“E SE FOSSE COMIGO?” : OS ADOLESCENTES FRENTE A UMA SITUAÇÃO HIPOTÉTICA DE GRAVIDEZ1 Maria Helena Fávero2 RESUMO Estudou-se a relação entre sexualidade, prevenção e gravidez. Vinte adolescentes, dez rapazes e dez moças, entre 14 e 18 anos foram, segundo uma situação hipotética de gravidez, submetidos a uma entrevista semi-estruturada sobre a suposta reação: das famílias, do(a) namorado(a); dos(as) amigos(as); sua própria. A análise revelou que, a despeito das informações sobre preservativos e contraceptivos, os adolescentes admitem não os adotar; o uso de preservativo associa-se à avaliação da relação do casal: se “casual”, sim, se “séria”, não; tal avaliação baseia-se no julgamento moral dos papéis sexuais; a paternidade e a maternidade associam-se aos modelos tradicionais dos papéis de gênero. Discutemse os resultados em relação a outros estudos e à idéia do amor romântico conforme veiculado no contexto da cultura pós-moderna da mídia e do mercado e como fonte mantenedora das concepções tradicionais de gênero. Conclui-se sobre a possibilidade de intervenção na educação do masculino e do feminino. Palavras-chave: adolescência, sexualidade, gravidez, mídia. ABSTRACT “WHAT IF IT HAPPENED TO ME ?: ADOLESCENTS FACING A HYPOTHETICAL SITUATION OF PREGNANCY The relationship among sexuality, prevention and pregnancy has been 1 Trabalho desenvolvido como parte do Projeto Integrado de Pesquisa 44 A Psicologia do conhecimento: uma linha de pesquisa para o estudo do desenvolvimento de valores, representações, conceitos e teorias concebidas na interação entre o ser humano e a sociocultura, com o apoio do CNPq, e dele participaram as bolsistas de Iniciação Científi ca, Fabiana Marques e Tatiana Lionço. 2 Universidade de Brasília- UnB Universitas - Psicologia 2 (2) 62-81 (2001) 63 studied. 20 adolescents, 10 boys and 10 girls, aged between 14 and 18 years old, were submitted to a semi-structured interview, involving a hypothetical situation of pregnancy. The analysis of the interviews reveal that the adolescents admit not to use condoms in spite of the widespread information on the use of these methods; the use of condoms is associated with an evaluation of the quality of the relationship established by the couple. Such evaluati is based on a moral judgement related to sex roles and gender conceptions; fatherhood and motherhood are associated with traditional gender and role models. The results in relation to other studies are discussed and the idea of romantic love spread by the midia in the post modem culture is discussed. The conclusion leads to the possibility of intervention in the education of the male and female gender roles. Key words: adolescence, sexuality, pregnancy, midia. Em fevereiro de 1998, a American Psychologist publicou um número especial sobre o que foi denominado de Ciência Desenvolvimental, título justificado por Hetherington, na introdução, para enfatizar tanto o fundamento científico como multidisciplinar do estudo do desenvolvimento e o reconhecimento de que este não está confinado à infância, mas se estende ao longo do curso da vida. E ressaltado, ainda, pela autora a necessidade de pesquisas, para usar sua expressão, “no mundo real”, em oposição às pesquisas ditas de laboratório (1998, p.93). Essa ressalva foi a tônica da tese defendida na área, sobretudo nas três últimas décadas do século XX, e, embora recorrente, e, talvez por isso mesmo, acabou ressaltando também o fato de que estudar o Desenvolvimento Humano dentro do contexto sociocultural exige que se assuma o desafio da procura de alternativas metodológicas, o que por sua vez, e por si só, implica uma séria mudança de perspectiva epistemológica. Dentro da Psicologia da Adolescência, e particularmente em relação ao estudo da gravidez, temos nos diferentes países cinco linhas principais de pesquisa: o perfil da mãe adolescente, o comportamento materno da adolescente, a criança da mãe adolescente, as conseqüências da gravidez durante a adolescência e o apoio social durante esta gravidez. A metodologia adotada, via de regra, é aquela centrada predominantemente na análise quantitativa, por meio da qual se procura estabelecer relações de causa e efeito, de modo que a discussão centrada em uma abordagem multidisciplinar nem sempre se viabiliza (Fávero & Mello, 1997). Tanto a revisão de Phipps-Yonas (1980) como, mais recentemente, a de Coley & Chase-Lansdale (1998) confirmam essa análise. Mais que isto: a necessidade que temos apontado de se obterem dados sobre a sexualidade da e do adolescente e sobre sua identidade é reforçada por Coley & Chase-Lansdale (1998). De um modo gemi, podemos dizer que hoje há pelo menos um consenso: a questão é muito mais complexa do que se estabelecer uma relação de causa e efeito entre a gravidez na adolescência e uma 64 Fávero determinada classe social ou entender esta gravidez, necessariamente, como um corte abrupto, que inviabiliza o desenvolvimento escolar da adolescente e seu desenvolvimento profissional futuro. No entanto, em nenhuma das duas revisões citadas, a gravidez na adolescência é discutida, como temos procurado fazer, em referência a uma articulação entre a Psicologia do Gênero e a Psicologia do Desenvolvimento. Isto significa mudar o foco de estudo da gravidez durante a adolescência (que pressupõe uma adolescente desviante dentro de sua faixa etária e seu nível de desenvolvimento) para a adolescente que vive a experiência de engravidar e para o adolescente que a engravida. Estudando, por exemplo, a relação entre essa experiência e a vida escolar junto a mães adolescentes, defendemos que a difícil conciliação dos papéis de ser mãe e ser estudante está relacionada com as concepções socioculturais sobre gênero e com a questão da identidade feminina e a maternidade, o que remete à questão da educação do feminino e do masculino em nossa sociedade (Fávero & Mello, 1997, p. 131). Por isto mesmo não se coloca a questão da escolaridade em relação ao adolescente que é pai. Assim, temos insistido no significado de transgressão que é conferido a esta gravidez tida, portanto, como essencialmente feminina (Fávero & Mello, 1995; Fávero & Mello, 1997). Entre 1998 e 1999, o próprio Ministério da Saúde insistiu na divulgação de dados estatísticos sobre a incidência de gravidez na adolescência. Esta questão também tem chamado a atenção da mídia, sobretudo na imprensa escrita. Exemplo disso foi a matéria de 1998, mais precisamente