Revista da SBEnBio - Número 7 - Outubro de 2014
V Enebio e II Erebio Regional 1
AS COMPREENSÕES EPISTEMOLÓGICAS DE ÁTOMO E MOLÉCULA EM
LIVROS TEXTOS DE BIOLOGIA
Sérgio Choiti Yamazaki
(Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul-UEMS e Universidade Federal de Santa
Catarina-UFSC)
Regiani Magalhães de Oliveira Yamazaki
(Universidade Federal de Santa Catarina-UFSC – Bolsista-CNPq)
Sandro Livramento Machado
(Universidade Federal de Santa Catarina-UFSC - Bosista-Capes)
Resumo
A pesquisa analisa a inserção dos conceitos de átomo e de molécula em livros textos de
Biologia tendo como parâmetros as situações ela acontece. Procuramos verificar se os
conceitos são abordados por meio dos contextos de suas descobertas a partir dos quais poderá
haver uma contribuição para o entendimento das discussões inerentes à evolução científica.
Os resultados indicam que os conceitos são introduzidos prioritariamente através de
definições, atribuindo uma compreensão que pode auxiliar a formação de professores de
Ciências e Biologia por meio de um fazer científico empirista e dogmatista, estabelecendo-o
como uma atividade que busca por uma verdade absoluta.
Palavras chave: átomo, molécula, formação de professor, concepção epistemológica,
contexto da descoberta.
Introdução
A crença na existência dos átomos é muito antiga, e pode ser encontrada nos estudos
sobre as concepções existentes na antiguidade. No entanto, durante a idade média ela não
teve grande desenvolvimento como o que parece ter ocorrido no renascimento, com pesquisas
como as de Descartes, Boyle, Newton, Boscovich e outros nos séculos XVII e XVIII
(CHAGAS, 2011). Desenvolvimentos posteriores, como o peso atômico de Dalton, a teoria da
ligação química de Berzelius, a hipótese de Avogadro e Ampère, levaram a uma discussão
que problematizavam a existência de átomos.
Além dessa acirrada disputa entre, de um lado, os defensores da existência de átomos,
e de outro aqueles que não acreditavam nessa realidade, havia argumentos de ordem
epistemológica que também questionavam a existência dos átomos, como o positivismo de
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Comte, para o qual somente aquilo que é perceptível pelos sentidos é digno de ser estudado
(Ibid.).
Somam-se a estes, a constituição de ordem metafísica ou, como nos aponta Crossi
Filho e Dion (2010) e Dion (2006), de ordem teológica, tal como a descrição, permeada por
influência divina, da ação a distância como forma de interação entre átomos, na obra de
Newton. Cohen e Westfall (2002), citando o historiador Alexandre Koyré, apontam para a
noção de uma força hiperfísica, ou seja, para a ação de Deus na obra newtoniana, que diz
respeito à ação entre átomos.
A seguir, expomos argumentos de cientistas contra a existência dos átomos, citados
por Chagas (2011, p. 9):
A questão se os átomos existem ou não tem pouco significado do ponto de vista
químico; esta discussão, até certo ponto, pertence à Metafísica. (Argumento de A.
Kekule, que viveu entre 1829 e 1896)
O sistema [atômico] está inteiramente fundamentado em três hipóteses: igualdade
do número de moléculas dos gases em um mesmo volume; constituição diatômica
das moléculas dos gases simples; enfim, formação de todas as combinações
químicas por substituição do elemento nas moléculas diatômicas. Se elas não são
verificadas (e os fatos expostos parecem contradizê-las), não resta mais que um
romance engenhoso e sutil e de novas convenções de linguagem. (Argumento de M.
Berthelot (1827-1907)
Átomos e moléculas não existem como tais. São meros esquemas para facilitar o
raciocínio e logo estarão esquecidos na poeira das bibliotecas. (Argumento de W.
Ostwald, que viveu entre 1853 e 1932)
Entre os físicos, os anti-atomistas argumentavam que as equações diferenciais com
funções contínuas descreviam bem a natureza. Além disso, os argumentos não tinham
somente um caráter científico, tinham também ênfases filosóficas, ideológicas e políticas
(NYE, 1986 apud CHAGAS, 2011).
É no contexto dessa discussão que o botânico Robert Brown (1773-1858) em 1827 fez
uma importante observação com a ajuda de um microscópio: grãos de pólen da planta
Clarckia pulchella, em água, em suspensão na água se movendo. Embora tenha havido
desconfiança de que o movimento pudesse estar acontecendo porque os mesmos eram dotados
de vida – a tal ponto que Brown denominou este fenômeno de “vivid motion” (BROWN,
1928) –, a agitação também foi vista com materiais não inanimados, como ouro e argila. No
entanto, vem de muito tempo a compreensão de que a existência de átomos pode explicar
todos os fenômenos, inclusive os relativos à vida (MELO, PEDUZZI, 2007).
