ERA UMA VEZ O DIABO… Gizelle Kaminski Corso1 Josiele Kaminski Corso Ozelame2 Resumo: Criatura maléfica, acusadora e caluniadora, o “diabo” é, possivelmente, uma das figuras mais comuns da representatividade do mal no imaginário coletivo cristão. Demônio cuja imagem compreende feições humanas, pele vermelha, rabo pontiagudo, tridente nas mãos e, no topo da cabeça, um par de chifres, é visto como o anjo caído, que foi expulso dos Céus por ter instaurado uma rebelião de anjos contra o Criador. Ente maligno do sexo masculino, e sem esposa, a não ser a própria maldade que lhe recobre, assusta e horroriza povoando o imaginário tanto de adultos quanto de crianças. Em tempos de se pensar sobre os desafios atuais do feminismo, e de romper, (des)construir paradigmas, preconceitos e aspectos culturais, o livro infantojuvenil A diaba e sua filha, de Marie Ndiaye, vem de encontro às formas pré-estabelecidas acerca do diabo no imaginário cristão. Nesse sentido, nosso trabalho buscará observar de que maneira se dá a construção de um personagem conhecido do cristianismo, porém desconstruído a partir de uma nova leitura, pela flexão do gênero – a diaba –, proposta para jovens leitores. Para subsidiar nossos estudos buscaremos fôlego em Beth Brait, Anatol Rosenfeld, Antonio Candido, Alberto Cousté, Gerald Messadié e Giovanni Papini. Palavras-chave: Diabo. Literatura infantojuvenil. Imaginário coletivo. Um dia…bo(m): um pouco de história Demo, Demônio, Que-Diga, Capiroto, Satanazim, Cujo, Tinhoso, Maligno, Tal, Arrenegado, O Coisa-ruim, O Canho, O Não-sei-que-diga, O Solto-Ele, Rabudo, são apenas alguns dos nomes que fazem referência à figura do “Diabo” no romance Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa. As denominações dadas ao “dito cujo” são tantas que, se fizermos um levantamento de todas as palavras usadas para substituir “diabo”, a lista, certamente, será imensa. Tal recurso, a substituição/a criação de outro nome em detrimento do próprio (daquele que lhe define), procura evitar o perigo de evocá-lo, segundo o imaginário coletivo, e isso nos leva a pensar que há, portanto, uma espécie de temor instaurado sobre aquele que personafica(ria) o mal: ente maligno do sexo masculino, e sem esposa, a não ser a própria maldade que lhe recobre, assusta, horroriza e povoa o imaginário tanto de adultos quanto de crianças. A tradição religiosa hebraica é a responsável pela determinação da figura e das atitudes do Diabo no ocidente. Ela também estabeleceu o diabo como grande inimigo de Deus, por meio da evolução histórica. 1 2 Instituto Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Brasil. Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Foz do Iguaçu, Brasil. 1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X No Antigo Testamento da Bíblia, a menção sobre o mal, sobre o Demônio, encontra-se no livro de Jô. Segundo Nogueira (2000, p. 16), “O Satan é, por conseguinte, a causa de todos os tormentos que são enviados do servo de Deus, mas não tem ainda personalidade definida”. No entanto, é no Novo Testamento que o Diabo se tornará símbolo de toda a maldade. Segundo Nogueira, no período helenístico, em função de noções religiosas distintas à organização de um agente do mal, desempenhará um importante papel na consciência do homem europeu. É justamente com o contato com os judeus que uma nova demonologia se formará, onde espíritos malignos se voltarão contra as obras do Criador. Porém, é no Cristianismo primitivo que alguns temas gregos são incorporados, povoados por legiões de demônios. A negação do demônio no Antigo Testamento tem sua contemplação no Novo Testamento, reconhecida pelos evangelhos e pelo Apocalipse. É aqui que acontece uma diferenciação entre anjos e demônios, e o povo passa a se preocupar com a salvação individual da Alma. Ao contrário de Yavé no Antigo Testamento, Deus agora possui formidáveis adversários na pessoa de Satã e sua corte de demônios [...]