do dia 29 de agosto que a Folha de São Paulo publicou sob o título “Jovem que transa mais se protege menos”, revelando dados de uma pesquisa realizada junto a rapazes de 18 anos, a respeito de vida sexual e prevenção. Na matéria, é apontado o grau de informação sobre a transmissão do HIV e o uso do preservativo. Foi salientado que quanto mais escolaridade maior a freqüência do uso de preservativo; quanto mais freqüente são as relações sexuais, menos freqüente o uso de preservativo; mais da metade dos entrevistados afirmam usar o preservativo todas as vezes que mantêm relações sexuais com a namorada (Bemardes, 1998). No mesmo jornal, Dimenstein (1998) inicia uma matéria, afirmando que 15 % das garotas de 15 a 19 anos usam, no Brasil, métodos de contracepção - o que explica, segundo o jornalista, porque nessa faixa etária uma em cada dez já tenha dois filhos. Em Brasília, no Correio Braziliense de 11 de junho de 1999, Lima noticia que, numa escola pública da Ceilândia Sul (cidade satélite do DF), a educação sexual era tema de aula depois que 12 alunas ficaram grávidas, e centrava-se, sobretudo, no uso do preservativo. Ainda em 1999, Seira, Ministro da Saúde, assina uma matéria na Folha de São Paulo, adjetivando a gravidez na adolescência de “drama sem final feliz”. Embora essas reportagens se refiram ao rapaz no que concerne ao uso ou não do preservativo, o fato é que, quando a gravidez é constatada, o rapaz desaparece, como num passe de mágica. Esta característica também é freqüente nos relatos de pesquisa: a gravidez Universitas - Psicologia 2 (2) 62-81 (2001) 65 é da adolescente, depois do nascimento do bebê a matemagem também é dela e inúmeors estudos analisam quão adequada ou não é a adolescente nessa matemagem. Não há publicações semelhantes em relação à patemagem praticada pelo adolescente. Tendo estas questões em consideração, o estudo que relataremos a seguir teve duas características básicas diferentes daqueles que desenvolvemos anteriormente e aos quais já fizemos referência: enquanto deles participaram mães adolescentes e adolescentes grávidas de classes sociais diferentes, neste não nos limitamos às adolescentes, e incluímos os adolescentes, todos sem história prévia de gravidez. Trata-se, assim, de um estudo junto a adolescentes de ambos os sexos, com o objetivo de investigar suas concepções sobre os gêneros masculino e feminino e suas articulações com a sexualidade, a gravidez, a maternidade, a paternidade, e o uso de preservativos e contraceptivos. Inspirando-nos em estudos nos quais as situações hipotéticas têm sido usadas com êxito, como é o caso do estudo de Smith & Coll. (1996) sobre atitudes sexuais, cognição e percepção da vulnerabilidade em relação à gravidez não planejada, entendemos que, expondo os adolescentes a uma situação hipotética - tomar conhecimento de estar grávida, para as adolescentes, e tomar conhecimento da gravidez de sua namorada, para os adolescentes, nos levaria ao objetivo proposto acima. Em última análise, tratava-se de levar em consideração a capacidade cognitiva do adolescente na lida com situações hipotéticas e utilizá-la numa situação que lhe desse voz. Método: Sujeitos Participaram deste estudo vinte sujeitos, estudantes da Rede Particular de Ensino do Plano Piloto de Brasília, DF, constituindo-se quatro grupos, a saber: cinco sujeitos do sexo masculino na faixa etária entre 14-15 anos, cursando a 8a série do Io grau; cinco sujeitos do sexo feminino, na mesma faixa etária e mesma escolaridade; cinco sujeitos do sexo masculino na faixa etária de 17-18 anos, cursando o 3o ano do 2o grau, e cinco sujeitos do sexo feminino nesta mesma faixa etária e mesma escolaridade. Procedimento de coleta de dados Os sujeitos foram abordados nas dependências das escolas que freqüentavam, mediante a prévia autorização de suas diretorias. Após sua anuência em participar da pesquisa, era-lhes apresentado, individualmente, uma situação 66 Fávero hipotética de gravidez: “suponha que você descubra que está grávida”, para as moças; “suponha que você tome conhecimento de que sua namorada está grávida”, para os rapazes. Esta situação hipotética inicial se desenvolvia, então, numa entrevista semi-estruturada, segundo quatro eixos norteadores: a suposta reação da família; a suposta reação do(a) namorado(a); a suposta reação dos amigos(as); a suposta reação pessoal. Todas as entrevistas foram gravadas, com a autorização dos sujeitos, em áudio, e transcritas na íntegra para análise. Procedimento de análise dos dados Utilizando o mesmo procedimento de análise já descrito em estudo anterior, tomamos a fala dos sujeitos como um texto, no sentido defendido por Lotman (1988a), ou seja, como um veículo mediador de um determinado conteúdo, de um pensamento que se verbaliza, em referência a um texto maior, sociocultural, no qual ele se insere. Considerando então o texto subjetivo, dentro da perspectiva da semiótica da cultura, tomamos, como sugeriu Bakhtin (1992), a proposição como unidade de análise. Em outras palavras, “convertemos o conteúdo da fala transcrita em proposições que, em última análise, é o mesmo que extrair de uma forma lingüística mais complexa -o parágrafo, por exemplo- os sentidos nela implícitos, através de uma forma lingüística mais simples: a frase afirmativa” (Fávero & Mello, 1997, p. 133). Cada uma das 20 entrevistas foi assim analisada. Essa análise foi desenvolvida em quatro etapas, sendo uma etapa para cada um dos subgrupos de sujeitos já descritos. Desse modo, foi possível elaborar uma síntese do discurso feminino e uma síntese do discurso masculino a partir das quais desenvol vemos a discussão geral dos resultados e as conclusões. Como preservamos o anonimato dos sujeitos, estes foram identificados na transcrição, como sujeito número X (de 1 a 5, para cada um dos quatro grupos), seguido de F ou M para feminino e masculino, por sua vez seguido do número 3 (para 3o ano do 2o grau) ou 8 (para 8a série do Io grau). Por exemplo, sujeito 1F3, significa: Io sujeito do grupo feminino, estudante do 3o ano do 2o grau. Para cada um dos sujeitos assim identificados, construímos quadros divididos verticalmente em três colunas. Na coluna da esquerda, temos o discurso do sujeito; na coluna do meio, as proposições extraídas do conteúdo desse discurso e, na coluna da direita, uma análise do significado dessas proposições, priorizando a questão da articulação entre a cognição e a emoção. Horizontalmente