Elitização e alteração no cotidiano de um município metropolitano∗
Patricia Chame Dias°
Palavras-chave: periferia; elite; desigualdade.
Resumo:
A proliferação dos condomínios fechados, novo modelo residencial das elites, é algo
marcante nas metrópoles brasileiras. Concebidos a partir da idéia de que o “isolamento” da
cidade permite afastamento dos problemas nela existentes, são vendidos como um meio de
viver com maior qualidade, o que vem sendo traduzido nos anúncios publicitários como
lazer, segurança e bem estar. Dentro dessa estratégia, as periferias dos grandes centros
urbanos tornam-se locais propícios para sua implantação. Assim ocorreu em Lauro de Freitas,
município da Região Metropolitana de Salvador, contíguo à capital, que, desde o início dos
anos 1980, experimentou intensas transformações decorrentes dos inúmeros
empreendimentos residenciais lá instalados. Dentre essas, destaca-se que o acelerado
crescimento populacional (em 1970 contava com menos de 10 mil, em 2007 apresentava uma
das maiores populações da Bahia); a mudança do perfil funcional (de área rural e desprovida
de serviços, passou a ser amplamente urbanizada, com intensa diversidade e sofisticação de
equipamentos) e social (de município com população de baixa escolaridade e renda,
registrou, no último censo, uma das populações de maior escolaridade e renda do estado).
Partindo dessas constatações, nesse texto o propósito central foi verificar o impacto da
periferização da elite da capital em Lauro de Freitas, discutindo especialmente como a
alteração do perfil social e da estrutura espacial do município produziu um novo modo de
vida para os antigos moradores.
∗
Trabalho apresentado no XVI Encontro Nacional de Estudos Populacionais, ABEP, realizado em Caxambu MG – Brasil, de 29 de setembro a 03 de outubro de 2008.
°
Mestre em Geografia pela Universidade Federal da Bahia. Especialista em Políticas Públicas e Gestão
Governamental do Governo do Estado da Bahia. Trabalha na Superintendência de Estudos Econômicos e
Sociais da Bahia (SEI). [email protected]
1
Elitização e alteração no cotidiano de um município metropolitano∗
Patricia Chame Dias°
Os inúmeros trabalhos que buscam analisar as desigualdades sócio-espaciais das metrópoles
brasileiras destacam, quase sempre, o histórico processo de periferização dos segmentos
sociais de menor renda. Empurrados para longe dos núcleos das grandes cidades por conta de
diferentes processos, ao longo da segunda metade do século XX, foi na periferia precária e
distante que os mais pobres encontraram um lugar onde seria possível alcançar o sonho da
casa própria. Mais do que isso, como, normalmente, ao chegarem nessas áreas defrontavamse com a ausência de qualquer estrutura urbana, foram tais pessoas que lhe deram forma: as
tortuosas ruas, a arquitetura das casas, o tipo de comércio, e a infra-estrutura urbana
possíveis. Sendo assim, por conta da história de produção desses locais, a noção de periferia
típica no Brasil é a de área distante, precária, densa, habitada por pessoas de baixa renda e
onde se registram inúmeros problemas sociais. Essa noção se fundamenta na própria origem
do termo periferia — área localizada na franja de algum centro — e caracterizada pelo
distanciamento dos grandes aglomerados urbanos, por ser desprovida de infra-estrutura e pela
grande densidade de ocupação.
Essa compreensão, contudo, se choca com alguns processos que vem sendo observados,
desde o final dos anos 80, em diferentes partes do Brasil: a tendência de certos segmentos da
elite de saírem dos núcleos das grandes cidades buscando locais mais aprazíveis, que se
apresentassem como capazes de proporcionar maior contato com a natureza e maior
distanciamento dos problemas produzidos nas grandes aglomerações. Acentuada nas décadas
seguintes, tal tendência passou a ser motivada também (ou principalmente) pelo desejo de
escapar da violência urbana. A idéia-força desse processo é a de que um certo afastamento da
cidade permite a contenção dos problemas nela existentes, possibilitando a criação de um
estilo de vida com maior qualidade.
