NOTA PRÉVIA SOBRE A PALAVRA IMPRESSA NO BRASIL DO SÉCULO XIX – A BIBLIOTECA DO POVO E DAS ESCOLAS Prof. Dr. Jorge Carvalho do Nascimento Professor do Departamento de História e do Mestrado em Educação da Universidade Federal de Sergipe A palavra impressa ganhou uma importância muito grande na Europa da Idade Moderna e, já a partir do século XVI, chegou ao ambiente rural como instrumento utilizado pelos camponeses. As leituras passaram a constituir importante ferramenta que, inspirada em histórias que o povo contava também servia para difundi-las. No conjunto das utensilagens mentais a construção da realidade passou a contar, necessariamente, com a mediação da leitura. Nas reuniões de fim de tarde, os livros eram lidos em voz alta. Por outro lado, “o protestantismo e certas características do humanismo convergiram com a palavra impressa, para contestar valores hierárquicos tradicionais e para adiar o estabelecimento de rígidos valores novos”.1 Assim, a palavra impressa foi muito importante para que o povo tivesse uma opção de lazer e encontrasse opções de escapismo. Ademais, o advento da imprensa possibilitou a circulação e recirculação de repertórios culturais que povoavam o imaginário coletivo e passavam de geração a geração, até então, sempre quase exclusivamente através da transmissão oral. As discussões acerca da difusão dos hábitos de leitura no Brasil ainda são, em certa medida, incipientes e cheias de interpretações carregadas de preconceitos próprios da historiografia dos primeiros anos da República. É verdade que o Estado Republicano se constituiu trazendo consigo a expectativa do novo. Mas, também é verdadeiro que levou a que se produzissem deformações nas representações históricas do regime que o antecedeu. Sob a perspectiva da historiografia republicana, a leitura no Brasil do século XIX teria sido inacessível não apenas ao povo. “A visão corrente do Brasil monárquico dá conta da existência de determinadas circunstâncias que impossibilitavam a intelectualidade nacional daquele período pensar a respeito do próprio Estado brasileiro e formular projetos coerentes".2 Divergindo desse tipo de interpretação, alguns investigadores nos chamam a atenção para a necessidade de superar a perspectiva de uma “sociedade civil ainda despreparada para os valores democráticos, científicos (porque ainda marcada pelos valores colonialistas, elitistas etc) e, portanto ainda infantil.”3 O pesquisador Jorge de Araujo afirma que “o brasileiro, se não lia tudo ou bem, ao menos lia. E lia razoavelmente vário e muito”.4 As primeiras bibliotecas brasileiras começaram a ser formadas ainda em 1549, com a chegada dos primeiros missionários jesuítas. Em 1583, no Colégio da Bahia, havia já uma boa biblioteca.5 Este mesmo autor entende ainda que a partir do século XVIII, a ilustração pombalina desenvolveu e intensificou aqui uma certa pedagogia de época. Tal processo teria inclusive desdobramentos no que concerne aos interesses do colono no campo de uma bibliografia específica. Araujo não desconhece nessa sua análise as contradições do ambiente colonial brasileiro que, na mesma oportunidade, proibiu o editor Antonio Isidoro Fonseca de instalar-se aqui como impressor. A imprensa de educação e ensino no Brasil do século XIX é a preocupação central deste trabalho. Em tal sentido é necessário sublinhar que antes dos anos novecentos já circulavam entre nós livros dedicados ao problema da educação. Sob tal perspectiva, Marina Massimi aponta textos da maior importância, como o Tratado de Educação Física dos Meninos, publicado em 1790 pelo médico mineiro Francisco de Mello Franco, um entusiasta do iluminismo e do empirismo filosófico.6 O fato é que a tudo que está posto podem ser acrescentadas as profundas transformações pelas quais passa a sociedade brasileira do século XVIII, no que diz respeito aos hábitos de leitura. O impacto do movimento de ilustração pombalina no Brasil pode ser sentido pela vitalidade que ganha a circulação de livros e idéias. A reforma de Pombal buscou substituir a formação jesuítica por um iluminismo de base católico-regalista, com uma afirmação nacionalista de soerguimento do Estado. São muitas as expressões das leituras que a reforma pombalina possibilitou. Algumas