Deduções teóricas, como as de P. Langevin (1872-1946), M. Smolochowski (18721917) e A. Einstein (1879-1955), e pesquisas empíricas, como as de T. Svedberg (1884-1971)
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e J. Perrin (1870-1942) foram feitas para explicar o movimento observado por Brown; porém
elas não foram suficientemente convincentes para os pesquisadores.
Particularmente, um estudo de Perrin (Les Atomes), publicado em 1913, faz uma
revisão do que tem sido publicado a respeito da existência ou não de átomos e moléculas, e
infere que muitas das investigações feitas convergem para a existência de uma realidade
molecular. Para Chagas (2011), “o livro é uma resposta aos descrentes da realidade molecular,
mostrando que um grande número de fenômenos aparentemente desconectados poderia ser
explicado pela teoria molecular renovada pelos recentes avanços”(p.13).
As pesquisas de Perrin parecem ter sido decisivas para que boa parte da comunidade
de cientistas se convencesse da existência de átomos e moléculas:
O trabalho sobre as leis que governam o movimento browniano e a sua brilhante
confirmação experimental por Perrin e colaboradores alguns anos depois foram
decisivos para a aceitação da realidade de átomos e moléculas. (SALINAS, 2005: p.
264)
Apesar da convergência entre teoria e experimento, “não há nenhuma prova ou
experimento crucial com relação à realidade molecular” (CHAGAS, 2011, p.15), e sim “um
conjunto enorme de fatos que só podem ser explicados em seu conjunto pela teoria atômicomolecular” (Ibid., p. 15). As questões que nos interessam nessa pesquisa, tendo em vista que
há pesquisas que indicam concepções distorcidas com relação ao conteúdo e com o contexto
da descoberta, além das interpretações epistemológicas envolvidas (CARNEIRO, ROSA,
2003), são as seguintes: essa discussão histórica é apresentada nos livros de Biologia? Se a
resposta é positiva, de que forma ela é feita, que perspectivas epistemológicas estão
envolvidas? Se a resposta é negativa, quais as conseqüências disso, do ponto de vista da
formação epistemológica dos estudantes?
Metodologia da pesquisa
A seleção dos livros didáticos foi efetuado através do levantamento dos Projetos
Políticos Pedagógicos das Universidades Públicas e Particulares do Estado de Mato Grosso
do Sul. Foram analisados quatro livros básicos, os mais utilizados nos cursos de formação de
professores de Ciências e Biologia; destes, três deles tratam de estudos do campo da Biologia
Celular e Molecular e um está voltado à Biologia Geral. Esses livros fazem parte do material
de estudo dos primeiros anos dos cursos, e podem se constituir como bom material de análise
para nossa questão de pesquisa.
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Três livros (ALBERTS, et al., 1999; CAMPBELL, REECE, MITCHELL, 1999; RAVEN,
EVERT, EICHHORN, 1996) introduzem tanto o conceito de átomo como o de molécula por
meio de definições, não dando abertura para discussão histórico-epistemológica nem a
debates que levem a reflexão sobre objetivação em torno de significados mais precisos dos
conceitos e de suas limitações teóricas e fenomenológicas; e em um deles (JUNQUEIRA,
CARNEIRO, 1997) os conceitos não são definidos.
Resultado e Discussão
Alberts et al. (1999), definemátomo como a menor partícula de um elemento “que
ainda possui todas as propriedades químicas características deste elemento” (p. 37) e
molécula como “um agregado de átomos mantidos unidos por ligações covalentes” (p.
43).Campbell, Reece e Mitchell (1999) definem átomo como “a menor unidade da matéria
que ainda retém as propriedades de um elemento” (p. 24) e molécula como “dois ou mais
átomos mantidos juntos por ligações covalentes” (p. 28).Raven, Evert, Eichhorn (1996)
definem átomo como “a menor unidade até a qual um elemento químico pode ser dividido e
ainda assim reter as suas propriedades características” (p. 687). Na página 662, os autores
afirmam: “Toda matéria é composta de átomos (origem grega, que significa “indivisível”), as
menores unidades dos elementos” e moléculas, “a menor unidade possível de um composto,
consistindo em dois ou mais átomos” (p. 699), e afirmam: “os átomos podem ser mantidos
juntos por forças conhecidas como ligações químicas; um conjunto de átomos mantidos juntos
através de ligações químicas é denominado molécula” (p.665).
