AS RELAÇÕES ENTRE A ETNOLOGIA E A GEOGRAFIA HUMANA EM RAIMUNDO LOPES Alexandre Femandes Corrêa' RFSUMO Um breve ensaio sobre a obra geo-etnológica de Raimundo Lopes. Memória da Etnologia no Maranhão e no Brasil. Intelectual . maranhense da primeira metade do século XX, herdeiro da tradição antropogeográfica de Friedrich Ratzel, Emmanuel Martone, assim como dos grandes autores brasileiros Gonçalves Dias e Euclides da Cunha. Palavras-chave: Antropogeografia Etnologia Brasileira; maranhense. Memória etnológica; ABSTRACT A brief essay about the geo-ethnology work of the Raimundo Lopes. The memory ofthe ethnology in Maranhão and Brazil. The local intellectual of the beginning century xx. Legatee of the tradition anthropogeographic ofthe Friedrich Ratzel, Emmanuel Martone, as well as those Brazilians greatauthors Gonçalves Dias and Euclides da Cunha. Keywords: Brazilian ethnology; Ethnologic memory; regional anthropogeography. 'Professor Doutor Adjunto em Antropologia do Departamento de Antropologia e Sociologia. Doutor em Ciências Sociais PUC/SP. Coordenador do Grupo Transdisciplinar de Estudos do Patrimônio (GTEP) e Coordenador do Laboratório de Ensino em Ciências Sociais da UFMA 1 INTRODUÇÃO A redescoberta de- livro Uma Região Tropical, escrito em 1916 pelo pesquisador maranhense Rairnundo Lopes, foi um acontecimento importante para a pesquisa que realizamos sobre o perfil ideológico das concepções de identidade regional. Os capítulos desta obra enfocam a realidade geográfica e humana do estado do Maranhão no início do século XX. São documentos que colocam em foco pontos importantes da história da etnologia e da geografia humana no Brasil. Raimundo Lopes começou a escrever este livro aos 17 anos de idade, antes de embarcar para o Rio de Janeiro, onde passou a trabalhar e a estudar. Podemos resumir o projeto do livro nas palavras de Domingos Vieira Filho, quando nos diz que Raimundo . Lopes, ao escrever estes textos, procurava revelar "as possibilidades econômicas e humanas da terramaranhense" (LOPES, 1970). O que impressiona de imediato é a juventude do autor, que cedo segue a tradição intelectual da elite do Maranhão. Raimundo Lopes da Cunha merecia j á um estudo dedicado aos seus traba- lhos acadêmicos e literários. A verdade é que em nossas Universidades estamos tão preocupados com os últimos livros que são publicados na Europa e EUA, que deixamos no ostracismo escritores e pensadores brasileiros. O caso de Rairnundo Lopes é exemplar, um pesquisador do Museu Nacional, hoje praticamente esquecido, mesmo entre os conterrâneos! Os interesses científicos deste autor pioneiro passavam pela arqueologia, geografia humana e etnologia, empreendendo importantes investigações etnográficas na região norte do país. Parece que a influência de Roquete- Pinto foi marcante em sua carreira, especialmente nos trabalhos da Rádio do Ministério da Educação, quando desenvolveu diversos estudos, projetos, idéias e anotações, que foram organizados pelo irmão Antônio Lopes e dão origem ao livro Antropogeograjia, publicado postumamente em 1956 - anos depois do falecimento do autor em 1941. No Rio de Janeiro, pesquisando no Museu Nacional, Raimundo Lopes tenta constituir "uma síntese do Brasil tropical" e a antropologia toma-se a partir daí Cad. Pesq .. São Luís. v. 14. n. 1. p.88-1 03. jan.!jun. 2003 89 ciência central nos seus estudos. Esta obra, que no momento enfocamos, possui uma particularidade interessante; os textos que .compõem Uma Região Tropical e O Torrão Maranhense foram revisados até o fim da vida do autor, portanto; não podemos considerá-los textos de adolescente imberbe, mas de um homem já maduro, revendo sempre seus primeiros textos. Estes trabalhos possuem inequivocamente uma unidade temática e de abordagem que foi admirada por diversos autores. Após ter