2 Amazônia 321 Pescados no Pará De abril a dezembro de 2008 e janeiro a março de 2009 Avium Camarão Caranguejo Lagosta 0,4t 14,1t 118,7t 57,2t Mexilhão 981,0t Ostra 0,3t Peixe 3.479,2t Total Geral 4.650,9t Pesca artesanal de sardinha (Opisthonema sp.) na costa de Bragança, Pará. Esta espécie forma grandes cardumes próximo do substrato e é pescada com rede de emalhe e em currais. Corrida desenvolvimentista O impacto na zona costeira Impactos contínuos ameaçam ecossistemas costeiros devido ao extrativismo sem controle e a demanda mercantil e industrial Texto Marcus E. B. Fernandes e Francisco P. Oliveira Fotos Takayuki Tsuji A ocupação humana desordenada e o extrativismo desenfreado, aliados à chega- da dos grandes projetos, promovem uma corrida desenvolvimentista capaz de gerar impactos constantes e contínuas ameaças aos ecossistemas costeiros amazônicos. De acordo com a resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA) Nº 001, de 23/01/1986, considera-se impacto ambiental qualquer alteração das propriedades físicas, químicas e biológicas do ambiente, causada por qualquer forma de matéria ou energia resultante das atividades humanas que, direta ou indiretamente, afetam: a) a saúde, a segurança e o bem-estar da popu- A fauna teve papel importante no processo de ocupação humana lação; b) as atividades sociais e econômicas; c) a biota; d) as condições estéticas e sanitárias do ambiente; e) a qualidade dos recursos ambientais. O crescimento acelerado da população humana e a grande disponibilidade de recursos nos ecossistemas costeiros favoreceram a ocupação desses ambientes. A fauna como um recurso, por exemplo, teve um papel muito importante nesse processo de ocupação humana, através da sua associação com os manguezais. Segundo Sanoja (1989), várias espécies de oliberal mamíferos (ex. peixes-boi, cetáceos, veados, porcos-do-mato e outros) constituíam uma importante fonte de proteína para as comunidades de caçadores-coletores há milhares de anos atrás. Simões (1981) e ScheelYbert (2000) também apresentam informações relevantes sobre o uso da fauna e da flora na vida dos sambaquieiros, aqueles que exploram os sambaquis, ou cernambis/sarnambis - os sambaquis são atuais e antiquíssimos depósitos situados, ora na costa ora em lagoas ou rios do litoral, formados por conchas, restos de cozinha e de esqueletos amontoados por tribos nativas, as quais habitaram o litoral em épocas préhistóricas - reforçando essa antiga associação entre o homem e a zona costeira, através dos recursos nele disponíveis. 322 2 Amazônia O cozimento e a catação da carne do caranguejo para a “massa” é um recurso que contribui na subsistência de várias famílias no entorno dos manguezais. A ocupação humana e a economia de subsistência Na Amazônia brasileira não foi diferente. Ao longo da zona costeira podem ser observados os mais diversos grupos sociais e étnicos, como, por exemplo, os indígenas, quilombolas, ribeirinhos, pescadores e agricultores, que, de alguma forma, associaram-se aos ambientes dessa região em busca do recurso abundante. A partir de então começou a ser travada uma constante interação entre o homem e o recurso costeiro, onde a subsistência passou a ser a economia vigente. Nesse contexto, os recursos de origem animal como, por exemplo: peixes, caranguejos, siris, mexilhões, ostras, além de mamíferos, aves, répteis e do mel de abelha retirado das colméias do mangue, são extraídos apenas para alimentação, ou seja, para consumo próprio. Os recursos de origem vegetal são geralmente associados à produção de carvão e lenha, construção civil e de cercas, além da produção de armadilhas de pesca e utensílios domésticos dos mais variados. São também utilizados como corante para panos de vela de barcos e redes, incluindo o uso medicinal e como repelente de mosquitos, entre outros. Contudo, esse cenário de subsistência ainda representa um baixo impacto sobre os recursos do manguezal, os quais são natural e gradativamente repostos. Com o passar do tempo, tanto a ocupação