“E SE FOSSE COMIGO?” : OS ADOLESCENTES FRENTE A UMA
SITUAÇÃO HIPOTÉTICA DE GRAVIDEZ1
Maria Helena Fávero2
RESUMO
Estudou-se a relação entre sexualidade, prevenção e gravidez. Vinte
adolescentes, dez rapazes e dez moças, entre 14 e 18 anos foram, segundo uma
situação hipotética de gravidez, submetidos a uma entrevista semi-estruturada
sobre a suposta reação: das famílias, do(a) namorado(a); dos(as) amigos(as);
sua própria. A análise revelou que, a despeito das informações sobre preservativos
e contraceptivos, os adolescentes admitem não os adotar; o uso de preservativo
associa-se à avaliação da relação do casal: se “casual”, sim, se “séria”, não; tal
avaliação baseia-se no julgamento moral dos papéis sexuais; a paternidade e a
maternidade associam-se aos modelos tradicionais dos papéis de gênero. Discutemse os resultados em relação a outros estudos e à idéia do amor romântico conforme
veiculado no contexto da cultura pós-moderna da mídia e do mercado e como
fonte mantenedora das concepções tradicionais de gênero. Conclui-se sobre a
possibilidade de intervenção na educação do masculino e do feminino.
Palavras-chave: adolescência, sexualidade, gravidez, mídia.
ABSTRACT
“WHAT IF IT HAPPENED TO ME ?: ADOLESCENTS FACING A
HYPOTHETICAL SITUATION OF PREGNANCY
The relationship among sexuality, prevention and pregnancy has been
1 Trabalho desenvolvido como parte do Projeto Integrado de Pesquisa 44 A Psicologia do
conhecimento: uma linha de pesquisa para o estudo do desenvolvimento de valores,
representações, conceitos e teorias concebidas na interação entre o ser humano e a
sociocultura, com o apoio do CNPq, e dele participaram as bolsistas de Iniciação Científi­
ca, Fabiana Marques e Tatiana Lionço.
2 Universidade de Brasília- UnB
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studied. 20 adolescents, 10 boys and 10 girls, aged between 14 and 18 years old, were
submitted to a semi-structured interview, involving a hypothetical situation of pregnancy.
The analysis of the interviews reveal that the adolescents admit not to use condoms in spite
of the widespread information on the use of these methods; the use of condoms is associated
with an evaluation of the quality of the relationship established by the couple. Such evaluati
is based on a moral judgement related to sex roles and gender conceptions; fatherhood and
motherhood are associated with traditional gender and role models. The results in relation to
other studies are discussed and the idea of romantic love spread by the midia in the post
modem culture is discussed. The conclusion leads to the possibility of intervention in the
education of the male and female gender roles.
Key words: adolescence, sexuality, pregnancy, midia.
Em fevereiro de 1998, a American Psychologist publicou um número especial
sobre o que foi denominado de Ciência Desenvolvimental, título justificado por
Hetherington, na introdução, para enfatizar tanto o fundamento científico como
multidisciplinar do estudo do desenvolvimento e o reconhecimento de que este não
está confinado à infância, mas se estende ao longo do curso da vida. E ressaltado,
ainda, pela autora a necessidade de pesquisas, para usar sua expressão, “no mundo
real”, em oposição às pesquisas ditas de laboratório (1998, p.93).
Essa ressalva foi a tônica da tese defendida na área, sobretudo nas três
últimas décadas do século XX, e, embora recorrente, e, talvez por isso mesmo, acabou
ressaltando também o fato de que estudar o Desenvolvimento Humano dentro do contexto
sociocultural exige que se assuma o desafio da procura de alternativas metodológicas, o que
por sua vez, e por si só, implica uma séria mudança de perspectiva epistemológica.
Dentro da Psicologia da Adolescência, e particularmente em relação ao estudo
da gravidez, temos nos diferentes países cinco linhas principais de pesquisa: o perfil
da mãe adolescente, o comportamento materno da adolescente, a criança da mãe
adolescente, as conseqüências da gravidez durante a adolescência e o apoio social
durante esta gravidez. A metodologia adotada, via de regra, é aquela centrada
predominantemente na análise quantitativa, por meio da qual se procura estabelecer
relações de causa e efeito, de modo que a discussão centrada em uma abordagem
multidisciplinar nem sempre se viabiliza (Fávero & Mello, 1997).
Tanto a revisão de Phipps-Yonas (1980) como, mais recentemente, a de Coley &
Chase-Lansdale (1998) confirmam essa análise. Mais que isto: a necessidade que temos
apontado de se obterem dados sobre a sexualidade da e do adolescente e sobre sua
identidade é reforçada por Coley & Chase-Lansdale (1998). De um modo gemi, podemos
dizer que hoje há pelo menos um consenso: a questão é muito mais complexa do que se
estabelecer uma relação de causa e efeito entre a gravidez na adolescência e uma
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Fávero
determinada classe social ou entender esta gravidez, necessariamente, como um
corte abrupto, que inviabiliza o desenvolvimento escolar da adolescente e seu
desenvolvimento profissional futuro.
No entanto, em nenhuma das duas revisões citadas, a gravidez na adolescência é
discutida, como temos procurado fazer, em referência a uma articulação entre a Psicologia
do Gênero e a Psicologia do Desenvolvimento. Isto significa mudar o foco de estudo da
gravidez durante a adolescência (que pressupõe uma adolescente desviante dentro de sua
faixa etária e seu nível de desenvolvimento) para a adolescente que vive a experiência de
engravidar e para o adolescente que a engravida. Estudando, por exemplo, a relação entre
essa experiência e a vida escolar junto a mães adolescentes, defendemos que a difícil
conciliação dos papéis de ser mãe e ser estudante está relacionada com as concepções
socioculturais sobre gênero e com a questão da identidade feminina e a maternidade, o que
remete à questão da educação do feminino e do masculino em nossa sociedade (Fávero &
Mello, 1997, p. 131). Por isto mesmo não se coloca a questão da escolaridade em relação ao
adolescente que é pai. Assim, temos insistido no significado de transgressão que é
conferido a esta gravidez tida, portanto, como essencialmente feminina (Fávero &
Mello, 1995; Fávero & Mello, 1997).