estudado na Escola Politécnica do Rio de Janeiro e cursado até o quarto ano de ba. charelado em Direito, Rairnundo Lopes decidiu dedicar-se exclusivamente à pesquisa. De um modo geral seus temas favoritos tratavam de Etnografia, Etnologia, Arqueologia, História e Sociologia. Nestes estudos o autor é fortemente influenciado, e "fascinado", pela idéia de promover e desenvolver a Geografia, especialmente a do Maranhão - Estado da Federação, até então, praticamente desconhecido nos meios científicos. Quando ainda estudava em São Luís, sofreu a influência de Justo JansenFerreira-pioneiro da geografia maranhense - o au90 tor, ainda bem novo, publica, aos 22 anos, um estudo da geografia . do Maranhão ao nível dos maiores especialistas da época. A partir de estudos de campo, de fortes traços naturalistas, o autor descreve a vegetação, a fauna, a flora, o litoral, o relevo, o clima, assim como os costumes, as tradições culturais e étnicas, e tudo mais que retrata a paisagem humana e natural do seu estado natal e do norte do Brasil. Seu projeto é definir os quadros fisicos em que se desenvolveria historicamente a região, pois o autor considerava que as determinações dos fatores ecológicos sobre a cultura do homem eram primordiais. Podemos considerá10, neste aspecto, um dos precursores da ecologia cultural no País. Observamos nestes trabalhos uma tentativa clara de decifrar uma configuração geográfica e humana típica. Isto implicava para ele no estudo dos processos específicos de adaptação humana à região tropical. De concreto logo percebemos a importância desta postura em relação ao problema da adaptação ao clima, quando não vacilá em afirmar que: "o clima maranhense é essencialmente a transição entre a condição ama- Ca{L Pesq .. São Luís. v. 14. n. 1. p.88-103.jan./jun. 2003 zônica e a condição tropical" (LOPES, 1970, p.44). Seguindo esta definição preliminar, lança as suas primeiras criticas ao que chamou de o "preconceito dos climas tropicais" - reflexo de um modo de pensar aindamuito difundido até hoje em dia, em que se acredita que a Amazônia e outras terras tropicais brasileiras são focos terríveis das chamadas "moléstias tropicais", acreditando-se que a adaptação à região sejaum grave problema Ele combate este preconceito seguindo autores corno Afrânio Peixoto e Euclides da Cunha Em suas próprias palavras ternos: Realmente o clima quente e úmido provoca perdas e predisposições mórbidas, mas o saneamento vence facilmente estes defeitos, propriamente oriundos do regime hidrográfico e biológico (LOPES, 1970, p.59) As determinações geográficas são implacáveis, contudo os homens podem agir e transformar estas determinações pelo "progresso". Esta forma de pensar sintetiza bem o evolucionismo científico do começo do século XX, ao qual o autor estava vinculado. N a nossa pesquisa sobre as concepções oficiais de Patrimônio Cultural, utilizamos o conceito de patrimônio na acepção abrangente de sua significação, incluindo a paisagem, os aspectos naturais, históricos, artísticos e genéticos das sociedades. Por isso, ao nos defrontarmos com um texto com tal riqueza de dados, retomamos os termos e noções que eram mais utilizados pelo autor na caracterização de um perfil geográfico e lústórico para a região. Neste ponto encontramos toda uma reflexão étnica, racial e social sobre o homem maranhense. O autor não se restringe a uma leitura geográfica e fisica do ambiente regional. Com . uma boa leitura dos pensadores sociais da época, Raimundo Lopes faz verdadeiras incursões na etnologia regional nortista. No capítulo chamado Ofator racial, fica evidente esta influência, em especial de Roquete-Pinto. Neste texto, Raimundo Lopes enquadra o Maranhão na visão teórica proposta.pelo antropólogo carioca, que dividia o Estado em duas regiões: a) "Zona do Caboclo", principalmente