delas fundamentais para a mudança da mentalidade dos intelectuais brasileiros e a introdução de idéias e problemas antes inacessíveis. Um bom exemplo é o trabalho de Luiz Antônio Verney,7 ancorado na filosofia racionalista e lógica de Locke8 - até então desconhecido no Brasil. Araujo9 aponta o fato de que Verney, no seu Verdadeiro método de estudar, difunde a prática pedagógica de Locke entre nós, acrescentando que Verney não cita Locke explicitamente, por certo face ao preconceito dos portugueses contra o autor inglês. É neste mesmo período que os brasileiros passam a ter mais contato com as idéias de Descartes, Aristóteles, Platão, Santo Agostinho, Galileu, Pedro Gassendo, Isaac Newton, Port-Royal, Malebranche, Arnaud, Pascal, Antonio Genovese, Camões, Duarte Ribeiro de Macedo, Diogo Bernardes, Voltaire, Jéremy Bentham, Cícero, Rousseau e Montesquieu. As evidências do que viria a ser o rico contexto do Brasil do século XIX podem ser encontradas ainda em documentos do final do século XVIII. O Almanaque do Rio de Janeiro, de 1792, organizado por Antônio Duarte Nunes, dá conta do funcionamento regular naquela cidade de uma livraria. Em 1797, em Salvador, começa também a funcionar regularmente a loja de livros de Manuel Antonio da Silva Serva. Este livreiro viria a pedir, em 1810, licença para a instalação de uma tipografia na Bahia. A autorização foi concedida no ano seguinte, no mesmo momento em que estava sendo fundada a Biblioteca Pública de Salvador. Dois anos mais tarde, em 1799, mais duas livrarias viriam a ser instaladas no Rio de Janeiro. Se o mercado de livros já crescera de maneira substancial no século XVIII, nos anos 800 o número de títulos e autores em circulação aumentou sobremaneira, principalmente nos campos da ciência e da técnica. Era visível a circulação das novas idéias nesse período, a ponto de Diogo Antônio Feijó, professor no convento dos franciscanos em Itu, São Paulo, haver sido denunciado por divulgar “uma filosofia pouco ortodoxa, pois nas suas preleções misturava erros dogmáticos de Anglicanismo, Kantismo, Jansenismo e outras heresias.”10 Autores como Locke e Kant, já conhecidos no Brasil, ganham muito prestígio em tal período, como expressões do pensamento libertário da época, com toda uma base empirista. Preocupado com a livre circulação das idéias no Brasil, em 1809 o governo de D. João VI regulamentou a submissão dos anúncios de venda de livros à fiscalização da Polícia. Do mesmo modo, a partir do ano de 1811, tornou-se obrigatório o envio de um exemplar de todos os papéis impressos à Biblioteca Real do Rio de Janeiro. A CASA EDITORA DAVID CORAZZI No final do século XIX o mercado editorial brasileiro conheceria a Biblioteca do Povo e das Escolas. Trata-se de uma coleção de 237 livros, publicados durante 42 anos, entre 1881 e 1913, pela Editora David Corazzi, de Lisboa, que circulou em Portugal e no Brasil. Os volumes eram publicados quinzenalmente, nos dias 10 e 25 de cada mês, cada um com rigorosas 64 páginas, em formato de 15,5 X 10 centímetros11, de composição cheia. A edição dos dois primeiros volumes foi de 6 mil exemplares cada. A partir do terceiro volume começaram a ser impressos 12 mil exemplares de cada vez. A tiragem subiu para 15 mil exemplares a partir do volume 10. A cada seis volumes, os livros recebiam uma única encadernação de capa dura, constituindo uma série. Ao longo dos 42 anos em que a coleção circulou, foram encadernadas 29 séries. Bem sucedida, a coleção terminou recebendo vários prêmios. Ainda em 1881, a Biblioteca do Povo e das Escolas foi premiada com Medalha de Ouro, na Exposição do Rio de Janeiro. No ano de 1882, David Corazzi recebeu o Diploma Honorífico da Propaganda de Ciência Popular, conferido pela Associação Napolitana Propaganda de Ciência Popular Luz e Verdade – Guerra aos Mistificadores do Povo. Na mesma ocasião foi nomeado sócioprotetor daquela instituição. Em 1883 foi condecorada pela Sociedade Napolitana Giambattista Vico. Em 1888, o escritor Ramalho Ortigão publicou um longo artigo na Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro, acerca da Exposição Industrial de Lisboa, fazendo uma série de referências à Biblioteca do Povo e das Escolas: “estes pequenos e obscuros