Entre 1998 e 1999, o próprio Ministério da Saúde insistiu na divulgação de
dados estatísticos sobre a incidência de gravidez na adolescência. Esta questão também
tem chamado a atenção da mídia, sobretudo na imprensa escrita. Exemplo disso foi
a matéria de 1998, mais precisamente do dia 29 de agosto que a Folha de São Paulo
publicou sob o título “Jovem que transa mais se protege menos”, revelando dados de
uma pesquisa realizada junto a rapazes de 18 anos, a respeito de vida sexual e
prevenção. Na matéria, é apontado o grau de informação sobre a transmissão do
HIV e o uso do preservativo. Foi salientado que quanto mais escolaridade maior a
freqüência do uso de preservativo; quanto mais freqüente são as relações sexuais,
menos freqüente o uso de preservativo; mais da metade dos entrevistados afirmam
usar o preservativo todas as vezes que mantêm relações sexuais com a namorada
(Bemardes, 1998). No mesmo jornal, Dimenstein (1998) inicia uma matéria, afirmando que
15 % das garotas de 15 a 19 anos usam, no Brasil, métodos de contracepção - o que explica,
segundo o jornalista, porque nessa faixa etária uma em cada dez já tenha dois filhos. Em
Brasília, no Correio Braziliense de 11 de junho de 1999, Lima noticia que, numa escola
pública da Ceilândia Sul (cidade satélite do DF), a educação sexual era tema de aula depois
que 12 alunas ficaram grávidas, e centrava-se, sobretudo, no uso do preservativo. Ainda em
1999, Seira, Ministro da Saúde, assina uma matéria na Folha de São Paulo, adjetivando a
gravidez na adolescência de “drama sem final feliz”.
Embora essas reportagens se refiram ao rapaz no que concerne ao uso ou não do
preservativo, o fato é que, quando a gravidez é constatada, o rapaz desaparece, como num
passe de mágica. Esta característica também é freqüente nos relatos de pesquisa: a gravidez
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é da adolescente, depois do nascimento do bebê a matemagem também é dela e inúmeors
estudos analisam quão adequada ou não é a adolescente nessa matemagem. Não há
publicações semelhantes em relação à patemagem praticada pelo adolescente.
Tendo estas questões em consideração, o estudo que relataremos a seguir
teve duas características básicas diferentes daqueles que desenvolvemos anteriormente
e aos quais já fizemos referência: enquanto deles participaram mães adolescentes e
adolescentes grávidas de classes sociais diferentes, neste não nos limitamos às
adolescentes, e incluímos os adolescentes, todos sem história prévia de gravidez.
Trata-se, assim, de um estudo junto a adolescentes de ambos os sexos, com o
objetivo de investigar suas concepções sobre os gêneros masculino e feminino e
suas articulações com a sexualidade, a gravidez, a maternidade, a paternidade, e
o uso de preservativos e contraceptivos.
Inspirando-nos em estudos nos quais as situações hipotéticas têm sido usadas
com êxito, como é o caso do estudo de Smith & Coll. (1996) sobre atitudes sexuais,
cognição e percepção da vulnerabilidade em relação à gravidez não planejada,
entendemos que, expondo os adolescentes a uma situação hipotética - tomar
conhecimento de estar grávida, para as adolescentes, e tomar conhecimento da gravidez de
sua namorada, para os adolescentes, nos levaria ao objetivo proposto acima. Em última
análise, tratava-se de levar em consideração a capacidade cognitiva do adolescente na lida
com situações hipotéticas e utilizá-la numa situação que lhe desse voz.
Método:
Sujeitos
Participaram deste estudo vinte sujeitos, estudantes da Rede Particular de Ensino
do Plano Piloto de Brasília, DF, constituindo-se quatro grupos, a saber: cinco sujeitos do
sexo masculino na faixa etária entre 14-15 anos, cursando a 8a série do Io grau; cinco
sujeitos do sexo feminino, na mesma faixa etária e mesma escolaridade; cinco sujeitos
do sexo masculino na faixa etária de 17-18 anos, cursando o 3o ano do 2o grau, e cinco
sujeitos do sexo feminino nesta mesma faixa etária e mesma escolaridade.
Procedimento de coleta de dados
Os sujeitos foram abordados nas dependências das escolas que
freqüentavam, mediante a prévia autorização de suas diretorias. Após sua anuência
em participar da pesquisa, era-lhes apresentado, individualmente, uma situação
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Fávero
hipotética de gravidez: “suponha que você descubra que está grávida”, para as
moças; “suponha que você tome conhecimento de que sua namorada está grávida”,
para os rapazes. Esta situação hipotética inicial se desenvolvia, então, numa
entrevista semi-estruturada, segundo quatro eixos norteadores: a suposta reação
da família; a suposta reação do(a) namorado(a); a suposta reação dos amigos(as);
a suposta reação pessoal. Todas as entrevistas foram gravadas, com a autorização
dos sujeitos, em áudio, e transcritas na íntegra para análise.
Procedimento de análise dos dados
Utilizando o mesmo procedimento de análise já descrito em estudo anterior,
tomamos a fala dos sujeitos como um texto, no sentido defendido por Lotman (1988a),
ou seja, como um veículo mediador de um determinado conteúdo, de um pensamento
que se verbaliza, em referência a um texto maior, sociocultural, no qual ele se insere.
Considerando então o texto subjetivo, dentro da perspectiva da semiótica da cultura,
tomamos, como sugeriu Bakhtin (1992), a proposição como unidade de análise. Em
outras palavras, “convertemos o conteúdo da fala transcrita em proposições que, em
última análise, é o mesmo que extrair de uma forma lingüística mais complexa -o
parágrafo, por exemplo- os sentidos nela implícitos, através de uma forma lingüística
mais simples: a frase afirmativa” (Fávero & Mello, 1997, p. 133).
Cada uma das 20 entrevistas foi assim analisada. Essa análise foi
desenvolvida em quatro etapas, sendo uma etapa para cada um dos subgrupos de
sujeitos já descritos. Desse modo, foi possível elaborar uma síntese do discurso
feminino e uma síntese do discurso masculino a partir das quais desenvol vemos a
discussão geral dos resultados e as conclusões.
