1 Cultura, ideologia e violência - contribuição a um debate sobre origens de formas da violência no Brasil Alípio de Sousa Filho - professor Adjunto do Departamento de Ciências Sociais da UFRN. Doutor em Sociologia pela Sorbonne (Paris V, França) 1. Introdução Nos últimos anos, muito se tem falado sobre a violência na sociedade brasileira. Não há um só dia em que os noticiários da TV, rádios e jornais deixem de apresentar os chamados “casos de violência”. Em geral, o tratamento do assunto é limitado ao que podemos chamar de violência-crime, concorrendo para fixar em todos a idéia de que a violência se resume aos tipos de casos sempre apresentados nos noticiários – e não se diz mais outra coisa. O certo é que o próprio tratamento dado ao tema da violência faz crer que ela invadiu a sociedade brasileira através da ação dos personagens que a polícia e os meios de comunicação chamam de “bandidos”, “criminosos”, “meliantes”. As autoridades políticas também falam do assunto de modo não muito diferente da polícia e dos meios de comunicação. Parecem ter do problema a mesma visão imediata que caracteriza a visão da população sobre o assunto. Atingida de maneira concreta e brutal, a população formou uma opinião sobre o assunto que termina por circunscrever a violência ao âmbito unicamente do crime de assalto, roubo, assassinato, etc., deixando de enxergar todas as demais violências cometidas contra ela cotidianamente ou praticadas por ela própria. Mas, paralisada diante da idéia-representação construída na sociedade sobre a violência, a população cobra das autoridades medidas imediatas de combate à violência, sempre com a opinião fixa de que o assunto é “caso de polícia”, sem se perguntar das razões, causas, fatores que produzem os muitos “fatos violentos” cotidianos. Por sua vez, nossas autoridades respondem às cobranças com medidas frágeis – em geral, aparatosas: aumento de contingente policial, número de viaturas nas ruas, 2 promessas quixotescas –, sem formulação de verdadeiras políticas de enfretamento a algumas das causas que mantêm certas formas de violência no país, alimentando a idéia de que de fato a violência é um assunto de polícia. Assim, o discurso social sobre a violência, reduzindo-a a uma única de suas formas, faz crer a todos que violência se pensa no singular, quando sabemos que ela se inscreve na realidade do mundo social de muitas maneiras, exigindo da reflexão crítica pensar a violência no plural, assim como suas causas. Um outro aspecto do discurso social sobre a violência, que convém tratar criticamente, diz respeito a uma representação que dota a violência da aparência de coisa esporádica, passageira – os meios de comunicação não falam de “aumento da onda de violência”? –, embora os especialistas não cansem de repetir os números da constância ou das oscilações dos chamados índices de violência. Fato que poderia servir para provar que ela está sempre aí. Retratada como uma “crise”, um “mal agudo”, a violência necessitaria de remédios pontuais, agressivos, rápidos – a repressão policial é quase sempre o recomendado. A violência como coisa esporádica, onda, crise faz nascer uma outra representação que é aquela que fala da existência de “indivíduos violentos”, “assassinos”, fazendo crer que se trata de uma espécie à parte – são os “monstros” de nossa imprensa –, dotados de “instintos naturais” que os tornam “violentos”. Não se pôde ouvir especialista falando sobre o caso Suzane Richthofen, para o Jornal Nacional, da Rede Globo de Televisão, anunciar para o país inteiro que a menina – “assassina dos próprios pais” – é uma “portadora de distúrbio afetivo, que se nasce e morre-se com ele”? O especialista procurou dá um nome ao tal distúrbio: um nome estranho que parece mesmo algo muito horrível: algo como “afetividade retraída” (sic.). Não raramente, a mídia nos brinda com coisas assim: especialistas defendendo idéias estúpidas – no fundo, violências – com ares de muita propriedade científica. Como se pode pensar em afetividade como algo “que se nasce com”, em “distúrbio natural” de afetos? Outro dia, podia-se ler, em jornal do RN, comandante da polícia do estado apresentando sua tese para a existência de “indivíduos criminosos”: a “hereditariedade biológica”. Para a ciência, explicações que constituem uma estupidez sem tamanho, pois ninguém nasce nada enquanto ser social. O ser humano se constitui na cultura, no mundo social. Do ponto de vista de