A “Liberdade” de Maria Helena Vieira da Silva Lucília Verdelho da Costa screver sobre Vieira da Silva sob o ruído de fundo de uma manifestação do 1° de Maio para rememorar o 25 de Abril, vinte e cinco anos mais tarde, em Paris; evocar, sob estas cores garridas de vermelhos e de azuis - onde os brancos? Nas nuvens altas que se insinuam em manchas densas por entre dois renques de edifícios? -, as paisagens de memória da pintora; as gares; os labirintos; as bibliotecas; os dédalos sabidos e intuídos, em itinerários reais e outras tantas peregrinações interiores; imaginar o silêncio que, depois, reina absoluto sobre a sua pintura, como sobre o fim de todas as comemorações: exercício difícil que é também um dever - dever de escrita, dever moral -, de tal modo a obra de Maria Helena Vieira da Silva aparentemente se distanciou de manifestações de rua, de slogans, de bandeiras, de eventos e de gentes, para dar, da Humanidade e da civilização modernas, um testemunho mais essencial, duramente conquistado pela experiência visiva e vivida. Desta reflexão que é também uma interrogação sobre a pintura e a sua possibilidade de representação do mundo, através de uma herança que é a da sua História mais recente, dão conta obras como Terrasses ensoleillées (1952), em que se aviva um certo parentesco com um “14 juillet” de Dufy. Um “fauve”. Representando garridamente ruas inundadas de bandeirolas e de gente. Outras obras, como La Gare Saint Lazare, de 1949, uma emulação ao quadro homónimo de Monet (o do Museu de Orsay, o melhor da série), poder-se-à considerar como uma homenagem ao mundo (à Pintura?...), moderno. Outras ainda, como O Desastre (1942) e o Incêndio (1944), aludem claramente à demência dos homens e aos crimes insensatos (à guerra, em E LATITUDES n° 6 - septembre 99 suma, de uma actualidade impensáo universo do poeta: “Se eu não vel nos finais deste milénio). Logo, morresse, nunca! E eternamente à humana condição. buscasse e conseguisse a perfeição Mas como passar para o outro das coisas!” lado do visível? Como falar de coiApátrida em 1940 pelo seu casasas quando o referente se perde, mento com o pintor húngaro Arpad se transmuta em signos e em arquiSzènes, exilada no Brasil até ao tecturas imaginárias, em evocações regresso do casal a Paris, em 1947, de sentimentos, filtrados por mannaturalizada francesa, com o marichas - e pelo “amor”, como ela pródo, em 1956, Maria Helena Vieira pria afirmou um dia... - e traços, e da Silva realiza aí a primeira encocores, e movimentos ou notas musimenda oficial para a cidade de cais e espaços que são outras tantas construções mentais? Onde a memória flui e reflui, se constrói e se nega para atingir uma outra alteridade, ou verdade das coisas e do artista? O rigor preside a estas construções, meandros mentais mais reais ainda, porque filtrados pela sensibilidade, pela mente e pela memória. Nos painéis que Maria Helena da Silva concebeu para a Estação do Metropolitano da Universidade de Lisboa - um lugar simbólico do saber e da cultura -, desde sempre que nos comoveu esta citação de Cesário (o Verde, naturalmente...), como se a artista definisse aí, ou fizesse seu, um ideal Cartaz de Vieira da Silva (illustração da capa) em uníssono com 41 Viera da Silva, “Autoportrait”, 1931 Lisboa. Onde nascera num dia de Santo António, no mesmo ano em que o regicídio anunciava a instauração do regime republicano em Portugal. E nove anos depois que a revolução do 25 de Abril inaugurava a segunda República... E Maria Helena Vieira da Silva erige em memória não a cidade em mutação, aquela em que não pôde viver, mas a do “Sentimento de um Ocidental”, de uma Lisboa essencial, apolínea e crepuscular, estética e metafísica. A visão de uma cidade ao sol. O sol que bate quase cegamente, obstinadamente, nas cantarias. As tardes melancólicas. As noites soturnas. Os que trabalham. E, mais tarde, com Almada (e com Pessoa), os que partem, em sentido figurativo e em sentido poético. Mas que sempre ficam. Porque o lado de lá do que se deixa ficando - que é o sentimento da saudade, ou os labirintos do imaginário eternamente à procura da essência que aparentemente erra na aparência das coisas é mais próximo da Verdade (ou da Perfeição) do que todas as viagens, reais ou sonhadas. Assim, também Maria Helena Vieira da Silva partiu, ficando. E criou cidades e labirintos e bibliote42 tecas, condensando em construções plásticas de um grande rigor e de uma grande autenticidade todos os lugares e saberes do mundo. Porque nisso assenta a Poesia da pintura. E a sua inesgotável capacidade de transformar a realidade furtiva e ilusória das sensações e dos espaços. Por isso, para celebrar o 25 de Abril, nos cartazes que concebeu para a Fundação Calouste Gulbenkian a pedido de Sophia de Mello Breyner, Maria Helena Vieira da Silva não podia rememorar figurativamente a Liberdade. Porque a Liberdade é a poesia da criação, a multidão condensada numa viela estreita só podia celebrar essa poesia em acto, livre de entraves, consubstancial a uma ética que é uma estética ou uma forma natural de ser, que é a da artista movendo-se na própria criação, aqui formulada figurativamente no plural, como um ideal colectivo. Ética e/ou estética que se enraíza na terra que é a pátria mas que é também o indivíduo, e cuja possibilidade de afirmação é a de crescer livremente, raíz feita tronco, tronco feito ramos, ramos feitos folhas - uma estrutura do ser que é a reinvidicação da liberdade que nos deve habitar todos nós, e com mais consciência o poeta e o artista (repare-se no jogo do “D” e do “A” reunidos por um pequeno círculo - um “i” entre as duas letras - no jogo rítmico e cromático das palavras “Dia” e “Liberdade”), como a única condição possível para alcançar a sempre almejada “perfeição das coisas”. Num “Dia” que é um renascer (um questionamento) permanente. Sem fronteiras geográficas, rejeitando ditaduras pátrias (ou outras que não sejam a da exigência da Pintura), a obra de Maria Helena Vieira da Silva é um exemplo da conquista interior dessa Liberdade essencial que é a da sua pintura. Pintora de Lisboa, da mágica luz de Lisboa filtrada pelos interstícios da memória e que, gradualmente, se transforma em pura visão luminosa, em estrela polar e ardente como no hino branco de homenagem à mãe (Estela, 1964) ou ao marido (Courant d’Eternité, 1990), Vieira da Silva construiu (plantou, no sentido literal do termo) a Liberdade como um ideal de vida e de obra. Para isso, não precisou da Pátria. Foi uma cidadã, uma artista e uma artesã do Mundo Paris, 1° de Maio de 1999 Viera da Silva, “Le jeu de cartes”, 1937 LATITUDES n° 6 - septembre 99