O MITO DO BOM SELVAGEM NO ROMANCE O GUARANI Simeão Pereira Neto ¹ RESUMO: O objetivo deste artigo é analisar a presença do elemento mítico no romance O Guarani. Dentro do propósito romântico de afirmação nacional e exaltação patriótica no romance, o escritor José de Alencar recria o mito do bom selvagem de Rousseau em nosso indígena. Ao criar Peri, o herói nacional, o escritor procurou aproximá-lo do herói europeu, um herói das novelas de cavalaria. José de Alencar deu-lhe características que ele não possui, levando-o a ter identidades e aspectos que fogem aos ditames da identidade nativista e nacionalista do Brasil. O índio adquiriu características especiais: a bravura, a coragem e a determinação, o qual é levado à figura do cavalheiro medieval. PALAVRAS-CHAVE: Mito – Índio – Bom selvagem - Nacionalismo. ABSTACT: The objective of this article is to analyze the presence of the mythic element in the novel “O Guarani”. Inside the romantic purpose of national affirmation and patriotic exaltation, in the novel, the author, José de Alencar recreates the myth of Rousseau’s good savage in our indigenous people. By creating Peri, the national hero, the writer aspired to bring him close to the European hero, a hero from the cavalry novels. José de Alencar gave him traits he did not have, forcing him to have characteristics and aspects that do not belong in the standards of the native identity and nationalist of Brazil. The indigenous people acquired special characteristics: bravery, courage and the willpower, which is taken with the figure of the medieval gentleman. KEYWORDS: Myth – Indian – Good savage – Nationalism. INTRODUÇÃO O Romantismo como manifestação artística e literária, abarca formas de expressão envolvidas em questões sociais, políticas e culturais. Para entender a estética romântica, é preciso considerá-la como produto de dois grandes eventos do século XVIII: a Revolução Francesa e a Revolução Industrial que geraram inúmeras mudanças no estilo de vida das pessoas. O início da industrialização motivou o surgimento da sociedade urbana e o aparecimento da classe média. Este ponto é vital para explicar a popularização da literatura, uma vez que a classe média, em busca de novas formas de entretenimento, é a grande consumidora de livros. Professor de Língua Portuguesa e Literatura brasileira. No Brasil, o Romantismo encontra-se estreitamente ligado ao processo de independência, já que se trata de um movimento que tenta romper em definitivo com as tradições de nossos colonizadores portugueses, numa busca de elaboração de uma literatura genuinamente brasileira. É bem verdade que tivemos fortes influências do Romantismo europeu, cuja base estava calçada nos ideais de liberdade, subjetivismo e nacionalismo. Contudo, o Romantismo brasileiro soube adaptar tais características à realidade local, de forma que, por exemplo, a valorização da fuga ao passado medieval cedesse lugar à presença do índio e à exaltação da natureza, enfim aquilo que possua características nacionais, apesar de serem expressos com certos exageros. Os românticos possuídos pelo desejo de se evadir para um lugar utópico cederam lugar à imaginação e ao sentimento, conquistando aos poucos o espaço pela razão. Nesse clima do uso imaginário e voltado para uma visão construtiva do país que estivesse à altura de uma literatura européia, os escritores românticos inventaram a sua arte de caráter popular, que valoriza o nacionalismo e opõe-se aos modelos clássicos. Colocando a propósito de tudo e como símbolo nacional o índio brasileiro, principiando um período de atividade literária voltada para os valores nacionais, evidenciando as cores locais enfocando o espaço e o homem brasileiro em busca de uma cultura nativa, motivos que levaram ao aparecimento da produção literária indianista. Nesse sentido, a obra O Guarani de José de Alencar, publicada em 1857, ressalta as características do personagem “Peri”. Assim este artigo centrar-se-á, principalmente, nos aspectos que delineiam o perfil do personagem, O indianismo não era apenas uma saída natural e espontânea