Valeriano Santos Costa CELEBRAR O AMOR na plenitude do tempo - O ritmo do Ano Litúrgico - Introdução Esta obra apresenta o Ano Litúrgico como celebraçãoeficazdasalvaçãodeDeusrealizadanomundopor meio da pessoa e da obra de Jesus Cristo. Há muitos escritos sobre o Ano Litúrgico, o que é naturalmente bom. Nossa contribuição, porém, está no foco que damos aoamordeDeus,eixodasalvaçãocelebradaaolongo do Ano Litúrgico. Todas as celebrações que compõem o rico tecido do Ano Litúrgico são derramamentos do Amor, a começar pelo batismo. Os capítulos iniciais propõemjustamenteestareflexão:aimportânciadecelebrar o Ano Litúrgico sob o prisma do amor. OAmor,compreendidocomoosermesmodeDeus, constituiagrandedoação,concretaeeficazqueoperaa 5 Celebrar o amor na plenitude do tempo: o ritmo do Ano Litúrgico salvação oferecida pelo mistério pascal de Jesus. Esse amor divino, assimilado na estrutura psicoafetiva da pessoa, é a proposta mais contundente e atual para ajudar o ser humano do nosso tempo a reconstruir sua vida e sua afetividade com laços mais duradouros do que os que regem o contexto cultural global, classificado criticamente pelo sociólogo polonês Zygmunt Bauman como modernidade e pós-modernidade líquidas. Pouco tempo atrás falava-se em sociedade fragmentada. Hoje já se fala em algo mais grave: em um processo de liquefação de tudo. Uma cultura fragmentada ainda podia ser vista como um todo em pedaços, mas uma cultura líquida não tem contorno algum, tudo se acomoda e muda de acordo com o ambiente, voltado agora a satisfações imediatas – o que convém neste momento pode não convir daqui a pouco. A nosso ver, a humanidade está entrando em um clima de sofrimento psíquico insuportável, cujas consequências atingem também o interior das Igrejas e das pessoas religiosas em geral. Não é preciso lembrar o sentimentodeperplexidadequeissoestácausando. Nessecontexto,Baumanfaladabuscadeumamor puro, que não é senão o amor desvinculado de qualquerlaçodecompromisso–afirmaçãoporsisómuito estranha,poisamorecompromissoemDeus,afontedo amor,sãoentrelaçadospornatureza.Daíaestranheza causada quando Bauman chama esse tipo de amor puro de “amor líquido”. Pois bem, tudo o que se pode entender sobre o amor deDeuséqueéconsistenteesólido.Eéesseamorque 6 Introdução o conjunto das celebrações do Ano Litúrgico nos oferece em regime de pura gratuidade como demonstração viva da misericórdia de Deus. A maior dificuldade é crer nesse amor, entregar-se a ele e renovar-se nele, mantendoaparticipaçãolitúrgicaatualizada. Convidamos o leitor a fazer esta viagem nas profundezasdafé,celebradapelaliturgiacristãemantida pela Igreja Católica na arquitetura magnífica do Ano Litúrgico. “Sacia-nos com teu amor pela manhã, e, alegres, exultaremos nossos dias todos.” (Sl 90,14) 7 1 O tempo do louvor “Odiaamanheceu”,afirmaoApóstolo,“jáéhorade acordar” (cf. Rm 13,11). O sol está brilhando. É preciso abrirasjanelasdocoraçãoparaaluzentrar.Dizaindao Apóstolo:“Vistamosaarmaduradaluz”(Rm13,13)com a veste que é o próprio Jesus, cujo brilho na noite escura dahumanidadefezresplandeceromistériodoamor. Sobre o amor muito se fala em todos os ambientes. A diferença do ambiente da fé é que, para se falar do amor, éprecisodeixá-lofalarprimeiro,comodizosalmo:“faze-me ouvir teu amor pela manhã” (Sl 143,8). Ouvir o Amor pela manhã implica que ele seja a primeira palavra do diálogocomDeus.Nãoháperíodotãoapropriadoparaafala do Amor do que o Ano Litúrgico da Igreja. Não vamos à 9 Celebrar o amor na plenitude do tempo: o ritmo