Em todo o conteúdo dos livros citados, essas noções são utilizadas como aparatos não
problematizáveis, o que pode inclusive levar ao questionamento sobre se eles se constituem
como elementos apreendidos teoricamente, empiricamente observados (e nesse caso de forma
direta ou por meio de instrumentos de medida) ou de outra forma, como de alguma relação
entre teoria e experimento, corpo teórico e observação.
Como os conceitos de átomo e de molécula são centrais para o campo da Biologia, a
análise que fazemos de sua introdução nos livros textos de Biologia permite questioná-la
como formadora de ideias a respeito da visão que acabam instrumentalizando os estudantes e
futuros profissionais (e quem sabe, para toda a vida profissional) para pensar a ciência,
principalmente do ponto de vista da elaboração do conhecimento acadêmico.
Qualitativamente, as definições são idênticas, e em nenhum caso há explicações a
respeito dos estudos que levaram a inferir a existência de átomos e de moléculas, como
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historicamente podem ser encontrados. Em outros termos, não há um trabalho que visa à
contextualização histórica para que as noções sejam debatidas, muito menos de exploração
analítica do contexto da descoberta (REICHENBACH, 2006), ou seja, dos “momentos de
criação das ideias e proposições” (GURGEL, 2010, p. 84), dos caminhos pessoais que fizeram
com que os cientistas, por exemplo, chegassem a determinadas conclusões (SIQUEIRA,
PIETROCOLA, 2006). O que ocorre nos livros é uma evolução conceitual que considera a
existência de átomos e de moléculas como pressuposições não passíveis de discussão, levando
ao desenvolvimento de temas ou de disciplinas que se utilizam desse a priori para explicação
de fenômenos naturais. Nesse sentido, para efeito de exemplificação, citamos o caso do livro
de Junqueira e Carneiro (1997), que expõe o conceito de molécula para explicar a complexa
pesquisa sobre a origem da vida através da noção de um “caldo primordial rico em moléculas
inorgânicas” (p. 12).
Assim, o campo da Biologia, representado por seus livros-textos, não parece ter como
preocupação o questionamento sobre as pressuposiçõesque envolvem os átomos e as
moléculas, não permitindo que eles sejam alvo de problematizações. Esses elementos
parecem constituir a base para o desenvolvimento de perspectivas teóricas e experimentais,
dando origem a elementos já estáveis na área, como o de substância – “A matéria é formada
por uma combinação de elementos: substâncias como o hidrogênio ou o carbono que não
podem ser quebrados ou convertidos em outras substâncias por meios químicos” (ALBERTS,
1999, p. 37) – e de célula – “as características das substâncias que não sejam os elementos
puros (incluindo os materiais que formam as células vivas) dependem da maneira como os
seus átomos estejam ligados entre si em agrupamentos que constituem as moléculas” (Ibid., p.
37). Esse formalismo adotado com relação aos conceitos de átomo e molécula parece ser
reproduzido em livros do ensino médio, como indica o livro de Amabis e Martho (2002):
A matéria, tanto a que compõe os seres vivos como a que compõe as coisas
inanimadas, é formada por pequeníssimas partículas, os átomos (...) Na natureza,
os átomos dos elementos químicos raramente se encontram isolados; quase sempre
eles estão unidos por meio de ligações químicas, formando moléculas (AMABIS,
MARTHO, 2002, p. 90).
Em sintonia com o que afirmamos, Carneiro e Gastal (2005) afirmam que “os livros
didáticos utilizados pelo professor em sua prática docente apresentam exemplos que seguem o
mesmo modelo dos livros universitários” (p. 38), o que pode levar a um duplo reforço sobre a
formação do professor. Além do mais, mesmo quando a história da ciência é utilizada nos
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livros, ela é feita desvinculada de seu contexto cultural (Ibid, p. 33), limitando a compreensão
da ciência enquanto pura atividade acadêmica, sem relação com a sociedade como um todo.