Para atender a esse “desejo”, eis que se consolidou um novo modelo residencial: o dos
condomínios fechados. Nesse tipo de empreendimento, seja composto por casas ou
apartamentos, promete-se, antes de tudo, uma vida tranqüila, com lazer, conforto e segurança,
tudo isso garantido pela presença de toda uma infra-estrutura, normas e controles
estabelecidos no âmbito privado. A mais importante marca desse tipo de moradia é o
isolamento da rua e do seu caráter público, isolamento esse demarcado por muros que
permitem construir a ilusão de que aquilo que está cercado é diferente e melhor do que aquilo
que exclui. Em outras palavras, os condomínios fechados — principal instrumento de um
progressivo processo de auto-segregação1 — constituem-se em “ilhas utópicas” consolidadas
a partir do pressuposto de que o afastamento/isolamento das cidades permite de criação “[...]
de um quadro de vida alternativo, de alto padrão, onde seria possível encontrar calma,
segurança, lazer e prestígio” (GOMES, 2002, p. 186). Caldeira (2003, p. 211) denomina esse
∗
Trabalho apresentado no XVI Encontro Nacional de Estudos Populacionais, ABEP, realizado em Caxambu MG – Brasil, de 29 de setembro a 03 de outubro de 2008.
°
Mestre em Geografia pela Universidade Federal da Bahia. Especialista em Políticas Públicas e Gestão
Governamental do Governo do Estado da Bahia. Trabalha na Superintendência de Estudos Econômicos e
Sociais da Bahia (SEI). [email protected]
1
Entende-se como auto-segregação a tentativa de separação voluntária de um grupo social do restante da
sociedade e da cidade. Trata-se de um processo cuja forma de expressão varia no decorrer da história, de acordo
com as mudanças nos modos de produção, e que, na atualidade, consolida-se a partir da desigualdade de renda.
2
produto imobiliário de “enclave fortificado” e define-o como “[...] um espaço privatizado,
fechado e monitorado para residência, consumo e trabalho. A sua principal justificação é o
medo do crime violento”. Esses autores, assim como Souza (2003), argumentam que para tais
locais dirigem-se aqueles que se sentem pressionados pelos problemas urbanos e, por isso,
deixam as ruas para os pobres, que, em última instancia, acabam sendo vistos como os
responsáveis por parte das mazelas das cidades.
Para que esse afastamento seja concretizado, faz-se necessária uma boa localização, que,
nesse caso, significa apartação das cidades, mas não dos seus equipamentos, serviços,
comércio, e mercado de trabalho. Em outras palavras, pretende-se de um distanciamento
relativo, que não comprometa a acessibilidade às funções e estruturas existentes nas maiores
cidades. Nesse sentido, para que um condomínio fechado seja um empreendimento bem
sucedido depende-se, em princípio, de sua possibilidade de marcar a existência de uma
estrutura e ordem distintas e separadas da prática urbana cotidiana, seja na forma dos
domicílios, na quantidade e qualidade dos itens de lazer e de serviços a ele associados, e pela
possibilidade de vislumbrar grupo social que nele irá residir. Além disso, é preciso que sua
localização favoreça o acesso a todo o conforto e serviços que são resultantes dessa mesma
prática. Exatamente pela possibilidade de associar essas duas condições, os agentes do
mercado imobiliário tem voltado seus interesses para certos locais situados nas franjas das
metrópoles; tidos como periféricos (dada sua distância do centro), estão aparentemente
afastados dos problemas urbanos embora, simultaneamente, próximos e articulados a uma
grande cidade. Essa situação confere a tais locais — depois de serem organizados para
assumirem essa nova função — elevado valor de mercado, o que, para Villaça (2001), está
principalmente associado à acessibilidade que neles existem em relação às áreas centrais.
O fato é que, decorrente das lógicas de espacialização das classes sociais que emergiram e se
consolidaram a partir dos anos 80, integrantes das elites passaram a residir nas periferias que,
até então, era um território ocupado por indivíduos de baixa renda, que erguiam suas
moradias de forma precária e lenta e que conviviam com a carência de infra-estruturas. Com
a implantação dos condomínios de luxo nesses locais, ocorreu uma aproximação física dos
diferentes segmentos sociais, repercutindo não só na forma e na função das periferias, mas,
igualmente, no modo de vida dos que lá já estavam. O propósito desse texto consiste em
analisar alguns dos reflexos da periferização das elites tendo como referência, além da
discussão teórica, os processos ocorridos em curso em um município da Região
Metropolitana de Salvador (RMS), Lauro de Freitas.
A periferia enquanto área da pobreza e a necessidade do afastamento das
elites
Emancipado em 1962, situado no limite norte da capital e entre Camaçari e Simões Filho, o
município de Lauro de Freitas (Figura 1) apresentava um conjunto de características
favoráveis para ser incorporado ao processo de expansão urbana que viria a ocorrer em
Salvador nas décadas seguintes. Dentre elas, destaca-se que o município não possuía qualquer
dinâmica ou densidade urbana, sendo composto por grandes propriedades abandonadas e por
moradias de pequenos agricultores e de sitiantes. Como não havia boas condições de acesso a
Salvador, era considerado distante da capital (embora estivesse a, aproximadamente, 30km do
seu centro), assim, embora detivesse as terras mais baratas da área metropolitana, nos anos 70
mantinha uma pequena população: cerca de 10 mil moradores2. Ademais, cerca de 60% dela
2
É importante mencionar que a população baiana, historicamente, concentrou-se em Salvador e no seu entorno.
