UMA BOMBA
1
Gustavo E. Etkin
Carlos Drummond de Andrade, poeta brasileiro, uma vez escreveu:
No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra
Alguém, a respeito desse poema, me contou una historia que nunca soube se foi
uma crônica, una fantasia, um sonho ou uma proposta.
Segundo contam, Melanie Klein teria viajado secretamente para o Brasil em
1929. Três anos depois de seu divórcio. Queria esquecer. E, o que se dizia, “ter
outras experiências”. Aqui, teria conhecido Carlos Drummond, de quem foi a
primeira a escutar aquele poema, em Minas Gerais, em uma cidade chamada Itabira.
Carlos Drummond, por sua vez, era relativamente casado – em 1925 – e estava
caminhando com Melanie por aí, por um caminho. Ele parecia não apenas
desinteressado dela como pouco afetivo em geral. As coisas, o mundo, lhe eram
indiferentes. Que alguém lhe fale caminhando a seu lado (como Melanie Klein nesse
momento) esteja calado ou arrote, simplesmente não lhe interessava. Mas de repente
viu uma pedra, a interrompeu (nunca se pôde saber o que Melanie Klein lhe dizia
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Trabalho apresentado na Reunião Lacanoamericana de Buenos Aires. 1995.
Uma Bomba-Gustavo E. Etkin
nesse exato momento) e enquanto recitava aquele poema como possuído por um
deus, apontava para a pedra com seu dedo indicador.
Claro, nesse instante, o poema não estava relatado no passado, não era tinha,
porém tem. Mas, salvo esse detalhe, foi o mesmo: no meio do caminho tem uma
pedra, o que Carlos indicou, como disse.
- But Carlitos – teria tentado fazer-lhe compreender Melanie – não se dá conta
que o caminho é mamãe, que você está entrando em mamãe, e que a pedra é papai?
- Mas – teria lhe respondido Drummond – não se dá conta que nós dois estamos
entrando?, o que desencadeou intenso desejo em Melanie que, originado em seus
peitos, convergiu para sua vagina.
Os gestos e ações seguintes foram um real ato sexual (que, de vez em quando,
Melanie interrompia para compulsivos e fugazes momentos de fellatio)
Depois, Melanie Klein, surpreendida, tentou explicar: -“...então, finalmente, de
uma forma ou de outra, fomos como Papai e Mamãe (essa parece que foi, também, a
tradicional posição em que persistiu em ficar).
- É verdade, mas – insistiu ele – no meio do caminho tem uma pedra. Tem
uma pedra no meio do caminho.
- Talvez a pedra seja meu clitóris, mas – lhe perguntou estranhada – em algum
momento isso lhe impediu o intercurso?, por acaso, em algum momento, incomodou
ou perturbou nossa madura e quase totalmente genital relação sexual? Até creio –
disse como falando para ela própria – que tive certas contrações que poderiam
indicar um orgasmo...”
Mas ele insistia: -“...no meio do caminho tem uma pedra”, e a acompanhava
assinalando com o dedo.
Parece que, a respeito, não houve acordo nem coincidência e o que poderia ter
sido uma relação sexual no meio de um caminho onde, casualmente tinha uma pedra,
foi um desacordo e um mal-entendido: cada um falava de outra coisa.
Um tempo depois, em 1930, para uma criança chamada Dick, M. Klein
designava um trem grande como Trem Papai e outro menor como Trem Dick. E, depois
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que Dick levou o Trem Dick até uma janela que ele próprio designou como estação,
Melanie Klein explicou-lhe que:
a estação é mamãe; Dick está entrando em mamãe.
Aí, também, Melanie Klein explicava como eram as coisas. Mas, também, como
com Carlos Drummond, óbvia e forçadamente, não podia deixar de nomear os objetos
que ia explicando. Podia nomear sem explicar, como quando não teve outra alternativa
que designar seu clitóris, mas não explicar sem nomear, como mais tarde quando, ao
cortar pedacinhos de madeira de um carrinho que Dick jogou dentro de uma gaveta
dizendo foi embora, lhe esclareceu que isso significava que Dick estava tirando fezes do
corpo de sua mãe.
Nomeou as fezes, nomeou a sua mãe e até o próprio Dick. E, também,
estabeleceu entre eles relações sintáticas em que Dick era o sujeito, tirar, o verbo, e
fezes do corpo de sua mãe, o complemento.
Embora esta explicação de Melanie também tenha uma forma lógica: a
implicação. Neste acaso, o verdadeiro implicando o verdadeiro, ou seja que, se Dick
joga o carrinho junto com os pedacinhos de madeira, então está tirando fezes do corpo
de sua mãe. Como antes, quando, se a estação era mamãe, então Dick estava entrando
em mamãe.
Melanie, assim, tentava explicar ao pequeno Dick uma verdade que estava na
conseqüência: a verdade de um sentido sexual. Aí, a apódose, era o sentido da prótase.
Semelhante ao que tentou com Carlos Drummond. Apódose que, a posteriori e
freudianamente, après-coup, definia a prótase como sexual. Com o agregado não
freudiano (ou, pelo menos, não lacaniano) de que ela demonstrava, assim, tanto para
Carlos Drummond como para o pequeno Dick, seu saber prévio sobre o sentido sexual
do que escutavam e viam. Seu saber, aí, não era suposto. Ela o afirmava ao dar a
explicação.