livros, tão pouco mimosos de elogios, tão despercebidos da réclame, constituem já uma das mais completas e das mais perfeitas bibliotecasinhas escolares que eu conheço.” Com o sucesso da Biblioteca do Povo e das Escolas, passou a circular também uma outra coleção: os Dicionários do Povo apareceram publicados sob duas formas distintas. A edição em brochura custava 500 réis, enquanto o volume de capa dura custava 600 réis. Um panfleto de propaganda que a editora David Corazzi fez circular esclarecia o caráter dos dicionários: “Lingüísticos e de todas as especialidades, portáteis, completos, econômicos, indispensáveis em todas as escolas, bibliotecas, famílias, escritórios, repartições públicas etc. Todos, mais ou menos, nas suas relações quotidianas têm dúvidas sobre palavras que lhes ocorrem e que dificilmente elucidarão, se não tiverem junto a si um mestre ou guia seguro que bem lh’as explique.” O panfleto destacava o módico preço de cada um dos dicionários, da mesma maneira que punha em relevo o seu caráter enciclopédico, pari-passu com a Biblioteca do Povo e das Escolas: “Esta coleção de dicionários, a par da publicação da Biblioteca do Povo e das Escolas, constitui um verdadeiro tesouro de ciência e considerar-se-ão ricos de saber todos que quiserem possuir estas duas coleções e folheá-las de vez em quando.” O primeiro dicionário – o da Língua Portuguesa - entrou em circulação ainda no ano de 1881. Era um dicionário Etimológico, Prosódico e Ortográfico, com 736 páginas. No mesmo ano foi também publicado o Dicionário Francês-Português. No ano seguinte – 1882 – foi publicada uma nova edição do Dicionário da Língua Portuguesa, o que repetiu-se em 1883. Em 1884 circulou o Dicionário Português-Francês. Nos anos seguintes foram publicados os seguintes dicionários: Inglês-Português, Português-Inglês, Latim-Português, PortuguêsLatim, Italiano-Português, Português-Italiano, Espanhol-Português, Português-Espanhol, Alemão-Português, Português-Alemão, Sinônimos e Rimas, Artes e Indústrias, Verbos e Provérbios, Geografia Geral, História, Mitologia, Botânica e o Dicionário Analógico. No geral, cada dicionário continha entre 600 e 700 páginas, com as características descritas pelo panfleto publicitário do editor: “composição cheia e perfeita em tipo miúdo (nº 6) mas legível, impressão nítida, ótimo papel consistente, edição estereotipada”. A editora David Corazzi deixou de funcionar em 1889, a partir da criação da Companhia Nacional Editora de Lisboa, que também encampou na mesma oportunidade a editora Justino Guedes. Todavia, após a fusão, a Companhia Nacional Editora de Lisboa continuou publicando os volumes da Biblioteca do Povo e das Escolas, até 1902, quando foi substituída pela empresa A Editora – que também prosseguiu com a coleção. O sucesso editorial da Biblioteca do Povo e das Escolas e dos Dicionários do Povo no Brasil levou o editor David Corazzi a abrir uma filial no Rio de Janeiro, no início do ano de 1882, à rua da Quitanda, 40. A Companhia Nacional Editora manteve escritórios no Rio de Janeiro, à rua da Quitanda, 38. Já A Editora instalou os seus escritórios naquela cidade à rua São Pedro, 33. Em 1909, passou a funcionar em novo endereço, à rua do Ouvidor, 166. No mesmo ano, foram abertos os escritórios de São Paulo e Belo Horizonte. O primeiro à rua São Bento, 65. O mineiro, à rua Bahia. A partir do ano de 1913, a comercialização da Biblioteca do Povo e da Escola no Brasil passou a ser feito pela Livraria Francisco Alves.12 A BIBLIOTECA DO POVO E DAS ESCOLAS Os meus primeiros contatos com a Biblioteca do Povo e das Escolas aconteceram na cidade de Aracaju. O colecionador Luiz Antônio Barreto adquiriu de um jornalista baiano, residente em Salvador, 38 exemplares da coleção. Segundo o vendedor, os livros pertenciam aos seus familiares, desde o início do século XX. Ao examiná-los, pude perceber a importância do material com o qual havia entrado em contato.13 Desde então iniciei minhas buscas para entender melhor aqueles livrinhos. No ano de 1997, em Portugal, recebi a ajuda do Prof. Dr. Pedro Calafate, pesquisador da área de História da Cultura da Universidade Nova de Lisboa. Percorrendo sebos foi possível recuperar 24 das 29 séries que constituem a