para o nosso Romantismo. Era mais do que isso, alguma coisa profundamente nossa, em contraposição a tudo que, em vós era estrangeiro, era estranho, viera de outras fontes (SODRÉ, 2004, p.321). O indianismo nasceu de um nacionalismo em busca de identidade própria e encontrou no índio, o elemento de suas criações, representando tudo de bom que o Brasil possuía naquela época. O indianismo de José de Alencar, desempenhando um papel fundamental na construção da identidade brasileira, exigência gerada pela ruptura da colônia com a metrópole. Os índios têm um papel fundamental na moldagem da brasilidade e, como argumenta Alfredo Bosi, fosse razoável que ele ocupasse, no imaginário pós-colonial, o papel de rebelde, já que era o habitante originário do território invadido pelo colonizador. 2 A criação do personagem Peri no romance O Guarani é inspirado na teoria do “bom selvagem” de Rousseau. Nela, o homem primitivo e selvagem é bom e puro por natureza – o oposto do homem civilizado, que é corrompido e cheio de mazelas. A obra de Alencar está voltada para a idealização heróica do índio, os valores como o bem, o belo, o justo e o verdadeiro são destacados no decorrer da narrativa levando o leitor à imaginação mítica. Ao longo deste artigo, utilizarei como embasamento teórico os seguintes autores: Jean Jacques Rousseau (2005), Mircea Eliade (2006), Nelson Werneck Sodré (2004), Renato Ortiz (1998) assim como outros que darão suporte ao estudo proposto, para que o trabalho assuma, mesmo que em parte caráter científico. Já que estudar questões literárias é um campo demasiadamente amplo, no qual podemos encontrar o inesperado, o indesejado e o surpreendente, mas que dão à literatura novas feições a cada estudo realizado. 1 - O QUE É MITO? Nos dicionários de verbetes da Língua Portuguesa, encontraremos a seguinte definição de mito: “O mito é uma narrativa tradicional com caráter explicativo e/ou simbólico, profundamente relacionado com uma dada cultura e/ou religião”. O mito procura explicar os principais acontecimentos da vida, os fenômenos naturais, as origens do mundo e do homem por meio de deuses; semideuses e heróis (todas elas são criaturas sobrenaturais). Pode-se dizer que o mito é uma primeira tentativa de explicar a realidade. O termo “mito” é, por vezes, de forma pejorativa para se referir às crenças comuns (consideradas sem fundamento científico, e vistas apenas como histórias de um universo puramente maravilhoso) de diversas comunidades. No entanto, até acontecimentos históricos pode transformar em mitos, se adquirirem uma determinada carga simbólica para uma dada cultura. Na maioria das vezes, o termo refere-se especificamente aos relatos das civilizações antigas que, organizados, constituem uma mitologia. Segundo Eliade (2006, p.11) “o mito é uma realidade cultural extremamente complexa que pode ser abordada e interpretada em perspectivas múltiplas e complementares”. O mito é uma crença-verdade. A narrativa mítica é considerada verdadeira. Uma vez criado, o mito passa a ser objeto de crença popular nas sociedades primitivas. E isso 3 porque os mitos tentam explicar as origens das coisas e se referem a realidade da vida cotidiana. Além de considerado verdadeiro, o mito é vivido através dos atos rituais. O mito segue uma lógica peculiar. A criação dele é anterior à formação da consciência reflexiva. Trata-se de uma protofilosofia, pois a resposta à pergunta do homem sobre o universo e seus fenômenos é dada não pelo pensamento conceptual, mas pela fantasia criadora de imagens. Daí a relação profunda entre mito e poesia. O mito é uma concepção cética quando há uma recusa em acreditar-se na linguagem dos deuses Os mitos não têm autor: do momento em que são apreendidos como mitos e independentemente de sua origem real, eles só existem encarnados numa tradição. Quando um mito é narrado, os ouvintes individuais recebem uma mensagem que não vem de parte alguma; por essa razão lhe é atribuída uma origem sobrenatural. (BRUNEL, 2005, p.17). Ao objetivarmos o mythos, como categoria filosófica, literária e histórica, ele se inscreve