os quadros apresentam os grandes temas produzidos pelo discurso dos sujeitos que, como descritos nos resultados, não se restringiram aos eixos das entrevistas. Apresentamos a seguir extratos desses quadros: Universitas - Psicologia 2 (2) 62-81 (2001) 67 Quadro 1: Extrato da análise da entrevista de um sujeito do sexo masculino, estudante de 3o ano do 2o Grau. ENTREVISTA:! M 3° DISCURSO Reação da namorada “ Olha só, além de ter tudo o que a sociedade faz com a gente, que é falso moralismo, puritanismo, esse tipo de besteira, além dela passar por todo esse negócio: “Ah, tá grávida'’, esse tipo de comentário e não sei o quê, além disso, teria também a responsabilidade dela dobrada, porque ela ia cuidar de um filho, ela que vai... bom, o filho tá nela, e vai ficar nove meses ali, depois que nasce vai amamentar, esse tipo de coisa, ela teria que se dedicar, se doar ao filho completamente, por uma boa parte da vida, e sei lá, ela fica nove meses com o filho lá, depois seis meses amamentando, esse tipo de coisa, mudaria a vida dela nesse sentido, eu acho. Até uma fase tal da gravidez ela teria que deixar a escola, o trabalho, se ela estiver estudando vai ter que deixar, se estiver trabalhando vai ter que parar, tem uma hora que vai ter que parar, tem que pedir uma licença e qualquer coisa assim em tal estágio da vida dela, então ela teria, no dia-a-dia dela, o cotidiano dela mudaria, e também ela teria que se doar integralmente... porque ela fica com o filho, né, tem que ter uma assistência... integral.” PROPOSIÇÕES -A sociedade é moralmente falsa -A sociedade é puritana. - Quando uma adolescente engravida ela é submetida a um julgamento moral. - Quando uma adolescente engravida ela é responsável pelo filho. Uma gravidez altera completamente a vida de uma adolescente. A gravidez está na adolescente. -Uma gravidez exige que a adolescente deixe a escola e/ ou o trabalho. - A maternidade exige doação completa por parte da mãe. A gravidez altera completamente a vida da mulher. -A maternidade exige dedicação integral por parte da mãe. -Cabe à mãe ficar com o filho. -Cabe à mãe dar assistência integral ao filho. ANÁLISE O sujeito afirma que a carga a ser enfrentada pela adolescente que engravida é dupla: de um lado, ela sofreria um julgamento moral por parte da sociedade, que é puritana e moralmente falsa, e, de outro, sua vida seria completamente alterada pelas exigências da gravidez e da maternidade. 0 sujeito define a gravidez, de um modo geral, como algo que deve se tornar prioridade absoluta na vida da mulher, ou da adolescente, sendo que, para tanto, o trabalho e/ou o estudo devem ser colocados em segundo plano. Isto é justificado com o argumento de que o filho está nela, em primeiro lugar, e, em segundo, porque do fato deste exigir assistência em tempo integral, cabe a ela fornecer-lhe. 68 Fávero Quadro 2: Extrato da análise do discurso de um sujeito do sexo feminino, estudante de 8a série do Io Grau. ENTREVISTA: 1 F 8 DISCURSO Primeiras reações PROPOSIÇÕES ANÁLISE “Tipo assim, eu ia ficar abalada, né, ia levar um choque, porque eu nunca ia esperar uma coisa dessas. Primeiro porque, sei lá, eu acho que comigo não ia acontecer, pelo menos nessa idade. Mas se acontecesse, eu ia ficar super assim, minha mãe, sabe, completamente, não ia acreditar, porque você nunca acredita que acontece com você. E tipo assim, de primeiro eu ia pensar em tudo, nossa, acho que ia ser a pior fase. Depois, sei lá, porque eu sou contra o aborto, né, então ter esse filho, eu acho que minha mãe ia acabar dando apoio, e assim, eu acho que ia passar por um montão de coisa, porque tem muita gente que não apóia, eu pelo menos não sou a favor, entendeu, eu ia ter esse filho”. -Se eu ficasse grávida eu ia ficar chocada. -Eu nunca esperaria ficar grávida na adolescência. -Comigo uma gravidez nessa idade nunca ia acontecer. -Se eu ficasse grávida minha mãe não ia acreditar. -A gente nunca acredita que possa engravidar nessa idade. -Se eu ficasse grávida nesta idade, a pior fase seria o momento de tomar conhecimento da situação. -Como eu sou contra o aborto, se eu ficasse grávida eu teria o filho. -Eu penso que a minha mãe acabaria por me dar apoio. -Se eu ficasse grávida passaria por situações difíceis. -Muita gente não dá apoio quando uma adolescente engravida. -Se eu ficasse grávida, eu teria a criança. O sujeito não consegue se imaginar grávida e acredita que isso não aconteceria com ela, enquanto adolescente, porque, segundo ela, a adolescente nunca acredita que possa engravidar. Na hipótese de uma gravidez, o sujeito acredita que a pior fase que enfrentaria seria o momento inicial onde se dá a tomada de consciência da gravidez. 0 sujeito se diz contra o aborto, o que justificaria sua decisão de ter o filho na hipótese de uma gravidez. Uma das preocupações centrais do sujeito na hipótese de uma gravidez na adolescência seria a reação de sua mãe, embora acredite que esta acabaria por lhe dar apoio Universitas - Psicologia 2 (2) 62-81 (2001) 69 ENTREVISTA: 1 F 8 DISCURSO Conversa sobre sexualidade na família “Minha mãe teve aquela criação bem antiga, né, ela não é de conversar muito, mas assim, eu sempre freqüentei grupos de igreja, de religião, que sei lá, palestras sobre gravidez, e eu sempre, sabe, vi como é que é. Agora assim, minha mãe é daquelas que: “Ah, minha filha grávida, é só depois do casamento”, entendeu, e se ela soubesse, eu já perguntei isso pra ela, ela ia ficar louca; pra ela, ela falou assim: “vou até mudar de cidade, porque eu não acredito que a minha filha...”