coleção. Agora, depois de levantar as primeiras informações e fazer um necessário estudo inicial exploratório, começo a trabalhar com os livros do ponto de vista do seu conteúdo. Porém, o propósito desde texto é apenas o de levar uma notícia prévia acerca da coleção e do seu significado. A Biblioteca do Povo e das Escolas se propunha a ser “propaganda de instrução para portugueses e brasileiros” – como aparecia no frontispício de cada um dos volumes -, uma vez que seus editores entendiam haver “na sociedade moderna uma incontestável tendência para a vulgarização dos conhecimentos humanos em todos os seus ramos variadíssimos”14 O propósito da coleção era claramente iluminista e o seu caráter eminentemente enciclopédico: “A Biblioteca do Povo e das Escolas vem acudir a uma falta que já, desde tempos, outros países tais como a Inglaterra, a França, a Itália, a Alemanha e os Estados Unidos têm tratado de remediar dando a público, por módico preço, coleções no gênero da que ora sai a lume”.15 O editor dava assim, à série de livros a natureza de um empreendimento civilizador que buscava inocular gradualmente o espírito das pessoas com o germe de noções indispensáveis à modernidade do final do século XIX. E comparava: “as suas monografias alcançarão a importância dos Manuais Roret, lidos e estudados em todo o mundo.”16 Indiscutivelmente, o modelo da coleção era inspirado em muitos similares que circularam desde o século XVIII em países como Inglaterra, França, Itália, Alemanha e Estados Unidos – países considerados à época como sendo a vanguarda da civilização. A indústria era vista como uma das mais fortes características do século, enquanto a máquina a vapor era vista como a mais importante expressão da indústria: “A máquina de vapor representa o brilhante predomínio da intelectualidade humana sobre as forças brutas da natureza inconsciente. Na máquina a vapor se consubstancia verdadeiramente a civilização do século XIX.”17 O discurso civilizador valorizava a escola como sendo a agência destinada, por excelência, ao cultivo das grandes virtudes, ao fortalecimento dos espíritos, à formação do homem do futuro, o homem consciente. O homem civilizado, escolarizado, seria capaz de organizar a família em bases sólidas, simpáticas e justas, de acordo com as aspirações do progresso, em consonância com as normas científicas. O imaginário da intelectualidade do século XIX contrapunha a inconsciência das máquinas à inteligência humana. Havia uma busca, tanto em Portugal quanto no Brasil, pelo ideário civilizador, pelo refinamento dos padrões sociais gerais. E isso impunha a necessidade de incorporação de um patamar mínimo de conhecimento que estava nos livros. Era necessário, sob todas as formas incitar ao estudo dos grupos sociais que as elites da época denominavam de classes populares. O baixo preço dos livros18 criava a possibilidade de superação daquilo que se entendia ser uma das maiores dificuldades ao desenvolvimento da instrução popular: a má seleção e a carestia dos livros adotados nas escolas. Estava claramente posta a intenção de combater “a imposição odiosa dos detestáveis compêndios de ensino, eivados de erros grosseiros e vendidos por preços absolutamente incompatível com a exigüidade de recursos das classes trabalhadoras e pobres.”19 Aparece, portanto, com muita força a natureza didática da coleção, aquilo que o discurso do final do século XIX chamava de propaganda instrutiva. “Não é fundando escolas superiores e cursos de preparatórios difíceis que se ilustra um povo, mas fazendo propaganda, e tornando acessíveis a todos as artes, as ciências e as letras”20 – afirmavam os editores. Vanguardista, em algumas ocasiões a coleção teve de advertir os seus leitores acerca da incompatibilidade entre o conteúdo científico dos volumes e o padrão moral vigente à época. O volume 128, que tem como título O macho e a fêmea no reino animal, previne os pais-de-família e os pedagogos que o texto “não constitui leitura adequada a pessoas de menor idade.”21 O plano original da obra foi cumprido com a publicação das oito primeiras séries. A previsão do projeto inicial era de que a coleção deveria abranger sete grandes áreas do conhecimento , a saber: Educação