no interior do estado; b) ~itoral, pertencente à "zona de influência preponderante do branco". Raimundo que o Maranhão Cad. Pesq., São Luís, v. 14, n. 1, p.88-1 03,jan./jun. 2003 Lopes constata 91 é um dos estados em que a mescla racial é mais intensa, e, por assim dizer, há na maior parte da região mistura quase por igual das três raças (LOPES, 1970,p.62). Apesar de constatar o grande fenômeno da miscigenação no Brasil e particularmente no Maranhão, nosso autor não identifica o processo do sincretismo cultural. A sua visão está completamente comprometida com o evolucionismo científico do começo do século. Ao observar o mundo das religiões afro-brasileiras, Raimundo Lopes as considera apenas corno "sobrevivências" do tempo das "crendices" e "superstições" da África Negra. Assim ternos: No Maranhão, como noutras terras onde o contingente negro foi numeroso, apareceram as confrarias fetichistas das "Pretas Minas", que se explicam pela conservação dos costumes e superstições africanas, por um certo número de negros vindos em liberdade, da costa da "Mina" (Costa do Ouro e Daomé) (LOPES, 1970, p.68). Num comentário interessante, Raimundo Lopes coloca algumas palavras sobre o que chamou de "curiosa associação": 92 Ainda hoje existe, em São Luis, essa curiosa associação, com as suas estranhas práticas, em que o catolicismo romano se mistura à usanças e crendices do Continente Negro (LOPES, 1970, p.69). Nesse sentido, para o autor maranhense não existe um "sincretismo religioso", apenas "mistura". Corno um positivistao autor não considera a existência de uma "religião" africana ou negra. Para ele estas manifestacões . ' não passam de "crendices" e "usanças". Contudo, nunca deixou de considerar que a raça negra, introduzida na antiga capitania desde meados do século XVII, desenvolveu-se bastante no Maranhão, "onde a sua quantidade só é proporcionalmente inferior à que se nota na Bahia e no Rio de Janeiro" (LOPES, 1970, p.69). 20TORRÃO MARANHENSE N o texto O Torrão Maranhense, há uma análise das origens dos grupos indígenas, dos negros e dos brancos que povoaram o Maranhão. Urna interessante viagem histórica sobre a forma- Cad. Pesq., São Luís, v. 14, n. 1, p.88-103,jan./jun. 2003 ção humana e social do Norte do Brasil. Raimundo Lopes dedicou uma boa parte de seus estudos etnológicos ao enfoque dos povos chamados de Tapuias ou "Jês". Como nos diz o autor Tapuios significa, na linguagem do etnocentrismo universal: "bárba- ros". A palavra tapuio em Tupi era como um tipo de xingamento ou depreciação, porém com o tempo acabou tornando-se o nome com o qual ficaram reconhecidos os povos de tradição do tronco lingüístico Jê. Nessa linha, com grande precisão e boa informação, Lopes interessa-se sempre mais pela etnologia indígena nortista, constatando uma importante migração pós-cabralina dos Tupis para a costa maranhense: os Tupinambás da costa baiana que emigram em boa parte para o norte, até o Maranhão, através do São Francisco, fugindo à destruição com que os ameaçavam os portugueses na Bahia de Todos os Santos e outras capitanias orientais. São estes indígenas que os franceses e portugueses encontraram quando chegaram em São Luís e são estes Tupis que vão ser "dominados étnica e socialmente" pela civilização européia. o que sobressai nestes estudos é que Raimundo Lopes aceita com bastante naturalidade o que chama de a "dominação da raça branca" sobre as outras "etnias". Neste ponto aparece um problema conceitual que a pesquisa crítica deve investigar. Não sabemos com clareza, até o momento, como o autor separa e especifica os significados dos termos "raça" e "etnia". O uso que faz deles nos seus textos é ambíguo e sujeito a variações semânticas que nos impedem de determinar um sentido preciso. Curiosamente o que parece se destacar daí é que o nosso geo-etnologistaem