humana ficou desordenada quanto o uso desses recursos, e isto se deve, principalmente, ao fato de existirem condições favoráveis na zona costeira para a instalação de várias atividades em seu entorno, as quais normalmente visam atender aos interesses comuns dessas comunidades humanas, que continuam a se desenvolver. extrativismo ‘além da conta’ A utilização dos recursos típicos da zona costeira é e sempre foi de fundamental importância para a sobrevivência das populações tradicionais ali residentes. Com o desen- Recursos como pescado, para olarias, padarias e da agricultura volvimento dessas comunidades, os recursos do manguezal agora passam a ser usados com maior intensidade em outras frentes de trabalho, como por exemplo, na indústria do curtume, auxiliando na curtição do couro; nas olarias, com o uso da lama do manguezal para a produção de telhas e tijolos e nas padarias, com a venda da madeira da espécie Rhizophora mangle para acionar seus fornos. A construção da rodovia PA458 transformou-se em um dos principais impactos antrópicos na costa da Amazônia brasileira. É importante enfatizar que a construção dessa rodovia, embora tenha melhorado o turismo e as condições de escoamento da oliberal produção das comunidades pesqueiras da vila dos Pescadores e de Ajuruteua, no município de Bragança-PA, certamente afetou a diversidade e a paisagem local. Em alguns pontos da rodovia, o fluxo normal de inundação das marés foi interrompido pelo aterro do manguezal e de alguns furos (canais), ocasionando a morte de parte da floresta de mangue, que corresponde cerca de 90 ha, principalmente da floresta de siriubeiras, Avicennia germinans, que apenas no Km 17, no lado oeste da estrada, foi estimado em uma área de 6km2. Adicionalmente, percebe-se que a população ribeirinha utiliza o ambiente para produção de gêneros alimentícios para o seu auto-sustento e comércio. Esse é o caso do cultivo do arroz de várzea na Vila de Acarajó, município de Bragança-PA, cujo cultivo é realizado em área de manguezal, onde os moradores locais derrubam as florestas de mangue e preparam o solo para o plantio. 323 2 Amazônia Impacto marcantil Dessa maneira, o impacto começa a crescer, pois é proporcional à demanda local. De fato, essa relação comercial começou a tornar-se mais complexa desde a colonização da região amazônica, cujos produtos extraídos localmente começaram a fazer parte dos circuitos mercantis de troca. A esse respeito, a obra de Maneschy (2005) apresenta farto relato sobre a importância histórica dos produtos costeiros e sua inserção sócio-econômica no período colonial no litoral da Amazônia brasileira. Contudo, as extensas áreas de manguezal permaneceram “quase” incólumes, sem ter sua paisagem característica muito alterada. O início da devastação dessa paisagem é resultado de outro momento nesse enredo histórico dos impactos e ameaças à zona costeira. Por outro lado, o efeito da intensificação do extrativismo foi mais visível nos produtos de origem animal, principalmente no peixe e no caranguejo, principais insumos da região estuarina. O peixe, por exemplo, é um recurso de alta exploração no litoral amazônico, independente da espécie-alvo, atentando-se para o fato de que umas espécies possuem maior valor de mercado do que outras, cujo valor real é o de subsistência para as populações ribeirinhas tradicionais. Nas décadas mais recentes, percebe-se que a comercialização do pescado, em larga escala, provoca impactos negativos na zona costeira, pois o que antes era uma prática de subsistência tornou-se uma prática predatória. Tal consequência é fruto do aumento populacional e sua bagagem tecnológica, que inclui novos apetrechos de pesca, que, nesse contexto, ainda não tinham sido regulamentados pelas autoridades governamentais. A pesca na região amazônica passou então a ser industrializada, onde redes de interdependências entre as populações locais e os grandes comerciantes foram criadas. Como Cultivo de arroz de várzea na Vila de Acarajó, em BragançaPA, é realizado