Corporal, Zoologia, Física, História, Literatura, Jurisprudência e Lingüística. O enorme sucesso comercial, contudo, levou a que se publicassem mais 21 séries além das oito inicialmente previstas. Os 237 livros publicados ao longo dos 42 anos em que a coleção circulou foram produzidos por 91 pesquisadores. Destes, não foi possível identificar as profissões de 14 autores. Dos 77 restantes, dois eram engenheiros agrônomos, dois tipógrafos, cinco médicos, 22 oficiais militares do exército e da marinha, um comerciário, três estudantes de direito, um farmacêutico, um estudante de letras, 18 professores, um telegrafista, um ator, quatro funcionários públicos, três escritores, um naturalista, um advogado, três estudantes de artes industriais e comerciais, um poeta, um botânico, dois sacerdotes, um cenógrafo, um estudante de agronomia, dois jornalistas e um estudante de medicina. Dentre os 91 autores foi possível identificar a presença de apenas dois brasileiros.22 ALGUMAS POSSÍVEIS CONCLUSÕES OU HIPÓTESES DE ESTUDO Sabemos que os primeiros livros escolares adotados entre nós foram trazidos para cá pelos Jesuítas. No século XIX o Brasil começou a produzir os seus próprios livros didáticos, através da Impressão Régia. Isto ocorreu em função das guerras napoleônicas e da interrupção do envio de livros produzidos na Europa para cá. Com o restabelecimento do fluxo comercial de livros da Europa para o Brasil, reflui a experiência de produção de livros didáticos no novo Império. Afinal de contas, o mercado do livro didático por aqui era muito pequeno. Comercialmente não havia grande interesse por parte das casas editoras estabelecidas no país. “Os métodos primitivos de ensino usados por muitas escolas dispensavam inteiramente o uso de livros”.23 É recorrente encontrar em documentos do século XIX queixas como as formuladas pelos missionários norte-americanos Kidder e Fletcher em 1850, quanto a ausência de livros didáticos produzidos em território brasileiro ou, ao menos, adequados às condições locais. Tal problema era visto como impeditivo ao desenvolvimento da educação nacional. Mesmo o esforço de editores como Baptiste Garnier não foi suficiente para o suprimento das necessidades brasileiras na área. A Biblioteca do Povo e das Escolas é uma grata surpresa, quando se observa atentamente e se percebe que em um país no qual a maioria dos livros não alcançava a casa dos 300 exemplares vendidos anualmente, tal coleção tenha vendido, nos seus dois primeiros volumes, 6000 exemplares a cada 15 dias, em Portugal e no Brasil, já que “mesmo livros de boa vendagem raramente superavam seiscentos ou oitocentos exemplares por ano”.24 Mais surpreendente é quando nos damos conta de que já no terceiro volume a tiragem da edição crescera para 12 mil exemplares, posto que mesmo as edições mais bem sucedidas, de autores consagrados, jamais excediam o número de 1000 exemplares. No volume 11, a coleção já tirava 15 mil exemplares. É possível avaliar o que representava tal feito: “As edições mexicanas da época raramente ultrapassavam 500 exemplares, e L. E. Joyce, descrevendo a situação do Chile já no século XX, no começo da década de 20, nos diz que as novas obras que não eram de ficção limitavamse a edições de cerca de 200 exemplares e mesmo um romancista consagrado não ousava ultrapassar uma tiragem de 500 exemplares – e ficava feliz ao conseguir vender a metade.”25 Portanto, impressionam sobremodo as informações acerca da quantidade de exemplares que eram impressos a cada novo volume da coleção, mesmo considerando-se que Portugal certamente absorvia a porção mais significativa desses exemplares, posto que tais tiragens são muitas vezes superiores mesmo aos padrões europeus do período: “1.000 exemplares também eram, para muitos tipos de livros, uma grande edição mesmo para os padrões europeus... a editora literária Bodley Head (da Inglaterra), publicou 49 títulos na década de 90, dos quais apenas 15 alcançaram ou excederam 1.000 exemplares, e dez dos quais tiveram uma tiragem de menos de 500, Mesmo em 1930 a primeira edição de um romance inglês era, em média, de 750 a 1.000 exemplares.”26 Se do ponto de vista dos problemas que envolviam o mercado de produção e circulação de livros naquele momento, a Biblioteca do