Portal RP-Bahia www.rp-bahia.com.br Violência: a contemporaneidade e a complexidade de um tema milenar Marcello Chamusca Nos últimos meses, o povo brasileiro tem assistido estupefato um traficante apelidado de “Fernandinho Beiramar” mostrar toda a força que o crime organizado tem na sociedade brasileira. De dentro de uma penitenciária de “segurança máxima”, ele continua comandando um esquema que tem provocado pânico, insegurança e gerado muitas incertezas na população, que, por diversas razões, já não acredita mais na Polícia, que por sua vez é capaz de executar dezenas de homens desarmados - como no evento da chacina do presídio Carandiru, em destaque nas telas dos cinemas – mas não é capaz de garantir a segurança. Diante das inversões de valores muitas vezes detectadas nas relações policial-bandido, percebe-se que o problema é cultural, muito mais profundo e complexo do que se costuma imaginar e a maioria dos casos envolve os aspectos sócio-econômicos e atinge principalmente a base da pirâmide social, que é exatamente de onde saem a maioria absoluta dos assaltantes, assassinos, como também a maior parte do contingente da corporação da Polícia Militar. Ao deparar-se com constatações como essas, percebe-se que a solução para a minoração do problema da violência urbana no Brasil passa necessariamente pela educação e pela reestruturação do código penal, que pode e deve diferenciar os criminosos nocivos à sociedade dos chamados “ladrões de galinha”, para os últimos, deveriam ser imputadas penas alternativas, em que através de trabalhos comunitários pudessem ressarcir a sociedade daquilo que eles devem. Essas penas alternativas, além de serem muito mais humanas, são também muito mais eficazes, além de terem um custo-benefício altamente positivo para o conjunto da sociedade. Sai ganhando o contraventor - por não precisar passar por uma casa de detenção, verdadeiras escolas do crime, onde o indivíduo entra contraventor e sai bandido de alta periculosidade–, sai ganhando a comunidade, que se beneficia dos serviços realizados pelo contraventor e sai ganhando o Estado, que não terá os altos custos que um detento representa para ele. Por todos esses motivos, que parecem óbvios, para quem está “de fora”, tendo uma visão “panorâmica” do problema, mas tão complicados de serem implementados pelas autoridades “competentes”, urge a necessidade de uma reforma no sistema penal brasileiro, que de uma vez por todas, deve tratar bandido como bandido, contraventor como contraventor, e, acima de tudo, cidadão como cidadão. 1 Portal RP-Bahia www.rp-bahia.com.br Todas essas questões, ainda podem ser enfrentadas objetivando a fonte do problema, com políticas públicas sérias que visem a recuperação e a inserção de menores infratores na sociedade. Ora, se trabalhamos o problema da violência na sua origem, tratando as crianças da forma correta, valorizando a sua predisposição cognitiva, estimulando o aprendizado de algo positivo e despertando na criança o interesse pelo exercício da cidadania, teremos adultos com um nível de consciência muito maior e conseqüentemente a perspectiva de um futuro melhor se amplia consideravelmente. Infelizmente, o que se vê hoje em dia no nosso país é exatamente o contrário. As nossas crianças infratoras são tratadas da pior maneira possível nas FEBEMs (Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor), entrando em contato com todas as refinadas metodologias que o crime organizado tem imprimido no Brasil. Esta triste constatação foi bem retratada no filme Pixote dirigido por Hector Babenco. Com uma linguagem bastante realista e acima de tudo “crua”, o autor apresenta a realidade do cotidiano desses reformatórios e mostra com muita propriedade todas as nuances que envolvem esta instituição, que se constituiu desde a sua fundação, uma espécie de “escolinha do crime”. Lá, os garotos se prostituem, aprendem a roubar, a manipular armas de fogo, usar e traficar drogas. Graças à falta de atividades que ocupem as suas mentes com algo positivo, as atividades que costumam desenvolver lá dentro são: “brincadeiras” de simulação de assaltos a bancos, joalherias, etc. O filme de Babenco conduz os espectadores ao submundo da criminalidade praticado pela criança e adolescente no nosso país. Num primeiro momento, aborda a realidade dos reformatórios (FEBEMs), que são exatamente onde os garotos se qualificam para o crime entrando em contato não só com o que há de pior no meio dos bandidos, como também, todas as atrocidades cometidas pelos