Pesquisa 5 texto completo
Página 1 de 2
Pesquisa
HIPERTENSÃO
Rocha e Silva e os 50 anos da descoberta da bradicinina
Antonio Carlos M. de Camargo
Já nos acostumamos a atribuir à ciência do Primeiro Mundo a responsabilidade por todos os
avanços científicos e tecnológicos que usufruímos. Para muitos, a pesquisa científica no Brasil é um
luxo que apenas mantém o glamour que essa atividade intelectual confere aos cientistas e instituições
que os abrigam. Por esse motivo, muitos de nós que dedicam suas vidas ao desenvolvimento
científico e tecnológico do País ficaram agradavelmente supresos com as repercussões positivas de
vários segmentos da sociedade diante da notícia de que um cientista brasileiro e seus colaboradores
lançaram os fundamentos de uma vacina de DNA que poderá resolver o problema da tuberculose.
Essa doença milenar que mata milhões de pessoas nos países pobres e ricos pode ter seus dias
contados a partir da linha de pesquisa desenvolvida por Célio L. Silva, pequisador da FMRP, USP.
Entretanto, a história das ciências biomédicas no Brasil tem muitos outros capítulos de
importantes conquistas que infelizmente poucos conhecem. Todos sabem, por exemplo, que a
hipertensão arterial é um mal que acomete grande parte da população, sobretudo os mais velhos, mas
poucos sabem que o medicamento anti-hipertensivo mais utilizado no mundo todo partiu de
pesquisas iniciadas no Brasil 50 anos atrás. Alguns cientistas brasileiros deram passos decisivos na
descoberta de um dos atores moleculares que afetam a pressão arterial, os processos inflamatórios, os
mecanismos da dor, os processos alérgicos, a asma brônquica, etc. Trata-se da descoberta da
bradicinina, cujo trabalho foi publicado em 1949 no American Journal of Physiology. Por trás dessa
descoberta estava a determinação de um grande cientista, Maurício da Rocha e Silva (1910-1983),
que criou uma escola de pesquisadores, influenciou gerações de cientistas e foi um dos principais
responsáveis pela criação da SBPC.
Formado em medicina em 1933 no Rio de Janeiro, mudou-se para São Paulo em seguida para
trabalhar com Oto Bier e Henrique da Rocha Lima, eminentes pesquisadores com rigorosa formação
científica. Assim que foi criada, em 1934, a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da
Universidade de São Paulo, ingressou como biologista em tempo integral, tendo se transferido para o
Instituto Biológico de São Paulo, onde permaneceu até meados dos anos 50. Viajou muito ao
exterior nas décadas de 40 e 50, tendo a oportunidade de conviver e trabalhar com inúmeros
pesquisadores da mais alta reputação na área biomédica como Bergman, Feldberg, Shild, Northop,
Dragsted e estagiar nas mais importantes instituições de pesquisa como a Mayo Foundation
(Rochester, EUA), Rockfeller Institute (Nova York, EUA), University College of London
(Inglaterra) e tantas outras. Sempre manteve intensa correspondência com pesquisadores renomados
de todo o mundo, acompanhando e usufruindo das principais descobertas e inovações.
Toda essa atividade, entretanto, tinha uma motivação científica fundamental que o perseguiu
durante toda sua vida, isto é, buscava entender os princípios da autofarmacologia. Esse aspecto da
ciência biomédica, cunhada de autofarmacologia por Henry Dale em 1933, tinha como objetivo
buscar as substâncias endógenas que participam das reações de agressão e defesa. Uma dessas
substâncias é a histamina, causadora de hipotensão, dor, edema, inflamação, alergias e outras
alterações patológicas que foram intensamente estudadas por Rocha e Silva. Seu interesse por
toxinas de serpentes foi decorrente do fato de que essas moléculas reproduziam muitos dos efeitos
causados pela histamina. Durante muitos anos Rocha e Silva acreditou que o veneno de serpentes
provocava a liberação de histamina no sangue dos animais picados, mas sabia que esse não seria o
único fator que provocava todos os efeitos do envenenamento.
Em 1948 Gastão Rosenfeld, um pesquisador do Instituto Butantan, levou para o laboratório de
http://www.usp.br/jorusp/arquivo/1999/jusp486/manchet/rep_res/rep_int/pesqui5.html
7/8/2006
Pesquisa 5 texto completo
Página 2 de 2
Rocha e Silva uma amostra do veneno da Bothrops jararaca com a finalidade de estudar os efeitos de
suas toxinas em cães. Rocha e Silva e seu colaborador Wilson Beraldo incubaram o plasma de cão
com o veneno da jararaca e dessa reação formou-se uma substância que contraía fortemente o
intestino isolado da cobaia e possuía intensa ação hipotensora. Essa substância não era a histamina e
sim um polipeptídeo que foi denominado bradicinina.