em área de manguezal. A exploração da madeira das florestas de mangue para produção de lenha e carvão continua intensa e sem controle. Visão simplista não antecipa o impacto iminente resultado, o pescador que antes praticava a pesca artesanal, de subsistência, hoje é o profissional dessa pesca industrial. O caranguejo-uçá, por sua vez, é um dos principais recursos pesqueiros que sofreu com essa intensificação do extrativismo. Na primeira fase, com o grande aumento no número de tiradores de caranguejo, houve uma queda na produtividade dos manguezais próximos, isto é, redução do estoque e do tamanho do caranguejo. Segundo Maneschy (2005), com a ampliação dos territórios de captura, no intuito de aumentar a produção, os tiradores de caranguejo começam a depender dos meios de transporte para alcançar as áreas de coleta mais distantes. Iniciamse os conflitos, que são registrados ao longo da costa amazônica, com a invasão territorial por tiradores oliberal de outras localidades (ex. no Sucurijú – Amapá e na Ilha de Marajó – Pará). Maneschy (1993; 2005) relata que a intensificação do extrativismo do caranguejo-uçá, além de trazer inovações tecnológicas (ex. tapagem, laço e gancho), resultou na reordenação da divisão sexual do trabalho, com a mulher passando a ter um papel importante nas atividades pós-captura. Nessa segunda fase, as conduruas (caranguejos-fêmeas), que até então não eram alvo dos catadores (trabalhadores que retiram a carne “massa” do caranguejo), passaram também a ser coletadas e a fazer parte de um sistema de comércio. Nesse sistema os caranguejos são trazidos já “esquartejados” do manguezal para a catação, que é a retirada da carne, processo que mascara o reconhecimento das fêmeas. Assim, impactos sobre a qualidade e quantidade dos recursos tornaram-se crescentes. Em suma, o que de fato vem acontecendo é o exagero no processo de extrativismo, cuja visão simplista dos atores envolvidos não foi capaz de antecipar o impacto iminente sobre os recursos por eles explorados. 324 Amazônia 2 Corrida para se desenvolver Vários eventos têm promovido o desenvolvimento na zona costeira da Amazônia brasileira debelando uma verdadeira corrida desenvolvimentista à região. Dentre esses eventos a alta produção pesqueira artesanal do Estado do Pará, que envolve mais de 60.000 pescadores e é responsável pela maior produção pesqueira do Brasil, superando o beneficiamento do caranguejouçá e a produção de ostra. Por fim, inúmeros empreendimentos, com o objetivo de aumentar a renda familiar, ganham crédito e começam a se estabelecer na região. Consequências positivas são visíveis nesse processo, pois alguns empreendimentos passam a receber orientação mais adequada, como é o caso do projeto-ostra em Augusto Corrêa, Curuçá, São Caetano de Odivelas, Maracanã e Salinópolis, via o SEBRAE (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas), mostrando a viabilidade e importância de tais incentivos. Por outro lado, o crescimento regional, inexoravelmente, continua contribuindo para a manutenção do extrativismo... um pouco “além da conta”, dos recursos costeiros. Como consequência, alguns efeitos negativos podem ser gerados, como a tentativa de implantação da aquicultura em áreas de manguezal, através do cultivo de camarão, cujo insucesso e destruição ambiental já foram demonstrados no nordeste do país, principalmente em Natal - Rio Grande do Norte, com a grande devastação dos manguezais. E é nesse contexto negativo que surgem os grandes projetos para a costa amazônica brasileira, trazendo seus benefícios e seu quinhão de impacto negativo. A exploração do recurso pesqueiro, por exemplo, representa considerável impacto na costa amazônica brasileira. Atualmente, existe uma A maior produção pesqueira do Brasil e 60.000 pescadores demanda crescente desse recurso para outros países e, principalmente, para outros estados brasileiros. No Estado do Pará, por exemplo, a produção de pescado (peixes, caranguejos, lagostas, etc.) atinge 4.651.000 toneladas (de abril a