Povo e das Escolas é um documento da maior importância, extremamente mais rica se apresenta tal coleção quando pensamos acerca das possibilidades de compreensão do quadro de mentalidades existentes à época e do projeto que se punha à escola como centro de formação no Brasil das últimas décadas do século XIX e das primeiras décadas do século XX. Do mesmo modo, é fértil a contribuição que tais livros podem nos dar quanto aos olhares que temos lançado sobre o nosso passado, principalmente no que diz respeito aos estudos acerca da História, ao examinarmos fenômenos como a educação e a cultura no Brasil. NOTAS 1 Cf. DAVIS, Natalie Zemon. Culturas do Povo. Sociedade e Cultura no Início da França Moderna. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1990. P.185. 2 Cf. NASCIMENTO, Jorge Carvalho do. A Cultura Ocultada. Londrina, Ed. UEL, 1999. Pp. 2-3. 3 Cf. WARDE, Mirian Jorge. Liberalismo e Educação. P. 5. 4 Cf. ARAUJO, Jorge de Souza. O Perfil do Leitor Colonial. Salvador, UFBA/Ilhéus, UESC, 1999. P. 19. Idem. P. 33. 6 Cf. MASSIMI, Marina. As origens da psicologia brasileira em obras do período colonial. Pp. 96-117. 7 Refiro-me ao seu livro O Verdadeiro método de estudar. 8 Verney inspira-se no Ensaio sobre o entendimento humano, publicado em 1690 pelo autor inglês. 9 Op. Cit. P. 79. 10 Cf. ARAUJO. Op. Cit. P. 161. 11 Hallewell esclarece que à época o formato corrente do livro em circulação no Brasil era o chamado formato francês, “ao qual a maioria dos livros brasileiros se ajustou durante 60 anos ou mais. Esse formato existia em dois tamanhos: in-oitavo (16,5 X 10,5 centímetros), e outro muito mais freqüente, o longo in-doze (17,5 X 11,0 centímetros).” Cf. HALLEWEL, Laurence. O Livro no Brasil. São Paulo, T. A. Queiroz/Editora da Universidade de São Paulo, 1985. P. 146. 12 Hallewell oferece a seguinte explicação: “Francisco Alves crescera rapidamente desde meados da década de 1890, e logo chegou a ter quase o monopólio no campo do livro didático brasileiro. Isso foi conseguido, em parte, suplantando com preços mais baixos os seus concorrentes, o que ele conseguia com tiragens maiores, mas principalmente comprando os concorrentes.” Op. Cit. P. 210. 13 Fui atraído particularmente pelos seguintes volumes: Corografia do Brasil, Costumes Angolenses, Deveres do Homem, Civilidade, Copa e Cozinha, O Feminismo na Indústria Portuguesa, A Peste, O Descobrimento do Brasil, Arte Para Todos, Higiene da Beleza., A partir deles pude perceber o esforço que faziam os intelectuais brasileiros e portugueses investindo, através da escola, para a formação do homem civilizado. 14 Cf. “Quatro páginas de prólogo” (texto de abertura da Sexta série da coleção, publicada em 1883). 15 Idem. 16 Cf. A Época, nº 132. Ponta Delgada, Portugal, 12 de Julho de 1884. 17 Cf. “Valha como Prefácio” (texto de abertura da Décima série, publicada em 1884). 18 Cada volume custava 50 réis. 19 Cf. “Quatro páginas de prólogo”. Op. Cit. 20 Cf. Diário de Notícias, nº 7.149. Lisboa, 13 de Dezembro de 1885. 21 Cf. FURTADO, F. de Arruda. O macho e a fêmea no reino animal, Lisboa, David Corazzi Editor, 1886. 22 José de Mello e Viriato Silva. 23 Cf. HALLEWELL. Op. cit. P. 144. 24 Idem, ibdem. P. 147. 25 Idem. P. 148. 26 Ibdem. P. 148. 5 BIBLIOGRAFIA 1 – ARAUJO, Jorge de Souza. O Perfil do Leitor Colonial. Salvador, UFBA/Ilhéus, UESC, 1999. 2 – A ÉPOCA. Nº 132. Ponta Delgada, Portugal, 12 de Julho de 1884. 3 – DAVIS, Natalie Zemon. Culturas do Povo. Sociedade e Cultura no Início da França Moderna. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1990. 4 – DIÁRIO DE NOTÍCIAS. Nº 7.149. Lisboa, 13 de Dezembro de 1885. 5 – HALLEWELL, Laurence. O Livro no Brasil. São Paulo, T. A, Queiroz/Editora da Universidade de São Paulo, 1985. 6 – LOURENÇO FILHO, M. B. A Educação e os Estudos Pedagógicos no Brasil. Rio de Janeiro, Ministério da Educação e Cultura/Biblioteca Nacional, 1960. 7 – MASSIMI, Marina. “As Origens da Psicologia Brasileira em Obras do Período Colonial”. In: História da Psicologia. São Paulo, EDUC, 1987. 8 – NASCIMENTO, Jorge Carvalho do. A Cultura Ocultada. Londrina, Ed. UEL, 1999. 9 – WARDE, Mirian Jorge. Liberalismo e Educação. São Paulo, Pontifícia Universidade Católica, 1984. Tese (Doutorado).