Só a título de comparação, em 1960, a capital da Bahia contava com, aproximadamente, 640 mil habitantes e em
1970, cerca de 1 milhão de pessoas viviam em Salvador. Nesse último ano, nenhum dos demais municípios que
3
vivia no meio rural. Grande parte dessas pessoas tinha baixo rendimento e escolaridade (40%
da população de 5 anos e mais não tinha instrução), e quase 30% sobrevivia de atividades
agrícolas. Esses aspectos colaboravam para que Lauro de Freitas permanecesse com boa parte
de suas matas, rios e praias ainda preservados.
Figura 1 – Limites políticos-administrativos de Lauro de Freitas
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Contudo, já no final dos 60 e, fundamentalmente, na segunda metade dos 70, transformações
de cunho socioeconômico começaram a se processar na Bahia — que de uma economia
firmemente pautada no setor primário passou a integrar o projeto de industrialização nacional
viriam a se tornar metropolitanos detinha sequer 35 mil habitantes. Entre 1980 e 2000, na capital moravam mais
de 80% da população da RMS e cerca de 18% do contingente do estado.
4
—, tendo em Salvador seu principal cenário. Destaque-se a instalação da Refinaria
Landulpho Alves (RELAM) e a criação do Centro Industrial de Aratu (CIA), em Simões
Filho, e a implantação do Complexo Petroquímico de Camaçari (COPEC). Essa situação
resultou em amplas mudanças na estrutura social e física da RMS, dentre as quais, a criação e
a melhoria de vias de ligação entre a capital e essas áreas recém-industrializadas. Em
Salvador, aonde vieram residir boa parte dos técnicos mais qualificados desses
empreendimentos, ocorreu uma reorganização espacial e social, com a necessidade de
relocalização de diferentes funções, dentre as quais, a de moradia. E uma parte dos pobres,
como observado em outras metrópoles do país, frente à preocupação dos poderes públicos em
“modernizar” a cidade, foi conduzida para fora das partes centrais e mais valorizadas da
cidade. Melhor dizendo, na tentativa de limpar, ordenar e urbanizar as cidades, os pobres
foram deslocados nas periferias. Lago (2007) ressaltou que, nesse período, tentava-se colocar
os pobres numa localização que lhes desse ‘invisibilidade’, visto que estavam ‘fora do lugar’.
Nesses tempos, havia uma nítida tendência de manter uma distância física entre as classes
sociais, com a elite reservando para si as melhores porções do centro.
Em meio a esses processos, dada sua localização e suas características, mesmo desprovido de
qualquer infra-estrutura (ou justamente por isso), em Lauro de Freitas não se tardou verificar
a implantação de empreendimentos imobiliários destinados à moradia, para responder às
necessidades e possibilidades dos indivíduos de menor renda. Foram instalados dezenas de
loteamentos, boa parte dos quais irregulares, que tinham em comum a precariedade: os lotes
eram entregues sem a mínima condição de habitabilidade3. Nesses tempos, as vias de acesso e
o sistema de transporte para Salvador e outras áreas da região eram deficientes, sendo em
muito utilizado o transporte clandestino, que circulava em poucos horários e era realizado em
veículos deficientes. Os estabelecimentos comerciais e de serviços eram mínimos e precários,
e a infra-estrutura pública muito restrita em termos quantidade, da espacialização e da
qualidade do atendimento (DIAS, 2006).
De todo modo, entre 1966 e 1980, os inúmeros loteamentos populares que surgiram
contribuíram para trazer um grande contingente para Lauro de Freitas que, com isso,
observou uma significativa imigração, obtendo a mais alta taxa de crescimento demográfico
da RMS: 13,4% ao ano (enquanto essa região cresceu a 4,4% ao ano). Assim, em 1980 sua
população superava os 35 mil habitantes, o que, evidentemente colaborou para a alteração
funcional do município e para sua urbanização.