questão não usa os termos com rigor científico, na verdade opera com eles no plano da ideologia colonial evolucionista Desta forma o autor tenta explicar que o "predomínio" dos "brancos" sobre as outras "raças" e "etnias" explica-se pela incontestável "superioridade racial e étnica" destes grupos. Assim,RaimundoLopesnão consegue, de modo razoável e convincente, determinar como que poucos indivíduos "brancos" poderiam "predominar" sobre um grande contingente de "negros" e "mulatos", que somavam na épo- Cad. Pesq., São Luís, v. 14, n. I, p.88-1 03,jan./jun. 2003 93 ca mais de 70% da população (como está mais adiante no texto). Num momento ele afirma que isso se deu por razões biológicas e raciais, num outro momento ele atribui este "predomínio" à grande migração "branca" para o litoral, determinando aí sua dominação. O fato é que nas duas hipóteses o autor se compromete com a visão colonialista e não percebe que este "predomínio" só poderia se dar num sistema escravocrata submetido a uma ampla rede de relações internacionais. A sociedade brasileira é fruto da dominação colonial escravocrata imposta pelas metrópoles européias e não podemos entender o complexo das relações étnicas e raciais fora deste contexto mundial. Raimundo Lopes não questiona os fundamentos da antropologia racial da época e tão pouco pensa criticamente o fenômeno do colonialismo e a situação colonial; para ele isto é uma contingência histórica, que deve ser encarada de maneira "científica". Afinal é evidente, para o autor, que o desenvolvimento tecnológico da civilização européia era mil vezes superior que o das outras "raças" e "etnias", isto por si só justifica94 va um empreendimento colonial e civilizacional para a educação dos grupos incultos e atrasados. É nestes termos que nos diz: Desde os tempos coloniais cada vez mais se afirma o predomínio, social e étnico, da raça branca. E esse poder de absorção não é somente devido à superioridade mental, moral, econômica, etc., mas ainda aos incessantes afluxos do elemento europeu. [...] A maior razão do predomínio da raça branca é o afluxo imigratório (LOPES, 1970, p.70, grifo meu). Raimundo Lopes está aqui de acordo com a visão dominante naquele início de século XX e reflete o triunfo do industrialismo do mundo moderno. Todavia uma questão aparece; sabemos que o autor viveu até 1941, como se explica o seu "pré-gilbertianismo" nestes pontos? Cabe uma investigação para se saber se ele entrou em contato ou não com o livro Casa Grande & Senzala publicado em 1933. E como foi seu diálogo (se é que houve) com estes grupos mais "modernistas" das ciências sociais incipientes. Como se sabe, neste período Gilberto Freyre produz sua obra sob algumaambivalente influência de Franz Boas - antro- Cad. Pesq., São Luís, v. 14, n.1,p.88-103,jan./jun. 2003 pó logo alemão naturalizado norte-americano (e, diga-se de pas2 sagem, também geógrafo) . Como é sabido, Boas revoluciona aquele velho esquema racial do século XIX, que privilegia o biológico e o racial em detrimento da análise social e etnológica. Em suma, parece-nos que Raimundo Lopes aceita sem restrições críticas os preceitos das teorias racistas de . 3 Conde Gobineau e Lombroso . Entretanto, em muitos aspectos este autor maranhense pode ser considerado o verdadeiro Euclides da Cunha do Maranhão, porém sem "o estilo excepcional do artista", como ele mesmo disse em relação ao mestre. Podemos imaginar o enorme impacto que causou em seu espírito a obra Os Sertões. Na esteira das influências, ainda encontramos Gonçalves Dias. Este autor, conhecido comumente como poeta, no fundo gostaria de ser lembrado mais como um cientista. Ele escreveu muitos trabalhos em etnologia, que .