Essa descoberta foi o marco inicial de uma linha de pesquisa que gerou dezenas de milhares de
publicações científicas até hoje com enorme repercussão na área biomédica de todo o mundo.
Atualmente um simpósio internacional realizado a cada dois anos é inteiramente dedicado ao estudo
da bradicinina. Descobriu-se, assim, um dos mais importantes atores envolvidos na regulação da
pressão arterial, nos processos inflamatórios e alérgicos, na produção da dor e em um número
crescente de ações fisiopatológicas.
Em meados da década de 50, Rocha e Silva foi convidado a dirigir o Departamento de
Farmacologia da recém-criada Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, USP. Ali continuou seu
trabalho de formação de novos pesquisadores recrutados, principalmente entre os estudantes de
medicina da Universidade de São Paulo.
O veneno da jararaca nos conduziu, portanto, à descoberta de uma das substâncias endógenas
envolvida nos processos de agressão e defesa. A serpente, ao inoculá-lo em suas presas para
alimentar-se ou defender-se, injeta toxinas que acarretam a desorganização do sistema de
coagulação, liberam bradicinina levando à hipotensão, desequilibram os vários sistemas de células e
líquidos do sangue, paralisando ou comprometendo a vida do animal picado pela serpente. Essas
reações que, em um grau muito menos acentuado, nos ajudam a superar as pequenas agressões
diárias, são enormemente exacerbadas pela inoculação do veneno. As toxinas das serpentes,
moléculas selecionadas pelo processo evolutivo para a sobrevivência dessa espécie de animais, são
portanto instrumentos valiosos que colocam em evidência os mecanismos celulares e moleculares
manifestados nas reações anafiláticas, nos processos alérgicos, na geração da dor, na hipotensão, nos
processos inflamatórios e muitos outros efeitos reativos do organismo.
O veneno da jararaca, entretanto, escondia outra preciosidade ligada à bradicinina e que foi
explorada por Sergio H. Ferreira, ex-aluno e mais tarde colaborador de Rocha e Silva. Isso porque as
toxinas da jararaca não apenas provocam a liberação de bradicinina no sangue da vítima, causandolhe forte hipotensão arterial, mas tornam essa hipotensão ainda mais grave por ação de pequenas
toxinas contidas em grande quantidade em venenos de serpentes. Essas pequenas toxinas foram
isoladas e caracterizadas no final da década de 60 por Ferreira e colaboradores. Seus resultados,
levados por ele para o Imperial College de Londres, permitiram que um grupo de pesquisadores
liderados por John Vane, eminente cientista, mais tarde agraciado com o Prêmio Nobel, investigasse
se tais toxinas poderiam ser utilizadas para tratar a hipertensão arterial. Os resultados foram positivos
e imediatamente serviram de protótipos para uma indústria farmacêutica (Squibb Laboratories, EUA)
sintetizar o captopril, o primeiro de uma série de anti-hipertensivos utilizados hoje por milhões de
hipertensos em todo o mundo.
Seria um erro acreditarmos que a importância de Rocha e Silva esteja circunscrita à descoberta
da bradicinina. Sua maior contribuição científica foi a de ter colocado corretamente suas descobertas
dentro da complexidade dos fenômenos fisiopatológicos envolvidos nos mecanismos de agressão e
defesa do organismo. Do ponto de vista humano, devemos lembrar que as conquistas desse grande
cientista brasileiro foram feitas numa época em que a Fapesp praticamente não existia. Numa época
em que os recursos materiais eram quase todos improvisados e o impacto da descrição dos
fenômenos estudados resultava essencialmente da genialidade de quem os observava. O sucesso
dependia muito mais da pontaria do caçador que dispunha de um único projétil e não do disparo cego
de centenas de projéteis, como se a ciência pudesse dispensar o córtex frontal e utilizar apenas os
"microchips" e o cerebelo.
Antonio Carlos M. de Camargo é médico, professor titular aposentado da USP e
pesquisador do Instituto Butantan.
E-mail: [email protected]
http://www.usp.br/jorusp/arquivo/1999/jusp486/manchet/rep_res/rep_int/pesqui5.html
7/8/2006
Download

Pesquisa Rocha e Silva e os 50 anos da descoberta da bradicinina