GUERRA IRRESTRITA – UMA REFLEXÃO “Um único ataque hacker pode ser considerado como um ato hostil ou não? O uso de instrumentos financeiros para devastar a economia de um país pode ser visto como uma batalha? [...] Quando tomamos consciência de que estes atos de não-guerra podem ser os novos fatores que constituirão a futura guerra, propomos um novo nome para esta nova forma de guerra, que transcende todas as fronteiras e limites, ou para resumir, guerra irrestrita.” Com os questionamentos dos coronéis chineses Qiao Liang e Wang Xiangsui iniciamos nosso tema, cujo livro Guerra Irrestrita foi escrito em 1999. Para Liang e Xiangsui, “este tipo de guerra significa que todos os meios estarão de prontidão, que a informação será onipresente e que o campo de batalha será em qualquer lugar.” Portanto, podemos estar em guerra sem sabermos. Com base na concepção de guerra irrestrita, identificamos uma janela de oportunidade que se configura em uma necessidade real, cujas circunstâncias levaram à realização desta reflexão. O Brasil publicou em 2005 a Política de Defesa Nacional1 (PDN) e adotou a Estratégia Nacional de Defesa2 (END), em 2008, fruto de ampla discussão no âmbito político e militar. Assim, o Brasil possui uma política e uma estratégia relativamente recentes e que abordam, salvo melhor juízo, de maneira tênue os aspectos contidos na concepção de guerra irrestrita. A princípio, se caracteriza um problema estratégico aparentemente simples, sob a ótica dos dispositivos legais, mas que na verdade são mais profundos e complexos por não se considerar os diversos matizes da guerra irrestrita. Para nos situarmos no que se passa no nível de planejamento estratégico das Forças, em maio de 2010 o Exército Brasileiro lançou o seu processo de transformação para 2030, como parte do planejamento decorrente da END, considerando as experiências de transformação dos exércitos chileno e espanhol3. Nesse contexto, cabe questionar: estamos preparados para a guerra que poderemos enfrentar no futuro? Ou pior, estamos em guerra e não sabemos? É fato que “Guerra Irrestrita” foi escrito antes do atentado terrorista às torres gêmeas, em 2001. No entanto, Liang e Xiangsui comentaram os atentados de Bin Laden às embaixadas americanas em Nairóbi e Dar es Salaam e, ainda, que qualquer coisa neste mundo poderia ser transformada em uma arma – um avião, por exemplo. E, assinalaram: “o advento do terrorismo ‘estilo Bin Laden’ aprofundou a impressão de que uma força nacional, não importa quão poderosa ela é, irá encontrar dificuldades para levar a melhor em um jogo que não tem regras.” A partir de 11 de setembro de 2001 a situação mundial se modificou, inclusive gerando duas guerras – Iraque e Afeganistão – com desdobramentos até os dias de hoje. Mas tudo isso, de certa forma, não invalida a essência da concepção de guerra irrestrita, tanto com relação ao contexto internacional e espectro das guerras, quanto na forma de se inserir nela. Assim, estamos diante da ampliação das modalidades possíveis de guerra, frente a uma guerra totalmente nova, abarcando e superpondo todas as dimensões que influenciam a segurança de um país. Mas, onde se encaixa o Brasil4 nesse contexto? O País vem paulatinamente se inserindo de maneira mais efetiva no contexto internacional. Como país emergente foi alçado a um patamar mais elevado, o que fica bem expresso na sigla BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul). E, como assinala o texto da PDN: “é imprudente imaginar que um país com o potencial do Brasil não tenha disputas ou antagonismos ao buscar alcançar seus legítimos interesses.” E aí surge outra questão sobre a guerra que não tem regras: uma guerra que está além dos limites afeta os objetivos e interesses nacionais brasileiros? Não há dúvida de que o Brasil está inserido nesse cenário de desafios, pois busca como país emergente, alterar sua posição no jogo internacional. Portanto, as reações ao protagonismo brasileiro podem ser de tal monta que dificultem ou impossibilitem a consecução dos objetivos nacionais, gerando situações conflituosas. Por exemplo, o Brasil é um grande detentor de recursos naturais como minérios, petróleo, água, entre outros. E, já se esboça uma disputa por esses recursos estratégicos, como aponta a PDN: “poderão ser intensificadas disputas por áreas marítimas, pelo domínio aeroespacial e por fontes de água doce e de energia, cada vez mais escassas.” No âmbito geoestratégico, o espaço brasileiro inclui todo continente americano. Deste modo, adentra-se no âmbito da Organização dos Estados Americanos, levando à Declaração sobre Segurança nas Américas de 2003, que ampliou a concepção de segurança para um alcance multidimensional, frente às chamadas “novas ameaças”5. Estas, entretanto, foram alinhavadas, em sua maioria, pelos autores chineses e são bem visíveis nos dias atuais. Contudo, Liang e Xiangsui apresentaram uma forma de conflito “mais complexa, mais abrangente, mais camuflada e sutil”, no qual as ameaças são mais difusas ainda. 