquência. São Paulo: Martins Fontes, 2005.