Que compreensão sobre a ciência pode estar sendo formado por meio dessa forma de
apresentar um conceito? Algumas pesquisas, tendo textos didáticos como objeto de pesquisa,
apontaram a ocorrência de formas de exposição que levam a compreensões conceituais
equivocadas (SANTOS, BAPTISTA, 2009; CARDOSO-SILVA, OLIVEIRA, 2013), e a
certas concepções que acabam distorcendo o fazer científico e distanciando-o daquele que
pode ser encontrado nos saberes de referência, como em artigos do campo histórico ou
epistemológico. Alguns dos autores desses trabalhos interpretaram os textos didáticos como
sendo dogmatistas (LOPES, VASCONCELOS, 2012) e que podem formar a concepção de
que a ciência se faz primordialmente por meio dos sentidos, sendo instigados a concebê-la
como um trabalho empírico por natureza (KÖHNLEIN, PEDUZZI, 2002). No entanto, há
pesquisas que identificam, além destas, outras concepções em alunos do ensino fundamental e
médio, como a visão animista do átomo (GOMES, OLIVEIRA, 2007), o que nos faz remeter
à semelhança com a primeira desconfiança de Brown ao perceber movimentos dos grãos de
pólen. De acordo com El-Hani, Tavares, Rocha (2004), a história da ciênciapode oferecer
estratégias de ensino que de alguma forma apontem caminhos em direção ao ensino
aprendizagem destes conceitos, além da apresentação de definições; isso pode ser feito
através de analogias entre o que ocorreu na evolução conceitual e o que os alunos pensam.
Scheid, Ferrari e Delizoicov (2007), em pesquisa empírica sobre Biologia Molecular
com alunos de um curso de Ciências Biológicas, apontam que eles concebem o conhecimento
científico como absoluto, moldado por uma concepção indutivista-empirista e ateórica. Os
resultados também apontam que os estudantes tiveram dificuldades para distinguir entre
modelo e realidade, e os autores fazem relação entre esses resultados e a falta de discussões
epistemológicas no curso de formação básica.
Além disso, ao não apresentar os conceitos como uma construção que resulta de uma
complexa discussão teórico-experimental, ela pode ser inserida, por um lado, como um
aspecto da natureza que foi descoberta por via de uma precisa observação empírica, ou de
outro, como uma descoberta metafísica de viés ontológico feita por algum gênio dotado de
rara inteligência. Nos dois casos, o que está oculto é a busca da verdade (absoluta), e não de
uma verdade (que pode ser problematizada), “não confundindo a procura de mais verdade
com a busca “da” verdade (como se de um absoluto se tratasse)” (CACHAPUZ, PRAIA,
JORGE, 2004, p.371). Assim, essas imagens podem ser conhecidas como a de um realismo
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ingênuo “em que as idéias científicas seriam a reprodução precisa da natureza, fazendo tábua
rasa de todo o processo de idealização e de imaginação criadora, necessariamente presente na
construção do conhecimento científico” (Ibid., p. 372).
Como afirma Fourez (2003), uma das formas de pensar a noção de representação é que
ela é uma “imagem exata do real: seu espelho”. Porém, “pode-se também falar de uma
representação como da construção humana” e nesse caso ela “não é absolutamente o espelho
da realidade; ela é como um “mapa”. É um artefato humano, é uma técnica, é uma encenação
em função de objetivos (p. 120).
No entanto, em face da representação enquanto imagem exata do real, “no essencial, o
que prevalece é (...) o realismo ingênuo, em que o conhecimento é (supostamente) a
representação estrita de um mundo ontológico externo” (CACHAPUZ, PRAIA, JORGE,
2004, p. 372), cuja formação teve a contribuição dos manuais escolares (Ibid.).
Ao serem abordados fora da esfera do contexto da descoberta, e através de definições,
os conceitos de átomo e de molécula podem construir a imagem de uma ciência
inquestionável, até porque em outras disciplinas do curso de Biologia, esses conceitos não são
colocados para discussão, mas são utilizados para descrição e aprofundamento de outros
campos disciplinares contemporâneos, como é o caso da Genética, da Biologia Celular e
Molecular.
Considerações
Salientamos que não queremos com este trabalho reduzir a Biologia à Química e à
Física, pois, como afirma Mayr (2005), a Biologia é uma ciência autônoma, com
características que não são encontradas em nenhuma outra. Porém, o átomo e a molécula são
elementos conectores destas ciências. Logo, a compreensão quanto aos processos de
construção destes saberes torna-se fundamental às três áreas.
Assim, diante dos problemas epistemológicos referentes às concepções de átomo e de
molécula nos livros textos de Biologia, e diante do papel formador que o livro texto apresenta
nas licenciaturas, apontamos para a necessidade de uma articulação entre seu ensino, a
história e a filosofia da ciência, em especial a articulações que envolvem o contexto da
descoberta, na formação inicial de professores de Biologia, a fim de problematizarmos
concepções dogmáticas do saber, buscando aproximá-las da construção do conhecimento
como elemento processual, ao invés de um produto pronto e acabado.
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