. (...) tipo assim, a gente brincando assim porque uma amiga nossa ficou, né, aí ela falou que ia ficar muito assim, achando que tinha sido um erro de criação, não sei o quê, mas ela ia acabar dando o apoio. (...) prevenção?... Não, ela conversa superficialmente, mas ela, tipo assim, ela não sabe nem como falar. Quando tá passando alguma coisa, ou acontece alguma coisa, ela comenta, conversa com a gente, comigo ou com a minha irmã, mas sempre assim, ela sempre fica meio... fechada nesse assunto, porque ela fala mais por cima, que tem que se prevenir, mas ela fala assim, sempre depois que comentam essas coisas. PROPOSIÇÕES -Minha mãe foi criada à moda antiga e não conversa sobre sexo. -Eu sempre freqüentei religiosos onde havia palestras sobre gravidez. -Nas palestras sobre gravidez eu aprendi sobre suas conseqüências. -Minha mãe só aceita gravidez depois do casamento. -Se eu ficasse grávida minha mãe se mudaria da cidade. -Minha mãe nunca aceitaria que eu ficasse grávida nesta idade. -Minha mãe atribui a gravidez na adolescência a um erro de criação. -Apesar da sua posição acho que minha mãe acabaria dando apoio. -Minha mãe toca no assunto de prevenção e vida sexual apenas quando essa questão é levantada por terceiros (conversas sociais e programas de TV). -Minha mãe fala sobre sexualidade apenas superficialmente ANÁLISE 0 sujeito alega que para sua mãe uma gravidez na adolescência é moralmente incorreto, e atribui este fato aos padrões morais nos quais ela foi educada que, segundo ela, era “à moda antiga”, pressupondo, então, que, numa determinada época, o tema sexualidade era considerado um tabu. Declara que seu conhecimento a respeito de questões relacionadas à sexualidade provém de contextos outros, que não o familiar. O sujeito acredita que atualmente a sexualidade é um assunto abordado socialmente, mas que sua mãe tem dificuldade em abordar o assunto porque atribui valores negativos à sexualidade antes do casamento. Em nenhum momento o sujeito acredita que sua mãe, ao assumir um certo discurso em relação à sexualidade e à possibilidade de gravidez na adolescência, está definindo as normas do que seja boa conduta para sua filha. Fávero 70 Resultados e discussão Da análise das entrevistas, obtiveram-se 16 grandes temas abordados pelos sujeitos: primeiras reações pessoais (dele, dela, ou de ambos) diante de uma suposta gravidez; primeiras reações da família (dele, dela ou dele e dela) diante de uma suposta gravidez; dificuldades para o enfrentamento de uma suposta gravidez; reação do namorado diante de uma suposta gravidez dela; a reação da namorada diante de uma suposta gravidez dela; reação dos amigos diante de uma suposta gravidez da namorada; suposta reação dos amigos diante de uma suposta gravidez dela; a tomada de decisões frente a uma suposta gravidez (dela, ou da namorada dele); a alteração no relacionamento do casal de namorados diante de uma suposta gravidez; a virgindade; a conversa sobre sexualidade no contexto familiar; a conversa sobre sexualidade com os amigos; o uso de métodos contraceptivos e preventivos no namoro; a discussão entre amigos (as) sobre o uso de métodos contraceptivos e preventivos; as condições para uma relação sexual ideal; o cuidado ginecológico. Como já havíamos encontrado em estudo anterior (Fávero & Mello, 1997), independentemente do sexo, da idade e da escolaridade, os sujeitos são unânimes em considerar a gravidez na adolescência como precoce. Fora dessa concordância geral, os discursos das moças e dos rapazes se diferenciam significativamente. Para o grupo feminino, como um todo, a principal preocupação diante de uma suposta gravidez seria comunicar o fato à família, sobretudo à mãe. A justificativa para essa preocupação baseia-se na reprovação familiar e o conseqüente julgamento moral que a gravidez implicaria, percebida como uma transgressão, o que, como dissemos na introdução, já havíamos encontrado nos trabalhos anteriores, nos relatos de adolescentes grávidas, ou já mães. Vale ressaltar que esta reprovação toma o sentido também de uma auto-reprovação que, em última análise, assume a gravidez com o significado de transgressão. Isso é apontado como a maior dificuldade no enfrentamento de uma suposta gravidez. Por isso mesmo, a hipótese de uma gravidez traria, portanto, como reação inicial, o desespero. O fato seria comunicado, inicialmente, para o namorado, e depois para a família. O grande problema, segundo as adolescentes, seria o fato de o rapaz assumir ou não essa gravidez, o que independeria de assumir um casamento ou não. O argumento para fundamentar tal assertiva é que o casamento não necessariamente garantiria o compromisso com a paternidade, efetivamente. Em sua grande maioria, as moças admitem que pensariam, como um modo inicial de enfrentamento, na solução via aborto, para, em seguida, afirmarem que não teriam coragem, uma vez que isto seria “tirar uma vida”. Ou seja, a reação delas Universitas - Psicologia 2 (2) 62-81 (2001) 71 diante da hipótese de uma gravidez baseia-se na suposta reação de desaprovação da família, em primeiro lugar, e da incerteza do compromisso do namorado diante da situação. O discurso sobre essa reação do namorado é centrado, predominantemente, na idéia do “amor ideal” e do parceiro ideal. Assim, as adolescentes apresentam em seu discurso dois modelos distintos de reação, relacionados a dois modelos distintos de namorado: um para descrever a reação de um rapaz dito “qualquer” diante de uma suposta gravidez de sua namorada, e um outro para descrever a reação do próprio namorado diante da hipótese de sua gravidez. No primeiro caso, as adolescentes descrevem três fases pelas quais o rapaz passaria: uma fase de empolgação inicial e mútua, isto é, partilhada com a namorada e que teria relação com a prova de masculinidade que uma gravidez pode representar; uma segunda fase, caracterizada por um afastamento gradativo; e uma terceira, caracterizada pelo afastamento total. A justificativa para este afastamento seria o não “comprometimento fisiológico”: eles podem se afastar, na medida em que a gravidez não acontece com eles (ou “neles”). No segundo caso, isto é, em relação ao próprio namorado, isto não aconteceria, segundo elas, pelo simples fato de ser o “seu” namorado, e, portanto, alguém especial. O que se apreende da análise dessas entrevistas é que esse duplo modelo em relação à reação dos rapazes diz respeito a uma elaboração entre, de um lado, o ideal de amor e de parceiro, e, de outro, o que elas relatam do que já observaram por meio das experiências de colegas adolescentes que engravidaram de fato. Essa idéia do amor ideal acaba permeando os temas abordados de um modo geral e traz uma elaboração particular: o namoro tenderia, de um modo geral, a sofrer uma mudança com uma gravidez, exceto no caso de tratar-se do seu próprio namoro; os pré-requisitos para uma relação sexual ideal baseiam-se na boa índole do namorado, definido como aquele que será bom marido e bom pai; o uso de contraceptivos se restringe ao uso da “camisinha” que, segundo elas é importante, cabendo à moça solicitar seu uso ao rapaz, mas é, ao mesmo tempo, dispensável com o próprio namorado, sendo enfatizada a confiança mútua, que acaba sendo entendida como um método contraceptivo e preventivo. Em outros termos, é como se elas dissessem