e pertence a História principiamos o percurso de um longo caminho, por vezes obscuro e contraditório, que é o estudo de um “processo de levar o logos para além de seus limites” (BRUNEL, 2005, p.18) consiste a própria essência do mito. E, neste caso, logos entendido como discurso estruturado a partir do que o ser humano pensa ser possível distinguir relativamente ao mythos, isto é, a Razão. De fato, se mythos e logos partilham de uma raiz semântica semelhante – relacionando-se ambos com a palavra, o discurso, o pensamento verbalizado, o que mais nitidamente os distingue é o tipo de estruturação discursiva em torno de algo que foi necessário projetar através da fronteira entre dois mundos opostos: o das palavras e o das coisas. Aquilo que decisivamente os afasta é, uma oposição convertida em princípio fundamental, ou seja, o eixo ‘Verdadeiro/falso’, nem sempre lucidamente aplicável e aplicado, mas sobre o qual giram os mundos das palavras que constroem idéias sobre as coisas, que só parecem existir, porque existem palavras que construíram as idéias dessas coisas e dessas palavras, sobrepondo-as, impondo-as, expondo-as, apresentando-as e representando-as. 4 2 - A PRESENÇA DO ELEMENTO MÍTICO EM O GUARANI Com a evolução da sociedade humana marcada pelo pensamento reflexivo e pelo progresso das ciências, o papel do mito passa a ser exercido por poetas e artistas. A estes coube lançar mão da fantasia para criar mundos imaginários, onde as aspirações do inconsciente coletivo pudessem realizar-se. A leitura do romance O Guarani realizada de uma perspectiva mítica coloca, como primeiro problema a necessidade de se estabelecer o sentido atribuído a esse conceito. Segundo, Eliade (2006), um dos principais estudiosos da matéria, não é nada simples, uma vez que, dada a multiplicidade de tipos e funções do mito, dificilmente poderíamos chegar a um dominador comum apto a unificá-los. Para Eliade, a definição menos imperfeita, é a que descreve como uma história sagrada que narra uma ação praticada por entes sobrenaturais num tempo primordial. Dando origem a alguma coisa (o cosmo, uma ilha, um animal, uma planta, a morte...) cuja existência é uma realidade passível de ser verificada ainda no momento da enunciação do mito (ELIADE, 2006, p. 11-12). Por narrar o surgimento de uma coisa real, o mito é compreendido pelas comunidades que o criam como uma história verdadeira. Nos casos dos mitos de origem, interpretados pelo pesquisador como um prolongamento da cosmogonia: teríamos a narração de como algo que existia no momento da criação do mundo passou a existir: “ os mitos de origem prolongam e completam o mito cosmogênico: eles contam como o mundo foi modificado, enriquecido ou empobrecido” (ELIADE, 2006, p. 25). Nesse sentido, compreender O Guarani como um mito de origem do Brasil equivale a interpretá-lo como narração do surgimento do país em decorrência de uma ação grandiosa, realizada num passado distante. Num passado longínquo que serve de modelo para a reprodução da sociedade atual. Isto significa para a história se situa aquém dela, e, ao descrever um estado anterior, legitima a continuidade do presente. [...] O Guarani partilha desta dimensão mítica, e o autor anuncia, logo no inicio do livro, que a estória se passa num período em que a “civilização não tivera tempo de penetrar o interior”. Isto é, quando o Brasil se encontrava ainda na sua virgindade originária e a terra não havia sido profanada pela irreversibilidade do tempo. (ORTIZ, 1988, p.262). 