2 Vive-se, atualmente, como expressaram Liang e Xiangsui, uma semi-guerra, uma quase-guerra, uma sub-guerra, ou afinal, estamos perigosamente expostos a uma guerra irrestrita, onde “os novos princípios da guerra não ‘usam mais a força armada para obrigar o inimigo a se submeter à vontade do outro’, mas sim estão ‘usando todos os meios, armados ou não, militares ou não, letais ou não, para forçar o inimigo a se sujeitar ao interesse de alguém.” Aparecem, assim, novos questionamentos envolvendo o Brasil. Como e onde surge essa guerra? Quem envolve? Quando tem início? As questões acima são muito difíceis de responder, porém nos levam a pensar estrategicamente, ao menos para nos precavermos. Enfim, a melhor maneira para se evitar a guerra é estar bem preparado para enfrentá-la. Assim, posicionando-se no âmbito político-estratégico, que para o Brasil significa considerarmos os dispositivos legais existentes – PDN e EDN –, cabe a interrogante: aonde, afinal, reside a principal lacuna acerca da guerra irrestrita no País? O primeiro a se considerar é que o Brasil respeita os princípios consagrados pelo direito internacional, como a soberania, a não-intervenção e a igualdade entre os Estados. Seria completamente fora de propósito levar a cabo uma guerra irrestrita. Está fora do perfil conciliador brasileiro e contra os acordos que o País orienta seu relacionamento internacional6. Portanto, por este viés, a opção de adotar a guerra irrestrita, como uma forma de atuação, deve ser completamente descartada. Outra opção é não adotar nenhuma providência com respeito à guerra irrestrita, o que é, no mínimo, muito arriscado, pois desconsidera uma ferramenta valiosa, no sentido de fazer frente às ameaças elencadas por Liang e Xiangsui. O Brasil tem se mantido a salvo do “novo terrorismo”7 apontado pelos autores chineses, nos moldes praticados pela atividade terrorista mundial. Entretanto, essa exposição tende a ser ampliada, em face dos grandes eventos esportivos que ocorrerão no Brasil, como, a Copa do Mundo, em 2014, e as Olimpíadas, em 2016. E, ademais, pelo progressivo protagonismo do País no contexto internacional. Isso, considerando somente o curto prazo e apenas um tipo de ameaça. No longo prazo, apontamos o Exército Brasileiro que, conforme relatamos anteriormente, iniciou seu processo de transformação para o cenário de 2030. E isso nos leva ao paradoxo apontado pelos autores: “combater com as armas existentes ou criar armas específicas para esse fim”8. Assim, podemos estar perdendo uma oportunidade9 ímpar de quebrar paradigmas, ao deixarmos de nos preparar estrategicamente contra 3 uma guerra irrestrita. Portanto, em termos de estratégia prospectiva para o Brasil, é plausível buscar o que melhor atende aos interesses nacionais no longo prazo. Claro está que é necessário sempre considerar a perspectiva de atores10 que se movem com interesses distintos, como hackers, terroristas, organizações nãogovernamentais, entre outros11, que invariavelmente não respeitam fronteiras, e nem regras. Esses guerreiros não-militares12 são capazes de causar danos tão grandes quanto uma guerra convencional, conforme Liang e Xiangsui. Portanto, adotar medidas efetivas para se antepor à guerra irrestrita é onde reside a lacuna a ser preenchida no contexto que se apresenta. Ou seja, aproveitar o lado positivo da concepção de guerra irrestrita, se preparando para enfrentá-la. As providências, nesse caso, extrapolam o campo militar e dependem de ações governamentais nos campos político, econômico e tecnológico. Pois, as operações de guerra não-militar expandem o conceito de guerra a todos os campos da atividade humana, com o uso de qualquer meio para alcançar seus objetivos. E, para Liang e Xiangsui, são estas operações de guerra não-militar as que mais têm sido utilizadas no mundo, como: guerra cibernética; guerra comercial; guerra financeira; guerra de mídia; guerra ecológica; e, o “novo terrorismo.” Assim, observamos a validade do preciso diagnóstico da conjuntura mundial realizado pelos autores chineses, ao detectarem “uma relativa redução da violência militar, mas que ao mesmo tempo observamos um aumento na violência política, econômica e tecnológica.” E, concluem que “não importa a forma que a violência venha a ter, guerra é guerra e uma