{ estudou em Coimbra Mas foi sua poesia que o imortalizou. Neste caso parece que Raimundo Lopes tentou realizar, em parte, o sonho de Gonçalves Dias, que era o de ser reconhecido como um pesquisador com importantes obras de 5 Ciências-Sociais no Brasil . Raimundo Lopes deixou vários textos. São títulos diversos que mostram o leque das preocupações do etnólogo e geógrafo maranhense. Quando de volta ao seu Estado natal, escreveu os textos Os Fortes Coloniais de São Luis, O Ciclo de Independência, A Origem da Cidade Antiga e As Regiões Brasileiras. Novamente no Rio de Janeiro, em 1931, escreveu sucessivamente numerosos ensaios, que foram organizados de 1941 a 1956, pelo seu irmão Antônio Lopes. Entre muitos textos temos estes títulos que são os mais significatiaqui: Ensaio Etnológico sobre o Povo Brasileiro, Os Tupis do Gurupi, Os Índios e a Paz do Chaco, Goncalves Dias e a Raça Amevos para nós ricana, A Natureza e os Monumentos Culturais, Pesquisa Etnográjica sobre a Pesca Brasileira no Maranhão, Brasilidade e Primitividade, Faixas' Culturais dos Andes e finalmente seu último livro Antropogeograjia. Cad. Pesq., São Luís, v. 14, n. 1. p.88-I03,jan./jun. 2003 95 3 A COMPOSIÇÃO ÉTNICA DO POVO MARANHENSE No que mais nos interessa, no âmbito das preocupações aqui suscitadas, cabe uma pequena análise da proposta, feita por Raimundo Lopes, de uma tipologia dos grupos humanos que compõem a sociedade maranhense. Para uma visão deste quadro citamos alguns dados interessantes do que o autor chamou de "composição étnica do povo maranhense", que seria uma amostra em escala dos "sedimentos étnicos" do Brasil: a) portugueses - Quase que exclusivamente comerciantes, não agricultores. A colonização lusíada foi feita, sobretudo, com ilhéus açorianos. b) franceses - Fundadores da primeira vila em 1612, logo são expulsos. Têm vindo isoladamente, assim como os italianos; a sua facilidade de adaptação é visível. c) ingleses - Numericamente insignificantes, mas aparecem na econo6 mia comerciallocal • d) sírios - também chamados de "carcamanos", a 96 princípio mercador ambulante, estabiliza-se e começa a elevar-se na esfera comercial. Grande é a diferença de costumes, idéias, línguas, etc., que os separam de nós. O único defeito, porém, dessa imigração, é, como na portuguesa, o exclusivismo comercial, "e não o atraso do sírio, que não é um bárbaro e que, premido pelo domínio turco, precisa do meio americano para se desenvolver". Os Sírios do Maranhão são na maioria "libaneses católicos" da região de Zahle. Como é sabido, o nome "carcamano", em várias regiões do país, ora é aplicado a "italianos" ora às populações do Mediterrâneo e do Oriente em geral. e) negros-Escravidãonointerior e na Capital, principalmentenaculturadacana de açúcar. Muitos quilombos, e revoltas com muitos negros livres,que conseguiam se proteger nas densas matas do interior. Cad. Pesq., São Luís, v. 14, n. I, p.88-1 03, jan./jun. 2003 f) índios - Distingue a população aborígene em quatro diferentes nações na América do Sul: TupiGuaranis, os Tapuias, os Nu-aruaques, os Caribas. No Maranhão destaque para os grupos Jês Tapuias: "os mais atrasados e provavelmente os verdadeiros autóctones doplanaltobrasilico".Entre eles se destacam os Tembése os Timbiras.Há ainda a migração dos TupinambásdaBahia,que fugindo dos portugueses alcançaram o litoral do Norte do país. São estes indígenasqueefetivamente, os franceses e portugueses encontraram na ilha de São Luis,no inicio da construção e da fundação da cidade (LOPES, 1970, p.69-70). 