5 À multiplicidade de definições do mito, parece produtivo procurar identificar a visão que o próprio Alencar tinha sobre a questão, para, a partir dela, depreender os procedimentos retóricos empregados pelo autor para dotar suas narrativas de uma dimensão mítica. Estimulado pelo espírito nacionalista que se seguiu à Independência, o romantismo brasileiro demonstrou grande interesse pela epopéia, percebida como a forma mais adequada para a composição de uma obra em louvor ao jovem país. 2.1 O MITO DO BOM SELVAGEM O mito do “bom selvagem” isto é do homem que vive em perfeita harmonia com a natureza. ... O homem que nasceu, embalou-se e cresceu nesse berço perfumado; no meio de cenas tão diversas, entre o eterno contraste do sorriso e da lágrima, da flor e do espinho, do mel e do veneno... ... Canta a natureza na mesma linguagem da natureza; ignorante do que se passa nele, vai procurar nas imagens que tem diante dos olhos a expressão do sentimento vago e confuso que lhe agita a alma (ALENCAR, 1999, p. 225). O pensamento de Rousseau pode ser tomado como uma doutrina individualista ou uma denúncia de falência da civilização. O mito criado pelo filósofo em torno da figura do bom selvagem, o ser humano em seu estado natural, não contaminado por constrangimentos sociais deve ser entendido como uma idealização teórica. Além disso, a obra de Rousseau não pretende negar os ganhos da civilização para reconduzir a espécie humana à felicidade. Os poetas e escritores românticos, por outro lado, criaram o mito do bom selvagem, segundo o qual os “povos primitivos” eram essencialmente bons, porque não tinham sido corrompidos pela sociedade: este é um mito que apresenta um conceito idealizado. O bom selvagem se desdobra em herói regional em que o selo da nobreza é dado pelas forças do sangue que o autor reconhece e respeita igualmente na estirpe dos colonizadores brancos. “Ao heroísmo de Peri não deixa de apor a sobranceira de Dom Antônio de Mariz e sua esposa, os castelões impávidos de O Guarani”(BOSI, 2006, p.138) 6 Bosi (2006), ainda afirma que o espelho era a visão simbólica das forças naturais. O viço da árvore, o faro do bicho, o ardor do sangue e do instinto, eis os mitos primordiais que valerão, no código de Alencar, pureza, lealdade e coragem. A visão de Alencar do mito como um ser que, ao concentrar em si a tradição de feitos grandiosos praticados por indivíduos cujos nomes foram esquecidos, reveste-se de uma dimensão simbólica, tornando-se o representante das virtudes mais caras de uma comunidade. Na decadência da humanidade, provocada pelo desejo de possuir, pelo solo demarcado, pela violência e a necessidade de leis, é, que Rousseau vai mostrar ao narrar a origem da sociedade, focalizando ainda o estado de natureza, mas subordinado então a uma história: O exemplo dos selvagens, que foram encontrados quase todos nesse estágio, parece confirmar que o gênero humano fora feito para assim permanecer para sempre. Que esse estado é a verdadeira juventude do mundo, é que todos os progressos anteriores foram em aparência, outros tantos passos para a perfeição do indivíduo, mas, na verdade, para a decrepitude da espécie (ROUSSEAU, 2005, p. 92). Para fundamentar seu pensamento que segue em direção oposta ao progresso louvado por grande parte dos filósofos, Rousseau vale se dos mitos como verdade universal e assinala, insistentemente, o caráter conjetural das explicações positivas sobre o progresso, baseadas em pesquisas históricas rápidas e superficiais; começando por descartar os fatos históricos mal conhecidos, “os evocará como mitos, úteis à ilustração de seu raciocínio”. Eliade (2006) relata que o mito das origens é: U m acontecimento que teve lugar no tempo primordial, o tempo fabuloso dos “começos”. Noutros termos, o mito conta como, graças aos efeitos dos Seres Sobrenaturais, uma realidade passou a existir. O mito só fala daquilo que realmente aconteceu que se manifestou plenamente (2006, p.12). O mito do bom selvagem segue sua carreira em todas as utopias e ideologias ocidentais até Jean-Jacques Rousseau, o que mostra não ter o ocidente renunciado ao antigo sonho da busca pelo paraíso terrestre, da volta à idade de ouro da humanidade. Em seus textos literários, que prefiguram os temas maiores do Romantismo, entre eles o sentimento pela natureza, Rousseau deixa entrever sua nostalgia pela Idade de Ouro, seu desejo utópico de recriar o Paraíso perdido. 