suas emoções, comportamento, o ser humano é uma criatura inteiramente produzida nas relações que estabelece com seus outros. (Contudo, assinale-se aqui brevemente que a idéia de fundamentos biológicos determinando emoções tem 3 feito escola mesmo entre intelectuais universitários! O que se torna uma ameaça ao pensamento crítico.) A violência como algo que invade a sociedade de fora para dentro, como ondas, e por ação de “indivíduos violentos” é representação que afasta as causas do fenômeno da violência na sociedade para bem distante dela. Nessa representação, a violência não tem origem na sociedade, não resulta de estruturas e convenções sociais, é um mal externo introduzido por um tipo específico de indivíduo. Nosso propósito, contudo, não é tratar do fenômeno da violência em geral, nem tratar de suas diversas formas na sociedade brasileira. Pretendemos aqui apresentar uma contribuição à discussão sobre violência, tratando de aspectos relacionados às origens de algumas de suas formas no nosso país. Para nós, uma das fontes da violência no Brasil – de funda raiz histórica – é o preconceito anti-povo instalado desde muito, responsável por uma odiosa discriminação contra pessoas do povo, cujo fruto mais acabado é a violência policial contra pobres, negros, prostitutas, travestis. Preconceito que também faz circular a representação segundo a qual os pobres são mais violentos. Aliás, uma representação que fundou a idéia para a qual “a pobreza é a causa da violência”. Idéia que se transportou para pesquisas ditas científicas, tornando-se uma espécie de senso comum teórico. Que é o preconceito anti-povo do qual falamos? Como ele se manifesta no nosso cotidiano? Para falarmos do preconceito anti-povo no cotidiano brasileiro é preciso retornar à nossa história e descobrir que, desde nossa fundação, produziu-se uma tradição cultural autoritária de desconfiança do povo e do popular, que continua até hoje, e cuja expressão mais desenvolvida aparece no modo como as elites, os poderes de Estado e os meios de comunicação se relacionam com o que emana do povo, com tudo aquilo que materializa as expressões culturais e sociais chamadas populares. Não raro, na imprensa, podemos ler coisas como esta: “Folia termina com saldo positivo”. Trata-se de manchete de jornal comentando o êxito do carnaval fora de época, na cidade de Natal (RN), em 2002. Uma passagem do texto jornalístico destaca: “De acordo com o coronel, seriam dois os principais motivos que amainaram os índices de violência. Primeiro, a participação popular foi bem menor que a dos eventos anteriores. Depois, a distribuição do policiamento, que se espalhou e ficou mais visível, inibindo os criminosos.” (Diário de Natal, 10/12/02 – grifo nosso). Logo abaixo, na mesma página, o jornal trazia um 4 “resumo das ocorrências” policiais durante a festa, com um número de 168 prisões efetuadas durante quatro dias. Com a representação segundo a qual o evento foi “tranqüilo”, polícia e imprensa fornecem a idéia de que as mais de cem prisões efetuadas não são atos de violência. Representação que esconde também que se trata de atos de violência contra pessoas do povo, pois se sabe que, em geral, os que caem nas garras da polícia, por ocasião desses eventos, são os jovens pobres. A atuação policial que resulta nas prisões aparece como uma medida contra a violência dos “furtos”, “brigas”, “usos de drogas”, “desordens” praticados por esses mesmos jovens pobres – é a inconveniente “participação popular”. O que se pode observar aí é que, não recaindo sobre o segmento de classe média que organiza e usufrui do evento, as prisões realizadas entre os excluídos pobres da festa, como são feitas sob o pretexto de torná-la tranqüila, não são computadas como violência, embora ocorram não raramente por meio de ações truculentas da polícia. Essas prisões são tidas como medidas necessárias para coibirem o que se considera como a violência de fato: pequenos furtos feitos aos foliões da classe média, enquanto estes se divertem ao som de trios elétricos, separados de todo o resto por um cordão humano de seguranças, contratados entre homens e mulheres pobres da cidade, que isolam os blocos agarrados a uma enorme corda. Espetáculo triste de contemplar, ao se ver a dificuldade de caminhar dessas pessoas. Sempre agarradas a tal corda, comprimem-se e contorcem-se para tornar possível a passagem dos blocos pelos quais são contratadas, introduzindo no cortejo