do Ano Litúrgico Igreja para falar, mas para escutar. E, quando a resposta brota, já está em nível de louvor. Embora aconteça no húmusdoserhumano,olouvorrevelaapresençadeDeus comunicando-se na intimidade da pessoa. É a glória de Deustãobuscadaedesejada,e,sobretudo,comunicada. PodemosdizerqueoAnoLitúrgicoéumregistro doamordeDeusemseuderramamentoatual.Aliturgia coloca-se na manhã da ressurreição. Mas só pode realizarsuaeficáciaparaaquelesquereconhecemasede vorazinstaladanoser,amesmasedequefezAgostinho buscar até encontrar sua saciedade. E ela está no amor, que, saciado pela manhã, resulta naquela alegria que geraexultaçãoatéofimdosdias.Seasaciedadevemno fimdodia,oudosdias,restaráumlamentosemelhante ao gemer do entardecer, que não tem retorno, restando somenteoconsolopelacertezadodiaseguinte.Éo“tarde te amei” de Agostinho.1 Contudo, não importa que seja tarde, o que vale é encontrar o louvor que a liturgia fazbrotaremnossoslábios,comoexpressaAgostinho: Grande és tu, Senhor, e sumamente louvável: grande a tua força, e a tua sabedoria 1. “Tardeteamei,óbelezatãoantigaetãonova!Tardedemaiste amei!Eisquehabitavasdentrodemimeeuteprocuravaaolado defora!Eu,disforme,lançava-mesobreasbelasformasdastuas criaturas. Estavas comigo, mas eu não estava contigo. Retinham-melongedetiastuascriaturas,quenãoexistiriamseemtinão existissem.Tumechamaste,eteugritorompeuaminhasurdez. Fulguraste e brilhaste, e a tua luz afugentou a minha cegueira. Espargistetuafragrânciae,respirando-a,suspireiporti.Eusaboreei e agora tenho fome e sede de ti. Tu me tocaste, e agora estou ardendonodesejodatuapaz.”AGOSTINHO.Confissões. Livro X, 38. São Paulo: Paulus, 1997. p. 299. 10 O tempo do louvor não tem limite. E quer louvar-te o homem, esta parcela de tua criação; o homem carregado com sua condição mortal, carregado com o testemunho do seu pecado e com o testemunho de que resistes aos soberbos; e, mesmo assim, quer louvar-te o homem, esta parcela da tua criação. Tu o incitas paraquesintaprazeremlouvar-te;fizeste-o para ti, e inquieto está o nosso coração enquanto não repousa em ti.2 O louvor é o estado mais perfeito da nossa relação comDeusefuncionacomoumaponteparaasrelações humanas. Por isso o louvor é o estágio mais elaborado da fé e, ao mesmo tempo, representa a condição psíquicamaisabertaaodiálogo.Olouvorsefazdoamorpara o amor e representa uma condição psíquica estável e um status de satisfação com a vida fundamental para o relacionamento humano. 2. AGOSTINHO. Confissões. Livro X, 38. São Paulo: Paulus, 1997. p. 19. 11 2 O amor movimenta a fé Imaginamos o Ano Litúrgico como um círculo fechado ou em espiral animado pela pedagogia das cores que representam a dinâmica dos ciclos, chave para a compreensão das celebrações cristãs. O fato de se preferir,muitasvezes,queocírculoquerepresentaoAno Litúrgico não seja fechado, mas em espiral, quer afirmar o princípio histórico de um movimento que foge do eterno retorno da concepção grega do tempo. Indo mais fundo, perguntamo-nos: o que realmente movimenta o Ano Litúrgico e a própria história, não permitindo que ela signifique simplesmente a volta cíclica ao começo, mas um avanço em busca da meta a se alcançar? A resposta é o amor vivido na intimidade humana, originado 13 Celebrar o amor na plenitude do tempo: o ritmo do Ano Litúrgico numaesferatranscendentee,porisso,identificadoneste estudo pelo binômio amor-ágape. O binômio quer caracterizarumtipodeamorquetemsuafonteemDeus, salientando seu estrito senso de doação e autoentrega, enquanto