JOSÉ OLAVO DA SILVA1
(Dodô)
ALMOXARIFE
37 ANOS DE TRABALHO
Viação Bons Amigos
Idade: 56 anos, nascido em Quixadá, Ceará.
Esposa: Francisca Fátima da Silva
Filhos: José Mauro e Francisca.
(21/12/2003)
Tenho o apelido de Dodô desde pequeno. Não sei quem me deu. Lá no interior,
todo o mundo tem apelido, mas quando se chega na Capital, fica usando o nome
original mesmo. Comigo não aconteceu assim: vim para cá e continuei conhecido
como Dodô.
Não sei porquê meu pai quis vir de Quixadá para cá. Talvez as coisas não
estivessem muito boas no interior. Hoje, as pessoas quase não mudam de cidade,
mas, antigamente, o pessoal viajava muito. Passava um ano em um canto, depois
mudava para outro... Ficava uns anos em qualquer cidade, depois saía, viajando
até encontrar um lugar melhor de se viver.
Então, eu comecei a trabalhar aqui na Bons Amigos. Nunca tinha tido um emprego
antes. Era um rapaz novo, tinha uns dezoito ou dezenove anos. Eu estava
precisando de trabalho, o dono gostava de mim e precisava de alguém para tomar
conta do almoxarifado. Aí apareceu a vaga e eu peguei.
Foi assim: quem me deu o serviço foi o Seu Raimundo. Ele, junto com o Seu Ari –
que também já morreu – começaram com a empresa. O Seu Edmar ajudava
1
Depoimento à Patrícia Menezes, no dia 22 de dezembro de 2003, na Viação Bons Amigos. Transcrito por
Patrícia Menezes.
também. E eu conhecia o Seu Raimundo lá da casa dele, porque eu fazia uns
mandatos que ele pedia: comprava água, mandava recados, essas coisas. Era
como um office boy, mas eu não tinha nada a ver com a empresa. Era serviço
particular. Mas eu fui pegando conhecimento com ele e consegui o emprego.
Naquele tempo não tinha teste para entrar na empresa. Era só vir trabalhar e ir
fazendo o que soubesse fazer. No final, eu e o Seu Raimundo ficamos amigos...
O almoxarifado era muito pequeno. A empresa tinha só uns vinte e poucos ônibus,
que faziam três linhas: Henrique Jorge, João XXIII - antigamente se chamava
Parque Santa Fé - e Pan Americano. Hoje a empresa tem tantas linhas, que eu
não sei mais quantas.
Eu gosto do serviço. Se não gostasse, não teria ficado tanto tempo. Meu serviço é
o de comprar peças novas, receber e guardar as peças velhas dos ônibus e
depois prestar as contas desse movimento. Tem que controlar tudo direitinho:
saber quais peças chegaram, quais foram compradas e prestar contas com as
notas fiscais.
Tem que saber tudo sobre as notas fiscais das peças. Tem que saber para qual
carro é a peça, saber o nome do motorista, saber a hora que a gente pediu na loja,
a hora que a peça chegou e o tempo que o mecânico gastou com aquele serviço.
Tudo isso para não empalhar muito o mecânico.
Quando um mecânico está consertando um carro e falta uma peça, imediatamente
ele vai ao chefe da oficina pega uma “OS”. Daí ele traz essa ordem de serviço
para mim. Eu anoto o que ele quer: “- Quero um parafuso 14 por 45, um rolamento
grande...” Ou qualquer outra coisa. Depois eu levo essa solicitação para o rapaz
do computador e ele faz uma coleta para saber onde é mais barato, onde a
entrega é mais rápida. Depois vai e compra a peça. Quando a peça chega aqui,
eu chamo o mecânico e digo: “- Olhe, a peça esta aqui. Já pode ser usada”. O
mecânico confere e me entrega a peça velha enquanto eu passo a nova para ele.