Como preservamos o anonimato dos sujeitos, estes foram identificados na
transcrição, como sujeito número X (de 1 a 5, para cada um dos quatro grupos),
seguido de F ou M para feminino e masculino, por sua vez seguido do número 3 (para
3o ano do 2o grau) ou 8 (para 8a série do Io grau). Por exemplo, sujeito 1F3, significa:
Io sujeito do grupo feminino, estudante do 3o ano do 2o grau. Para cada um dos
sujeitos assim identificados, construímos quadros divididos verticalmente em três colunas.
Na coluna da esquerda, temos o discurso do sujeito; na coluna do meio, as proposições
extraídas do conteúdo desse discurso e, na coluna da direita, uma análise do significado
dessas proposições, priorizando a questão da articulação entre a cognição e a emoção.
Horizontalmente os quadros apresentam os grandes temas produzidos pelo discurso dos
sujeitos que, como descritos nos resultados, não se restringiram aos eixos das entrevistas.
Apresentamos a seguir extratos desses quadros:
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Quadro 1:
Extrato da análise da entrevista de um sujeito do sexo masculino, estudante de 3o ano do 2o Grau.
ENTREVISTA:! M 3°
DISCURSO
Reação da namorada
“ Olha só, além de ter tudo o que
a sociedade faz com a gente, que é
falso
moralismo,
puritanismo,
esse tipo de besteira, além dela
passar por todo esse negócio: “Ah,
tá
grávida'’,
esse
tipo
de
comentário e não sei o quê, além
disso,
teria
também
a
responsabilidade
dela
dobrada,
porque ela ia cuidar de um filho,
ela que vai... bom, o filho tá nela,
e vai ficar nove meses ali, depois
que nasce vai amamentar, esse
tipo de coisa, ela teria que se
dedicar,
se
doar
ao
filho
completamente, por uma boa
parte da vida, e sei lá, ela fica nove
meses com o filho lá, depois seis
meses amamentando, esse tipo de
coisa, mudaria a vida dela nesse
sentido, eu acho. Até uma fase tal
da gravidez ela teria que deixar a
escola, o trabalho, se ela estiver
estudando vai ter que deixar, se
estiver trabalhando vai ter que
parar, tem uma hora que vai ter
que parar, tem que pedir uma
licença e qualquer coisa assim em
tal estágio da vida dela, então ela
teria, no dia-a-dia dela, o cotidiano
dela mudaria, e também ela teria
que se doar integralmente... porque
ela fica com o filho, né, tem que
ter uma assistência... integral.”
PROPOSIÇÕES
-A sociedade é moralmente
falsa
-A sociedade é puritana.
- Quando uma adolescente
engravida ela é submetida a um
julgamento moral.
- Quando uma adolescente
engravida ela é responsável
pelo filho.
Uma
gravidez
altera
completamente a vida de uma
adolescente.
A gravidez está na
adolescente.
-Uma gravidez exige que a
adolescente deixe a escola e/
ou o trabalho.
- A maternidade exige doação
completa por parte da mãe.
A
gravidez
altera
completamente a vida da
mulher.
-A
maternidade
exige
dedicação integral por parte
da mãe.
-Cabe à mãe ficar com o filho.
-Cabe à mãe dar assistência
integral ao filho.
ANÁLISE
O sujeito afirma que a carga a ser
enfrentada pela adolescente que
engravida é dupla: de um lado, ela
sofreria um julgamento moral por
parte da sociedade, que é puritana
e moralmente falsa, e, de outro,
sua vida seria completamente
alterada pelas exigências da
gravidez e da maternidade.
0 sujeito define a gravidez, de um
modo geral, como algo que deve
se tornar prioridade absoluta na
vida da mulher, ou da adolescente,
sendo que, para tanto, o trabalho
e/ou o estudo devem ser colocados
em segundo plano. Isto é
justificado com o argumento de
que o filho está nela, em primeiro
lugar, e, em segundo, porque do
fato deste exigir assistência em
tempo integral, cabe a ela
fornecer-lhe.
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Fávero
Quadro 2:
Extrato da análise do discurso de um sujeito do sexo feminino, estudante de 8a série do Io Grau.
ENTREVISTA: 1 F 8
DISCURSO
Primeiras reações
PROPOSIÇÕES
ANÁLISE
“Tipo assim, eu ia ficar
abalada, né, ia levar um
choque, porque eu nunca ia
esperar uma coisa dessas.
Primeiro porque, sei lá, eu
acho que comigo não ia
acontecer, pelo menos nessa
idade. Mas se acontecesse, eu
ia ficar super assim, minha
mãe, sabe, completamente,
não ia acreditar, porque você
nunca acredita que acontece
com você. E tipo assim, de
primeiro eu ia pensar em
tudo, nossa, acho que ia ser a
pior fase. Depois, sei lá,
porque eu sou contra o
aborto, né, então ter esse
filho, eu acho que minha mãe
ia acabar dando apoio, e
assim, eu acho que ia passar
por um montão de coisa,
porque tem muita gente que
não apóia, eu pelo menos não
sou a favor, entendeu, eu ia
ter esse filho”.
-Se eu ficasse grávida eu ia ficar
chocada.
-Eu nunca esperaria ficar grávida
na adolescência.
-Comigo uma gravidez nessa idade
nunca ia acontecer.
-Se eu ficasse grávida minha mãe
não ia acreditar.
-A gente nunca acredita que possa
engravidar nessa idade.
-Se eu ficasse grávida nesta idade, a
pior fase seria o momento de tomar
conhecimento da situação.
-Como eu sou contra o aborto, se
eu ficasse grávida eu teria o filho.
-Eu penso que a minha mãe acabaria
por me dar apoio.
-Se eu ficasse grávida passaria por
situações difíceis.
-Muita gente não dá apoio quando
uma adolescente engravida.
-Se eu ficasse grávida, eu teria a
criança.