. Daqui por diante, Satã é o grande adversário, tendo por missão combater a religião que acaba de nascer e que será no futuro o Cristianismo; Satã é o inimigo implacável de Jesus e seus discípulos, tramando incessantemente a ruptura da fidelidade ao Senhor e pondo a perder os seus corpos e almas. (NOGUEIRA, 2000, p. 25-26). O demônio torna-se pai da desobediência e acaba dando a possibilidade ao povo de escolher entre o bem e o mal, e o Universo passa a ser dividido em dois reinos, o de Cristo e o do Diabo. “Satã se esforça para impedir de todos os modos o alargamento do reino de Cristo, enquanto este, ao contrário, tem por missão destruir o reino do Mal” (NOGUEIRA, 2000, p. 26). Em função disso, ocorre, segundo este estudioso, a polarização do diabo, que consiste em que tudo que afasta o homem de Deus é obra do Diabo. Assim, o Diabo assume um papel tão importante quanto o de Deus. O diabo era considerado malfeitor de diversos acometidos da saúde. Ordenava aos seus súditos, à sua legião de demônios, que se apossassem dos indivíduos para o entorpecimento dos corpos, causando epilepsia e suas histerias. Os milagres de Cristo a estas doenças eram considerados combativos aos poderes de Satã. Cada milagre de Cristo enaltecia seu poder e diminuía as forças malignas. Sobre a residência dos demônios, Nogueira observa que “após a queda não pairava a menor dúvida nos espíritos dos Padres da Igreja na medida em que os anjos habitavam o mais alto dos céus, ao lado do trono de Deus, o Diabo e seus sequazes, por oposição, eram confinados às trevas” (2000, p. 29). 2 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X Os fenômenos naturais, bons ou ruins, eram atribuídos a Deus e ao Diabo. A desordem ao Diabo e a ordem a Deus, crença que vigorou durante toda a Idade Média. Nos últimos tempos, a igreja deixou de sustentar a ideia de que o Diabo havia sido vencido, uma vez que Jesus veio ao mundo para combatê-lo. Até mesmo, por que se ele não mais existisse que justificaria a existência da igreja? O poder absoluto de Satã sobre a humanidade havia sido quebrado, mas ele permanecia um formidável oponente. Ele odiava Deus e todos os seres humanos, concebidos à imagem divina, e ansiava por capturar o maior número possível de almas em seu reino infernal, para despojá-las de sua divina semelhança, vingando-se por sua queda: negando os homens a Deus e Deus aos homens (NOGUEIRA, 2000, p. 41). Para Nogueira, o Demônio espreitava a todos. Quanto mais dócil e belo fosse o ser, mais astutamente o demônio praticava seus atos de espreita. Naquela época, acreditava-se que os demônios invadiam a mente dos homens e os levavam à loucura. Eram atribuídos a eles, todos os acontecimentos sem explicação. Para o Diabo, a vida dos cristãos e a mulher eram seus alvos prediletos, uma vez que, segundo a Bíblia, a esta última estava pré-destinada ao mal.3 No século XIII, época de grande importância para o Diabo, Gervasius Tilberienses retoma algumas histórias do diabo do filósofo romano Lucio Apuleio (125-180 d.C). Segundo essas histórias, existiam demônios masculinos (íncubos) e demônios femininos (súcubos) que mantinham relações carnais com seres humanos. Os súcubos apareciam para homens como mulheres formosas, muitas vezes virgens, fazendo com que homens casados cometessem adultério. Os íncubos também levavam as mulheres à traição e, outras vezes, buscavam corrompê-las, se virgens fossem. Se religiosas, o demônio aparecia como Cristo. É no século XIII que o diabo atinge o ápice de sua popularidade, torna-se extremamente respeitado e poderoso, sendo o benfeitor dos desejos de prazer. Mas é Cesarius de Heisterbach4 que lembra que o diabo pode assumir diversas formas: “um urso, um cavalo, um gato, um macaco, um sapo, um corvo, um abutre, um cavalheiro, um soldado, um caçador, um dragão e um negro” (NOGUEIRA, 2000, p. 53). O poder de Deus era absoluto até o final do século XII, seu triunfo sobre o mal era inquestionável e a Satã não era permitido medir forças como Senhor, pois seu poder era intransponível. Mas, no Novo Testamento, como surgimento de Cristo e suas angústias, o poder do Demônio cresce consideravelmente e 3 Conta um Papa chamado Gregório Magno, que uma freira, ao colher um pé de alface e comê-lo sem fazer as devidas orações, endoideceu, pois no pé de alface estava escondido o diabo. 