7 No romance O Guarani, o índio, como selvagem de Rousseau, amalgamado à natureza, é o oposto de D. Antônio de Mariz, “português de antiga têmpera, fidalgo leal”(ALENCAR, 1999, p.15). Enquanto D. Antônio é senhor em sua casa, chefe de seu clã e representante da metrópole, guardião das tradições e senhor cultural, Peri é senhor em seu habitat (a natureza), o herói das florestas brasileiras, guerreiro invencível. Entre os dois se coloca Ceci, único elemento do mundo cultural a realizar harmoniosamente uma integração à natureza, movida pela força de atração de Peri. A terceira etapa do romance apresenta uma confirmação de que a natureza é superior á cultura, conforme preconizava o ideário do Romantismo. Iniciada dentro de código que remetia ao substrato medieval, a narrativa caminha para uma posição ideológica mais romântica: Peri passa a ser o verdadeiro mediador entre a cultura e a natureza, introduzindo e acompanhando Ceci no conhecimento de si mesma e desse novo mundo. A Natureza passa, então, a supremacia sobre a cultura, realizando o ideal romântico de liberdade e pureza: o herói primitivo, Peri, cujo nome significa “junco selvagem” (ALENCAR, 1999, p.24), é o próprio símbolo da natureza. Essa predominância se acentua à medida que surge o mítico da narrativa, à medida que a obra vai abandonando seu caráter histórico e novelesco e identificando-se com o mito. Os dois mitos finais, um de origem bíblica (Noé) e outro indígena (Tamandaré), indiciam a solução para a história, que já fora encaminhada ao longo da narrativa e de certa forma predita quando Peri conta a Ceci, a lenda de Tamandaré. Apoiando-se no mítico, o texto vai-se aproximando do poético. 8 3 - CONTRADIÇÕES INDÍGENAS EM “PERI” Influenciada pela tendência romântica européia, a literatura brasileira obviamente não poderia apoiar-se nos heróis medievais para louvar a grandeza e a honra do espírito nacional. Seria necessário encontrar outro momento histórico e um novo modelo de herói. Para exaltar o caráter específico do povo brasileiro e as qualidades distintivas desta terra, elegeu-se, então, a época da colonização do país e idealizou-se o índio como origem mítica da “raça brasileira”. Foi esse o formato que recebeu, na literatura brasileira, o romance histórico de origem européia. Considerado o mais importante romancista indianista do Romantismo brasileiro, José de Alencar ao cria o herói nacional fruto das novelas de cavalaria. O prosador procurou pintar o índio, dando características que ele não as possui, levando-o a ter identidades e aspectos que fogem aos ditames dos nativistas e nacionalistas do Brasil. Alencar, ao criar o romance, “ O Guarani” acreditava que o índio seria um elemento essencial para o romance histórico. Ele estava situado no quadro histórico e queria representar poeticamente no plano literário as nossas origens e a nossa formação com povo e José de Alencar, na verdade, tem esse desejo ideológico de mostrar um Brasil glorioso e positivo. Por isso, o autor revela um Brasil mais baseado em fatos lendários para provar nossas raízes. Como observa Coutinho (1999; p.259): “Alencar criou, com base mais lendária do que histórica, o mundo poético de nossas origens, para afirmar a nossa nacionalidade, para provar a existência de nossas raízes legitimamente americanas”. É evidente que o índio tema do romance O Guarani não se vinculava ao índio real, eventualmente conhecido do público leitor da época. Esse índio aculturado, fragilizado perante a civilização, não poderia servir de modelo histórico. Por isso, o escritor José de Alencar tratou de imaginar um índio que pudesse representar o homem brasileiro e a exótica mata tropical. O espaço, tempo e o personagem que formam esse conjunto coerente na construção de narrativa em O Guarani, deriva mais da fantasia que da realidade. Em O Guarani para contrabalancear o ímpeto fantasioso que se nota na narrativa dos feitos fabulosos do índio “Peri”, José de Alencar inseriu algumas observações no romance explicando sobre a cultura indígena, sobre os personagens para emprestar certo ar 9 de verossímil à obra. Podemos notar esse fato quando Alencar narra, a passagem onde Peri descreve a sua lenda indígena, que ocorreu na ocasião do dilúvio. Tamandaré tomou sua mulher nos braços e subiu com ela ao olho da palmeira; aí esperou que a água viesse; a palmeira