há outras formas de se compreender o amor que fogem desse padrão ou até lhe são contrárias. O uso indiscriminado do verbo amar denota que o amor está empauta,masmuitasvezescomsentidoscontraditórios. Com o binômio, queremos frisar que o amor, compreendido como dissemos acima, é a alma de todas as celebrações do mistério da encarnação, cujo cume é a paixão, morte e ressurreição do Filho de Deus, ou seja, o mistério pascal de Jesus Cristo, que, “tendo amado os seusqueestavamnomundo,amou-osatéofim” (Jo 13,1). Somente o amor-ágape dá sentido ao conjunto das celebrações da Igreja ao longo do Ano Litúrgico. Por isso a Igreja reúneosfiéisparaqueofereçamemtodaparte,donascer ao pôr do sol, um sacrifício perfeito3. O sacrifício de Cristo é o único perfeito por causa de sua autodoação total, gesto supremo e absoluto de entrega amorosa. “O amor é o vínculo da perfeição” (Cl 3,14) e, ao mesmo tempo, a bênção original que precede e supera o pecado original, pois o Pai “nos escolheu antes da fundação do mundo para sermos santos e irrepreensíveis diante dele no amor” (Ef 1,4). DaíquenossofocoparaanálisedoAnoLitúrgicoé oamor-ágape.NãoéporoutrarazãoqueoAnoLitúrgicoexistesenãoparaoperaroamordeDeusemnós. A dura realidade de que há cristãos que participam das 3. Oração Eucarística III. 14 O amor movimenta a fé celebrações litúrgicas regularmente sem, no entanto, tornarem-se pessoas melhores, enquanto capacidade de relação humana, é uma questão de fundo que acompanha o decorrer destas páginas em busca de caminhos de superação da crise entre liturgia e vida. Na verdade, issoconstituiescândaloquetravaamissãoejustificao declínio do cristianismo em muitos lugares do mundo. Para aprofundar o sentido do binômio amor-ágape, é preciso compreender o termo “ágape”. Ágape é um substantivo feminino grego que o Novo Testamento usou para traduzir o conceito dos apóstolos e evangelistas sobre a essência de Deus e o dom do próprio Deus à natureza humana: o amor redentor que opera a salvação que Cristo nos trouxe com seu mistério pascal. Então falar de ágape é falar do próprioDeus.ParaXavierZubiri,antesdesefalardoser de Deus, é preciso considerar que, ao longo de todo o Novo Testamento, se discorre a ideia de que Deus é amor, ágape. A insistência dessa afirmação tanto em São João (Jo 3,31; 10,17; 15,9; 17,23-26; 1Jo 4,8) como em São Paulo (2Cor 13,11; Ef 1,6; Cl 1,13 etc.) e a energia especial com que se emprega o verbo ménein, permanecer (“permanecei no meu amor”), são um bom indício de que não se trata de uma vaga metáfora nem de um atributomoraldeDeus,senãodeumacaracterização metafísicadoserdeDeus.4 4. ZUBIRI, Xavier. Naturaleza historia Dios.Madrid:AlianzaEditorial – Fundação Xavier Zubiri, 13a edição, 2007. p. 463-464. (Obs.: as traduções feitas nesta obra das citações de Xavier Zubiri são livres.) 15 Celebrar o amor na plenitude do tempo: o ritmo do Ano Litúrgico Para melhor compreendermos o pensamento de Zubiri a respeito do que ele chama de atributo moral, temosdedistinguirentre“ser”e“fazer”.Fazeréuma capacidade que brota da faculdade humana chamada vontade, mais facilmente ligada ao aspecto racional, ao passo que o ser remete à intimidade enquanto essência reveladora da totalidade da pessoa e núcleo do sentimento. Se o amor fosse mero atributo moral de Deus, nãoseriaosermesmodeDeus.DiríamosqueDeus,entre tantos, tem o atributo de amar. Nesse sentido, amar seria uma decisão de Deus e não revelação mais profundadoseuserenquantotal.ParaDeus,“seréamar”, simplesmente.OamornãoéumatributomoraldeDeus, mas