dezembro/2008 + janeiro a março/2009), de acordo com a Secretaria de Estado de Pesca e Aquicultura. Mas, por outro lado, a alta produtividade do pescado no litoral amazônico brasileiro tem promovido o uso de métodos predatórios, como as redes de arrasto cuja fauna acompanhante é completamente descartada. A matança indiscriminada dos cardumes de peixe, incluindo espécies comerciais como a gurijuba (Aspistor parkeri), também tem sido registrada, de forma recorrente, principalmente na costa do Amapá, através do uso de bombas e/ou substâncias tóxicas para a obtenção das nadadeiras de tubarão, que possui alto valor no mercado internacional. No Estado do Maranhão, por exemplo, está prevista a produção de 22,5 milhões de toneladas anuais de placas de aço até 2015, o que equivale a 70% de todo o aço fabricado no Brasil em 2004, que poderá ser responsável pela produção de 7,5 milhões de toneladas de dejetos tóxicos, que certamente prejudicariam as várias comunidades de pescadores artesanais ligadas aos manguezais; mas certamente este projeto deve estar prevenido de medidas para evitar problemas ambientais. Da mesma forma, não se pode esquecer as atividades de implantação de portos, as quais ge- O carvão produzido com a madeira do manguezal é utilizado como fonte de renda por comunidades costeiras ralmente acarretam impactos ambientais devastadores. No Estado do Pará, pode-se exemplificar entre outros, o projeto de construção do Porto do Espadarte, localizado no município de Curuçá, cujo terminal portuário está planejado para ser construído em uma área de preservação ambiental, a Ponta da Romana, na Ilha dos Guarás, para atender a demanda de exportação de grãos e minérios. Empreendimentos dessa natureza, que estão espalhados por todo o litoral da Amazônia brasileira, acarretam consequências desastrosas como a pulverização do minério no ar e na vegetação e o derramamento de óleo na água e no solo da região de entorno. Contudo, a corrida desenvolvimentista também possui seus aspectos positivos, trazendo bene- fícios em diversos setores para as populações litorâneas. No entanto, a ocupação desordenada ao longo dessa linha costeira e a apropriação e o uso desmedidos dos recursos ali existentes podem acarretar em impactos ambientais, sociais e econômicos irreversíveis na zona costeira da Amazônia brasileira. Paraense Emílio Goeldi. p19-62. n Maneschy, M.C. 2005. Sócio-economia: trabalhadores e trabalhadoras nos manguezais. In: Fernandes, M.E.B. (Org.). Os manguezais da costa norte brasileira, vol.II. Fundação Rio Bacanga, São Luís. p135-165. n Sanoja, M. 1989. Origins of cultivation around the Gulf of Paria, northeastern Venezuela. National Geographic Research 5:446-458. n Scheel-Yber, R. 2000. Os vegetais na vida dos sambaquieiros. Ciência Hoje, 165:26-31. n Simões, M.F. 1981. Coletores-pescadores ceramistas do litoral do salgado (PA). Nota preliminar. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi, Nova Série: Antropologia, 78:1-26. Marcus E. B. Fernandes é licenciado em biologia, mestre em psicologia experimental, doutor em biologia-ecologia, professor da Universidade Federal do Pará, campus de Bragança, Pará. Francisco P. Oliveira é licenciado em pedagogia, mestre em biologia ambiental, professor da Universidade Federal do Pará, campus de Bragança, Pará. caminhos para aprofundamentos n Fernandes, M.E.B et al. 2007. Efeito da construção da rodovia PA-458 sobre as florestas de mangue da península bragantina, Bragança, Pará, Brasil. Uakari 3:55-63. n Isaac, V.J. et al. 2003. Diagnóstico da pesca no litoral paraense. Milênios Recos. n Lara, R.J. & Cohen, M.C.L. 2003. Sensoriamento remoto. In: Fernandes, M.E.B. (Org.). Os manguezais da costa norte brasileira. Fundação Rio Bacanga. São Luís. p87-104. n Maneschy, M.C. 1993. Pescadores nos manguezais; estratégias técnicas e relações sociais de produção na captura de caranguejo. In: Furtado, L.G., Leitão, W. & Mello, A.B.F (Orgs.). Povos das águas: realidade e perspectivas na Amazônia. Belém: Museu oliberal