Com o passar dos anos e o avançar desse processo, Lauro de Freitas consolidou-se como
periferia (no sentido tradicional) de Salvador. Seus bairros mais populosos, Itinga e Portão,
em pontos extremos do município, apresentavam os elementos que caracterizam uma típica
área periférica: densidade elevada4, população de baixa renda, precariedade nas construções,
serviços públicos deficientes. Contudo, embora possuam uma série de equipamentos
comerciais e de serviços — ou seja, que tenham uma relativa centralidade, necessária e
produzida pela vida social (ROCHA, 1999) —, para os moradores desses locais, a cidade, o
centro, é Salvador. Melhor dizendo, o Centro de Lauro de Freitas, para eles, não se constitui
numa referência; vidas estão vinculadas aos processos ocorridos em Salvador. (DIAS, 2006).
Tal situação não causa estranheza visto que, tal como dito por Rocha (1999), a metrópole
significa concentração de pessoas, objetos, riquezas e poder que são concretos e lhe conferem
centralidade, situação que contribui para produzir sua importância simbólica. Noutras
3
Para maiores detalhes, ver DIAS, 2006.
De acordo com a Prefeitura Municipal de Lauro de Freitas, esse município está dividido em sete distritos,
sendo que Itinga e Portão, que possuem 18,5% de sua área, registrou 50,1% de sua população total, em 2000
(DIAS, 2006).
4
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palavras, por ser a partir desse local que se determinam as relações e as funções das demais
áreas, esse assume a posição de centro. Para o autor, fora dele, estão as áreas periféricas que,
de algum modo a ele estão subordinadas.
Como os processos sociais são dinâmicos e contraditórios, no mesmo período em que ocorria
a periferização dos grupos sociais de menor renda, entre o final dos anos 70 e o início dos
anos 80, estava em curso, também, uma tendência de distanciamento das elites dos grandes
centros urbanos. Estavam em voga ideais de contra-urbanização, de valorização da natureza,
da busca de qualidade de vida, o que só poderia ser conseguido com por meio de afastamento
da cidade, ou melhor, dos problemas tidos como a ela inerentes. As periferias de algumas
metrópoles, especialmente naquelas onde havia a combinação de amenidades naturais, pouca
densidade e disponibilidade de terras a baixo custo, dada a relativa proximidade dos centros
urbanos foram em muito utilizadas para a implantação de loteamentos e de condomínios
fechados.
Em ritmo diferente do observado em relação aos empreendimentos voltados aos setores
populares, em Lauro de Freitas também ocorreu um processo de expansão do mercado
imobiliáriodestinado ao atendimento da demanda dos grupos sociais de maior renda: foram
inaugurados grandes loteamentos e condomínios que prometiam um novo e melhor estilo de
vida. Nos anos 70 e 80, o grande chamariz desses empreendimentos foram as amenidades
naturais do município associado ao fato de que, por ser pouco urbanizado, possibilitaria uma
vida em maior harmonia com a natureza. Ressalta-se que, nos anos 70, foi concluída a
avenida Luís Viana Filho (conhecida como Avenida Paralela) que permitiu o acesso mais
rápido de Lauro de Freitas ao centro da capital. Contudo, esse município ainda era tido como
distante, com praias e grande parte das matas (ainda) preservadas. Desse modo, foi possível
fazer uso dos argumentos então em voga para a comercialização desses novos
empreendimentos em seu território.
O fato é que, nas duas últimas décadas, verificou-se a chegada de um amplo contingente de
imigrantes em Lauro de Freitas que apresentavam um perfil bastante distinto dos do que lá
residia. Numa tendência crescente, indivíduos com elevada escolaridade e renda, oriundos,
sobretudo, de Salvador, vem ocupando os vários condomínios que foram implantados no
município. Com isso, a renda e a escolaridade médias de Lauro de Freitas revelaram-se
bastante elevadas. Em 2000, contava com 113.543 habitantes (uma das maiores populações
da Bahia), com 96% deles residindo em meio urbano. Ademais, era o município baiano com a
maior proporção de pessoas com rendimentos superiores a 20 salários mínimos e cerca de 5%
de sua população de 10 anos e mais possuía mais de 15 anos de estudo (em Salvador, esse
valor era de 6%).
Alguns aspectos são importantes apontar, antes de prosseguir na discussão. Um deles se
refere à localização dos empreendimentos. O município de Lauro de Freitas é dividido pela
Estrada do Coco, a BA-099 (ver Figura 1), inaugurada na segunda metade dos 70, a oeste
dela está o “interior” (entre a BA-099 e salvador e Simões Filho) do município e a leste a orla
oceânica e o rio Joanes, divisa com Camaçari. Foi justamente nas margens desse rio (uma
pequena parte do distrito de Portão) e na orla que foram localizados os empreendimentos
voltados às elites. Quanto aos loteamentos destinados aos segmentos sociais de menor renda,
estão situados no “interior” de Lauro de Freitas (Quadros 1 e 2).
