(Reflexões de uma guerra anunciada)
O dia em que escrevo estas linhas é um dia cinzento. Escuro lá fora porque as nuvens cobrem
densamente o céu, negro por dentro porque o dia é de luto. Luto em antecipação por mais uma
temporada de morticínio em que a nossa debilitada vida silvestre se esvairá em sangue... como as
nuvens deste cinzento dia se esvaem em águas claras. Com duas diferenças, pelo menos:
enquanto este é o fluxo da vida, o outro é o da morte, do aniquilamento; enquanto este é ainda
generoso e abundante, o outro "vampiriza" as artérias secas de uma Terra Mãe em estertor de
agonia.
Mãe Gaia para os antigos Gregos, Mãe Erda para os Nórdicos, hipótese científica para alguns
dos nossos contemporâneos, todos nos procuram fazer compreender que a vida neste belo planeta
é bem mais do que um somatório de espécies com as suas interdependências visíveis ou
conhecidas. É ela própria uma entidade viva para a qual cada ser, cada espécie dá a sua
contribuição. Segundo a hipótese científica, também ela apelidada de «Gaia», seria esta
diversidade que permite conservar as condições necessárias à vida. Um sistema complexo, que
nem o inteligente ser vivo chamado homem compreende na sua totalidade. No entanto, age
frequentemente como se compreendesse. Apropria-se da vida como se ele próprio a tivesse
criado. Ignora deliberadamente que "o homem, seja ele civilizado ou selvagem , é um filho da
natureza - não é o senhor da natureza" (Terra Arável e Civilização). Povos houve para quem esta
verdade, latente no mais fundo da natureza humana, não foi esquecida. Mas esses foram tratados
pela nossa civilização com a mesma arrogância e desprezo com que esta trata os outros seres
vivos. "O velho índio tinha um sentimento de fraternidade para com o mundo dos pássaros e dos
animais, e estes retribuíam-no com a sua confiança (...) O velho lakota era sábio. Sabia que o
coração do homem afastado da natureza se torna duro, sabia que a falta de respeito para com o
que cresce e vive depressa conduz também à falta de respeito para com os humanos" (A Fala do
índio). E já Pitágoras, o filosofo da antiga Grécia observava que "enquanto o homem continuar a
ser destrutivo dos seres animados dos planos inferiores, ele não conhecerá nem a saúde, nem o
repouso, nem a Paz".
Olhemos agora à nossa volta. O que vemos? O triste espectáculo de homens que disputam
entre si o «direito» de matar. O «direito» de, pelo prazer de dar livre curso aos instintos da sua
natureza inferior, agredir a já tão debilitada Mãe Terra. Acredito contudo que a essa atitude
relativamente à vida se opõe uma outra natureza, uma natureza superior, que todos os seres
humanos possuem, pelo menos em gérmen, mas que, seja qual for o seu grau de manifestação,
carece de ser desenvolvida. Nesse desenvolvimento se encontra o verdadeiro objectivo de uma
caminhada interior e da própria vida humana, e só nele a nossa verdadeira e íntima humanidade
pode ser encontrada.
Nos tempos que vivemos, esta ideia é contudo estranha à maior parte das pessoas, sobretudo
aquelas que mais carentes estão da sua compreensão, pelo que insistir nela parece por vezes
inútil. Por outro lado, contestar as motivações superficiais que determinam comportamentos
perversos também não é muito produtivo porque isso não altera essas motivações só por si, ainda
que, evidentemente, se devesse procurar limitar as suas consequências ao mínimo. É bem sabido
que muitos fumadores não deixam de fumar só por saberem que correm maiores riscos de uma
morte prematura. Da mesma forma, a relação dos seres humanos com o mundo natural não se
alterará apenas por se tomar evidente que as suas acções aproximam do limite um já longo
processo de degradação. E não se alterará porque eles considerarão eventuais mudanças no seu
comportamento como uma espécie de limitação da sua felicidade, uma barreira a aspirações
assumidas como legítimas. Além disso, a «distância» a que nos encontramos desse limite não é
algo que possa ser estabelecido objectiva e inequivocamente, não obstante todos os esforços (leiase o livro "Além dos Limites", recentemente editado). Como foi recordado acima, a Terra Mãe é
um organismo muito complexo, e o entendimento que a ciência tem dele é insuficiente para esse
propósito. E mesmo que o fosse, nada nos autoriza a concluir que todos os seres que encontramos
na Terra apenas se justifiquem por razões de mera sobrevivência biológica do todo. Seria
necessário fazer uso de outras faculdades de percepção, intrinsecamente humanas, para que o seu
valor pudesse ser compreendido. Mas tais faculdades estão infelizmente cada vez mais
obstruídas, ofuscadas pelas luzes inebriantes da modernidade. Mesmo quando são tomadas
medidas de socorro à posteriori, elas são-no sobre a parte «conhecida» do sistema, mas outras
agressões de impacto desconhecido ou sobre o qual não se possam fazer afirmações objectivas,
poderão continuar. Outras vezes, as medidas que são tomadas são cosméticas, destinadas a
suprimir sentimentos de perda, mas sentimentos que são humanos, e portanto limitados pelo
alcance do entendimento e das emoções humanas. Um dos exemplos mais gritantes que a este
respeito se poderia dar é o da criação de espécies silvestres em cativeiro para serem lançadas na
natureza com o único intuito de permitir a sua caça. Na (limitada) visão dos seus praticantes, esta
acção resolve o seu problema, mas, sendo o papel dos animais na natureza muitíssimo mais
importante do que essa visão permite identificar, tal acção resulta anedótica no contexto de um
esforço de regeneração da natureza. Mas esta reacção, que poderíamos considerar de ocultação do
problema, é grave por outros dois motivos: Por um lado, não sendo um benefício, é um malefício,
isto é, introduz uma perturbação adicional num sistema já debilitado. Por outro lado, ao
escamotear um sentimento de perda, remove da cena o elemento que poderia levar o sujeito a
reflectir sobre a qualidade e a natureza das suas motivações.
