Universidade Federal do Rio de Janeiro
Museu Nacional
Programa de Pós-graduação em Antropologia Social
Doutorado em Antropologia Social
“Macacos me Mordam”:
Etnografia de um Grupo de Primatólogos no Brasil
(Título Provisório)
por
Guilherme José da Silva e Sá
Projeto de Tese de Doutorado
Orientadora: Giralda Seyferth
Junho de 2002
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Introdução:
O conceito de “natureza humana” vem sendo bastante trabalhado pela
Antropologia desde sua gênese enquanto ciência. A necessidade de lidar com a
pluralidade étnica humana, assim como a importância de entender o ser humano
simultaneamente enquanto um ser social, produtor de cultura, e como um ser da/na
natureza, fizeram com que a Antropologia construísse seu arcabouço teórico sobre a
questão fundante da alteridade.
Falar sobre “natureza humana” nos remete percepções acerca do
comportamento humano. As avaliações sobre o comportamento humano, especialmente
no que concerne à dicotomia natureza x cultura, encontram-se freqüentemente balizadas
pela comparação entre homens e os outros animais. Tais comparações surgem por vezes
enfatizando semelhanças e, em outras, estabelecendo diferenças.
Mesmo já tendo sido bastante trabalhado no âmbito da teoria
antropológica, considero importante observar a forma como a relação entre um
“comportamento animal” e um “comportamento humano” é apropriada no ofício de
pesquisadores que trabalham com animais (não-humanos).
Em um passado não muito distante emergiram diversas teorias que
compartilhavam o princípio sociobiológico de que haveria “uma natureza humana
visível no comportamento social do homem, sendo que tal natureza o aproxima de
outros animais também sociais” (Silva, 1993:18). Esta idéia obteve adeptos nas ciências
naturais e nas ciências sociais. Embora extremamente combatido no contexto da
Antropologia Social e mesmo da Biologia moderna, o argumento sociobiológico ainda
persiste em determinados campos de análise científica e encontra respaldo na aceitação
de noções reducionistas no senso comum.
A proposta central do estudo é etnografar um grupo específico: cientistas
que se dedicam a estudar o comportamento animal (etólogos / primatólogos). Pretendese focalizar a maneira como constróem seus argumentos, como lidam com seus objetos
de estudo e se vêem diante deles. Parte-se do pressuposto de que a construção da
identidade do cientista, bem como a de seu objeto de estudo passa por um processo de
identificação e diferenciação onde se postula a alteridade natureza x cultura. Proponho
pensar como as noções nativas de um “comportamento especificamente humano”
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influenciam no entendimento de um “comportamento animal”. Por outro lado, e não
menos interessante, encontra-se a questão de quanto o ofício, o estudo do
“comportamento animal”, fundamenta o que se entende por “comportamento humano”
entre os pesquisados.
Se, no ápice da divulgação da justificativa sociobiológica claramente
travavam-se comparações entre espécies, hoje não se pode dizer o mesmo. As
inferências comparativas sobre o comportamento de diferentes espécies são fortemente
controladas em função das inconsistências teórico-metodológicas denunciadas pelos
críticos da sociobiologia. Especula-se, entretanto, que o argumento em torno de uma
“natureza humana” e do comportamento de Homens e animais tenha se sofisticado
graças ao advento da genômica, materializada em seu subproduto mais expressivo: o
Projeto Genoma Humano, e as recentes contribuições da chamada Antropologia
cognitiva, que percebe o ser humano como ser natural e cultural.
Pode-se prever o surgimento de questões tradicionais da teoria
antropológica como organização social e parentesco, alteridade, determinismos e
reducionismos biológicos e culturais, e evidentemente, a relação entre natureza e
cultura. Paralelamente é importante situar historicamente os estudos em Antropologia
relativos a questão comparativa entre o que é “humano” e o que é “animal”.
O estudo deve situar-se dentro do campo de uma Antropologia de Ciência
como vem propondo o antropólogo Bruno Latour. Inserindo-se num universo de
práticas científicas estranho ao seu, lidando com um grupo específico e observando sua
linguagem e procedimentos, o etnógrafo deve utilizar de suas ferramentas para
relativizar o que apreende. A postura do antropólogo da ciência deve levar em conta que
o que está sendo analisado é parte de um amplo sistema de representação cultural - a
ciência - em que opera seu próprio pensamento. Desta forma, o distanciamento é
relativo. No caso específico desta proposta de trabalho, o grupo a ser estudado é
composto por cientistas que executam suas pesquisas no Brasil.