4 A obra de Cesarius ficou muito famosa por retratar de maneira fidedigna o retrato do diabo no século XIII. 3 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X Satã torna-se o Grande Destruidor, o arquiinimigo, dotado de numerosos e apavorantes poderes frente aos quais o homem está totalmente indefeso, a não ser pelos avisos de Deus e a constante ajuda dos ministros da Igreja (NOGUEIRA, 2000, p. 56). Segundo os doutrinados daquela época, o Diabo tinha permissão de Deus para agir. Mas é no século XIV, que os poderes do Diabo aumentam com a crise do feudalismo, pois a miséria se espalha e os homens sentem-se abandonados pelo Senhor. Inicialmente, o Diabo era representado como uma figura com certa dignidade, como cabia a sua condição de anjo caído. Mas, logo após, devido aos esforços pedagógicos dos representantes da fé, passa a aparecer com uma freqüência cada vez maior, como um monstro repugnante, cuja deformidade evidencia a sua corrupção espiritual (NOGUEIRA, 2000, p. 63). As descrições da imagem do diabo são as mais grotescas possíveis. Encontramos a associação desta criatura a anatomias animais ou humanas, geralmente deformadas, com cobertura de pêlos e escamas. Sobre a cabeça, geralmente é desproporcional; ou é muito grande ou muito pequena em relação ao resto do corpo. Adereços afixados a esse corpo também são comuns, como por exemplo: chifres, rabos, asas, garras e cascos, bicos além de diversas outras possibilidades criacionais da mentalidade humana. Porém, é no Novo Testamento que os bodes e cordeiros (maus e bons) são separados, e ao bode cabe o inferno, representando, o maligno. Para Nogueira, o bode, assim como os demônios, era conhecido por sua devassidão e mau cheiro e, na consciência popular, sua belicosidade e os prejuízos que causava a campos e colheitas aumentavam as suas possibilidades de ligação como furioso e destrutivo Inimigo (NOGUEIRA, 2000, p. 67). Segundo Kertelge (1992) não há uma descrição precisa a respeito do Diabo. Ele menciona que é importante observar a diferença linguística do mal na Bíblia, em que o Diabo sempre aparecerá no singular e demônios no plural. Para ele Diabo e Demônios não são entidades rígidas, definidas, que nos escritos bíblicos seriam empregadas em toda a parte de modo idêntico e unívoco. Ao contrário, elas assumem concretização e univocidade sobretudo no uso lingüístico da bíblia e nos diversos modos de experimentar e representar as diversas formas da tradição, que estão à sua base (KERTELGE, 1992, p. 15). Tendo em vista diferentes formas de representação, e de compreensão da figura maléfica, trazemos como exemplo versos da Commedia, de Dante Alighieri (1265-1321), em que é descrito o rei do triste reino: E agora o rei do triste reino eu vejo, de meio peito do gelo montante; e mais com um gigante eu me cotejo que um braço seu co’ um inteiro gigante; imagina o que dele é então o todo pra de tal parte não ser aberrante. Se belo foi quão feio ora é o seu modo, e contra o seu feitor ergueu a frente, só dele proceder deve o mal todo. Mas foi o meu assombro inda crescente 4 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X quando três caras vi na sua cabeça: toda vermelha era a que tinha à frente, e das duas outras, cada qual egressa do meio do ombro, que em cima se ajeita de cada lado e junta-se com essa, branco-amarelo era a cor da direita e, a da esquerda, a daquela gente estranha que chega de onde o Nilo ao vale deita. Um par de grandes asas acompanha cada uma, com tal ave consoantes: - vela de mar vira eu jamais tamanha – essas, sem penas, semelhavam antes às dos morcegos, e ele as abanava, assim que, co’os três ventos resultantes, as águas de Cocito congelava. Por seis olhos chorava, e dos três mentos dentes, moía à feição de gramadeira, aos três prestando, de vez, seus tormentos. Pra o da frente, a mordida era ligeira pena, em confronto com a gadanhada que por vez lhe arrancava a pele inteira.” (Inf., Canto XXXIV, v. 28-60, p. 248-249). Assim é