Diálogos "Ensaio de Cinema"
- Escuta, hoje de tarde, não se esqueça de marcar os convites!
- Madame Satã?
- Isso.
- Mais uma coisa, terminou a saia ontem?
- Não. Mas eu termino agora rapidinho.
- Falta o quê?
- Costurar aquele cordão escuro.
- Mas, o cordão está aí?
- Sim, estão alí. O preto, né?
- Isso. Eu trouxe ele ontem.
- E eu vou costurar com linha preta, ou linha mais clara? Pra aparecer os pontos.
- Não vão aparecer porque a saia é branca, marfim.
- Não, eu te digo aparecer os pontos em cima daquele rolotê preto.
- Ah, eu acho que branco.
- Branco, é?
- Sim.
------ Acabei!
- Eu acho que está bom.
- Estes fios pretos acabaram ficando mais de um lado só.
- É, mas com o movimento da saia, vai funcionar.
- Tá bom.
- Eu acho que podemos começar.
----Ele dizia que queria que o filme começasse com um travelling, lento, suave,
elegante, firme, com um zoom ao mesmo tempo, como no filme Morte em
Veneza, de Luchino Visconti.
Revelando camadas de pinturas, portas, janelas, manchas na parede,
fotografias, pedaços de fotografias, decorações de uma casa, porque ele
pensava no filme Family Life, de Ken Loach.
Pensava que a câmera ia andar um momento até que ela parasse e aparecesse
o crédito: Dança de Barbot. Um título que era uma homenagem ao filme A
Dança dos Vampiros, de Polanski.
Logo a câmera começava a descer, e descia, rapidamente, mas firme em
direção a uma mão. A mão do Barbot que estava em cima da saia dele. E uma
vez que estava em primeiríssimo primeiro plano, ele começava a dançar.
Aí, a câmera retrocedia e começava a seguir os movimentos de Barbot. Sem
cortes. A câmera estava sempre acompanhando Barbot, pegando a
cabeça, pegando os braços, pegando o torço, pegando a saia.
Barbot poderia estar dançando na casa dele, no atelier, na sala, na cozinha, em
Madureira, em Copacabana ou num campo cheio de trigo amadurecido,
inundado, como no filme Um Homem e Uma Mulher, de Claude Lelouch.
Aí o Barbot continua dançando na sua liberdade, no seu movimento, e a câmera
começa a enfocar os braços dele. E nos braços dele, cada vez que tem um
movimento, aparecem imagens de Queimada, de Gillo Pontecorvo, da Batalha
de Argel, porque ele dizia que o Barbot, a vida artística dele era uma batalha,
uma guerrilha, uma guerra entre a vida e o mercado.
Aí a câmera fazia uma grande panorâmica 360 graus e pára na frente do
pescoço dele.
Aí a câmera desce e mostra a roda da saia e mostra os pés dele como na cena
da valsa de Luchino Visconti, no filme IL Gattopardo.
Quando parece que alí vai parar tudo a câmera puxa ele para um túnel,
pensando em Adèle H, um filme de Truffaut, quando Adèle, meio enlouquecida,
já está em Marrocos atrás do amor dela.
A câmera cuida dele. A câmera pára, deixa ele passar na frente da câmera e vai
andando, andando, andando e de repente Barbot pára. Ele pensava terminar o
filme alí, pensando nos caprichos de Marie (La mariée était en noir) de Truffaut.
A cena da praça, romântica, tocando tchello vermelho no meio da noite. Mas alí
teve outra idéia, então fez um corte.
Logo depois, foi abrindo a câmera devagar, e iniciando um travelling muito lento,
para frente. Foi andando, levando esta câmera para o nada, para o vazio, como
se se perdesse no ar. E foi visualizando devagar, como no filme Profissão
Repórter, de Michelangelo Antonioni, flutuando, no ar, uma cidade. Uma cidade
encravada no espaço. E a câmera foi descobrindo os edifícios, a luz, vidros,
espaço, silêncio, vazio. E logo foi subindo e encontrando o céu. E foi enchendo a
tela de céu, como O Céu que Nos Protege, de Bernardo Bertolucci.
Santa Teresa, setembro de 2009.
---- Vou comprar papapá, isso sim.
- Tá bom o pão, não tá?
- Com bastante sal, como Azará gosta.
- É.
- Não tá salgado, mas tá bom.
- Tá gostoso!
- E essa casquinha dura.
- Eu gostei do ensaio.
- Hum?
- Gostei do ensaio!
Acho que foi um dia proveitoso pra caramba. Alíás, acho a performance está
pronta.
- É.
- Já podemos fazê-la em qualquer lugar.
- Eu tenho que pensar mais em filmes brasileiros também. Porque ele só
pensava no filme europeu.
- Huhum.
- Mas, tem: Vidas Secas, Ladrões de Cinema...
- Dona Flor.
- Dona Flor.
- Macunaíma.
- A Dama do Lotação.
- Ah não gosto muito, não.
- Não, é?
- Mas o ensaio gostei muito!
- Eu não tenho saco pra ensaiar.
- Mas, você também nunca teve saco pra ensaiar.
- Isso que eu disse.
- Pô, mas você esqueceu de comprar um vinho hoje!
- Eu esqueci?
- Não tinha grana, porque senão tinha comprado logo duas garrafas.
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Diálogos "Ensaio de Cinema" - Escuta, hoje de tarde