Breve Histórico:
Infere-se que os primeiros estudos comparativos da expressão e fisionomia
de homens e animais remontam aos séculos XVII, XVIII e XIX com os trabalhos de Le
Brun, Lavater, Camper e Grandville. Nestes trabalhos estudavam-se os traços
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fisionômicos de homens e animais, e em suas pranchas é possível ver escalas graduais
de transformação de rostos humanos em animais diversos.
Em 1872, Charles Darwin publica “A expressão das emoções no homem e
nos animais”. Neste livro Darwin não só apresenta descrições de expressões no
comportamento animal como raiva, medo e ciúme, como amplia sua teoria ao falar das
expressões no comportamento humano. Defendendo que algumas de nossas expressões
são resquícios herdados de antepassados primitivos, comuns tanto ao homem como a
outros animais, Darwin sustenta que muitas de nossas expressões são inatas. Este livro é
considerado um dos precursores no estudo dos aspectos biológicos do comportamento.
As apropriações do comportamento animal para explicar traços sócioculturais humanos também não são recentes. O exemplo de Cesare Lombroso que em
1876 lança “O homem criminoso” demonstra uma associação entre determinados
comportamentos animais e o crime. Lombroso supunha que o “crime existe nos reinos
vegetal e animal. Plantas carnívoras, como a Rossolis ou a Drosera, devoram os insetos
que elas atraem com seu odor. Canibalismo, infanticídio e parricídio existem entre as
formigas. Cavalos, elefantes e vacas, reputados por seu pacifismo, podem ser levados ao
crime por paixão ou por alienação. Cita-se mesmo o caso de uma gata ninfomaníaca que
se tornou criminosa quando estava no cio” (Darmon,1991:44).
Nas décadas de 1950/60 localiza-se um estudo que pretendia utilizar uma
perspectiva “antropológica social” para entender o comportamento de primatas.
Sherwood Washburn, antropólogo físico norte-americano, escolhe Irven DeVore,
antropólogo social, para realizar um estudo sobre a evolução do comportamento entre
babuínos na África. A opção por um antropólogo social explicava-se pela necessidade
de ter uma pessoa com experiência em análise de comportamentos sociais complexos.
(Kuper,1994:57)
As idéias da escola de Antropologia Criminal italiana situavam a noção de
“natureza humana” enquanto caracteres inatos que fatalmente refletiriam em aspectos
culturais. Uma lógica semelhante é observada, cem anos mais tarde, na proposta dos
fundadores da sociobiologia. Tratando as sociedades humanas com se fossem produto
de instintos de sobrevivência ou como se os homens não tivessem consciência de seus
atos, os sociobiólogos humanizam a natureza e desumanizam a sociedade. Desta forma,
criticaram a prática comum ‘as ciências sociais de criar uma ruptura entre as sociedades
humanas e as de outros animais (Silva, 1993:23). É assim que a sociobiologia concebe
uma “natureza humana” visível no comportamento social humano e que o aproxima de
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outros animais sociais. Esta “’natureza humana”’ expressa no comportamento animal
gregário determina atitudes como o altruísmo, o egoísmo, a agressão e a conduta sexual.
(Silva,1993)
Recentemente, autores como Tim Ingold e Donna Haraway vêm
trabalhando a interface entre natureza e cultura partindo do problema imposto pela
relação entre humanos e animais.
Justificativa:
O interesse em abordar a questão de como se constrói ou se apropria o
conceito de “natureza humana” por segmentos da ciência atual está diretamente
vinculado à continuidade do trabalho desenvolvido em minha dissertação de Mestrado.
Naquela ocasião tomei como objeto de pesquisa alguns dos discursos sobre
o Projeto Genoma Humano focalizando a noção de determinismo no contexto do
referido Projeto. A pluralidade discursiva encontrada abriga considerações acerca de
uma “essência” ou “natureza humana”, bem como situa a circularidade dos discursos
determinista biológico e cultural no âmbito das relações entre natureza e cultura. Estes
pontos devem ser aprimorados e ampliados no decorrer da pesquisa que proponho para
o curso de Doutorado.
Outra questão que pretendo dar continuidade no Doutorado refere-se à
natureza da pesquisa etnográfica. A pesquisa sobre o Projeto Genoma Humano
empreendida no curso de Mestrado se insere no que convenciona chamar de estudos de
Antropologia da Ciência, entretanto, as fontes de pesquisa utilizadas foram
fundamentalmente os meios de divulgação científica veiculados pela internet e em
algumas revistas especializadas. Permanecendo no alcance epistemológico da
Antropologia da Ciência, pretendo empreender pesquisa de campo junto ao grupo de
cientistas brasileiros delimitado nesta proposta. A inserção em campo no Doutorado
será beneficiada pela maior disponibilidade de tempo, e pelo acesso mais fácil ao grupo
pesquisado tratando-se de uma pesquisa a ser desenvolvida no Brasil. Estas condições
levam-me a crer que a proposta é exeqüível.