dá frutos que o alimentava [...] A água tocou o céu; e o Senhor mandou então que parasse. O sol olhando só viu céu e água e o céu a palmeira que boiava levando Tamandaré e sua companheira. (Alencar, 1999; p.318). Mesmo Alencar procurando dar um realismo à obra, e sua personagem sendo construída em torno de modelo direto ou indiretamente conhecido, que é simplesmente um pretexto para a caracterização, que explora ao máximo as suas virtualidades, por meio da fantasia. Quando o modelo não convém às características que o autor deseja, ele enfatiza essas ações no comportamento e nos sentimentos acerca de suas idéias de maneira que a característica do personagem venha ser real e imaginária. O personagem Peri, que é um ser de origem real, mas seus feitos não passavam de trunfo da imaginação e da fantasia de Alencar. Ao usar a imaginação, Alencar revela o selvagem não apenas grandioso, mas sacralizado e adaptado sob a forma de mito, mostrando um índio, o qual ele desejava: selvagem, real, verdadeiro e palpável e que o leitor, porém admira e ama tal como Alencar o idealizou, criou e fez deste personagem um ser imortal. O mito não reproduz a verdade, conduz o romancista a por em cena a metáfora da realidade e de expressar certas verdades que escapam à razão. O personagem Peri é o símbolo nacional de uma idealização poética, e que os costumes indígenas foram modificados pela fértil imaginação de Alencar e que as grandezas que Peri realizava estavam longe da verossimilhança. Ao narrar a batalha dos Aimorés contra a família de D. Antônio Alencar, deixa evidente essa falta de verossimilhança, pois, Peri é apenas um exagero na idealização ficcional, pois ele sozinho não conseguiria vencer a batalha. -Sejam mil; Peri vencerá a todos, aos índios e aos brancos. -Ele pronunciou estas palavras com a expressão de naturalidade e ao mesmo tempo de firmeza que dá a consciência da força e do poder. -Contudo Cecília não podia imaginar o que ouvia; parecia inconcebível que um homem só, embora tivesse a dedicação e heroísmo do índio, pudesse vencer não os aventureiros revoltados, como os duzentos guerreiros aimorés que assaltavam a casa. (ALENCAR, 1999, p.140) O caráter mítico de Peri, colocado por Alencar neste trecho foi absolutamente necessário para encarar os guerreiros. De modo respeitoso, o autor contempla o herói, o 10 desenha como o homem primordial saído materialmente de suas mãos divinas, e de uma imaginação exuberante, plasmado por uma divindade máxima, onisciente e onipotente. Tentando transpor uma imagem de uma nação forte e religiosa em que o colonizador deveria acreditar e, até mesmo, espelhar-se. Alencar, ao construir a imagem do herói brasileiro, aquele homem excepcional que possuía o segredo da força e da sabedoria, esse herói deveria ser, então, adorado e seguido. Somando-se a isso, o índio obtém a imagem do mito, não permanecendo em sua forma primitiva, propaga-se e adapta-se ao meio para onde é transplantado, adquire feições locais por ser profundamente popular e nacional. Esse esforço de fincar o pé na realidade, não impede, porém, que o romance seja o mesmo o resultado de um grande esforço imaginativo que compôs um herói indígena bastante ambíguo. Peri é, ao mesmo tempo, o selvagem atlético, conhecedor dos segredos da natureza, ágil, valente, impetuoso. Entretanto, toda a audácia do selvagem brasileiro não pode afrontar o “branco de bem”, representado pela família de D. Antônio de Mariz. Por outro lado, Peri é, ao mesmo tempo, o índio dócil, submisso e fiel aos seus “senhores”. O caráter selvagem, tanto do personagem, quanto da paisagem, reduz-se, então, a um elemento exótico, que seduzia a curiosidade dos leitores por esse “outro mundo”, criado por José de Alencar. A tentativa de mitificar o “ancestral” indígena de nossa cultura, não devia se traduzir em rejeição à cultura européia da classe dominante. Alencar apresenta uma síntese harmônica, um convívio pacífico entre colonizador e colonizado, o que se verifica claramente na caracterização de Peri: em nome de sua voluntária obediência a venerada Ceci, filha de