que essa tal “confiança mútua” , possível por meio da boa índole do namorado, garantisse a contracepção e a prevenção. Ao mesmo tempo, no discurso delas, não solicitar ao namorado o uso da camisinha tem o significado de uma prova de amor, ao mesmo tempo que a solicitar poderia ser interpretado pelo namorado tanto como prova de falta de confiança nele, como prova de infidelidade dela. Ou seja, o discurso sobre a prevenção e a contracepção é contraditório, e as próprias adolescentes afirmam 72 Fávero que, embora todos admitam nas conversas entre amigos, a importância de seu uso, na prática isto não ocorre. Vê-se, portanto, como a questão do gênero, de sua identidade e do julgamento moral associado a ele permeia todo esse discurso. Convergente com isto, a explicação para justificar o conceito de precocidade em relação à gravidez na adolescência baseia-se na mudança que dela decorre em relação aos relacionamentos sociais: segundo elas, o desempenho do papel materno altera os interesses e práticas de convívio social, na medida em que este papel exige dedicação integral. Isso explicaria, também, porque a continuação dos estudos se tornaria inviável e porque haveria o afastamento por parte dos amigos. Nenhuma referência à paternidade é feita neste tema. Ela só aparece em relação ao casamento ou não casamento, como já foi dito, mas no sentido mais uma vez, do amor ideal: “como ele me ama, ele ficaria comigo”. É como se assumir a paternidade, se restringisse ao reconhecimento legal da criança, num sentido, parece-nos, muito próximo ao de uma “reparação moral”. Em relação às conversas em família a respeito de vida sexual, é interessante notar que as adolescentes com freqüência afirmam nas entrevistas que são seus pais e não suas mães que se encarregam delas. No entanto, o teor dessas conversas, na verdade, centra-se na prescrições de regras de conduta moral, ou seja, do que elas “podem” e do que “não podem” fazer em relação ao sexo. E é neste contexto que a questão da virgindade é abordada. A manutenção da virgindade, segundo o discurso das adolescentes, é enfatizada pelos pais e aconselhada pelas mães. Isso mantém o círculo vicioso para o qual já chamávamos a atenção em trabalho anterior (Fávero & Mello, 1997): as relações sexuais escondidas pelas adolescentes, o conseqüente não acompanhamento ginecológico e o não uso de contraceptivos, o medo constante de uma gravidez e, ao mesmo tempo, o pensamento mágico para enfrentar este medo, do tipo “isto não vai acontecer comigo... e se acontecer, comigo vai ser diferente, porque meu namorado é diferente”... “porque você nunca acredita que acontece com você”... Para o grupo masculino, a principal preocupação diante da hipótese de gravidez da namorada seria comunicar e enfrentar a reação das famílias: de sua própria e da família da namorada. Como no grupo feminino, para o masculino também há a preocupação com a desaprovação familiar, com a acusação, sobretudo, de falta de precaução no sentido de evitar a gravidez. Mas afirmam que haveria apoio após o que eles chamam de “crise inicial”, embora fique dúbio que tipo de apoio seria: o de apoiá-lo para assumir a paternidade ou de apoiá-lo para não a assumir. Universitas - Psicologia 2(2) 62-81 (2001) 73 Em especial os rapazes do 3o ano do 2o grau enfatizam como a responsabilidade de uma paternidade poderia pôr fim a todos seus planos para o futuro e os planos das famílias para eles. A primeira reação seria, portanto, de um certo receio em comunicar o fato à família. Segundo o grupo masculino, a reação da namorada diante da hipótese de gravidez iria depender do apoio do namorado e do apoio de sua própria família. É enfatizado que, após uma dificuldade inicial, haveria por parte da adolescente grávida a aceitação de seu papel “natural” de procriação. A probabilidade de assumir ou não a paternidade dependeria do tipo de relacionamento do casal: se “sério” ou “casual”. No entanto, não temos dados das entrevistas que dêem indícios efetivos sobre o conceito de relacionamento sério e de relacionamento casual. O que se depreende do discurso é que, em se tratando do primeiro, o rapaz daria apoio à namorada grávida, mas também não fica claro de que natureza seria esse apoio. Por exemplo, nada é dito sobre a possibilidade de dividir os cuidados com a criança para viabilizar a continuação dos estudos da moça. Por outro lado, fica bastante claro que a gravidez é dela, e o discurso sobre a maternidade como um fato natural, é recorrente. Ou seja, o dito apoio, ao qual o adolescente se refere, não se traduz, em seu discurso, na descrição de um determinado ato efetivo de sua parte. Nesse grupo há uma ênfase mais acentuada no que diz respeito à reação dos amigos, do que se pode constatar no grupo feminino. Para eles, haveria o apoio dos chamados “amigos de verdade”, havendo pouca ou nenhuma interferência da gravidez nessas amizades. Em contrapartida, eles acreditam que, em relação à moça, seria diferente: haveria uma reação negativa por parte dos amigos, reação esta baseada na reprovação moral. Com relação ao uso da “camisinha”, obtivemos um discurso cuja elaboração se parece com o discurso do grupo feminino: cabe à moça solicitar seu uso mas, ao mesmo tempo, aquela que a carregar na bolsa não é de boa índole moral; com a namorada, seu uso é dispensável. Cabe aqui a mesma observação já feita para o grupo feminino em relação ao amor ideal: a namorada é “pura” e a confiança é o método preventivo eleito. Mais uma vez também se repete que, embora se admita nas conversas entre amigos a necessidade do uso de preservativos, na prática isto não acontece de fato. No que diz respeito ao diálogo sobre sexo no contexto familiar é dito que ele não existe ou é adjetivado de restrito. De um modo geral, o discurso do grupo masculino em relação à situação colocada pela entrevista pode ser descrita como a de um observador em relação a algo que, em última análise, 74 Fávero não estaria ocorrendo com ele, e sim, com a namorada. Esses resultados, obtidos com adolescentes sem história de gravidez confirmam aqueles obtidos nos estudos com a adolescentes grávidas e com mães adolescentes (Fávero & Mello, 1997). Eles confirmam, também, os resultados de estudos desenvolvidos em outras cidades brasileiras como o de Vaz Lira (1998), por exemplo, sobre as representações sociais de adolescentes grávidas sobre a maternidade e desenvolvido em João Pessoa no qual a autora conclui sobre