policiais, tanto da Polícia Civil quanto da Polícia Militar. O segundo momento do filme representa o segundo ato deste “espetáculo da vida real”, o momento em que o grupo de garotos foge do reformatório, já devidamente qualificado, armado e pronto para exercer com boa desenvoltura às práticas do crime e passa a assaltar nas ruas do Rio de Janeiro. Ao ver as cenas desse filme, costuma-se sentir uma grande sensação de impotência diante de uma realidade tão dura. Isso porque se trata de algo que todos vivenciam no seu dia-a-dia, ao dirigir-se ao trabalho, escola, etc. e até mesmo, em lugares onde se busca a diversão e o lazer, como shoppings centers, bares, restaurantes, etc. e nesses lugares, percebe-se uma outra característica que Babenco trata num terceiro e último momento do filme Pixote: o envolvimento 2 Portal RP-Bahia www.rp-bahia.com.br dos menores com a prostituição. Apesar do filme não tratar diretamente da prostituição infantil, sabe-se que, a cada dia nas grandes cidades, centenas de crianças e adolescentes entram nessa vida de dor, carência e acima de tudo alto risco de vida, não só pelo convívio com pessoas de conduta e caráter duvidosos, como pela contaminação com o vírus da AIDS e outras DSTs (Doenças Sexualmente Transmissíveis). Uma das faces mais perigosas da violência é a da violência policial. Perigosa, porque é cometida por quem tem a função institucional de combatê-la, também porque é cometida por aqueles que têm a cobertura de ter titulação de autoridade e ainda porque muitas vezes, tem a conivência governamental. Grupos ativistas dos direitos humanos denunciam que no Brasil a prática da tortura ainda existe em níveis muito altos e é praticada em quase todas as delegacias e presídios do país. Como já foi citado no primeiro parágrafo deste texto, está atualmente em cartaz nas salas de cinema, o Carandiru, filme baseado no livro Estação Carandiru do Dr. Dráusio Varela. Assim como Pixote, também é dirigido pelo argentino Hector Babenco. Um período de mais de 20 anos separam as duas produções e apesar disso, percebe-se uma grande coerência entre elas. Além de terem como tema central a violência e o submundo do crime no Brasil, têm uma ligação muito mais profunda do que algumas pessoas puderam perceber. Em Pixote, Babenco fala do envolvimento da criança e do adolescente com o crime e sua iniciação numa espécie de cárcere, que são os reformatórios da FEBEM. Em Carandiru, ele já trata do “pixote” adulto, daquele homem que durante a sua infância passou pela FEBEM várias vezes, se qualificou para o crime, até adquirir a maior idade e ser mandado para uma Casa de Detenção. A constatação de que o presidiário de hoje foi o “pixote” de ontem, tem procedência. A maioria absoluta dos detentos tem no seu currículo passagens pelos reformatórios durante a sua infância e adolescência. Essa constatação remete a sociedade a uma profunda reflexão sobre o tratamento que deve dar aos seus menores infratores, pois ao invés de recuperá-los e reinseri-los na sociedade, dando-lhes oportunidades para se tornarem homens e mulheres de bem, o atual sistema, além de não contribuir para sua reabilitação, ainda lhe insere num mundo de incertezas e impossibilidades. O filme Carandiru tem provocado uma série de discussões sobre a violência policial. Ao abordar um tema como esse é de se esperar que surjam polêmicas e críticas de todas as espécies, afinal, num país em que ao ligar a TV, depara-se com apresentadores totalmente desqualificados, incentivando a violência policial, proferindo frases do tipo “bandido tem que se tratar com 3 Portal RP-Bahia www.rp-bahia.com.br porrada”, “remédio de bandido é fantada no rim”, “tem que bater até morrer”, etc., quando se busca a outra “face da moeda”, é preciso estar preparado para isso. O diretor Hector Babenco, corajosamente, não esconde a parcialidade do roteiro do filme, repetindo nas considerações da ficha técnica exibida no final, a frase do livro de Varela que diz: “A história da Chacina no Carandiru têm muitas versões, nós ouvimos a dos presos”. As histórias abordadas ao longo do filme desvelam o lado humano daquelas pessoas que por vários motivos diferentes foram parar ali. Aqueles homens têm mães, mulheres, filhos, que sofrem com a falta deles, vivem em função da esperança de um dia poder tê-los novamente no convívio familiar. Em entrevista a revista CULT, o raper Sabotage, ex-presidiário que consideráva-se um sobrevivente do mundo do crime, fala exatamente disso e questiona o filme Cidade de Deus, que