D. Antônio de Mariz, Peri controla toda sua natureza bravia e se domestica. Em contrapartida, os “maus índios” do romance são os Aimorés, canibais que atacam a família Mariz e que simboliza uma insubordinação inaceitável. O velho fidalgo velara uma boa parte da noite; ou escrevendo ou refletindo sobre os perigos que ameaçavam sua família. Peri lhe havia contado todas as particularidades do seu encontro com os Aimorés; e o cavalheiro, que conhecia a ferocidade e espírito vingativo dessa raça selvagem, esperava a cada momento ser atacado. (ALENCAR, 1999, p.111). Pela descrição feita dos Aimorés, percebemos o quanto Peri foi imaginário, pois a raça indígena não possuía a bondade em sua essência. Onde Alencar buscando uma nova ideologia para nossas raízes, concebe ao selvagem essa bondade em seu caráter. 11 O relato de sua gênese através dos feitos de uma personagem grandiosa, desenhada pelo narrador que, em sua condição de descendente, coloca-se disposto a contar os fatos de uma personagem. Não exatamente como deu, mas com estilo de uma beleza admirável e de um lirismo combinado com imaginação, entretanto em contradição com o verdadeiro caráter do índio brasileiro. CONSIDERAÇÕES FINAIS A arte, para o romântico, não pode se limitar à imitação, mas ser a expressão direta da emoção, da intuição, da inspiração e da espontaneidade vividas por ele na hora da criação, anulando, por assim dizer, o perfeccionismo tão exaltado pelos clássicos. Não há retoques após a concepção para comprometer a autenticidade e a qualidade do trabalho. Os escritores românticos vivem em busca de fortes emoções e aventuras na tentativa de colher experiências novas e criadoras. Alencar ao construir o herói de O Guarani, deixa a emoção tomar conta da sua narração, criando um ser que vai além do real. Apresentando um herói submisso ao conquistador, mas no papel de herói empreende suas jornadas, enfrentando tigres, os perigos de uma raça selvagem, os Aimorés, mostrando o tesouro do seu verdadeiro eu, criado pelo autor. Peri é um ser quase sobre-humano que simboliza as idéias, formas e as forças que moldam a nação brasileira, é o herói que a nação brasileira precisava para afirmar culturalmente e romper com a cultura européia. Passando por grandes dificuldades para elevar e se afirmar como herói da nação. Como acontece com o herói épico que tem como sonho fazer sua própria história, que se exaure na sua missão. A intenção de Alencar era que o leitor, ao ler o romance, fosse criando a imagem de um herói que não tinha medo de enfrentar as dificuldades. Buscava afirmar que a nação brasileira havia uma tradição cultural que estava à altura da européia, mostrando que no Brasil também possuía um herói nacional, mas não deixando de ter influências do herói medieval. O herói é um ser transitório, uma personalidade que nos fascina, porque personifica o desejo e a figura ideal do ser humano. Ele defende a nossa causa, por isso identificamo-nos com ele. A luta heróica possibilita a superação dos medos, compensação. Nem deus, nem humano, é intermediário entre o mundo da consciência e o inconsciente, são traços de união entre o mundo divino e o humano. Mesmo que o poeta 12 queira sublinhar os traços comuns entre um deus e um mortal, face a face, um dado parece incontestável: afirmar a superioridade dos traços divinos oferece-lhe a oportunidade de reafirmar que homens e deus são comparáveis. O herói aparece também como produto da união de um deus com o ser humano, simbolizando a união das forças celestes e terrestres. Neste sentido, o homem encontraria em seu espelho, na medida de sua origem divina (espírito) e sua origem humana (matéria), sendo que a tarefa consistiria em unir o céu e a terra, atingindo assim a sua totalidade. O herói é o precursor da humanidade em geral. Representa, portanto, uma forma da coletiva, sendo sua trajetória seguida pela humanidade de forma que os estágios do mito heróico façam parte do desenvolvimento da personalidade de cada individuo. Peri é considerado um mito por representar o começo da nação brasileira, por ser apresentado de forma