O sujeito não consegue se
imaginar grávida e acredita que
isso não aconteceria com ela,
enquanto adolescente, porque,
segundo ela, a adolescente nunca
acredita que possa engravidar. Na
hipótese de uma gravidez, o
sujeito acredita que a pior fase
que enfrentaria seria o momento
inicial onde se dá a tomada de
consciência da gravidez. 0 sujeito
se diz contra o aborto, o que
justificaria sua decisão de ter o
filho na hipótese de uma
gravidez. Uma das preocupações
centrais do sujeito na hipótese
de uma gravidez na adolescência
seria a reação de sua mãe, embora
acredite que esta acabaria por lhe
dar apoio
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ENTREVISTA: 1 F 8
DISCURSO
Conversa sobre sexualidade na
família
“Minha mãe teve aquela criação
bem antiga, né, ela não é de
conversar muito, mas assim, eu
sempre freqüentei grupos de igreja,
de religião, que sei lá, palestras
sobre gravidez, e eu sempre, sabe,
vi como é que é. Agora assim,
minha mãe é daquelas que: “Ah,
minha filha grávida, é só depois
do casamento”, entendeu, e se ela
soubesse, eu já perguntei isso pra
ela, ela ia ficar louca; pra ela, ela
falou assim: “vou até mudar de
cidade, porque eu não acredito que
a minha filha...”.
(...) tipo assim, a gente brincando
assim porque uma amiga nossa
ficou, né, aí ela falou que ia ficar
muito assim, achando que tinha
sido um erro de criação, não sei o
quê, mas ela ia acabar dando o
apoio.
(...) prevenção?...
Não,
ela
conversa
superficialmente, mas ela, tipo
assim, ela não sabe nem como
falar. Quando tá passando alguma
coisa, ou acontece alguma coisa,
ela comenta, conversa com a
gente, comigo ou com a minha
irmã, mas sempre assim, ela
sempre fica meio... fechada nesse
assunto, porque ela fala mais por
cima, que tem que se prevenir, mas
ela fala assim, sempre depois que
comentam essas coisas.
PROPOSIÇÕES
-Minha mãe foi criada à moda
antiga e não conversa sobre
sexo.
-Eu sempre freqüentei religiosos
onde havia palestras sobre
gravidez.
-Nas palestras sobre gravidez
eu
aprendi
sobre
suas
conseqüências.
-Minha mãe só aceita gravidez
depois do casamento.
-Se eu ficasse grávida minha
mãe se mudaria da cidade.
-Minha mãe nunca aceitaria que
eu ficasse grávida nesta idade.
-Minha mãe atribui a gravidez
na adolescência a um erro de
criação.
-Apesar da sua posição acho que
minha mãe acabaria dando
apoio.
-Minha mãe toca no assunto de
prevenção e vida sexual apenas
quando essa questão é levantada
por terceiros (conversas sociais
e programas de TV).
-Minha
mãe
fala
sobre
sexualidade
apenas
superficialmente
ANÁLISE
0 sujeito alega que para sua mãe
uma gravidez na adolescência
é moralmente incorreto, e
atribui este fato aos padrões
morais nos quais ela foi educada
que, segundo ela, era “à moda
antiga”, pressupondo, então,
que, numa determinada época,
o
tema
sexualidade
era
considerado um tabu. Declara
que
seu
conhecimento
a
respeito
de
questões
relacionadas
à
sexualidade
provém de contextos outros,
que não o familiar.
O
sujeito
acredita
que
atualmente a sexualidade é um
assunto abordado socialmente,
mas
que
sua
mãe
tem
dificuldade em abordar o
assunto porque atribui valores
negativos à sexualidade antes
do casamento. Em nenhum
momento o sujeito acredita que
sua mãe, ao assumir um certo
discurso
em
relação
à
sexualidade e à possibilidade de
gravidez na adolescência, está
definindo as normas do que seja
boa conduta para sua filha.
Fávero
70
Resultados e discussão
Da análise das entrevistas, obtiveram-se 16 grandes temas abordados pelos
sujeitos: primeiras reações pessoais (dele, dela, ou de ambos) diante de uma suposta
gravidez; primeiras reações da família (dele, dela ou dele e dela) diante de uma
suposta gravidez; dificuldades para o enfrentamento de uma suposta gravidez; reação
do namorado diante de uma suposta gravidez dela; a reação da namorada diante de
uma suposta gravidez dela; reação dos amigos diante de uma suposta gravidez da
namorada; suposta reação dos amigos diante de uma suposta gravidez dela; a tomada
de decisões frente a uma suposta gravidez (dela, ou da namorada dele); a alteração
no relacionamento do casal de namorados diante de uma suposta gravidez; a virgindade;
a conversa sobre sexualidade no contexto familiar; a conversa sobre sexualidade
com os amigos; o uso de métodos contraceptivos e preventivos no namoro; a discussão
entre amigos (as) sobre o uso de métodos contraceptivos e preventivos; as condições
para uma relação sexual ideal; o cuidado ginecológico.
Como já havíamos encontrado em estudo anterior (Fávero & Mello, 1997),
independentemente do sexo, da idade e da escolaridade, os sujeitos são unânimes em
considerar a gravidez na adolescência como precoce. Fora dessa concordância geral,
os discursos das moças e dos rapazes se diferenciam significativamente.
Para o grupo feminino, como um todo, a principal preocupação diante de
uma suposta gravidez seria comunicar o fato à família, sobretudo à mãe. A justificativa
para essa preocupação baseia-se na reprovação familiar e o conseqüente julgamento
moral que a gravidez implicaria, percebida como uma transgressão, o que, como
dissemos na introdução, já havíamos encontrado nos trabalhos anteriores, nos relatos
de adolescentes grávidas, ou já mães. Vale ressaltar que esta reprovação toma o
sentido também de uma auto-reprovação que, em última análise, assume a gravidez
com o significado de transgressão. Isso é apontado como a maior dificuldade no
enfrentamento de uma suposta gravidez. Por isso mesmo, a hipótese de uma gravidez
traria, portanto, como reação inicial, o desespero. O fato seria comunicado,
inicialmente, para o namorado, e depois para a família. O grande problema, segundo
as adolescentes, seria o fato de o rapaz assumir ou não essa gravidez, o que
independeria de assumir um casamento ou não. O argumento para fundamentar tal
assertiva é que o casamento não necessariamente garantiria o compromisso com a
paternidade, efetivamente.