a essência mais autêntica do seu ser. Portanto, quandoDeusdáamor,revela-se,dando-seasimesmo. Oamoréadefiniçãomaisperfeitaeomelhorconceito deDeus.Noconjuntodascelebraçõesquecompõemo AnoLitúrgico,Deussederramaemamor,dando-sea si mesmo para efetivar em nós uma transformação que temcomoresultadoadeificaçãodanaturezahumana. O antropocentrismo teme o conceito de deificação, supondo que ele anula a humanidade da pessoa ecomprometealiberdade.Ledoenganoefaláciatotal! Ésomentecomadeificação,obragratuitaeexpressão deamor,queoserhumanopassaporumprocessoeficazdehumanização.Ocoração,queaoladodotermo “ser” é outro conceito do núcleo da pessoa, iluminado peloamordeDeustorna-severdadeiramentehumano. ComooamordeDeusécrível,istoé,representaocumprimento da promessa feita a Abraão – pela fé – e só 16 O amor movimenta a fé pode ser percebido e acolhido – pela fé – na pessoa e na obra de Jesus-Salvador,5constituiomaiordesafiopara a própria fé. Segundo Paulo, a fé só é autêntica quando agepeloamor(cf.Gl5,6).Afééumaexperiênciahumana; o amor é um elemento divino. Fé e amor formam outro binômio que representa a sinergia mais perfeita quecaracterizaarelaçãodeDeuscomoserhumanoe vice-versa. Por isso não vamos falar de Ano Litúrgico sem o foco que o coloca no coração do mistério, mas abordando-ocomoexperiênciadoamordeDeus,derramado gratuitamente de forma objetiva e eficaz nos sacramentos e nos sacramentais, considerando que entre estes últimos refulge a liturgia das horas. Assim não corremos o risco de focar o rito pelo rito e incentivar um novo ritualismo. Quando o rito é vivido com amor e crido como derramamento eficaz do amor de Deus, torna-seumaexperiênciainéditadeDeusedoquanto elepodehumanizarnossoser. 5. Cf. Nota b, referente a Rm 4,11, da Bíblia de Jerusalém. 17 3 O conceito de amor-ágape Não é novidade que Deus é definido no Novo Testamento com o conceito de amor. Mas o problema está no conceito que podemos ter de amor. A reflexão deZubiritrazàtonaumasériaquestão:aformacomo muitoscristãosvivemoMandamentodeCristofazparecer que o amor de Deus é uma metáfora e não uma realidade concreta (metafísica). O que é metafísico tem serpróprio,istoé,temumaexistênciaqueserelaciona conosco como alteridade. Em outras palavras, o amor de Deusexisteporsimesmo,éobjetivoenãoseconfunde com sentimentos que brotam da subjetividade da pessoa, senão seria uma espécie de “eu mesmo”. A luta contra o subjetivismo religioso é uma das coisas mais maduras 19 Celebrar o amor na plenitude do tempo: o ritmo do Ano Litúrgico daespiritualidade.SeabsolutamenteDeusnãoforoutro emrelaçãoanós,oOutro,porexcelência,todaarelação transcendental corre o perigo de beirar o paganismo e de confundir o humano com o divino. Os pagãos romanos eramextremamentereligiososeperitosemcriardeuses para satisfazer seu ego. Pura subjetividade! Mas não é somentenomundopagãoqueoperigoexiste.Hápessoasreligiosasquesearvoramemafirmarquetudooque sentemérevelaçãoprovindadiretamentedeDeus,como seasfaculdadeshumanasnãofossemfiltroseinstâncias de discernimento. Então a questão que aqui se levanta, para podermos estudar o Ano Litúrgico como o grande ciclodacelebraçãodoamordeDeus,temduasvertentes. Aprimeiraé:acreditamosnoamordeDeuscomoalgo concreto? Respondida positivamente essa questão, surge outra:considerandoqueoamordeDeuséumelemento concreto, como uma espécie de alimento que se come, de que maneira ele se conjumina com o nosso ser de forma quenãocaiamosnatentaçãodeafirmarquetudooque sentimoséopróprioamordeDeusreveladoemnós?Já adiantamos a resposta, que é o viés pelo qual encaramos esteestudo:oamordeDeusétãoconcretoquantoDeus, poisDeusmesmoéamor,comocitamostextosbíblicos referidos por Zubiri. Mas o amor de Deus é o alimento espiritual, que, metaforicamente, funciona como todo alimentonatural.