descrita a figura de Lúcifer (Dite) – do latim, lux fero, “portador da luz” – no centro do Inferno, localizada no último e Nono Círculo. A criatura diabólica possui três faces que simbolizam em analógica antítese três pessoas (em uma) da Trindade, contrapondo-se aos atributos divinos. Satanás aspirou ser como Deus e a justiça do seu castigo consiste em torná-lo o avesso, cópia grotesca do Pai, do Filho e do Espírito Santo. A face vermelha, da frente, corresponde ao ódio, a branco-amarela, da direita, simboliza a ignorância, e a negra, da esquerda, a impotência (QUAGLIO; PASQUINI, 2005). Em cada uma dessas faces, o anjo caído mastiga eternamente os traidores da humanidade: o de Cristo (Judas Iscariote, na face central, somente com as pernas de fora), e Bruto e Cássio (nas faces negra e branco-amarela, somente com a cabeça de fora). Ainda, segundo Singleton (1978, p. 58), “[…] a imagem de Satanás possui um significado simbólico não apenas no quadro da punição de uma determinada criatura, mas como parte da ordem e da simetria do plano cósmico, estabelecido por Deus”.5 No que se refere à ilustração do diabo, além de trazermos a visualização dantesca, que apresenta uma concepção da Idade Média da figura que simboliza(ria) o mal, trazemos uma visão contemporânea, do cartunista brasileiro Lelis, que ilustrou O diabo e o gato, conto de James Joyce traduzido por Lygia Bonjunga. O diabo descrito por Joyce é inofensivo e um pouco ingênuo. Lelis, responsável por ilustrá-lo, utiliza aquarela e o desenha de forma bastante humanizada: seu diabo é magro, tem o rosto fino, usa óculos e, embora não seja desprovido de cauda pontiaguda, chifres e de 5 “[…] l’immagine di Satana ha un significato simbolico non solo nel quadro della punizione di una data creatura, bensì anche come parte dell’ordine e della simmetria del piano cosmico stabilito da Dio”. 5 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X uma roupa vermelha, sua feição é bastante agradável e, aparentemente, dócil. José Saramago, escritor português, também dá vida a este personagem, em O evangelho segundo Jesus Cristo. Aqui, ele aparece de duas formas: como um mendigo, que anuncia o nascimento de Jesus a Maria; e como Pastor, que cuidará da educação do filho de Deus no deserto. Neste evangelho, encontramos um diabo bondoso, disposto a abrir mão do poder que tem, para evitar a morte de inocentes. Sobre o significado da palavra Diabo, segundo Kasper (1992), no sentido literal do grego, significa caluniador, que semeia a discórdia, adversário na função bíblica em relação a Deus é o ser que quer separar o homem do Senhor, por isso que nas passagens do livro sagrado, em grande parte, ele aparece como tentador e corrupto dos homens. Segundo a bíblia, o diabo está ligado ao fenômeno do mal, sendo assim, sua extinção é improvável, embora sua credibilidade tenha diminuído devido às mesclas com a superstição e o folclore. Merecedor do título de “o pai da mentira”, o diabo, no Novo Testamento, é o diabólico que se caracteriza pela confusão do sim e do não. Ele confunde o homem, aparecendo sob muitos disfarces e caras. Segundo Lehmann (1992) ele é um camaleão, “um ator que muda continuamente de papel, um mestre na adaptação aos papéis mais diversos” (LEHMANN, 1992, p. 78). Sobre o sexo do diabo, Coustè (1997) observa que é preciso levar dois aspectos em consideração: a genitália do diabo (que muitos acreditam ser do tamanho do antebraço e de um vermelho intenso); e as características de sua sexualidade. Para muitas religiões, o diabo é um ser hermafrodita, em que a autocopulação é possível. Porém, isso não é aceito na religião cristã. A flexão do gênero Embora o diabo possa ser considerado hermafrodita em algumas religiões, apresentando, portanto, características sexuais masculinas e femininas, para a tradição cristã ocidental, é representado como um ente do sexo masculino. Apesar da existência de uma tradição, há estranhamento quando nos deparamos com a flexão do gênero, compondo-se, então, o substantivo feminino “diaba”. É o que encontramos no título do livro infantojuvenil, da