Em sua grande maioria, as moças admitem que pensariam, como um modo
inicial de enfrentamento, na solução via aborto, para, em seguida, afirmarem que não
teriam coragem, uma vez que isto seria “tirar uma vida”. Ou seja, a reação delas
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diante da hipótese de uma gravidez baseia-se na suposta reação de desaprovação da
família, em primeiro lugar, e da incerteza do compromisso do namorado diante da situação.
O discurso sobre essa reação do namorado é centrado, predominantemente,
na idéia do “amor ideal” e do parceiro ideal. Assim, as adolescentes apresentam em
seu discurso dois modelos distintos de reação, relacionados a dois modelos distintos
de namorado: um para descrever a reação de um rapaz dito “qualquer” diante de uma
suposta gravidez de sua namorada, e um outro para descrever a reação do próprio
namorado diante da hipótese de sua gravidez.
No primeiro caso, as adolescentes descrevem três fases pelas quais o rapaz
passaria: uma fase de empolgação inicial e mútua, isto é, partilhada com a namorada
e que teria relação com a prova de masculinidade que uma gravidez pode representar;
uma segunda fase, caracterizada por um afastamento gradativo; e uma terceira,
caracterizada pelo afastamento total. A justificativa para este afastamento seria o
não “comprometimento fisiológico”: eles podem se afastar, na medida em que a gravidez
não acontece com eles (ou “neles”).
No segundo caso, isto é, em relação ao próprio namorado, isto não aconteceria,
segundo elas, pelo simples fato de ser o “seu” namorado, e, portanto, alguém especial.
O que se apreende da análise dessas entrevistas é que esse duplo modelo
em relação à reação dos rapazes diz respeito a uma elaboração entre, de um lado,
o ideal de amor e de parceiro, e, de outro, o que elas relatam do que já observaram
por meio das experiências de colegas adolescentes que engravidaram de fato.
Essa idéia do amor ideal acaba permeando os temas abordados de um
modo geral e traz uma elaboração particular: o namoro tenderia, de um modo
geral, a sofrer uma mudança com uma gravidez, exceto no caso de tratar-se do
seu próprio namoro; os pré-requisitos para uma relação sexual ideal baseiam-se
na boa índole do namorado, definido como aquele que será bom marido e bom pai;
o uso de contraceptivos se restringe ao uso da “camisinha” que, segundo elas é
importante, cabendo à moça solicitar seu uso ao rapaz, mas é, ao mesmo tempo,
dispensável com o próprio namorado, sendo enfatizada a confiança mútua, que
acaba sendo entendida como um método contraceptivo e preventivo. Em outros
termos, é como se elas dissessem que essa tal “confiança mútua” , possível por
meio da boa índole do namorado, garantisse a contracepção e a prevenção.
Ao mesmo tempo, no discurso delas, não solicitar ao namorado o uso da
camisinha tem o significado de uma prova de amor, ao mesmo tempo que a
solicitar poderia ser interpretado pelo namorado tanto como prova de falta de
confiança nele, como prova de infidelidade dela. Ou seja, o discurso sobre a
prevenção e a contracepção é contraditório, e as próprias adolescentes afirmam
72
Fávero
que, embora todos admitam nas conversas entre amigos, a importância de seu
uso, na prática isto não ocorre.
Vê-se, portanto, como a questão do gênero, de sua identidade e do
julgamento moral associado a ele permeia todo esse discurso. Convergente com
isto, a explicação para justificar o conceito de precocidade em relação à gravidez
na adolescência baseia-se na mudança que dela decorre em relação aos
relacionamentos sociais: segundo elas, o desempenho do papel materno altera os
interesses e práticas de convívio social, na medida em que este papel exige
dedicação integral. Isso explicaria, também, porque a continuação dos estudos se
tornaria inviável e porque haveria o afastamento por parte dos amigos. Nenhuma
referência à paternidade é feita neste tema. Ela só aparece em relação ao
casamento ou não casamento, como já foi dito, mas no sentido mais uma vez, do
amor ideal: “como ele me ama, ele ficaria comigo”. É como se assumir a
paternidade, se restringisse ao reconhecimento legal da criança, num sentido,
parece-nos, muito próximo ao de uma “reparação moral”.
Em relação às conversas em família a respeito de vida sexual, é interessante
notar que as adolescentes com freqüência afirmam nas entrevistas que são seus
pais e não suas mães que se encarregam delas. No entanto, o teor dessas conversas,
na verdade, centra-se na prescrições de regras de conduta moral, ou seja, do que
elas “podem” e do que “não podem” fazer em relação ao sexo. E é neste contexto
que a questão da virgindade é abordada. A manutenção da virgindade, segundo o
discurso das adolescentes, é enfatizada pelos pais e aconselhada pelas mães.
Isso mantém o círculo vicioso para o qual já chamávamos a atenção em trabalho
anterior (Fávero & Mello, 1997): as relações sexuais escondidas pelas adolescentes,
o conseqüente não acompanhamento ginecológico e o não uso de contraceptivos,
o medo constante de uma gravidez e, ao mesmo tempo, o pensamento mágico
para enfrentar este medo, do tipo “isto não vai acontecer comigo... e se acontecer,
comigo vai ser diferente, porque meu namorado é diferente”... “porque você nunca
acredita que acontece com você”...
Para o grupo masculino, a principal preocupação diante da hipótese
de gravidez da namorada seria comunicar e enfrentar a reação das famílias:
de sua própria e da família da namorada. Como no grupo feminino, para o
masculino também há a preocupação com a desaprovação familiar, com a
acusação, sobretudo, de falta de precaução no sentido de evitar a gravidez.
Mas afirmam que haveria apoio após o que eles chamam de “crise inicial”,
embora fique dúbio que tipo de apoio seria: o de apoiá-lo para assumir a
paternidade ou de apoiá-lo para não a assumir.
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Em especial os rapazes do 3o ano do 2o grau enfatizam como a
responsabilidade de uma paternidade poderia pôr fim a todos seus planos para o
futuro e os planos das famílias para eles. A primeira reação seria, portanto, de um
certo receio em comunicar o fato à família.