Muitas vezes dá problema quando a entrega das peças atrasa. É um
aborrecimento grande. Ou é porque baixou um pneu da moto do entregador, ou
porque ele passou noutra empresa antes... essas coisas. E aí dá confusão. Nessa
parte de demora de peça sempre dá confusão. O mecânico vai falar com o chefe
da garagem, que fica aborrecido e vem falar com a gente: “- Rapaz, eu pedi a
peça às dez horas e já são doze! Por que não chegou? O que houve?” E toca ligar
para o rapaz do pedido, para saber o porquê da demora.
As lojas querem vender as peças, mas quase nunca elas tem uma pessoa
disponível para entregar na hora. “- Tem rolamento para vender?” “- Tem”. “Quanto é?” “- São quarenta e cinco reais.” “- Você manda agora?” “- Mando”. Mas
não manda, fica enrolando. Quando você liga cobrando é aquilo: “- O entregador
já saiu, ou está saindo...” Fica nessa enrolação até passar uma hora, duas horas.
Quando um ônibus quebra na rua, o mecânico vai junto com o reboque levando as
peças necessárias. É assim: o motorista liga e diz: “- Quebrou o balão do meu
carro”. Então o mecânico leva uma cuíca, uma válvula relé. Quando ele chega lá,
vê se o carro pode ser consertado na rua. Se der para fazer, tudo bem. Mas se
ele não tiver acertado com as peças que ele levou, ele volta. Pode ser problema
de outra coisa, uma mangueira que estourou, por exemplo. Isso o mecânico só
pode ver lá no carro. Então ele chega com o reboque, devolve as peças e diz: “Não são essas, não.” E pega uma conexão, ou uma mangueira ou qualquer outra
coisa que precise para fazer o serviço. Se o carro tiver condições de rodar, de lá
mesmo ele sai de novo. Senão, vem para a garagem e fica aqui. A gente troca por
outro para continuar a rodar.
Hoje tem mais dois rapazes que trabalham comigo no almoxarifado. Um deles é o
Evandro, que faz com as compras, mexendo no computador. O outro rapaz fica
com a parte de carroceria e me ajuda a guardar as peças, limpá-las e deixar o
almoxarifado bem organizado. Eu ensinei um pouco do serviço para ele, porque a
gente sempre precisa de uma mãozinha quando começa a trabalhar. Eles gostam
de música... ficam ouvindo forró e um outro negócio lá no computador.
Eu, por exemplo, aprendi muita coisa em todo esse tempo de trabalho, graças a
Deus. Conheço todas as peças dos carros e sei “lutar” com elas. Hoje, se uma
pessoa chega e pede alguma peça, já sei direitinho de que se trata. Então, é só
devolver a peça antiga e pegar a nova. Tudo isso, a gente tem que aprender...
Fui ganhando prática, mas o que eu faço qualquer um pode fazer. Só tenho mais
rapidez que os outros. Muitos não sabem nem por onde começar. Eu, por
exemplo, sei qual peça pode substituir a outra quando está faltando no estoque.
Os rapazes não sabem. O mecânico chega e pede um rolamento que está
faltando. Eu vou, pego outro e digo: “- Esse aqui dá”. Tem rolamento que dá num
Ford, num Mercedes... O pessoal aceita, não dá briga. Esse é o jeito de ajudar os
mecânicos. Tem hora que não dá nem para saber quem é mecânico ou não,
porque a gente é tudo misturado. Às vezes, o mecânico faz o trabalho mais tarde
e chega todo sujo, entregando uma peça toda suja... Mesmo assim, é claro que eu
não vou entregar para outro... Dou dicas, procuro comprar mais barato, entregar
rápido. Isso eu sei mais que os outros. O certo é que aqui nunca faltou peça,
porque é bem controlado e sempre teve dinheiro para comprar. É claro que a
empresa já teve dificuldades, mas nunca faltou peça no almoxarifado.
Por isso, eu acho que meu trabalho não é muito pesado fisicamente, mas mexe
muito com a cabeça. Tem que prestar atenção em tudo! Às vezes, um mecânico
pede uma peça e o vendedor nem sabe do que se trata. Então, tenho que
conhecer as referências de cada uma delas para dizer ao vendedor direitinho.
Depois aviso ao rapaz que vai à loja. È só chegar na loja e comprar: “- É um
rolamento, referência 006”. Todos os pedidos já têm que sair daqui com as
referências.