O que é importante compreender é que não nos devemos limitar a encontrar remedeios
(tenham eles a forma de resposta tecnológica ou de intervenção legislativa) para os problemas
que vão surgindo, à imagem e semelhança do entendimento que deles temos, porque, seja a que
nível for, esse entendimento é sempre limitado e os problemas não cessarão de se agravar.
Também não devemos procurar suprimir os desejos e as motivações, seja nos outros, seja em nós
próprios, pois que eles acabam sempre por vir ao de cima, e por vezes de maneira ainda mais
doentia (um facto bem conhecido em psiquiatria). O que temos urgentemente de fazer é reflectir
sobre as nossas motivações e os nossos interesses, analisar o que está por detrás, as causas
profundas e ocultas do que manifestamos para o exterior. Dessa forma começamos a descobrir a
nossa natureza íntima. Longe de mim procurar em duas linhas sintetizar esse processo, um dos
desafios mais audazes que a cada ser humano se coloca. O que interessa aqui é que nesse
percurso as motivações destrutivas - para o próprio e para o que o rodeia - vão sendo pouco a
pouco substituídas por outras, transformadas noutras. E os problemas exteriores, de poluição, de
degradação da natureza, de desagregação social, etc., resolver-se-ão, não por si, mas como
consequência dessa transformação. Compreendido desta forma, o ideal de «desenvolvimento» tão
propagandeado nos dias de hoje, significa uma coisa totalmente diferente daquilo a que estamos
habituados: em lugar de ser um processo que permite satisfazer (e mesmo exacerbar) os nossos
desejos tal como os encontramos, é um processo que permite transformar os nossos desejos. Isto
é uma manifestação de confiança num propósito superior para a nossa existência neste planeta
Terra e na sua realizabilidade. A confiança de que, se perseguirmos esse propósito superior, nada
nos faltará. A confiança de que as prioridades que assumiremos para realizar esse propósito
criarão um modo de vida realmente sustentável. Ao contrário, uma sociedade para a qual o
desenvolvimento signifique a satisfação insaciável dos desejos de uma natureza inferior, nunca
será sustentável. Se não perecer de uma crise de recursos, perecerá de uma crise de poluição, se
não perecer de uma crise de poluição, perecerá de uma crise de saúde, se não perecer de uma
crise de saúde, perecerá da desordem e desorientação dos seus membros, mas nenhuma dose de
tecnologia nem nenhuma mudança de sistema político poderá salvá-la.
Muitos povos hoje considerados primitivos não só mantinham uma reverência irrepreensível
para com a Natureza, como a consideravam um «livro aberto», uma espécie de mapa cujos traços
os iluminavam e lhes davam força para seguir o seu caminho de desenvolvimento interior. O
mundo exterior do homem era um pouco como um reflexo de um seu interior oculto e subtil. O
homem contemporâneo não só destroi esse mapa, por vezes de forma tão leviana e massifícada
como a que se aproxima, como, da mesma forma, cria um mundo exterior à semelhança das suas
desordens interiores. Assim, as lições que podemos tirar da observação do mundo exterior
continuam a ser válidas, continuam a ser um reflexo, agora não do que nós somos, mas do que
quisemos ser. Enquanto a concepção que fazemos de nós mesmos continuar a ser dominada pelas
manifestações da nossa natureza inferior e agirmos em conformidade com ela, podemos resolver
alguns problemas, mas outros virão de imediato tomar o seu lugar. Nas palavras sábias de E. F.
Schumacker, "mesmo que todos os «novos» problemas fossem resolvidos pela resposta
tecnológica, o estado de futilidade, desordem e corrupção não se alteraria. Já existia antes de as
actuais crises se agudizarem e não desaparecerá só por si". Mas se soubermos ler os sinais
exteriores , em vez de procurar ocultá-los ou minimizá-los, talvez consigamos superar os desafios
que se nos colocam. Os dados estão lançados mas o «jogo» está nas nossas mãos. "Teremos, um
dia, um número suficiente de pessoas capazes de «dar a volta» necessária para salvar o mundo a
tempo e horas?" pergunta Schumacker no final do seu admirável livro "Um guia para os
perplexos". E continua: "Esta é uma pergunta muitas vezes feita, mas a resposta, seja ela qual for,
desviar-nos-á do rumo principal. Se for «sim» fabricará complacência; se for «não», atrairá
desespero. Deixemos porém tais perplexidades, e lancemo-nos ao trabalho". Concluirei pois com
esta mensagem: Indignemo-nos, mas não desesperemos. Saibamos pôr as nossas próprias ideias
em ordem e encontremos dentro de nós a energia que nos permita contribuir para essa revolução
silenciosa que é urgente realizar.
Paulo Domingues, Outubro de 1994
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