Segundo o grupo masculino, a reação da namorada diante da hipótese de
gravidez iria depender do apoio do namorado e do apoio de sua própria família. É
enfatizado que, após uma dificuldade inicial, haveria por parte da adolescente
grávida a aceitação de seu papel “natural” de procriação. A probabilidade de
assumir ou não a paternidade dependeria do tipo de relacionamento do casal: se
“sério” ou “casual”. No entanto, não temos dados das entrevistas que dêem indícios
efetivos sobre o conceito de relacionamento sério e de relacionamento casual. O
que se depreende do discurso é que, em se tratando do primeiro, o rapaz daria
apoio à namorada grávida, mas também não fica claro de que natureza seria
esse apoio. Por exemplo, nada é dito sobre a possibilidade de dividir os cuidados
com a criança para viabilizar a continuação dos estudos da moça. Por outro
lado, fica bastante claro que a gravidez é dela, e o discurso sobre a
maternidade como um fato natural, é recorrente. Ou seja, o dito apoio, ao
qual o adolescente se refere, não se traduz, em seu discurso, na descrição de
um determinado ato efetivo de sua parte.
Nesse grupo há uma ênfase mais acentuada no que diz respeito à reação
dos amigos, do que se pode constatar no grupo feminino. Para eles, haveria o
apoio dos chamados “amigos de verdade”, havendo pouca ou nenhuma interferência
da gravidez nessas amizades. Em contrapartida, eles acreditam que, em relação
à moça, seria diferente: haveria uma reação negativa por parte dos amigos, reação
esta baseada na reprovação moral.
Com relação ao uso da “camisinha”, obtivemos um discurso cuja
elaboração se parece com o discurso do grupo feminino: cabe à moça solicitar
seu uso mas, ao mesmo tempo, aquela que a carregar na bolsa não é de boa índole
moral; com a namorada, seu uso é dispensável. Cabe aqui a mesma observação já
feita para o grupo feminino em relação ao amor ideal: a namorada é “pura” e a
confiança é o método preventivo eleito. Mais uma vez também se repete que,
embora se admita nas conversas entre amigos a necessidade do uso de
preservativos, na prática isto não acontece de fato.
No que diz respeito ao diálogo sobre sexo no contexto familiar é dito
que ele não existe ou é adjetivado de restrito. De um modo geral, o discurso
do grupo masculino em relação à situação colocada pela entrevista pode ser
descrita como a de um observador em relação a algo que, em última análise,
74
Fávero
não estaria ocorrendo com ele, e sim, com a namorada.
Esses resultados, obtidos com adolescentes sem história de gravidez
confirmam aqueles obtidos nos estudos com a adolescentes grávidas e com mães
adolescentes (Fávero & Mello, 1997). Eles confirmam, também, os resultados de
estudos desenvolvidos em outras cidades brasileiras como o de Vaz Lira (1998),
por exemplo, sobre as representações sociais de adolescentes grávidas sobre a
maternidade e desenvolvido em João Pessoa no qual a autora conclui sobre uma
simbologia ligada à concepção da maternidade como algo inevitável à condição
feminina, e o estudo de Lopes & Gomes (1998), desenvolvido em Campo Grande,
sobre as representações sociais dos gêneros masculino e feminino das profissionais
que trabalham nas creches.
Em resumo, mais uma vez ficou evidenciado o significado de transgressão
moral que essa gravidez adquire, à medida que ela denuncia a atividade sexual da
adolescente. O sentido de inadequação em relação a essa atividade sexual é,
como vimos, evidenciado também nos temas relacionados ao uso de preservativos
e de contraceptivos. O uso do preservativo, em particular, está relacionado a
categorias de relacionamentos casuais, categorias estas que parecem ter como
base uma valoração moral. É assim que os adolescentes de ambos os sexos
diferenciam os relacionamentos sexuais entre “sérios” e “casuais”, de modo que
o uso do preservativo fica restrito aos últimos e relacionado a um sentido de
promiscuidade, em oposição ao conceito de fidelidade sexual.
Ou seja, ficou evidenciado que, tanto para os adolescentes como para as
adolescentes, e compatível com o estudo já citado de Vaz Lira (1998) e com o estudo
de Zeide Araújo Trindade (1993), há o predomínio de aspectos que remetem ao papel
tradicional do gênero e aos modelos tradicionais da paternidade e da maternidade.
Não há como negar, portanto, que, embora se tenha dados suficientes de
que os adolescentes, de um modo geral, estão iniciando sua atividade sexual mais
cedo (ver, por exemplo, reportagem publicada pela Revista Isto é, n. 1531, de 03/
02/1999), isto não significa que os tabus e os mitos relacionados ao sexo tenham
sido desconstruídos. Aliás, Almeida (1996) já havia atentado para o que ela chamou
de metáfora do sexo e seus diferentes registros de consideração e sentido. Em
um estudo com sujeitos adultos do sexo masculino, ela constatou que,
no plano do conteúdo, ou seja, do discurso visível e explícito, assim
como das expressões utilizadas pelos entrevistados, há uma identificação
com padrões nítidos da modernidade e liberação. Refiro-me ao uso quase
corriqueiro e indiscriminado de palavrões, gírias e inúmeras metáforas sexuais,
que pressuporiam atitudes de informalidade, naturalidade e quebra da inibição
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ou distância, as quais caracterizariam aquele tipo de relação, sobretudo com
uma mulher. De outro lado, porém, no plano que chamei do mecanismo e que
corresponderia a uma espécie de estrutura menos visível e aparente dos
sujeitos, é possível surpreender a presença de traços arcaicos e quase primitivos
da relação dos entrevistados com a dimensão sexual (p. 139).
Uma das provas disso é justamente o discurso dos adolescentes sobre o
uso de preservativos e contraceptivos que, como vimos, é articulado com a índole
do parceiro e a avaliação da relação, assim como a conseqüente manutenção do
que chamamos em estudo anterior de “pensamento mágico”, aquele do tipo “isto
não vai acontecer comigo”, tanto em referência ao risco de uma gravidez como
em referência ao risco de contaminação de doenças sexualmente transmissíveis.