Todas as peças têm referências. Até os parafusos. È preciso saber se é parafuso
com porca ou sem porca, e daí é que valem as referências. Apesar disso, quase
todos os dias chegam peças erradas aqui. Eu fico bravo! “- Você mandou rosca
fina e eu queria rosca grossa!” E por aí vai. Conheço muito vendedor de peça.
Acho que eles são gente boa, mas são mesmo interessados em vender.
Além das peças, eu guardo algumas ferramentas da oficina. Tem o ensacador, as
chaves de molas. A chave 19, por exemplo, não pode perder. Muitas vezes elas
são tão grandes que os mecânicos não podem guardar na maleta, então fica tudo
na minha responsabilidade.
No meu serviço aqui e na garagem sempre acontece uma coisa diferente. Nesses
trinta e sete anos, eu vi muita coisa! Tem até carro bom que dá o prego parado
mesmo, já viu? Teve uma vez que um motorista chegou, pisou no freio e parou o
carro na bomba para abastecer. O carro estava bom. Quando o mecânico foi levar
o carro, pisou no freio e não tinha mais nenhuma gota de fluido. O carro deu prego
parado! Saiu andando lá para baixo.... Só não chegou a bater porque, como era
cedo, não tinha carro na garagem e ele saiu desviando. São coisas que
acontecem.
Noutra vez, tinha um carro parado com motor batido há muitos dias. Até que o
mecânico falou para ajeitar o motor. Entraram no ônibus para rebocar e quando
viraram a chave, o carro pegou! Estava bom! O carro saiu numa carreira, passou
por cima de algumas coisas acolá, arrancou uma bomba... Foi um destroço
medonho! Só depois é que conseguiram parar. Contando, ninguém acredita.
Parece coisa de São Cristóvão.
A vida aqui é boa demais! Tem muita amizade e todos gostam de mim. Eu
também gosto de todo o mundo. A gente conversa e brinca muito na hora do
almoço. Falamos sobre o serviço, sobre como podemos ajudar os colegas no
serviço deles. Eu sou popular na empresa. No almoço mesmo. Se eu estou
almoçando e passarem dez colegas, todos mexem comigo. Batem, cutucam,
beliscam, perturbam para brincar. A dona Adelaide, uma vez, ficou admirada.
Perguntou porque todos bolem comigo, mas eu não soube explicar. Acho que a
turma gosta de mim. E eu gosto do movimento. Não gosto de estar parado, não.
A gente brinca também quando não tem serviço, ou na hora do intervalo do
almoço. Quando os carros saem na hora certa e a garagem fica seca, tem gente
que vai jogar bola. Outros vão para a sinuca, que está quebrada mas já vem outra
mesa por aí... Tem também o jogo de damas. O pessoal se divide, cada grupo
brincando com alguma coisa. Mas é difícil, porque sempre tem serviço para fazer.
Eu me lembro de uma vez que um mecânico foi trocar uma peça, mas ela não
saía do motor. Quando as peças não saem, eles cortam com o maçarico, no fogo.
Então, esse mecânico cortou a peça com o fogo e colocou em cima de um
papelão. Daí a um pouquinho, ele pediu que eu pegasse a peça e lhe passasse.
Estava pegando fogo, quente demais... Eu disse: “ – Rapaz, não faça mais isso.
Me queimou!”. Acho que esse foi meu acidente mais sério... Era uma brincadeira,
só que pesada. Esse rapaz não tinha o que fazer. Ele pegava uma caixa de papel
e colocava um suporte de mola dentro. A turma toda tinha mania de chutar tudo
que visse no chão. Só que o suporte de mola é pesado. Ora, quando chegava, era
a notícia que fulano tinha se acidentado... Ele era assim: toda a brincadeira que
pudesse fazer, ele fazia. Quando a turma ia trocar de roupa para ir para casa, ele
enchia o sapato de graxa. Aí, a pessoa já tinha se trocado, colocado as meias,
tudo direitinho e vestia o sapato todo sujo... Ou então, ele dava um nó na perna
das calças dos outros. Então a pessoa chegava apressada, vestia a primeira
perna e dava certo, mas quando calçava a outra, enganchava no nó e caía...