4 O CARÁTER PSICOÉTNICO MARANHENSE No seu livro Uma Região Tropical,Raimundo Lopes, numa perspectiva de estudos de geo- grafia regional, descreve com grande sensibilidade as características naturais e históricas do Estado do Maranhão. Influenciado principalmente pelo trabalho realizado por Euclides da Cunha, o autor, nestes pequenos textos, revela uma sociedade complexa e múltipla. Através de uma antropogeografia, ou mesmo uma etno-geografia, este estudioso começa basicamente a descrever as características climáticas, paisagísticas, relevo, fauna, flora, tipicamente como age um geógrafo naturalista. Porém, no decorrer dos capítulos, principalmente no texto O Torrão Maranhense, vemos manifestarse um pesquisador de aguçada percepção histórica, etnológica e sociológica da realidade brasileira. Isto reflete o fato de ser verdadeiramente um representante da tradição dos estudos em geografia humana e econômica no Brasil, e não se reduz a um típico naturalista do século XIX. Neste ponto, cabe ressaltar que não se deve condenar ideologicamente Raimundo Lopes ao ostracismo pelo fato de ele ser evolucionista. O preconceito da crítica acaba por privar-nos de analisar as vicissitudes regionais do processo de Cad. Pesq., São Luís, v. 14, n. 1, p. 88-1 03,jan./jun. 2003 97 constituição de um novo paradigma nas ciências sociais, especialmente no que se refere às noções de raça e etnia no País nas décadas de vinte e trinta. O trabalho de Raimundo Lopes tem um valor histórico importante, pois nos deixa ver as variações e nuances regionais que a resistência ao novo paradigma introduzido por Franz Boas, por via da obra de Gilberto Freyre, suscitou em cada lado. O que não podemos precisar no momento é até onde vai esta resistência, se é que o seja como tal. Só uma análise nos arquivos da família e do Museu Nacional é que poderá responder. O livro Uma Região Tropical se divide em duas partes, a primeira coloca mais ênfase nos aspectos fisicos da vida em geral numa região tropical. Já na segunda parte temos propriamente o conhecido O Torrão Maranhense, onde o autor se preocupa mais com "a formação humana". Depois de fazer uma "sinopse regional" do estado e de descrever "as Zonas Maranhenses", quando chega a falar de uma "paleoetnologia", temos na sua conclusão tópicos importantes. É o momento em que aparece a proposta de uma geo98 grafiahistórica, na qual há uma análise da formação da colônia, procurando identificar o processo de sedimentação da história da formação social do estado. Na sua parte final, temos ainda uma tentativa de analisar os "caracteres, tendências e possibilidades" da população, na qual Raimundo Lopes esboça alguns tópicos do que chamou de "o caráter psicoétnico maranhense". Inspirado, confessadamente, na grande obra de Euclides da Cunha, Os Sertões. A importância de um texto como esse para a nossa pesquisa é muito grande. Cabe aqui o destaque de pontos significativos das idéias deste autor, que sintetizam e ilustram muito bem a visão que ainda hoje se tem da população maranhense. Isto apesar de o texto datar de 1916! Talvez mesmo por isso este trabalho tenha se tomado um objeto privilegiado de nossa pesquisa. Raimundo Lopes apresenta dados demográficos importantes da época de D. João VI, quando da vinda da família Real para o Brasil. Estes números revelam urna quantidade muito superior de negros escravos quando comparados aos dos brancos livres. Assim a população maranhense es- Cad. Pesq., São Luís, v. 14, n. 1, p.88-1 03, jan./jun. 2003 taria nessa época em torno de 152.634, entre os quais tínhamos ---a seguinte composição: a) escravos - população maior que a livre (84.534); b) a população masculina - maior que a feminina e ficava em torno de (82.304); c) brancos (23.994); d) índios (9.684); e) pretos (87.262, sendo 9.308 livres); f) mulatos (31.691). Gostaríamos de deter a atenção do leitor na interessante conclusão do trabalho de Raimundo Lopes. Ela apresenta as contradições do argumento do autor, demonstrando suas oscilações conceituais e as pretensões científicas dos ensaios analisados. Logo no primeiro parágrafo, ele confessa não poder definir um caráter psicoétnico do maranhense com a mesma precisão de Euclides da Cunha, que fixou de maneira brilhante