mudança em sua aparência externa não evitará que seus princípios sejam cumpridos.” Logo, é preciso saber como se antepor a ela, conhecer seus princípios13 e estar preparado para enfrentá-la. Isso porque os meios necessários para combater nesse ambiente serão as combinações de todas as dimensões e métodos existentes no âmbito militar e não-militar. Para os autores chineses “a espada não é mais suficiente para o trato da Segurança Nacional.” Portanto, a dinâmica da conjuntura eleva o patamar estratégico para essa simbiose14, no sentido de se adotarem medidas efetivas para se contrapor à guerra irrestrita. Conforme a END, “o Brasil não tem inimigos no presente. Para não tê-los no futuro, é preciso preservar a paz e preparar-se para a guerra.” 4 O desafio da guerra irrestrita é encontrar um novo limite, além dos limites. Em uma guerra que significa ultrapassar fronteiras tecnológicas, psicológicas, éticas e tradicionais, se torna mais difícil encontrar todas as respostas. Conforme aponta Collins (1976), ao abordar as capacidades e vulnerabilidades do inimigo: “algumas peças do quebra-cabeça somente se encaixam de forma aproximada. Algumas sempre faltarão. A tarefa consiste em fazer o melhor possível com os elementos e as limitações que estão disponíveis.” Portanto, adotar alguma medida é melhor do que nenhuma, pois oferecem mais vantagens para se diminuírem as incertezas. Enfim, é razoavel adotar as medidas necessárias no âmbito político-estratégico brasileiro para se contrapor à guerra irrestrita. E, da mesma forma, no nível operacional ou tático, como vem realizando o Exército Brasileiro ao criar o Centro de Defesa Cibernética15 em 2010. Ademais, o Comandante do Exército aponta em sua Diretriz Geral16 2011-2014 ações que deverão ser empreendidas, como: “estudar a concepção de um Sistema Operacional ‘Informações’, que absorveria o atual de Inteligência e incorporaria as áreas de Guerra Eletrônica, Defesa Cibernética, Operações Psicológicas, Comunicação Social, Assuntos Civis e Operações de Dissimulação, dentre outras.” Isto posto, verifica-se um alinhamento de providências no âmbito do Exército Brasileiro, particularmente na área cibernética. São os primeiros passos para se antepor a uma possível guerra irrestrita, ou, como vimos não sabemos se ela já está em curso. Renan Bolfoni da Cunha – Cel Notas de Fim de Texto 1 A PDN assinala: “essa publicação é composta por uma parte política, que contempla os conceitos, o ambiente internacional e nacional e os objetivos da defesa. Outra parte, de estratégia, que engloba as orientações e diretrizes.” (PDN, 2005). 2 A END contém “ações estratégicas de médio e longo prazo e objetiva modernizar a estrutura nacional de defesa, atuando em três eixos estruturantes: reorganização das Forças Armadas, reestruturação da indústria brasileira de material de defesa e política de composição dos efetivos das Forças Armadas.” (END, 2008). 3 As concepções contidas no documento “Processo de Transformação do Exército” são o “resultado de estudos, diagnósticos e formulações surgidas no Estado-Maior do Exército ao longo dos trabalhos relativos à END.” Dentre os vários estudos e a fim de colher experiências de nações amigas, foi realizado o estudo 5 de dois casos de transformação dos respectivos exércitos: o da Espanha e o do Chile. (Processo de Transformação do Exército Brasileiro, 2010). O Brasil, como Estado – inserido no contexto internacional –, passa a ser o ator principal para a 4 necessidade real em análise. Em contrapartida, vale ressaltar nesse ponto o desafio comentado por Liang e Xiangsui sobre o conceito moderno de estado nação que “não é mais o único representante ocupando a primeira posição nas organizações sociais, políticas, econômicas e culturais. O surgimento de um grande número de organizações meta-nacionais, transnacionais e não-nacionais, juntamente com as contradições inerentes entre uma nação e outra, estão apresentando um desafio sem precedentes à autoridade nacional, aos interesses nacionais e ao desejo nacional.” (Liang e Xiangsui, 1999). 5 Destacam-se entre as novas ameaças especificadas na Declaração sobre Segurança nas Américas: “o terrorismo; a pobreza extrema e a exclusão social; os desastres naturais; o tráfico ilícito de pessoas; os ataques cibernéticos; danos decorrentes de um acidente ou incidente no transporte marítimo com materiais perigosos; e, o possível uso de armas de destruição em massa por terroristas.” (Declaração sobre Segurança nas Américas, 2003). 