escritora francesa Marie Ndiaye, A diaba e sua filha (2000), publicado em 2011, no Brasil, na tradução para a língua portuguesa de Paulo Neves. Além de o título do livro provocar ruptura com a tradição cristã por apresentar flexão do gênero para o substantivo em questão – pouco evidenciada historicamente no que concerne ao âmbito dessa criatura, como demonstramos na primeira parte deste trabalho – traz, também, outra consideração importante: a presença de uma filha, que representa(ria) a descendência, a 6 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X continuidade, a proliferação da “espécie” pela herdeira feminina. A diaba e a filha. A força do feminino pela repetição: a mãe e a filha; a diaba, a diabinha. Ndiaye rompe, portanto, ao apresentar uma [suposta] esposa para o diabo com quem, possivelmente, teve uma filha. Mas o diabo, a criatura masculina nos moldes a que nos referimos acima via leituras críticas de Cousté (1997), Kertelge (1992), Lehmann (1992) e Nogueira (2000), não é mencionado na narrativa. Por outro lado, o fato de não o mencionar pode, também, colaborar para (um)a existência autônoma do ser feminino – a diaba – e de a manutenção de sua prole não precisar da participação da figura masculina, o “homem”. São duas possibilidades que trazemos à discussão. Ainda, a autora desconstrói a imagem já conhecida do diabo apresentando a personagem [a diaba] com “um rosto agradável de olhar. A pele escura e os olhos, brilhantes.” (NDIAYE, 2011, p. 6). Nessa diaba não há chifres, muito menos pele vermelha e rabo pontiagudo, mas há uma face encantadora e graciosa de se ver. A história tem como motivação uma odisseia da diaba à procura da filha. Ao anoitecer, a mãe parte, de porta em porta, em busca da criança que, não se recorda como, desapareceu junto com a casa. Em princípio, por sua face amável e por seus olhos brilhantes, a diaba era recepcionada com ternura em compaixão, no entanto, quando o olhar daquele(a) que lhe abria a porta pousava em seus pés, “ficava então gelada de terror ao ver que aquela que buscava a filha à noite não tinha pés, mas cascos” (p. 8). Cascos negros, porém delicados, como os de uma cabra. A sensação de desconforto, ao voltar os olhos para baixo e se deparar com pés diferentes, era causada pela possibilidade de vingança, em que a diaba, caso ficasse zangada, agisse perversamente. A marginalização da diferença; o preconceito e o julgamento pela aparência; a metáfora da diversidade pelos cliqueclaques dos cascos da personagem. Segundo Anatol Rosenfeld (2000, p. 35), alguns autores, levando a ficção ficticiamente às suas últimas conseqüências, refazem o mistério do ser humano, através da apresentação de aspectos que produzem certa opalização e iridescência, e reconstituem, em certa medida, a opacidade da pessoa real. Vale dizer, as personagens representam valores, ao mesmo tempo, opacos (ausentes) e iridescentes (perceptíveis), pelos quais a sociedade, o ser humano, são constituídos. As personagens da literatura infantojuvenil, por exemplo, nos levam a discutir perfis culturais, em que aparecem primordialmente questões relacionadas à: “identidade, autoritarismo, ludismo, transformação social…” (KHEDÉ, 1986, p. 8). E o livro de Ndiaye, ao trazer para a discussão as diferenças, embora de maneira [aparentemente] velada, colabora para a discussão de um perfil social, da percepção do semelhante, como afirma Antonio Candido. Segundo o crítico e sociólogo brasileiro, 7 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X há afinidades e diferenças essenciais entre o ser vivo e os entes de ficção, e que as diferenças são tão importantes quanto as afinidades para criar o sentimento de verdade, que é a verossimilhança. Tentemos uma investigação sumária sobre as condições de existência essencial da personagem, como um tipo de ser, mesmo fictício, começando por descrever do modo mais empírico possível a nossa percepção do semelhante. (CANDIDO, 2000, p. 55). Os não mais pés, os cascos, são compreendidos como a ligação com uma pretensa maldade, são sinônimo de aberração, da