Comigo ele brincava menos, porque eu sabia o que ele fazia. E nunca teve briga
por causa dessas coisas. Mas, quando a turma ia brincar com ele, saía coisa até
pior. Ele já saiu da empresa.
Tem gente que vai tomar uma cervejinha quando sai do trabalho, mas é pouco.
Acho que o pessoal não gosta de beber durante a semana. É mais mesmo no final
de semana. Eu nunca fui junto nessas cervejinhas, porque saio daqui e vou direto
para casa. Não porque minha mulher seja braba, mas porque nós temos muito do
que cuidar... Tem um comércio que a gente toma conta. Enquanto eu estou aqui,
ela fica cuidando, mas quando eu chego em casa, vou ajudá-la.
Eu procuro ajudar o pessoal, sempre que eu posso. Às vezes, eu digo “- Rapaz,
compre isso primeiro, porque é peça do carro do fulano que vai sair agora”. Acho
que ninguém reclama do trabalho, porque aqui as tarefas são bem divididas. A
turma reclama mais se o negócio é mal dividido e alguém fica com mais serviço
que o outro. Mas aqui na Bons Amigos, se alguém estiver desocupado, logo vai
dar uma mão para os colegas. Não tem essa de “- Não faço isso, não faço aquilo”.
Não é porque eu sou moleiro, por exemplo, que eu não vou ajudar um banqueiro.
Na hora do aperto, o pessoal chama os colegas: “- Ei, rapaz: tem um pneu para
trocar e você está desocupado. Venha ajudar”. E todo o mundo vai. No
almoxarifado isso é mais difícil, principalmente na hora da faxina. Aí todo o mundo
corre com medo. Ficamos só eu e os dois rapazes mesmo. Mas isso acontece só
de vez em quando, porque a gente mantém tudo bem limpinho e arrumado.
Eu lembro das vezes que o almoxarifado mudou de lugar. Primeiro, ele foi aqui, na
sala de reunião. Depois foi para onde hoje é o setor pessoal e por último foi para
onde está hoje. Na época das mudanças, só era eu trabalhando no almoxarifado.
Então eu desmanchava tudo, colocava as peças no chão e ia levando devagar
para as novas prateleiras. Demorava mais de uma semana para conseguir mudar
tudo. E eu ficava brabo com tanto serviço, porque enquanto estava mudando,
chegavam os mecânicos pedindo peças. Eu tinha que atender, saber onde estava
a peça no meio da mudança!
O almoxarifado cresceu muito desde quando eu comecei a trabalhar até hoje. Isso
porque no início eram só 20 carros, todos da mesma marca. Então, era só um tipo
de peça. Hoje, já tem ônibus da Mercedes, da Ford, da Volvo e cada um deles
com peças diferentes. Eu preciso organizar cada tipo de peça direitinho, para não
misturar... Já pensou se alguém aparecer pedindo uma peça do Mercedes e eu
entregar uma do Volvo? Não vai dar certo. Tudo tem que estar nos lugares certos
para não confundir o trabalho.
Mas, com tantos anos de prática, eu já sei onde está cada peça, sem precisar
colocar nenhuma plaquinha nas prateleiras. Sei decorado! Nunca sumiu nadinha
do almoxarifado, graças a Deus. E o rapaz que agora está comigo também já
começou a aprender. Quando aparece uma peça nova, a gente já arruma outro
lugar e assim vai o serviço.
Eu acho que as peças dos ônibus melhoraram muito de qualidade também.
Tinham que melhorar, não é? Tem muito material descartável, que a gente só usa
uma vez. “- Quebrou? Joga fora”. È comprar outra e repôr no carro. Ficou
diferente. Antes, quando uma peça estragava, a gente mandava para a oficina
para recuperar. Hoje não se faz mais isso.