diferentemente do Carandiru, não mostra essa humanização nos seus personagens. Sabotage fala também, que em vários momentos discutiu com Babenco a respeito das falas dos presos, afinal esteve lá e sabia do que estava falando. Esse cantor de Rap que admirava Chico Buarque de Holanda e Araci de Almeida, foi mais uma vítima da violência urbana. Desde a sua infância esteve envolvido com ela. Foi menor infrator, traficante de drogas, terminou sendo preso e dentro da cadeia teve acesso ao crime organizado. Quando consegui através da música se libertar da vida do crime e achava que estava livre da violência foi brutalmente assassinado nas ruas do Rio de Janeiro. A violência tem essa característica, a constância. Acompanha a sociedade moderna em sua trajetória e insiste em manter-se no contexto da contemporaneidade. Recentemente um psicólogo alemão publicou um artigo que afirmava que a violência é inerente ao homem e que a nossa sociedade subsiste sem ela. Neste artigo, Hans Holksman faz uma retrospectiva histórica ligando o homem a violência, desde a antiguidade quando a diversão das pessoas eram as lutas mortais nas arenas, até os dias atuais quando a sociedade vibra ao ver um nocaute numa luta de box. Ele assinala com muita propriedade algumas questões essenciais para a fundamentação da sua teoria. Ele diz que, entre as atividades desenvolvidas pelo homem no seu dia-a-dia estão as profissionais, sócio-culturais e esportivas. Em todas elas o homem precisa do ingrediente “violência” para desenvolvê-las. Nas atividades profissionais é necessário um certo nível de violência para garantir a sua sobrevivência, quantas vezes você já viu um colega de trabalho “passar por cima” de outros para manter o seu emprego? Nas atividades sócio-culturais, cresce cada vez mais os níveis de violência. Os filmes de maiores bilheterias são 4 Portal RP-Bahia www.rp-bahia.com.br os de violência, os desenhos animados mais assistidos são de violência, os programas de TV que dão mais Ibope são os que exploram a violência como ingrediente principal, e assim por diante. E, até mesmo em relação às atividades esportivas, que geralmente se credita o maior nível de saudabilidade, são os esportes violentos os que mais se destacam. Pode-se citar como os mais violentos o boxe, futebol americano, hoquei no gelo, judô, karatê, capoeira, etc. e os menos violentos (mas que tem se tornado cada dia mais violento) o futebol, basquete, etc. Ainda que estudos como este não consigam dar conta de toda a complexidade do tema, servem para que a sociedade contemporânea reflita sobre a questão com mais responsabilidade e que tentem negar a teoria deste psicólogo alemão buscando modificar as suas atitudes em relação ao seu próximo. Percebe-se que a violência está enraizada na sociedade pós-moderna, de tal forma, que seria necessário uma série de medidas práticas da sociedade organizada, unida com um conjunto de políticas públicas bem elaboradas e devidamente executadas, além do exercício constante da cidadania de cada habitante deste planeta para que, o mundo atual possa sair da crise de percepção em que se encontra. Contudo, a busca permanente do homem pela paz está longe de acabar. A cada momento o cultivo da solidariedade se faz mais importante. Num contexto, em que as desigualdades sociais se acentuam cada vez mais, a distribuição de renda se torna mais injusta, os ricos ficam mais ricos e os pobres mais pobres, só existe uma coisa que pode transformar o mundo em um lugar livre da violência: A solidariedade. Constantemente vemos pessoas se referindo a violência como um problema que tem que ser tratado de forma mais enérgica pela polícia. Lêdo engano. Esse tem sido o grande problema desta sociedade, creditar a uma instituição de cunho violento por essência, a função do combate a violência. O problema está na visão do mundo, na percepção que se tem das coisas. Se ao invés de combater a violência com mais violência, buscando mudar o que acha errado no outro, a sociedade buscasse o convívio pacífico entre as diversidades, estaria dando o principal passo para um mundo melhor. 5 Portal RP-Bahia www.rp-bahia.com.br Para citar este trabalho copie as linhas abaixo trocando o X pela data que acessou esse trabalho: CHAMUSCA, Marcello. Violência: a contemporaneidade e a complexidade de um tema milenar [online] - Disponível na internet via WWW URL: http://www.rpbahia.com.br/trabalhos/paper/textos/violencia_a_contemporaneidade_e_a_complexidade_de_um _tema_milenar.pdf - Capturado em XX/XX/200X. 6