Do ponto de vista da Psicologia do Gênero, podemos dizer, então, que os
esteriótipos sobre os gêneros masculino e feminino, usando a terminologia da
área (ver Deaux,1995) ou, em outros termos, as representações sociais de gênero
(como nos estudos já citados) desempenham um papel importante entre outros
processos rotineiros de categorização e julgamento que sustentam uma
determinada prática do uso de preservativos e contraceptivos, num contexto
de moralidade sexual. Por outro lado, tanto neste como em outros estudos, os
adolescentes são unânimes em afirmar seu conhecimento e informações sobre
os riscos relacionados a essa prática.
Do ponto de vista cognitivo, a questão que se coloca então é: como que,
apesar da informação e conhecimento, os adolescentes continuam se arriscando,
tanto a uma situação de gravidez não desejada, como a doenças sexualmente
transmissíveis? Diz a reportagem da Isto é:
os adolescentes de hoje ouvem mais sobre sexo do que jamais
sonharam seus pais e avós, mas o índice crescente de gravidez de
meninas de 13 a 19 anos indica um despreparo alarmante” (p.77). E,
em seguida, a matéria nos fornece números significativos: “do total
de partos realizados em 1997 no Brasil, 25% eram de adolescentes,
contra 23% dois anos antes. Ao manter relações sexuais sem nenhum
contraceptivo e, evidentemente, sem camisinha, 680.400 garotas e
um número igual de parceiros homens expuseram-se ao risco de
contrair HIV. Na faixa de 13 a 19 anos, os casos de Aids ficam em
torno de 2% do total, o que não parece tanto. Mas este número salta
para 32% dos doentes, na faixa dos 20 aos 29: provavelmente o tempo
que a doença demorou para se manifestar em ex-adolescentes
distraídos (p.77).
76
Fávero
Retomando a questão acima, uma outra se impõe: o que os adolescentes
estão “ouvindo” sobre sexo, que resulta na elaboração que nossos resultados
demonstram?
O que fica evidente pelos trabalhos que desenvolvemos até agora é
que, no conteúdo do discurso dos adolescentes sobre vida sexual, riscos,
prevenção e contracepção, há dois eixos básicos: de um lado uma idéia bem
estabelecida de um amor ideal, um amor romântico e, de outro, uma prática
sexual efetiva que, para se compatibilizar com a primeira idéia, normatiza-se
por meio de regras morais, regras estas que, como vimos, se incompatibilizam
com uma prática preventiva e contraceptiva.
Ensaiando uma interpretação teórica e considerando a criança e o
adolescente como construtores ativos de significados, construção esta que se elabora
em interação com textos e símbolos culturais, podemos considerar que essa idéia
de amor ideal, ou da “imaginação romântica”, como propõem Bachen & Illouz
(1996), é construída por intermédio do conteúdo e da forma que o romance assume
no contexto da cultura pós-moderna da mídia e do mercado. Esses autores tomam
o termo imaginação como um conjunto de símbolos e significados que usamos,
quando tentamos comunicar uma situação possível, mas ainda não existente, seja
com nós mesmos, seja com os outros.
Partindo de pesquisas sobre a cultura pós-modema de um lado e estudos
sobre os efeitos da mídia em crianças de outro, Bachen & Illouz (1996) se
propuseram a investigar as representações de romance, no contexto da cultura
pós-modema, com sujeitos de 8 a 17 anos de idade, argumentando que a imaginação
romântica incorpora significados que são socialmente produzidos e culturalmente
padronizados e que estes significados podem ser identificados por meio de unidades
cognitivas, no caso, por intermédio de imagens e scripts.
Trabalhando com imagens (representação de casais apaixonados, cenas
românticas, um jantar romântico) e com entrevistas abertas, os autores concluíram
que os dados obtidos têm ressonância com os símbolos de consumo associados
com o romance e que existe um paralelo estreito entre o conteúdo e a estrutura da
compreensão do romance, na criança e no adolescente, com o conteúdo e a forma
por meio da qual a mídia retrata o romance. Além disso, os autores se referem a
um conflito dos adolescentes entre a expectativa criada por meio da imaginação
romântica e a realidade do que eles efetivamente evidenciam em seus
relacionamentos, o que é congruente com nossos resultados.
Uma das hipóteses que podemos levantar, portanto, e que constitui um
belo exemplo de elaboração cognitivo-afetiva, é que a imaginação romântica,
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tomada no sentido usado por Bachen & Illouz, que, em última análise sustenta a
idéia do amor ideal, se distancia demais da situação real da atividade sexual em si.
Ou, em outras palavras: talvez esse conteúdo que sustenta a idéia do amor romântico
interfira com a habilidade para processar o conteúdo da informação sobre atividade
sexual, prevenção e contracepção, justamente porque estes conteúdos tornam-se
incompatíveis. Como sabemos, um exemplo clássico é a veiculação dos significados
dos papéis masculinos e femininos, no mercado globalizado cinematográfico de
Hollywood, no qual são mantidas a idéia do príncipe encantado e o da bela
adormecida em inúmeras versões (ver, por exemplo, Kaplan, 1995).
Além disso, como nossos dados demonstraram, as recomendações no
contexto familiar se dão no sentido de inibir a atividade sexual, sobretudo das
adolescentes. Isso pode acarretar, e pela análise do discurso das adolescentes
acarreta de fato, um sentimento de culpa em relação a uma atividade proibida,
que acaba tomando, então, como já dissemos, o sentido de transgressão, o que
também deve interferir na prática sexual segura.
Estas hipóteses são compatíveis com outros trabalhos. Por exemplo,
segundo Smith e Coll. (1996), em conclusão de um estudo junto a 116
estudantes universitárias, solteiras, não virgens, com idade média de 19,4
anos, as emoções negativas em relação ao sexo estão relacionadas ao
comportamento sexual inibido e ao comportamento contraceptivo, mas os
efeitos desta inibição são primariamente problemáticos quando o nível de
emocionalidade não é suficiente para inibir a atividade sexual, mas é
suficientemente forte para interferir no uso efetivo de contraceptivo (ver
Gerrard, Gibbons e Boney-MacCoy, 1993).