Eu fico na empresa das oito da manhã às cinco da tarde. De noite, se alguém
precisar de peça do almoxarifado, o Carlos, que toma conta da garagem de noite
entra e pega. Os mecânicos sempre já sabem o que querem. Então, o Carlos
troca a peça velha pela nova e anota quem pegou e o nome do carro para que eu
confira de manhã. Nunca deu problema. O almoxarifado não pode parar. Por isso,
eu trabalho nos sábados e domingos também. Numa semana venho no sábado e
na outra venho no domingo. Revezo os fins de semana com o rapaz que trabalha
comigo.
Porque o almoxarifado é muito importante. Se não tivesse almoxarifado na
empresa, não teria controle nenhum. Seria como uma igreja sem padre: não ia ter
missa nunca! Os homens do almoxarifado tem uma grande responsabilidade,
porque tudo tem que funcionar direito. Agora colocaram o controle do estoque no
computador. Antes era no cartão. Um cartão grande que a gente pegava e enchia
de itens. Aí fazia assim: Peça tal, por exemplo, um rolamento. Marcava no
cabeçalho do cartão: “hoje eu pedi duas ou dez peças dessas” e colocava na
estante. Então o mecânico chega: “- Eu quero o rolamento”. Eu ia à estante,
pegava o rolamento e o cartão e dava a peça para ele. Então marcava a data, o
nome dele, o carro. E pronto: “saiu um rolamento no dia tal”. Deixava o cartão na
estante. E assim controlava o estoque. Hoje, a gente faz na mão, mas depois eles
passam para o computador. O computador faz uns relatórios de quantos
parafusos tem, quantos o pessoal vai pegar... Qualquer coisa que quiser, é só ver
no computador, porque tem todos os relatórios.
Tudo o que eu tenho na vida, consegui com salário aqui da empresa. Fui fazendo
um pé de meia, bem devagarzinho. Conheci a minha esposa no colégio, na época
em que eu trabalhava de dia e estudava de noite. Começamos a namorar e nos
casamos. Então eu precisava de uma casa, não é? E eu fui pagando o terreno e
construindo devagarzinho... até hoje continuo construindo minha casa. Acho que
só vou terminar quando eu tiver sessenta anos! Eu sei que se eu tivesse pedido
uma ajuda para o pessoal empresa, eles ma dariam... Mas eu não quis. Queria
fazer tudo sozinho! È uma questão de gosto. É assim que eu sou. Minha esposa
entende e gosta do meu trabalho. Afinal, eu já estava aqui quando nos casamos...
O salário é bom. Deu para criar bem os meus filhos e manter a casa. Tenho dois
filhos. A moça já se casou e parou de estudar quando terminou o segundo grau. O
rapaz está terminando agora. Eu até gostaria que ele seguisse minha carreira,
mas isso é com ele. Às vezes, ele vem à empresa... Só ele, porque a menina
quase não sai de casa. Ele já veio trabalhar aqui comigo. Entrou no almoxarifado e
depois foi para o abastecimento. Mas pediu para sair e saiu. Daqui a um tempo,
vou pedir para trazê-lo de volta. Vamos ver no que dá...
Tenho certeza o Seu Raimundinho vai dar um trabalho para o meu menino se eu
pedir... Por causa do respeito que ele tem por mim e eu por ele. È muito tempo de
empresa, muito tempo trabalhando juntos. Estou até na fotografia da inauguração
dessa garagem. Eu lembro muito bem de quando mudamos para cá... Era uma
bagunça! As coisas vinham de caminhão de pouco em pouco, mas o serviço dos
ônibus continuava. No almoxarifado, eu ia aprontado tudo e controlando. O
caminhão saía de lá carregado, descarregava aqui e depois voltava para pegar
mais coisas. Era um sufoco!
Mas quando terminou a mudança, foi uma festa linda! Tinha comida,
bebida...refrigerante, porque bebida alcoólica só mesmo para o pessoal de lá. Eu
trouxe minha família inteira. E depois a gente vinha nas festas de Natal, que
também são muito bonitas.
Nesse tempo todo, nunca deixei de trabalhar nenhum dia. Nem no tempo de
greve, porque quem faz mais greve é motorista e o pessoal interno não entra. Aí
fica aquele negócio: os carros ficam todos estacionados aqui. Quando algum deles
sai, o pessoal quebra os pára-brisas e eles voltam para a garagem. Fica isso de
vai e volta todo o dia. Só sai carro quando acaba a greve.