uma simbologia ligada à concepção da maternidade como algo inevitável à condição feminina, e o estudo de Lopes & Gomes (1998), desenvolvido em Campo Grande, sobre as representações sociais dos gêneros masculino e feminino das profissionais que trabalham nas creches. Em resumo, mais uma vez ficou evidenciado o significado de transgressão moral que essa gravidez adquire, à medida que ela denuncia a atividade sexual da adolescente. O sentido de inadequação em relação a essa atividade sexual é, como vimos, evidenciado também nos temas relacionados ao uso de preservativos e de contraceptivos. O uso do preservativo, em particular, está relacionado a categorias de relacionamentos casuais, categorias estas que parecem ter como base uma valoração moral. É assim que os adolescentes de ambos os sexos diferenciam os relacionamentos sexuais entre “sérios” e “casuais”, de modo que o uso do preservativo fica restrito aos últimos e relacionado a um sentido de promiscuidade, em oposição ao conceito de fidelidade sexual. Ou seja, ficou evidenciado que, tanto para os adolescentes como para as adolescentes, e compatível com o estudo já citado de Vaz Lira (1998) e com o estudo de Zeide Araújo Trindade (1993), há o predomínio de aspectos que remetem ao papel tradicional do gênero e aos modelos tradicionais da paternidade e da maternidade. Não há como negar, portanto, que, embora se tenha dados suficientes de que os adolescentes, de um modo geral, estão iniciando sua atividade sexual mais cedo (ver, por exemplo, reportagem publicada pela Revista Isto é, n. 1531, de 03/ 02/1999), isto não significa que os tabus e os mitos relacionados ao sexo tenham sido desconstruídos. Aliás, Almeida (1996) já havia atentado para o que ela chamou de metáfora do sexo e seus diferentes registros de consideração e sentido. Em um estudo com sujeitos adultos do sexo masculino, ela constatou que, no plano do conteúdo, ou seja, do discurso visível e explícito, assim como das expressões utilizadas pelos entrevistados, há uma identificação com padrões nítidos da modernidade e liberação. Refiro-me ao uso quase corriqueiro e indiscriminado de palavrões, gírias e inúmeras metáforas sexuais, que pressuporiam atitudes de informalidade, naturalidade e quebra da inibição Universitas — Psicologia 2 (2) 62-81 (2001) 75 ou distância, as quais caracterizariam aquele tipo de relação, sobretudo com uma mulher. De outro lado, porém, no plano que chamei do mecanismo e que corresponderia a uma espécie de estrutura menos visível e aparente dos sujeitos, é possível surpreender a presença de traços arcaicos e quase primitivos da relação dos entrevistados com a dimensão sexual (p. 139). Uma das provas disso é justamente o discurso dos adolescentes sobre o uso de preservativos e contraceptivos que, como vimos, é articulado com a índole do parceiro e a avaliação da relação, assim como a conseqüente manutenção do que chamamos em estudo anterior de “pensamento mágico”, aquele do tipo “isto não vai acontecer comigo”, tanto em referência ao risco de uma gravidez como em referência ao risco de contaminação de doenças sexualmente transmissíveis. Do ponto de vista da Psicologia do Gênero, podemos dizer, então, que os esteriótipos sobre os gêneros masculino e feminino, usando a terminologia da área (ver Deaux,1995) ou, em outros termos, as representações sociais de gênero (como nos estudos já citados) desempenham um papel importante entre outros processos rotineiros de categorização e julgamento que sustentam uma determinada prática do uso de preservativos e contraceptivos, num contexto de moralidade sexual. Por outro lado, tanto neste como em outros estudos, os adolescentes são unânimes em afirmar seu conhecimento e informações sobre os riscos relacionados a essa prática. Do ponto de vista cognitivo, a questão que se coloca então é: como que, apesar da informação e conhecimento, os adolescentes continuam se arriscando, tanto a uma situação de gravidez não desejada, como a doenças sexualmente transmissíveis? Diz a reportagem da Isto é: os adolescentes de hoje ouvem mais sobre sexo do que jamais sonharam seus pais e avós, mas o índice crescente de gravidez de meninas de 13 a 19 anos indica um despreparo alarmante” (p.77). E, em seguida, a matéria nos fornece números significativos: “do total de partos realizados em 1997 no Brasil, 25% eram de adolescentes, contra 23% dois anos antes. Ao manter relações sexuais sem nenhum contraceptivo e, evidentemente, sem camisinha, 680.400 garotas e um número igual de parceiros homens expuseram-se ao risco de contrair HIV. Na faixa de 13 a 19 anos, os casos de Aids ficam em torno de 2% do total, o que não parece tanto. Mas este número salta para 32% dos doentes, na faixa dos 20 aos 29: provavelmente o tempo que a doença demorou para se manifestar em ex-adolescentes distraídos (p.77). 76 Fávero Retomando a questão acima, uma outra se impõe: o que os adolescentes estão “ouvindo” sobre sexo, que resulta na elaboração que nossos resultados demonstram? O que fica evidente pelos trabalhos que desenvolvemos até agora é que, no conteúdo do discurso dos adolescentes sobre vida sexual, riscos, prevenção e contracepção, há dois eixos básicos: de um lado uma idéia bem estabelecida de um amor ideal, um amor romântico e, de outro, uma prática sexual efetiva que, para se compatibilizar com a primeira idéia, normatiza-se por meio de regras morais, regras estas que, como vimos, se incompatibilizam com uma prática preventiva e contraceptiva. Ensaiando uma interpretação teórica e considerando a criança e o adolescente como construtores ativos de significados, construção esta que se elabora em interação com textos e símbolos culturais, podemos considerar que essa idéia de amor ideal, ou da “imaginação romântica”, como propõem Bachen & Illouz (1996), é construída por intermédio do conteúdo e da forma que o romance assume no contexto da cultura pós-moderna da mídia e do mercado. Esses autores tomam o termo imaginação como um conjunto de símbolos e significados que usamos, quando tentamos comunicar uma situação possível, mas ainda não existente, seja com nós mesmos, seja com os outros. Partindo de pesquisas sobre a cultura pós-modema de um lado e estudos sobre os efeitos da mídia em crianças de outro, Bachen & Illouz (1996) se propuseram a investigar as representações de romance, no contexto da cultura pós-modema, com sujeitos de 8 a 17 anos de idade, argumentando que a imaginação