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Hipóteses de Trabalho:
Acumulam-se diferenciais entre as ciências naturais e sociais. Situa-se uma
diferença na relação entre sujeito (pesquisador) e objeto. Entende-se que o cientista
natural constrói uma relação de “objetividade” com o que estuda. Em contrapartida, esta
relação dentro das ciências sociais é “subjetivada”. O objeto de estudo de cientistas
naturais não pode contestar seus pesquisadores, fato que não se repete na relação entre
pesquisador e pesquisado nas ciências sociais. (DaMatta, 1981) Este argumento torna-se
mais complexo a medida em que questionamos esta relação de “objetividade” nas
ciências naturais. Mesmo não sendo “pensados” por seus objetos, é relevante perguntar
se os cientistas naturais pensam sobre si através da relação que estabelecem com seus
objetos.
Creio que a percepção das relações entre natureza e cultura esteja ilustrada
também nas relações entre os pesquisadores (cientistas – etólogos) e seu objeto de
pesquisa (animais).
A relação entre cientistas e seus objetos pode esconder uma tensão latente
entre natureza e cultura.
É preciso focalizar a relação humano x animal – que neste caso assume
sistematicamente a forma da relação entre pesquisador e objeto – para trilhar novos
caminhos nos estudos sobre a percepção da natureza e cultura. Assim, superamos a
utilização de modelos societários animais para entender a sociedade de homens como
advoga(va) a Sociobiologia. Partimos agora da relação, como enfatizaram Wagner
(1975) e Viveiros de Castro (2002). Admite-se que os padrões e parâmetros que são
utilizados para caracterizar e interpretar o “comportamento animal” são humanos. Isso é
inevitável, posto que somos humanos e sempre pensaremos como tal dentro da lógica
científica ocidental. Não pensaremos como mono-carvoeiros ou babuínos. Todavia,
mesmo considerando este viés “humanizador”, é possível pensar a relação humano x
animal em novos termos. A antropomorfização dos animais, bem como a percepção de
nossa animalidade não se dá no âmbito dos estudos comparativos, mas na relação que
estabelecemos através do contato entre homens e animais. Desta forma, deslocamos os
conceitos de humano e animal de uma constante para um produto relacional situado no
tempo e espaço específicos.
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Espaço e tempo são variáveis importantes desta perspectiva. Os que aqui
trabalham não são cientistas em tempo integral, entenda-se em sua acepção mais
comum:
“humanos racionalistas”. As identidades são flexíveis, adaptativas,
circunstanciais. Conforme muda a identidade de humanos altera-se também o status do
mono. Este, em determinadas ocasiões, assume identidade humana atribuída, resultante
da relação com humanos.
Infere-se que o estudo e a definição de um padrão comportamental de
animais reflita por oposição ou semelhança na construção de um padrão de
“comportamento humano” aceito pelos pesquisadores. É esta identificação ou
distanciamento empírico entre pesquisador e pesquisado – o modo de perceber o outro que pode embasar conceitos como o de “natureza humana” dentro do ambiente
científico. De forma inversa, acredito que de acordo com a forma como os cientistas
(etólogos) se vêem enquanto seres humanos, possuidores de um “comportamento
humano”, molda-se também um padrão de “comportamento animal”.
Metodologia e Cronograma:
A metodologia a ser adotada para a realização da pesquisa engloba dois
momentos:
Primeiramente faz-se necessário o levantamento bibliográfico sobre o tema
em questão, representações da “natureza humana”, bem como a sistematização de
leitura sobre questões correlatas como a relação natureza x cultura, formas de
determinismo, sociobiologia.
A segunda parte da pesquisa deverá ser executada pautando-se no
acompanhamento do grupo pesquisado em suas atividades de trabalho e produção
científica, através de observação participante. Este acompanhamento acontecerá de
forma apropriada para evitar o comprometimento das pesquisas de primatólogos e,
conseqüentemente, do etnógrafo. A pesquisa de campo deverá ser realizada durante o
segundo ano de doutoramento (2003), efetuando-se, inicialmente, ao longo de quatro
meses (março – junho) com possibilidade de extensão caso necessário à obtenção de
mais dados de campo.
Cronograma:
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Etapa I: revisão da bibliografia
Etapa II: construção dos instrumentos de pesquisa
Etapa III: trabalho de campo
Etapa IV: análise do material coletado
etapas
Etapa V: redação do trabalho final
meses
I
II
III
IV
V
02 04 06 08 10 12 14 16 18 20 22 24 26 28 30 32 34 36 38 40 42 44 46 48
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