A turma interna bate o ponto. Geralmente, a gente não tem nada a ver com a
greve. Nós, da garagem, aproveitamos mesmo é para trabalhar. Pegamos os
carros que estão parados e vamos consertar. Eu lembro que teve uma greve –
acho que em 1982 – que durou uns quinze dias! Ficava um ou dois carros rodando
até o meio dia e depois parava de vez. Mas a turma vinha para a empresa, batia o
ponto e ficava esperando...
Hoje, o aumento de salário já vem na data-base e é igual para todos. Antigamente,
para conseguir aumento era só falar com o Seu Raimundo e ele dava um
tantinho... Todo o mundo conhecia o Seu Raimundo e podia falar diretamente com
ele... Não precisava de greve. Até hoje é mais ou menos assim, porque aqui só
tem empregado antigo... Os mais novos já têm dez anos de empresa.
E a empresa dá benefício para nós. Tem a refeição, a cesta básica e o crachá,
para que a gente não pague o ônibus nem nessa empresa nem das outras daqui.
Só serve para o trabalhador. Se a família quiser andar de ônibus, tem que pagar.
Se eu for para Quixadá, tem uma quilometragem que o crachá dá direito, mas,
passando dali, tem que pagar. A cesta básica vai para todo o mundo, desde o
mais humilde até o mais alto funcionário. È uma cesta boa. E a refeição também é
boa. Todo dia tem uma coisa diferente: carne, arroz, feijão, macarrão, verdura,
suco...
Tem também um médico que vem para a empresa uma ou duas vezes por
semana. Se você quiser tirar a pressão, se tiver com dor de cabeça, é só ir lá. Ele
acompanha todo o mundo da empresa. Se alguém tem diabetes, por exemplo, ele
acompanha. Faz um relatório. Se precisar de um exame mais sério, ele
encaminha. Aí, se a pessoa tiver plano de saúde, vai fazer. Se não, vai para o
INSS mesmo. Só vale para o funcionário. A família pode usar o médico do
sindicato. Não precisa nem pagar, porque, sendo da empresa, eles atendem. Eu,
graças a Deus, tive sorte e nunca precisei. Antes, eu ia ao médico da empresa
para tirar pressão de vez em quando. Hoje, estou correndo de médico. Ele chega
por um canto e eu saio por outro...
O sindicato é bom. Eu nunca paguei, muito menos vou pagar agora, depois de
tanto tempo... Os motoristas e cobradores usam muito o médico do sindicato. Por
qualquer coisa, já estão lá. Já os mecânicos usam menos. Mas todos podem usar.
Eles dão cursos também. Eu já fiz um bocado! Uns doze ou mais. Sobre óleo
diesel, rolamento. Fiz de “arreia”, que é uma parte que fica no rolamento, que
suporta o sistema de transmissão. Os cursos são para a gente aprender a mexer
nas peças, usar nos carros e não botar peças erradas.
Às vezes, é a empresa que manda fazer os cursos. Mas qualquer pessoa pode
fazer. Os meninos que trabalham comigo fazem. É importante se aperfeiçoar.
Quando vem um curso, eles apresentam para todo o mundo. Vão mostrando como
é que é, quem fabricou e quem sabe como é.
Sabe? Eu acho que tudo no meu trabalho está perfeito. Não tem nada para mudar.
Eu me sinto feliz. Quando eu estou de folga, você acredita que eu passo mais mal
do que se estivesse aqui? Fico pensando que em casa não estou fazendo nada e
que se estivesse aqui, estaria fazendo isso ou aquilo. É bom: quando a gente faz o
que gosta, faz bem feito. Não tem jeito de eu não gostar daqui. São trinta e sete
anos! É uma vida! Tenho 56 anos e passei mais tempo aqui do que em casa.
Tenho amigos, tem as brincadeiras... Estou me aposentando agora, mas vou
continuar por aqui até quando Deus quiser!
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