o caráter do jagunço. Esta dificuldade é devida ao fato de que no Maranhão se está diante de "um tipo mais vago e mais complexo" que o tipo regional dojagunço de Canudos, e além disso o autor confessa não ter o talento artístico do mestre de Os Sertões. De uma maneira geral, Rairnundo Lopes, na tentativa de esboço de uma "psicoetnologia", apresentou vários tipos maranhenses regionais. Para ele não há só um tipo geral ou uma homogeneidade étnica, como vimos acima, quando descreve os diferentes grupos étnicos que compõem a sociedade maranhense. Para ele existem vários tipos regionais que são caracterizados no texto com muitos termos, sempre carregados de etnocentrismo colonial. São eles mais especificamente: a) pescador ribeirinho, indolente,reflexo quase fiel do selvagem; b)vaqueiro dos campos baixos, mais empreendedor, aventuroso; c) lavrador rude, sóbrio; d) sertanejo do Chapadão, ambicioso e rude. e) "sanluisense". Morador .da capital do Estado. No caso do sertanejo, Raimundo Lopes nos diz ainda o Cad. Pesq., São Luís, v. 14, n. I, p.88-1 03,jan./jun. 2003 99 seguinte: "Este diverge profundamente dos outros, conserva-se indiferente, como produto lidimo da elaboração étnica interior, cujo impulso principal veio do São Francisco, do Sul" (LOPES, 1970, p.195). Este depoimento vem corroborar diversos testemunhos locais sobre a diferença e singularidade específica do homem dos sertões maranhenses que pouco ou quase nada se assemelharia ao ludovicense. Não é raro escutarmos ainda hoje na cidade pessoas oriundas destas regiões que dizem nunca ter visto, por exemplo, "Bumba-Bois", "Tambor de Crioula", "Tambor de Mina", que são as atuais expressões culturais emblemáticas do Maranhão, mas que são manifestações típicas do Litoral e da Baixada. Seguindo a classificação do autor, temos ainda o "sanluisense". Este tipo é "burguês, avesso a violência, grave, com um pouco de atividade mole do mulato, encarreirado na rotina funcionalista e comercial" (LOPES, 1970, p.195). Num tom que nos parece um tanto provocati vo e, por vezes, de critica severa, Raimundo Lopes identifica, na atitude histórica do povo de São Luís, o reflexo de 100 seu "caráter" e "personalidade cultural"! Isto nos deixa um tanto perplexos, pois se no início do texto colocou que há uma dificuldade de caracterizar um "caráter psicoétnico do maranhense", o autor aqui faz uma generalização de "um tipo médio" do "sanluisense" que nos faz acreditar que ele considerava que havia uma homogeneidade maior na população da Ilha do que no interior do estado. O que é bastante discutível, como pode ser observado no quadro anterior.Num tipo de análise que nos lembra os clássicos da Antropologia e Sociologia Brasileira, como o também maranhense Nina Rodrigues, ou Oliveira Viana, Femando deAzevedo, e muitos outros, Raimundo Lopes tenta, através da caracterização de "um tipo médio", construir um modelo e uma configuração particular do ludovicensemais do que do cidadão do interior do estado - todavia, ele sempre fala de um "caráter maranhense" mais geral, quase telúrico. Éuma contradição que o autor não dá atenção, mas que, no entanto, não lhe é estranha, pois, no início do ensaio, ele mesmo havia salientado as limitações de tal empreendimento científico. Cad. Pesq .. São Luís, v. 14, n. 1,p.88-103,jan./jun. 2003 Isto o leva a escrever sobre "vícios", "as belas qualidades" "as excelências da gente" Maranhão, com forte presença um psicologismo ingênuo caricatural. os ou do de e Além de escrever sobre os defeitos e qualidades do caráter do maranhense, Raimundo Lopes reproduz os mitos de fundação de uma identidade regional. Entre os mitos mais difundidos encontramos o da "Athenas Brasileira", com seus vultos literários, e o da dicção especial, com sotaque "gracioso e colorido" do melhor português falado no BrasiL