romântica incorpora significados que são socialmente produzidos e culturalmente padronizados e que estes significados podem ser identificados por meio de unidades cognitivas, no caso, por intermédio de imagens e scripts. Trabalhando com imagens (representação de casais apaixonados, cenas românticas, um jantar romântico) e com entrevistas abertas, os autores concluíram que os dados obtidos têm ressonância com os símbolos de consumo associados com o romance e que existe um paralelo estreito entre o conteúdo e a estrutura da compreensão do romance, na criança e no adolescente, com o conteúdo e a forma por meio da qual a mídia retrata o romance. Além disso, os autores se referem a um conflito dos adolescentes entre a expectativa criada por meio da imaginação romântica e a realidade do que eles efetivamente evidenciam em seus relacionamentos, o que é congruente com nossos resultados. Uma das hipóteses que podemos levantar, portanto, e que constitui um belo exemplo de elaboração cognitivo-afetiva, é que a imaginação romântica, Universitas - Psicologia 2 (2) 62-81 (2001) 77 tomada no sentido usado por Bachen & Illouz, que, em última análise sustenta a idéia do amor ideal, se distancia demais da situação real da atividade sexual em si. Ou, em outras palavras: talvez esse conteúdo que sustenta a idéia do amor romântico interfira com a habilidade para processar o conteúdo da informação sobre atividade sexual, prevenção e contracepção, justamente porque estes conteúdos tornam-se incompatíveis. Como sabemos, um exemplo clássico é a veiculação dos significados dos papéis masculinos e femininos, no mercado globalizado cinematográfico de Hollywood, no qual são mantidas a idéia do príncipe encantado e o da bela adormecida em inúmeras versões (ver, por exemplo, Kaplan, 1995). Além disso, como nossos dados demonstraram, as recomendações no contexto familiar se dão no sentido de inibir a atividade sexual, sobretudo das adolescentes. Isso pode acarretar, e pela análise do discurso das adolescentes acarreta de fato, um sentimento de culpa em relação a uma atividade proibida, que acaba tomando, então, como já dissemos, o sentido de transgressão, o que também deve interferir na prática sexual segura. Estas hipóteses são compatíveis com outros trabalhos. Por exemplo, segundo Smith e Coll. (1996), em conclusão de um estudo junto a 116 estudantes universitárias, solteiras, não virgens, com idade média de 19,4 anos, as emoções negativas em relação ao sexo estão relacionadas ao comportamento sexual inibido e ao comportamento contraceptivo, mas os efeitos desta inibição são primariamente problemáticos quando o nível de emocionalidade não é suficiente para inibir a atividade sexual, mas é suficientemente forte para interferir no uso efetivo de contraceptivo (ver Gerrard, Gibbons e Boney-MacCoy, 1993). Os trabalhos, nesta linha de investigação, têm demonstrado que no sexo a culpa está associada a uma lacuna geral de conhecimento sobre a contracepção (ver Fisher, 1980; Gerrard, Kurylo & Reis, 1991, por exemplo); com o desconforto em relação ao uso de métodos contraceptivos (Fisher, Fisher & Byrne, 1977); e com o uso de preservativos (Gerrard, 1987). Ou seja, as respostas emocionalmente negativas em relação à sexualidade interferem na percepção da vulnerabilidade para a gravidez não desejada uma vez que inibem o desenvolvimento dos dados cognitivos relacionados ao sexo, à contracepção e às conseqüências da atividade sexual sem proteção. Portanto, não cabe dizer que se trata de “distração”, como diz a referida reportagem da Isso é. Trata-se, em nosso entender, da mediação de significados particulares relacionados à atividade sexual em articulação com aqueles relacionados aos gêneros masculino e feminino. Fávero 78 Conclusão A questão da veiculação, por meio da chamada cultura de massa, no que se refere aos significados particulares sobre a sexualidade, sobre o amor romântico e sobre a busca do par perfeito, que seria, em última instância, o objeto do amor romântico e, em tese, justificaria a prática sexual, não é uma questão nova, pelo menos nas análises que articulam a antropologia, a sociologia e a comunicação. Morin ( 1990), por exemplo, já analisava essa questão e aqui, no Brasil, os trabalhos de Ortiz (1991) sobre a cultura de mercado no Brasil e, em particular sobre o fenômeno das telenovelas, vão nesta mesma direção. Na Psicologia do Desenvolvimento Humano ainda carecemos de trabalhos que levem em consideração o papel da mediação semiótica por intermédio da mídia, embora, como dissemos no início deste texto, venha-se enfatizando já há algum tempo o contexto sociocultural, no qual este desenvolvimento se constrói. Ora, como diz Moscovici (1994), o termo contexto não é um termo fácil de definir, mas podemos acompanhar este autor no que ele chama de “uma simplificação plausível e razoável” e considerar que o contexto representa, de uma maneira socialmente aceita, as condições de comunicação, suas características lingüísticas, assim como o conhecimento e crenças de seus participantes. Este autor recorre a Bruner (1990) para completar esta idéia e seu conceito de transação, implícita no partilhamento e na negociação de significados que pressupõe a vida social. Como vimos pela voz dos adolescentes, esta negociação e partilhamento ficam explícitos no que diz respeito à prática sexual e à prática contraceptiva e preventiva. Assim, a gravidez da adolescente é uma questão complexa e um dos aspectos que carecem de uma resposta, seguindo a tese que já explicitamos, é aquele sobre o processo de elaboração do conteúdo que é veiculado na mídia a respeito das relações amorosas, do amor e do próprio conceito de felicidade. Um outro aspecto carente de análise e relacionado a esse diz respeito ao papel da mídia na manutenção da hegemonia das representações sociais sobre os gêneros masculino e feminino. Por isso, entendemos que atribuir simplesmente a chamada gravidez precoce a uma suposta erotização precoce via TV, como defende Serra (1999), é no mínimo simplista. Por isso mesmo, desenvolvemos um estudo no qual expusemos grupos de adolescentes, homogêneos e heterogêneos quanto ao sexo, frente a três cenas selecionadas da telenovela “Por Amor” (TV Globo, 1997/98) que Universitas - Psicologia 2 (2) 62-81 (2001) 79 abordavam um dilema relacionado à maternidade e ao amor, a partir das quais se provocava uma discussão em grupo. A análise dos dados confirmou que, na