Encontrei-me, uma vez, com uma alternativa parecida em Buenos Aires, há
alguns anos, quando escutava uma analisante. Adolescente, 17 anos, medos, sustos. O
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que, popularmente, se chamava fobias. Dizia que não queria deitar-se no divã porque
quero ver o rosto de com quem estou falando, nesse caso, o meu.
Então, uma vez, quando estava me falando, de repente irrompeu uma bomba. O
edifício tremeu fugazmente, os vidros vibraram. Ela parou e me olhou fixamente, com
os olhos bem abertos. Estávamos assustados. Ocorreu-me dizer-lhe: - Uma bomba. Ela
continuou falando, continuou com o que falava antes, sem sequer aludir àquela irrupção
interruptora. Na sessão seguinte, sentou-se no divã e disse, sem olhar-me, algo assim
como: - Vou me deitar. Não tem mais sentido olhá-lo no rosto. E se deitou. Tinha dado
nome ao real que temia ver no meu rosto.
Isso foi entre 74 e 76. Depois de o Ato Analítico, L’Étourdit, Encore. E durante
Les non-dupes errent, R.S.I. e Le Sinthome. O Ato, o Dizer, o Nominar, o Quarto Nó.
Quando, olhando-me, arregalou seus olhos assustada, eu poderia ter lhe
explicado: - É uma bomba (ou uma explosão) que representa papai e mamãe trepando,
ou a cara de papai (ou de mamãe) trepando, ou um peido na cara de papai (ou de
mamãe), ou algo parecido. Não sei o que teria acontecido. Talvez a mesma coisa. Ou
não. Talvez a mesma coisa porque eu, embora dentro de uma explicação, igualmente
teria nomeado. Talvez não, e teria se assustado mais, porque, assim, teria sido explícito
e evidente que eu sabia dessas coisas que ela, no momento, não podia nomear e
– transferência mediante – teria se angustiado mais, porque, quem poderia saber, então,
quais seriam minhas intenções?
Há algo, entretanto, de que tenho certa certeza: disse uma bomba. Poderia ter
sido outra palavra: uma explosão, um barulho, ou, até simplesmente pum! Não
importava o significado da palavra e sim que foi pronunciada – dita – no momento
oportuno2, e esse momento foi recortado pelo instante e a forma em que seu discurso
parou por uma irrupção que vinha da realidade exterior a ele, que se apresentava assim,
abruptamente, como real.
Freud poderia ter dito, talvez, que era preencher uma lacuna. Mas não foi a
mesma coisa, porque não se deu, nesse momento, sentido sexual a algo reprimido na
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Curiosamente – talvez depois desse encontro com Melanie Klein – Carlos Drummond escreveu um
poema, a meu ver, não tão bom como esse da pedra, onde fica todo o tempo explicando todas as
coisas, o que é uma bomba, e cujo título é, precisamente, Uma Bomba.
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queixa de um sintoma, de uma repetição, de um ato falho, o relato de um sonho, ou a
simples detenção da cadeia associativa, mas que apenas foi designar – batizar – algo
que, sem nome, se manifestava. Que nesse momento aparecia como ruído cortando seu
discurso. E um corte não precisamente analítico, mas una irrupção.
O sentido sexual, claro, foi dado depois pela própria analisante em seu próprio
discurso, em suas lembranças. Até em seus silêncios. Como Melanie Klein, quando
Carlos Drummond lhe assinalou que, assim como a pedra e o caminho, também estavam
eles, e caminhando nele.
Isso que nomeei como bomba, foi aquilo que Lacan esclareceu em 28 de março
de 1968 em relação ao Ato Analítico, que não é do analista, mas do analisante. O
analista aí, humildemente, autoriza, no sentido de permitir, dar as condições do Ato que
o analisante produzirá.
Como o efeito que a designação de Carlos Drummond originou em Melanie Klein e
minha designação naquela analisante. Estava a diferença, claro, em um caso, do ato
sexual que, como sempre, não foi uma relação, e em outro, que não houve ato sexual
mas uma mudança na transferência: podia desejar sem ver.
Poderíamos ver aqui, também, nestes dois exemplos, algo ao qual já me referia
em outros dois trabalhos (Do Real não volta nada e Transferência e Clínica na Fala
Psicótica) como duas formas de Nominar: o Nominar Designativo – deítico – onde não
importa nem o sentido nem o significado da palavra pronunciada, mas assinalar que
algo tem um nome, qualquer que seja. E o Nominar Explicativo, que também inclui o
Nominar Designativo (inevitavelmente se nomeiam as palavras ou letras com as quais
se tenta explicar) mas, além disso, estabelece relações de implicação lógica onde o que
as enuncia é, nesse momento, o que as sabe.
O Nominar Designativo, sempre metaforizante3, é, também, diferente do
equívoco interpretativo onde, em uma estrutura já constituída, trata-se de cortar sentido
para que surja, no analisante, um sentido novo4. Nominar Designativo que permite, em
alguns casos – às vezes e se é possível – a condição da constituição da estrutura; como,
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LACAN, J. De un discurso que no sería de la apariencia. Janeiro-Fevereiro de 1971: “Toda designação
é metafórica”.
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Pensamos, a respeito, que no Nó Borromeo, o Quarto Nó é um nominar designativo como Nome do
Pai em ato.
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no exemplo clínico que dei, que foi um simples e necessário elo que permitiu a
continuidade da cadeia associativa.
Nominar Designativo, símbolo-índice, schifter, uma pedra, uma bomba, pum.
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