Aqui se vê que estes símbolos têm uma distância histórica bem alargada. A História tem um papel fundamental para o autor que só vê a consolidação de um verdadeiro "caráter maranhense" no futuro. A natureza psicológica destes traços culturais é historicamente determinada, e para o autor, como faltava o que chamou de uma "coesão dinâmica" e uma "unidade ativa" no Maranhão de sua época, será no futuro que a integração de todos os tipos humanos (étnicos) constituintes do Estado configurarão um tipo mais uniforme e homogêneo, ou como ele afirma: "tipos regionais disciplinados e desenvolvidos" (LOPES, 1970, p.197). O Maranhão é uma "sociedade a que falta toda unidade étnica", porém com o "progresso" e a "reeducação" da população uma maior integração dos tipos será possível e deste modo "nosso grupo histórico contribuirá assim para a obra grandiosa da unificação real e defmitivado país". Estas são as bases do que chamou de a "Geografia do Futuro". Cabe aqui um comentário sobre essa visão interessante do autor. De uma maneira geral, ele oscila num discurso de forte tendência naturalista e psicologista, mas consegue perceber muito bem a dimensão histórica do processo que analisa. Porém, a sua consciência histórica é povoada por elementos colonialistas e europeucêntricos, com um imaginário fundado na lógica cultural dominante. Entre outras coisas o autor lamenta muitíssimo o pouco afluxo da migração européia no Maranhão, o que constitui uma declarada simpatia com a tese do "branqueamento" do Brasil, que seria uma das soluções para o Estado do Maranhão se desenvolver, segundo acreditavam as elites dominantes (o que acaba acontecendo, só que dessa vez Cad. Pesq., São Luís, v. 14, n. 1, p.88-103,jan./jun. 2003 101 com a imigração sírio-libanesa: hoje um grupo de imigrantes do Oriente Médio com destacada presença na política e economia do Estado). Seguindo este raciocínio, Raimundo Lopes se filia à mesma corrente de Silvio Romero que, com suas teses arianistas, propunha uma política migratória de populações brancas européias para o país. herança de um modo de pensar que ainda vigora, em muitos aspectos, nos estudos universitários atuais e na ideologia ainda dominante. Como escreveu Ernest Gellner: 5 CONCLUSÃO Tem-se a ilusão de que os fundamentos evolucionistas e coloniais j á teriam desaparecido do horizonte científico brasileiro. Isto é um grande engano. É preciso aprofundar nossos estudos, resgatando a memória acadêmica e renovando nossas reflexões com bases concretas numa análise histórica e epistemológica bem fundamentada. Através da história da 8 etnologia brasileira , podemos resgatar princípios e propor novas visões, nos livrando do empirismo a-histórico em que hoje se vê mergulhada a etnografia nos nossos cursos universitários. Finalizando este artigo - que não tem pretensões de esgotar a análise sobre a obra de Raimundo Lopes -, fica desta investigação crítica a confirmação da existência de um forte colonialismo acadêmico que imperava no Brasil do final do século XIX e no começo do século XX. O positivismo estreito, conservador e cientificista marcou, e ainda marca, profundamente a reflexão sobre o que é a cultura brasileira e a maranhense. É preciso que a teoria crítica se volte para a análise destes autores esquecidos, que transmitem a 102 Las personas que desdeãan Ia história filosófica [e a científica também] sou los esclavos de pensadores difuntos y de teorias no sometidas a análisis (GELLER, 1992,p.l4). Cad. Pesq., São Luís, v. 14, n. I, p. 88-1 03,jan./jun. 2003 REFERÊNCIAS AZEVEDO, F. de. A cultura brasileira. São Paulo: Ed. Universidadede São Paulo, 1971. CUNHA, E. da. Os Sertões. São Paulo: CultrixlMEC, 1975. DAMATTA, R. Relativizando: uma introdução à antropologia social. Rio de Janeiro: Ed. 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