Éfiltradopelonossoorganismo,realizandoumasimbiosequeresultaráemvigor.Portanto,o bom alimento tem essa função, enquanto o mau alimento passapelomesmoprocessoeresultaemfraqueza.Não hánenhumperigodeoamordeDeusrobotizaroserhumano.OresultadofinaléqueoamordeDeushumaniza aspessoas,enquantoopecadodesumaniza. 20 4 Fé sem amor é fé morta Paramuitoscristãos,dizerqueoamordeDeusfoi derramado em nossos corações (Rm 5,5) é quase uma paródia, pois no dia a dia vão buscar compensação no amor humano, que é diferente do amor-ágape em seu movimento essencial. O amor humano é passional e egoísta, enquanto ágape é um amor de dileção que quer o bem do outro.6Dileçãoéafeiçãoespecial,estimasincera, ou seja, afeto concreto, sentimento de acolhimento profundo. A adoção filial transforma-nos em filhos diletos de Deus Pai (filios dilectionis tuae).7 Aqui está a 6. Cf. nota e, referente a 1Cor 13,1, da Bíblia de Jerusalém. 7. Cf.CollectainDominicaXXIII“perannum”. 21 Celebrar o amor na plenitude do tempo: o ritmo do Ano Litúrgico oposição entre o amor de dileção e outros tipos de amor: todo amor passional e egoísta tem como direção o próprio ego, enquanto o amor de dileção tem como direção o outro. É assim que funciona no mistério trinitário.8 Supõe uma relação de intimidade baseada na autoentrega. O mistério pascal de Cristo veio operar em nós a autoentrega de Deus Pai a todos os seres humanos. Senãoformoscapazesdenosdeixarenvolverporessa autoentrega oferecendo também nossa intimidade a DeusPaipormeiodeCristonoEspíritoSanto,énatural buscarmos nas criaturas o que não conseguimos encontrarnoCriadorporpurafaltadefé.Agostinhoafirma sobre essa busca equivocada: “eis que habitavas dentro de mim e eu te procurava do lado de fora. Eu, disforme, lançava-me sobre as belas formas das tuas criaturas... Retinham-me longe de mim as tuas criaturas....”9. Como afirma Zubiri, é preciso, pois, “tomar a ágape em sua dimensão ontológica e real”.10 Por isso optamos com Zubiri pela tradução do termo grego ágape por “amor” emvezde“caridade”comofizeramoslatinose,inclusive, a Bíblia de Jerusalém. O hino de São Paulo ao amor, em 1Coríntios, mostra o amor-ágape com uma concretude tal que se torna o substrato para uma nova forma derelacionamentocomopróximo,noqualasvirtudes morais não são fruto do esforço humano, como se aí estivessesuafonte,masdagraçadeDeus.Entãoafonte 8. Ler COSTA, Valeriano santos. O amor de Deus: teologia da redenção. São Paulo: Palavra e Prece, 2012. 9. Confissões, livro X, 38, op. cit. p. 299. 10. ZUBIRI, Xavier. Naturaleza historia Dios.Madrid:AlianzaEditorial – Fundação Xavier Zubiri, 13ª edição, 2007. p. 464. 22 A fé sem amor é fé morta do amor-ágape está em Deus,11 que amou primeiro, e nãonoserhumano,queéobjetodoamordeDeus.Por isso ágape édanaturezamesmadeDeus.12 Segundo Paulo, as obras humanas que não tenham como fonte o amor-ágape, mesmo que portentosas, não trazemnenhumresultadoparaosujeito(cf.1Cor13,1-3). Por outro lado, acolhido em nosso ser, faz-nos viver as virtudes divinas da paciência, do equilíbrio e do serviço incansável ao outro (cf. 1Cor 13,4-7). Trata-se da questão de se ter uma nova fonte para os desejos. Aqui estamos tratando de algo muito mais profundo do que as pretensões