alegórica por Alencar, e ser uma narrativa do passado histórico. O personagem Peri representava as características fundamentais de que a nação precisava para dominar o campo cultural e o impacto com a nossa existência. Seu caminho é o caminho da realização. Esse herói recém-nascido pelas de Alencar significa o sol vigoroso surgido das águas, ao qual as nuvens se opõem timidamente em seu nascimento e que acaba por superar todos os obstáculos de maneira vitoriosa. Assim é que o personagem chega aos olhos dos leitores daquela época. O selvagem romântico, legítimo representante do bem, é dotado exclusivamente de qualidades como coragem, honra, inteligência, poder de sedução, tornando-se assim, o símbolo do herói nacional, expressão de consciência e de valores coletivos. Essas qualidades são evidenciadas em todo momento por Alencar, deste o início das cenas: domínio do animal selvagem ao salvar Cecília várias vezes, na batalha contra os inimigos de D. Antônio de Mariz. Mas a sublimação é comprovada no final do livro, surgindo o heroísmo maior – “um sublime heroísmo”. Era a vez de lutar contra as forças da natureza e era preciso vencê-las: a vida de sua senhora corria perigo. Peri tem que lutar com as águas do dilúvio e salvar Cecília. Houve um esforço hercúleo, supremo. Aos poucos, a palmeira foi-se desprendendo. Com mais um pouco, seria carregada pela imensidão das águas. Então o índio, tomando-a nos braços, disse-lhe com um acento de ventura suprema: “Tu viverás!” Alencar (1999; p.202), Peri mostra poder de um ser transcendental. Alencar enfatiza o seu personagem como um super-homem que encarna bem as qualidades que o autor lhe confere como símbolo da terra e da pátria brasileira. Peri foi um selvagem idealizado, dono de qualidades que fariam inveja aos mais nobres e leais fidalgos medievais, a exaltação da força, da coragem e da nobreza do indígena brasileiro, é 13 simbolizada na obra O Guarani por Peri, mesmo que seja no plano ideal. Entretanto, a vontade e o desejo de tornar esse “brasileiro”, mesmo que europeizado, superior às demais raças, lhe dá um caráter de transfiguração do plano real para um plano transcendental: A sublimação do ser. Pode-se considerar o Romantismo como um dos principais movimentos contestadores do sistema vigente a fim de expressar a liberdade individual do ser humano, assim como o seu amor e apego à, aspectos regionais. O personagem o qual deveria ser a expressão do autêntico brasileiro habita em um país, que tem como pano de fundo a natureza, que se desponta como o que há de mais legitimamente nacional, caracterizando o Brasil como lugar único dentre todos os outros. As águas dos rios correm com mais majestade, as florestas são mais vastas, e até mesmo as montanhas são mais elevadas. A paisagem contada nas obras literárias de árvores e de bosques, de várzeas e de flores, de céus – sempre anil e invariavelmente rodeada de adjetivos e de pontos de exclamação. Contudo, o que a habita “vem de fora” da Europa, além do mais “vestido de armadura de um puro cavaleiro medieval”. O nosso verdadeiro índio, massacrado, conquistado e considerado como uma civilização em desenvolvimento – o bom selvagem – como assim classifica os antropólogos, ficou somente no plano histórico da realidade brasileira. Mas isso não significa a única possibilidade de interpretação da obra literária, a proposta é de que este trabalho esteja aberto a críticas literárias e a sugestões de outros leitores, pois é apenas um ponto de vista que a literatura nos permite observar. 14 Referências: ALENCAR, José de. O Guarani. 29 ed., Rio de Janeiro: Ediouro, 1999. BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira. 43 ed., São Paulo: Cultrix, 2006. BRUNEL, Pierre. Dicionário de Mitos Literários. 4 ed., Rio de Janeiro: José Olympio, 2005. CITELLI, Adilson. Romantismo. 3 ed., São Paulo: Ática, 2002. COUTINHO, Afrânio. A Literatura no Brasil. 5 ed., São Paulo: Global, 1999. ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. 6 ed., São Paulo: Perspectiva, 2006. ORTIZ, Renato. 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