criatura que, por ser diferente, é perversa e trará a desgraça ao lar apenas com a sua presença. Os cascos denotam essa percepção, via ficção, do semelhante, que é naturalmente diferente a julgar pelas aparências. A diaba, no entanto, “Não sabia sequer por que tinham medo dela” (p. 12). Sabia apenas que “depois que a casa e filha desapareceram que o ruído de seus passos mudou e ela percebeu, ao baixar os olhos em direção aos pequenos pés, pequenos cascos de cabra que ainda a espantavam” (p. 21). Como o diabo, inimigo de Deus (cf. Nogueira, 2000), a diaba é vista como inimiga das pessoas que lhe abrem a porta pelos cascos que lhe recobrem os pés. Julgamento determinado apenas pelo crivo do olhar. No entanto, no momento em que encontra a filha, a “materialização corpórea” de sua descendência, a diaba não ouve “mais o clique-claque de seus pequenos cascos pretos” (p. 33), apenas o atrito de seus pés descalços na estrada. Ou seja, o grotesco, o elemento visual que a classificava como figura maligna – os cascos pretos – desaparece na penumbra no momento em que a diaba encontra, à beira da estrada, sentada na grama, a sua filha. Como sabia que a pequena, cheia de trancinhas, era sua filha? Porque reparou que a menina tinha os pés malformados e mancava. Em virtude disso, ela havia sido expulsa pelos habitantes da aldeia vizinha, que imaginavam ser a “filha da diaba”. O parentesco instaurado pela diferença, pela deformação dos pés, pela parecença visual com a outra. Encontrar a descendente – a filha – e perder os cascos pode significar o elemento que faltava à diaba para deixar de assim o ser. A malignidade, associada à presença dos cascos em substituição aos pés, é abandonada, aparentemente desfeita, no momento em que a diaba se consolida como mãe, em que há o desprendimento do “individual” em prol do “coletivo”: a mãe e a filha, tão somadas no título da narrativa de Ndiaye. Além disso, o diabo, como criatura maléfica, embora possua seguidores, é um ser singular, solitário, isolado. O diabo geralmente não compartilha o mérito, não divide, não distribui parcialmente, angaria tudo para si. Por isso, a singularidade no título deste texto expressa pelo marcador de tempo “Era uma vez o diabo”. Porque o diabo, nos moldes pelos quais o conhecemos, persiste apenas no imaginário coletivo, por sua singularidade: é um, é “o”, é “diabo”. E a flexão do gênero, instaurada pela “diaba” e sua descendente, via narrativa 8 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X da autora francesa, procura deixar bem claro que, pelo tom e pelo discurso apresentados, A diaba e sua filha não querem ficar para a história como mais um Era uma vez… Referências ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia. Tradução, comentários e notas de Italo Eugenio Mauro. São Paulo: Editora 34, 2009. BRAIT, Beth. A personagem. 7. ed. São Paulo: Ática, 2004. CANDIDO, Antonio. A personagem de ficção. 10.ed. São Paulo: Perspectiva, 2000. COUSTÈ, A. Biografia do diabo: o diabo como a sombra de Deus na história. Rio de Janeiro: Record, 1997. JOYCE, James. O gato e o diabo. Tradução de Lygia Bojunga; ilustrações de Lelis. São Paulo: Cosac Naify, 2012. KARTELGE, K. Diabos, demônios, exorcismos em perspectiva na Bíblia. In.: KASPER, W. et al. Diabo, demônios e possessão – da realidade do mal. 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In times of thinking about the current challenges of feminism, and break, desconstruct paradigms, prejudices and cultural aspects, the book infantojuvenil A diaba e sua filha, by Marie Ndiaye, comes against pre-established forms about devil in Christian imagery. In this sense, this paper aims to observe how the construction is given of a known character of Christianity, but deconstructed from a new reading, by bending the genre - a demoness - proposed for young readers. This study is subsidized in Beth Brait, Anatol Rosenfeld, Antonio Candido, Alberto Cousté, Gerald Messadié and Giovanni Papini. Keywords: Devil. Children’s literature. Collective imagination. 10 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X