morais. O homem é um ser de desejos e busca incansavelmenterealizar-sepormeiodeles.Porémosdesejosbrotam na área mais profunda da psique, não naquela área onde brotam as decisões racionais. Por isso, o surgimento dos desejos não é controlado pela vontade e não pode ser simplesmentebloqueadoporumadecisãoracional.Deusnão seria plenamente justo se não nos desse um caminho de acesso,pelafé,ànossaprópriaintimidadeparadeixarmos realizar-seaíumprocessoderestauraçãodentrodocontextohistórico,enãomágico,noqualosdesejospossam adequar-se a uma nova qualidade de vida. Só pode ser nesse sentido que Paulo afirma que “os que vivem segundo a carne desejam as coisas da carne, os que vivem segundo o espírito, as coisas do espírito” (Rm 8,5). Ser espiritual não significa ser estraçalhado por duas direções opostas que podem levar à cisão da personalidade 11. Cf. nota e, referente a 1Cor 13,1, da Bíblia de Jerusalém. 12. Cf. nota e, referente a 1Cor 13,1, da Bíblia de Jerusalém. 23 Celebrar o amor na plenitude do tempo: o ritmo do Ano Litúrgico nalinhadaesquizofrenia.Sóoamor-ágapetemodomde curar porque separa o pecado e o pecador, abordando a pessoa sem prejulgamentos. O caráter teológico do amor-ágape étestificadoporPauloquandoinsisteque“Deus demonstra o seu amor para conosco pelo fato de Cristo ter morrido por nós quando éramos ainda pecadores” (Rm 5,8). Em outra passagem diz o Apóstolo: “Onde avultou o pecado a graça superabundou” (Rm 8,20). Nietzsche considerava os cristãos como pessoas fracassadas que, por não conseguirem dar vazão aos desejos, se refugiavam na espiritualidade dos fracos, segundoaqualosdesejosdacarnedevemsermortificadosparaamortizarasfrustraçõeseosmedosdeousar.13 CoisasemelhanteaparecenofilmeO advogado do diabo14, quefazumaduracríticaàrenúnciaqueDeusexigedo crente após incitá-lo com o sabor do pecado. O grande equívoco dessas críticas é o total desconhecimento da operatividadedoamordeDeusemnós.Deusnãonos daria uma consciência do pecado se não desse também o remédio como solução. Por isso, para Tomás de Aquino, os sacramentos são remédios contra o pecado.15 Os 13. Constatação semelhante apresenta a Encíclica Lumen Fidei, do Papa Francisco, no 2. 14. The Devil’s advocate, dirigido por Taylor Hackford, 1997, EUA. O enredotemcomoargumentoaimposiçãodeumtristeaxioma:”Omal temseusmeiosdevencer“,etrazcomopanoramaostribunais,considerados as arenas do século XX, palcos de espetáculos e vaidades. 15. “Comodissemos,ossacramentosdanovaleiadoisfinsseordenam: a saber, a ser remédio do pecado e ao culto divino. Pois é comum a todos os sacramentos ser remédio contra o pecado porqueconferemagraça.”TOMASDEAQUINO.SumaTheologica. Questão LXIII, art. 6o. 24 A fé sem amor é fé morta sacramentos,acomeçarpeloBatismo,realizamumderramamento tão eficaz do amor de Deus em nosso ser que, de forma histórica e não mágica, transforma-nos em novas criaturas, realinhando nossos desejos no plano do Espírito, sem abolir, evidentemente, a liberdade de pecar. Portanto, a questão não está nos desejos em si, mas no fato de estarmos em Cristo para termos os desejosdoEspírito,ouseja,osdesejosdoAmor(Deus)eas virtudes do amor (caridade). Para Paulo, o amor-ágape é paciente, prestativo, não é invejoso, não se ostenta, nãoseinchadeorgulho,nadasefazdeinconveniente,não procura o próprio interesse, não se irrita, não guarda rancor, não se alegra com a injustiça, mas se regozija com a verdade, tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta (1Cor 13, 4-7). A fé que age pelo