a triste imagem da separação de classe, reforçada pela atitude de subserviência dos dominados, ao oferecerem seus próprios corpos para servirem de instrumentos dóceis dessa separação. Cordas e seguranças, entretanto, também não sendo vistos como violências por jornais, TVs, autoridades públicas, polícia. No Brasil, a história da violência é bem mais antiga. Nossa tese é a de que as violências praticadas contra o povo estão relacionadas com a longa história de colonização de nossa sociedade, que implicou, dentre outras coisas, na invalidação de práticas culturais identificadas como populares – notadamente os hábitos que chamaremos aqui de mestiçagens1, tão característicos do modo de ser brasileiro. Uma história que produziu também o mal-estar identitário das elites brasileiras relativamente à própria cultura a que pertencem, legando-nos 1 O conceito desenvolvi em estudo intitulado “Les métissages brésiliens – imaginaire, quotidien et pratiques de mélanges dans la société brésilienne”(Tese de doutorado, Sorbonne, França) 20 Brasil não pode ser praticada ao preço de desmentir a verdade das mestiçagens na vida brasileira. A prática de mestiçagens entre nós, e por todos nós, não é uma realidade do passado, nem a admissão da existência destas, como estruturantes da vida social brasileira, pode ser entendida como uma estratégia das elites dominantes com vistas a dissimular sua dominação (bem ao contrário!, nossas elites sempre condenaram às mestiçagens ao lugar do que é "popular", "grosseiro", "bárbaro", "primitivo", "perigoso", "amoral", etc.). As mestiçagens correspondem a práticas que nunca mais deixaram a sociedade brasileira. Se são, sem dúvida, herança de nosso passado escravista, não são por isso menos permanentes e presentes como constitutivas da maneira de ser do corpo social brasileiro inteiro. Se, para alguns, essa herança é motivo de vergonha e, para outros, uma razão de pessimismo, parece mais acertado hoje entender que se trata de uma estrutura antropológica de fundo e mesmo um verdadeiro estilo de sociabilidade e vida coletiva. Se não se torna possível teoricamente dizer que a vida brasileira seria impossível sem as mestiçagens que nos singularizam, ao menos podemos dizer que ela se torna incompreensível se não levarmos nossas mestiçagens em conta. Mesmo talvez tenha chegado a hora de dizer que, na sociedade brasileira, nada construiremos sem nossas mestiçagens como base. Assuntos que tanto preocupam nossas elites políticas e intelectuais, a construção da democracia e a construção da chamada “esfera pública” no Brasil não podem ser realizadas ignorando-se nossas práticas de mestiçagens e contra elas, como tem sido o caso até aqui, visto o fantasma identitário das elites do país. Estas que também acreditam ter a missão de retificar os costumes de mestiçagem que manteriam o povo brasileiro no atraso e na ignorância, afastado dos padrões da civilização. A política fornece seus exemplos: “A intenção do governo Fernando Henrique Cardoso é a de remodelar e refiticar o país, aprofundando a ocidentalização de nossa formação social através de sua aproximação das experiências de vida e padrões vigentes nos países mais desenvolvidos”.45 Assim, o tema de uma arqueologia de representações depreciativas das mestiçagens e do mestiço, como aparecem no imaginário brasileiro, leva-nos ao problema do olhar que sempre se 45 Amaral, Roberto (Org.). FHC: os paulistas no poder. Niterói: Casa Jorge Editorial, 1995, p. 23 21 dirigiu à sociedade brasileira e também à questão teórica da reformulação desse olhar nas interpretações da nossa realidade pelas ciências sociais, notadamente aquelas praticadas pelos intelectuais universitários. Essa que pode ser também uma maneira de contribuir para práticas que se tornem lutas contra algumas das formas de violências praticadas contra o povo no Brasil. BIBLIOGRAFIA ABREU, Capistrano de. O descobrimento do Brasil. São Paulo, Martins Fontes, 1999 AMARAL, Roberto (Org.). FHC: os paulistas no poder. Niterói: Casa Jorge Editorial, 1995 ARAÚJO, Emanuel. Teatro dos vícios: transgressão e transigência na sociedade urbana colonial. Rio de Janeiro, José Olympio, 1983 CALLIGARIS, Contardo. Hello Brasil! – notas de um psicanalista europeu viajando ao Brasil. São Paulo, Escuta, 1996 DAMATTA, Roberto. A casa & a rua. Rio de Janeiro, Guanabara, 1987 DAMATTA, Roberto. O que faz o Brasil, Brasil?. 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