6 Dessa forma, ressaltamos que os códigos estratégicos caracterizados, no caso do Brasil, são aqueles do Estado de Direito, do atendimento das regras do Direito Internacional, do cumprimento de todos os Tratados que o País é signatário, das normas internacionais da Diplomacia, enfim de todos os preceitos e normas legais e tácitas que regem o sistema internacional. 7 O “novo terrorismo” é caracterizado por Liang e Xiangsui como sendo o “tipo de operação terrorista que usa a última tecnologia, nos mais atuais campos de estudo e é direcionada contra a humanidade como um todo.” (Liang e Xiangsui, 1999). 8 Refere-se aos aspectos de "combater a luta que se ajusta às suas armas" e "fazer com que as armas se ajustem à luta." Liang e Xiangsui ressaltam “quando os americanos propuseram o conceito de ‘construir armas para se adequar à luta, ’ eles deflagraram a maior e única mudança na relação entre armas e táticas desde o advento da guerra.” Assim, os americanos inverteram a lógica, conforme os autores chineses comentam “primeiro determine o modo de combate, em seguida, desenvolva as armas, e, neste contexto, a primeira tentativa que os americanos fizeram foi ‘a batalha Air-Land’, enquanto o atualmente popular ‘campo de batalha digitalizado’ e as ‘unidades digitalizadas’ que geraram muita discussão representam suas mais recentes tentativas.” (Liang e Xiangsui, 1999). A questão se repete quanto ao caso brasileiro, pois estaríamos realmente nos preparando para o modo de combate adequado, àquele que pode vir a ocorrer no futuro em um contexto de guerra irrestrita. 9 A questão da oportunidade se torna relevante, pois está sendo dada a partida em processos de transformações nas Forças Armadas decorrentes da END. 10 A partir do abandono da ética tudo é possível, portanto tornando-se muito difícil identificar nesses atores quais os interesses envolvidos e a serviço de quem estão. Por exemplo, sob quais pretextos e interesses atuam algumas ONG. Entretanto, cabe destacar, nesse contexto de atores, uma constatação de Liang e Xiangsui que se traduz no comentário: “na era da informação, a influência exercida por uma bomba nuclear talvez seja menor do que a influência exercida por um hacker.” (Liang e Xiangsui, 1999). 6 11 Também estão entre os novos senhores da guerra: financistas controladores de recursos, organizações criminosas e indivíduos psicologicamente desequilibrados. (Liang e Xiangsui, 1999). 12 Liang e Xiangsui apontam alguns atores e os atos praticados por eles, como: “ataque financeiro de George Soros no Leste Asiático, o ataque terrorista de Osama Bin Laden à embaixada dos Estados Unidos, o ataque com gás ao metrô de Tóquio pelos discípulos de Aum Shinri Kyo e o caos provocado por tipos como Morris Jr. na Internet.” (Liang e Xiangsui, 1999). 13 Os princípios da guerra combinada sem restrições elencados por Liang e Xiangsui são: “Onidirecionalidade; Sincronia; Objetivos Limitados; Recursos Ilimitados; Assimetria; Consumo Mínimo; Ajuste e Controle de Todo Processo; e, Coordenação Multidimensional.” (Liang e Xiangsui, 1999). 14 Esta simbiose leva a um entrelaçamento das ações e planejamentos estratégicos no âmbito político- estratégico, envolvendo horizontalmente e verticalmente todos os organismos do Estado, no intuito de realizar a coordenação intersetorial e interagencial, gerando ações concretas por intermédio de planos estratégicos com respostas multidimensionais e multifuncionais. Essa é uma providência cabível para se contrapor às ameaças da guerra irrestrita. 15 O Centro de Defesa Cibernética do Exército foi criado pela Portaria Nº 666 - Cmt Ex, de 4 de Ago 10. 16 A Diretriz Geral do Comandante do Exército para o período de 2011-2014 (referência: decreto de 1º Jan 11, publicado na Seção 2 do Diário Oficial da União – Edição Especial) estabelece as linhas gerais para o futuro próximo, ou seja, o curto prazo. Onde julgado pertinente, foi estabelecido uma orientação geral para médio e longo prazo. Referências Bibliográficas Baquer, Alonso. “En qué consiste la Estratégica.” MDN. Madrid, 2000. Traduzido ao português. Collins, John. “O Ajustamento da Grande Estratégica.” Biblioteca do Oficial. Ed. Círculo Militar. Buenos Aires, 1976. Traduzido ao português. Exército Brasileiro. “Processo de Transformação do Exército Brasileiro.” 2010. http://www.exercito.gov.br. Lian, Qiao e Xiangsui, Wang. “Unrestricted Warfare.” PLA. Literature and Arts Publishing House. Pequim, 1999. Traduzido ao português. Ministério da Defesa. “Estratégia Nacional de Defesa.” 2008. https://www.defesa.gov.br. Ministério da Defesa. “Política de Defesa Nacional.” 2005. https://www.defesa.gov.br/pdn/index.php?page=home. Organização dos Estados Americanos. “Declaração http://www.oas.org/documents/por/DeclaracionSecurity. 7 sobre Segurança nas Américas.” 2003.