amor (cf.Gl5,6)nãocolocaohomememxeque,exacerbando os desejos contrários e dividindo-o em dupla personalidade,masopacificapoucoapoucopeloenfoquedos desejos espirituais. A questão, portanto, não é desejar as coisasdacarneoudoEspírito,masdeixar-setomarpelo amor-ágapepara,aí,sim,desejarascoisasdeDeus.Na afirmação paulina não parece que desejar as coisas da carneeasdoEspíritocoexistamnamesmapsique,anão ser como potência da liberdade, pois o amor-ágape gera os desejos do Espírito, enquanto a vida na carne gera os desejos da carne. E tudo é uma questão de salvação, cujo passo inicial está na criação. Nesse sentido, há que se fazer em nossas comunidades uma pastoral que não deixe passar um Ano Litúrgico para outro sem um sério trabalho de análise 25 Celebrar o amor na plenitude do tempo: o ritmo do Ano Litúrgico de crescimento pessoal baseado nesta questão: a vivência do Ano Litúrgico que finda nos abre para um novo Ano Litúrgico como pessoas melhores, não tanto do ponto de vista moral, mas, sobretudo, do ponto devistapsíquico?Dopontodevistamoralsemedeo cumprimento das responsabilidades, mas e do ponto de vista psíquico? A pessoa e a comunidade tornaram-se mais pacientes, prestativas, humildes e menos invejosas, inconvenientes, apegadas aos próprios interesses, irritadiças, rancorosas? Isso envolve um tipo de solidariedade que gera um status psíquico capaz de tudo desculpar, tudo crer, tudo esperar, tudo suportar. Na verdade, é uma forma de se abrir ao amor-ágape e tentar medir o nível de felicidade, que não é exatamente um nível de satisfação, porque pode alguém estar satisfeito com a própria mediocridade. 26 5 Celebrar o amor na plenitude do tempo Depoisdestalongaintrodução,falaremosdecelebração. O Amor eterno transbordou espalhando-se nas coisascriadas,asquaisnãoseidentificamcomoAmor, massãoreflexosdesuabondade:“Deusviutudooque tinha feito: e era muito bom” (Gn1,31).Deusnãoseconfunde com as criaturas, mas pode ser buscado por meio delas. É isso que cantamos na liturgia das horas: “Nas criaturas todas somente a vós buscamos”.16 Para acolher 16. Hino de Vésperas da Liturgia das Horas, segunda-feira da 1a Semana do Tempo Comum. 27 Celebrar o amor na plenitude do tempo: o ritmo do Ano Litúrgico todaaobradacriação,Deuscriouotempoparaestabelecer a duração da história, e o espaço, onde alojou todas as criaturas, inclusive sua própria imagem e semelhança,nafiguradoprimeirocasal,símbolodacomunhão entre o céu e a terra que o amor-ágape gerou por meio da figura de Adão e Eva. O primeiro casal se tornou emblemático para a raça humana, para quem o tempo e o espaço tornaram-se as coordenadas essenciais de toda ação e de todo gesto.17 Assim, para o homem e a mulher começava, ao mesmo tempo, a história e a salvação. O Eterno, na unidade do Ser e na trindade das Pessoas, o Uno e Trino, resolveu revelar-se ao ser humano. E intuiu na mente divina o mais inédito, que jamais a mente humana poderia ter alcançado: o plano da encarnação do único Filho nos limites da própria criação, limites no sentido mais estrito, incluindo a dor. Era uma questão de tempo e de história para a revelação se dar e a salvação acontecer plenamente. “Quando, porém, chegou aplenitudedotempo,enviouDeusoseuFilho,nascido de uma mulher, nascido sob a Lei, para remir os que estavamsobaLei,afimdequerecebêssemosaadoção filial”(Gl4,4-5). 17. Cf. LOPES MARTÍN, J. Ano Litúrgico; ciclos e festas. In: BOROBIO, D. A celebração da Igreja III: ritmos e tempos da celebração. São Paulo: Loyola, 2000, p. 31. 28