Os trabalhos, nesta linha de investigação, têm demonstrado que no
sexo a culpa está associada a uma lacuna geral de conhecimento sobre a
contracepção (ver Fisher, 1980; Gerrard, Kurylo & Reis, 1991, por exemplo);
com o desconforto em relação ao uso de métodos contraceptivos (Fisher,
Fisher & Byrne, 1977); e com o uso de preservativos (Gerrard, 1987). Ou
seja, as respostas emocionalmente negativas em relação à sexualidade
interferem na percepção da vulnerabilidade para a gravidez não desejada
uma vez que inibem o desenvolvimento dos dados cognitivos relacionados ao
sexo, à contracepção e às conseqüências da atividade sexual sem proteção.
Portanto, não cabe dizer que se trata de “distração”, como diz a referida
reportagem da Isso é. Trata-se, em nosso entender, da mediação de significados
particulares relacionados à atividade sexual em articulação com aqueles
relacionados aos gêneros masculino e feminino.
Fávero
78
Conclusão
A questão da veiculação, por meio da chamada cultura de massa, no
que se refere aos significados particulares sobre a sexualidade, sobre o amor
romântico e sobre a busca do par perfeito, que seria, em última instância, o
objeto do amor romântico e, em tese, justificaria a prática sexual, não é uma
questão nova, pelo menos nas análises que articulam a antropologia, a sociologia e
a comunicação. Morin ( 1990), por exemplo, já analisava essa questão e aqui, no
Brasil, os trabalhos de Ortiz (1991) sobre a cultura de mercado no Brasil e, em
particular sobre o fenômeno das telenovelas, vão nesta mesma direção.
Na Psicologia do Desenvolvimento Humano ainda carecemos de
trabalhos que levem em consideração o papel da mediação semiótica por
intermédio da mídia, embora, como dissemos no início deste texto, venha-se
enfatizando já há algum tempo o contexto sociocultural, no qual este
desenvolvimento se constrói.
Ora, como diz Moscovici (1994), o termo contexto não é um termo
fácil de definir, mas podemos acompanhar este autor no que ele chama de
“uma simplificação plausível e razoável” e considerar que o contexto
representa, de uma maneira socialmente aceita, as condições de comunicação,
suas características lingüísticas, assim como o conhecimento e crenças de
seus participantes. Este autor recorre a Bruner (1990) para completar esta
idéia e seu conceito de transação, implícita no partilhamento e na negociação
de significados que pressupõe a vida social.
Como vimos pela voz dos adolescentes, esta negociação e partilhamento
ficam explícitos no que diz respeito à prática sexual e à prática contraceptiva e
preventiva. Assim, a gravidez da adolescente é uma questão complexa e um dos
aspectos que carecem de uma resposta, seguindo a tese que já explicitamos, é
aquele sobre o processo de elaboração do conteúdo que é veiculado na mídia a
respeito das relações amorosas, do amor e do próprio conceito de felicidade. Um
outro aspecto carente de análise e relacionado a esse diz respeito ao papel da
mídia na manutenção da hegemonia das representações sociais sobre os gêneros
masculino e feminino. Por isso, entendemos que atribuir simplesmente a chamada
gravidez precoce a uma suposta erotização precoce via TV, como defende Serra
(1999), é no mínimo simplista.
Por isso mesmo, desenvolvemos um estudo no qual expusemos grupos
de adolescentes, homogêneos e heterogêneos quanto ao sexo, frente a três
cenas selecionadas da telenovela “Por Amor” (TV Globo, 1997/98) que
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abordavam um dilema relacionado à maternidade e ao amor, a partir das
quais se provocava uma discussão em grupo. A análise dos dados confirmou
que, na interação que é estabelecida entre o telespectador e a telenovela,
são elaborados conceitos, são construídos significados que concorrem e se
intercambiam com outras instituições, como a família, a escola, a sociedade,
tecendo-se uma rede de textos e contextos urdidos no interior de cada
indivíduo. Os resultados deixam-nos ainda mais convencidas de que não
podemos estudar o desenvolvimento psicológico ignorando os significados
relacionados ao gênero masculino e ao gênero feminino. Se continuarmos a
defender que o desenvolvimento se dá, como propunha Lotman (1988b), na
interação entre o espaço semiótico ou intelectual do mundo no qual a
humanidade e a sociedade humana estão inseridas e o mundo intelectual
individual dos seres humanos, não há como ignorar a necessidade de se estudar
o processo dessa interação e a elaboração decorrente, levando em
consideração a gama de possibilidades de veiculação de significados num
mundo da tecnologia de informação, porque esta é a realidade de nosso
contexto sociocultural.
As possibilidades de sucesso na prática psicológica com adolescentes
e com os adultos que lidam com eles, tanto no que concerne à contracepção
e à prevenção, como no que concerne o enfrentamento de uma situação de
gravidez, relacionam-se, nos parece, com nossa compreensão sobre a
interação e a elaboração já referidas. A estrutura narrativa na qual, na análise
de Labouvie-Vief, Orwoll e Manion (1995), partes da mente são simbolizadas
como masculinas e partes como femininas, sendo o desenvolvimento, em si,
associado com a “jornada heróica do macho protagonista” , em referência à
idéia de ascensão, vitória, mente e espírito, e o desenvolvimento feminino em
contraste, associado com defeito, passividade, rendição, tem influenciado
nossas concepções sobre mente, gênero e sobre desenvolvimento, assim como
a elaboração de nossas próprias experiências no curso de nossas vidas. A
reavaliação e re-elaboração às quais no referimos antes, implica, seguindo a
tese das autoras acima, reconectar os significados desses dois pólos, o que
envolve processos desenvolvimentais da criatividade pessoal e esforços
culturais. Assim, essa “re-conexão” envolve uma nova escrita das narrativas
culturais e pessoais da mente e do self, que implica as mudanças
epistemológicas da filosofia e da ciência, assim como dos mitos da literatura,
arte e religião.Tratando-se de adolescentes e adultos, nós temos algo valioso
a favor disso: a capacidade de pensamento crítico.
80
Fávero
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“E SE FOSSE COMIGO?” : OS ADOLESCENTES FRENTE A UMA