interação que é estabelecida entre o telespectador e a telenovela, são elaborados conceitos, são construídos significados que concorrem e se intercambiam com outras instituições, como a família, a escola, a sociedade, tecendo-se uma rede de textos e contextos urdidos no interior de cada indivíduo. Os resultados deixam-nos ainda mais convencidas de que não podemos estudar o desenvolvimento psicológico ignorando os significados relacionados ao gênero masculino e ao gênero feminino. Se continuarmos a defender que o desenvolvimento se dá, como propunha Lotman (1988b), na interação entre o espaço semiótico ou intelectual do mundo no qual a humanidade e a sociedade humana estão inseridas e o mundo intelectual individual dos seres humanos, não há como ignorar a necessidade de se estudar o processo dessa interação e a elaboração decorrente, levando em consideração a gama de possibilidades de veiculação de significados num mundo da tecnologia de informação, porque esta é a realidade de nosso contexto sociocultural. As possibilidades de sucesso na prática psicológica com adolescentes e com os adultos que lidam com eles, tanto no que concerne à contracepção e à prevenção, como no que concerne o enfrentamento de uma situação de gravidez, relacionam-se, nos parece, com nossa compreensão sobre a interação e a elaboração já referidas. A estrutura narrativa na qual, na análise de Labouvie-Vief, Orwoll e Manion (1995), partes da mente são simbolizadas como masculinas e partes como femininas, sendo o desenvolvimento, em si, associado com a “jornada heróica do macho protagonista” , em referência à idéia de ascensão, vitória, mente e espírito, e o desenvolvimento feminino em contraste, associado com defeito, passividade, rendição, tem influenciado nossas concepções sobre mente, gênero e sobre desenvolvimento, assim como a elaboração de nossas próprias experiências no curso de nossas vidas. A reavaliação e re-elaboração às quais no referimos antes, implica, seguindo a tese das autoras acima, reconectar os significados desses dois pólos, o que envolve processos desenvolvimentais da criatividade pessoal e esforços culturais. Assim, essa “re-conexão” envolve uma nova escrita das narrativas culturais e pessoais da mente e do self, que implica as mudanças epistemológicas da filosofia e da ciência, assim como dos mitos da literatura, arte e religião.Tratando-se de adolescentes e adultos, nós temos algo valioso a favor disso: a capacidade de pensamento crítico. 80 Fávero Referências Bibliográficas: ALMEIDA, M.(1996) Masculino/Feminino: radiografia de uma tensão insolúvel. Em: MIM Almeida, Masculino/Feminino: tensão insolúvel. Rio de Janeiro: Rocco, cap. 3, pp.81-141. Andrade Lopez, Z. (1998) Representações sociais de gênero e educação infantil.[Resumo].Jornada Internacional sobre representações sociais: Teoria e campos de Aplicação (p. 188). Natal, 25 a 27/11/98. Araújo Trindade, Z. (1993).As representações sociais e o cotidiano: a questão da maternidade e da paternidade. Psicologia: Teoria e Pesquisa, vol. 9, n.3, pp. 535-546. Bachen, C.M. & Illouz, E. (1996). Imagining Romance: Young People s Cultural Models of Romance and Love. Criticai Studies in Mass Communication. 13,4, pp. 279-308. Bakhtin, M (1992). Marxismo, e filosofia da linguagem (6a edição) São Paulo: Hucitec. (Originalmente publicado em 1973 e 1977). Bernardes, B.(1998). Jovem que transa mais se protege menos. Folha de São Paulo. 3a caderno. 29 de agosto, p.l. Bruner, J.(1990). Acts of meaning. Cambridge. MA: Harvard University Press. Coley, R.L. e Chase-Lansdale, P.L. (1998). Adolescent Pregnancy and Parenthood. Recent Evidence and Future directions. American Psvchologist. Vol. 53, n. 2, pp. 152-166. Deaux, K.(1995) Gender Stereotvpes. Journal of Social Issues. vol. 51. n.l, pp. 11-20. Dimenstein, G. (1998). Desinformação provoca riscos sexuais. Folha de São Paulo. 3a caderno. 29 de agosto, p. 1. Fávero, M.H. & Mello, R.M. (1997). Adolescência, Maternidade e Vida Escolar: A Difícil Conciliação de Papéis. Psicologia: Teoria e Pesquisa, Vol. 13. n. 1, pp. 131-136. Fisher, W.A. (1980). Erotophobia-ertophilia and performance in a human sexualitv course. Unpublished manuscript, University of Western Ontario. Fisher, W. A. e Fisher, J,D.(1977). Consumer reactions to contraceptive purchasing. Personalitv and Social Psvchologv Bulletin. 3 (2). pp.293-296. Fonseca, C. & Góes, M. (1999).Eles vão transar agora. Isto É. n.1531 .3 de fevereiro, pp.76-82. Gerrard, M.(1987). Sex, Sex Guilt, and Contraceptive Use Reviseted: Trends in 1980s. Journal of Personalitv and Social Psvchology. 52. pp. 975-980. Universitas - Psicologia 2 (2) 62-81 (2001) 81 Gerrard, M.; Kurylo, M. & Reis, T.(1991).Self-esteem, erotophobia, and retention of contraceptive and AIDS information in the classroom. Journal of Applied Social Psvcholopv. 21. pp.368-379. Gerrard. M. Gibbons, F.X. (1993).Emotional inhibition of effective contraception. Anxietv. Stress. and Coping. 6.73-88. Kaplan, E.A.f 1995). A mulher e o cinema: os dois lados da câmera. Tradução de Helen Mareia P. Pessoa. Rio de Janeiro: Rocco. Labouvie-Vief, G. & Orwoll, L.(1995). Narratives of mind, gender, and the Life Course. Human Development, 38,293-257. Lima, C. (1999). Meninas barrigudas assustam as tias. Correio Brasiliense. 11 de iunho. p. 5. Lotman, Y. M.(1988a).Text withinatext. Sovietv Psvchologv. XXVIGV 32-51. Lotman, Y. M.( 1988b).The semiotes of culture and the concept of a text. Sovietv Psuchologv. XXVK3), 52-58. Morin, E.( 1990).Cultura de Massas no Século XX. Vol. 1: Neurose. 8a Edição, Rio de Janeiro: Forense Universitária. Moscovici, S.(1994). Social representations and pragmatic communication. Social Science Information (SAGE, Condon, Thousand Oaks, CA and New Delhi), 33,2,163-177. Ortiz, R. (199 IVA moderna tradição brasileira: cultura brasileira e indústria cultural. São Paulo: Brasiliense, 3a edição. Serra, J.( 1999).Gravidez precoce: drama de final feliz. Folha de São Paulo, caderno 1, 25 de agosto, p. 3. Smith, G.E.; Eggleston,T.J.; Gerrard, M. & Gibbons, F.X. (1996). Sexual Attitudes, Cognitive Associative Networks, and Perceived Vulnerability to Unplanned Pregnancy. Journal of Research in Personalitv. 30, pp.88-102. Vaz Lira, T.S. (1998). Gravidez na adolescência: as representações sociais elaboradas acerca da maternidade. Jornada Internacional Sobre representações Sociais: Teoria e Campos de Aplicação. 25 a 27/11/98. Resumos, p. 185.