Isso fez com que, em princípio, aqueles que estavam chegando, integrantes de grupos sociais
tão distintos, não residissem em locais muito próximos. Nesse sentido, é importante lembrar
que “a fragmentação do espaço não é apenas o resultado do parcelamento do espaço na forma
de propriedade” (ROCHA, 1999, p. 160). Há uma lógica, explícita ou não, que define as
formas de divisão e os usos dos lugares, o que resulta das articulações do Estado com as elites
6
e as exigências do sistema de produção. Como dimensão da sociedade, o espaço assimila os
conflitos e as contradições sociais, reproduzindo-os em sua estruturação. Portanto, o
distanciamento posto a esses dois grupos nada mais significou do que a reprodução de
processos que ocorriam no núcleo metropolitano: a separação espacial das classes sociais,
com cada grupo social sendo “instalado” em um local.
Quadro 1 – Quantidade e localização dos loteamentos populares implantados em Lauro
de Freitas, entre 1966 e 1980
Localização em relação à
Estrada do Coco
Interior
Orla
Bairro/distrito tradicional
Itinga
Portão
Capelão
Total
Portão
Pitangueiras
Ipitanga
St. Amaro de Ipitanga/Centro
Joquei Clube
Total
Quantidade de loteamentos
regulares
42
4
8
54
0
0
1
1
2
4
Fonte: Dias, 2006
Nota: Com a criação da BA-099, o antigo distrito de Portão foi dividido e uma parte passou a
integrar a orla. Postriormente, a partir dos anos 80, essa parte de Portão passou a compor o distrito Atlântico Norte.
Quadro 2 – Quantidade e localização dos loteamentos e condomínios destinados aos
segmentos sociais mais abastados implantados em Lauro de Freitas, entre 1966 e 1980
Localização em relação à
Estrada do Coco
Interior
Orla
Bairro/distrito tradicional
Itinga
Portão
Capelão
Total
Portão
Pitangueiras
Ipitanga
St. Amaro de Ipitanga/Centro
Joquei Clube
Total
Quantidade de loteamentos
regulares
0
5
0
5
6
4
1
2
1
14
Fonte: Dias, 2006
Nota: Com a criação da BA-099, o antigo distrito de Portão foi dividido e uma parte passou a
integrar a orla. Postriormente, a partir dos anos 80, essa parte de Portão passou a compor o distrito Atlântico Norte.
Um segundo ponto se refere à infra-estrutura do município, que como já mencionado, era
precária. Nos anos 70, não havia, por exemplo, sistema de distribuição de água ou de energia
7
elétrica compatível com a expansão imobiliária que, de forma acelerada, lá se iniciava. Nos
locais onde foram implantados os loteamentos populares, a ampliação de tal cobertura ficou
exclusivamente a cargo do poder público, que atuou de forma lenta e, de forma geral, como
resultado de movimentos reivindicatórios realizados pelos seus habitantes. Sendo assim,
coube aos primeiros moradores de tais locais a abertura das ruas, a expansão da rede elétrica
(via ligação clandestina) e a busca de alternativas para abastecimento de água (foram abertos
poços) e para o escoamento de dejetos (nos rios, de forma geral).
Para os loteamentos e condomínios das elites, como era de se esperar, fez parte da estratégia
de venda das empresas a instalação de uma rede básica de distribuição de energia elétrica, de
abastecimento de água, além da pavimentação de vias e da “criação” de alternativas de
transporte coletivo, o que foi, posteriormente, assumido pelo poder público. Obviamente, que
existiram problemas e deficiências, contudo, até mesmo por conta da capacidade financeira
dos indivíduos que adquiriram lotes nesses locais, a possibilidade de superá-los era maior do
que a dos moradores das demais áreas. Reproduzia-se, desse modo, a desigualdade de
condições de vida que, antes era menos exposta, por estarem os pobres “invisíveis” nas
periferias. Tal diferença, agora, expressava-se de forma contundente.
Cabe ressaltar também que essa volta à natureza e a busca de uma vida mais tranqüila
apresentad nas sedutoras propagandas dos condomínios das elites constituíam-se em imagens.
Na realidade, aqueles que diziam querer se afastar da cidade, nunca abriram mão dela. Isso
porque, tal como Sposito (1999) explicou, a tendência de afastamento das elites dos grandes
centros não significou de fato uma desurbanização ou uma “ruralização” do modo de vida
urbano (embora essa idéia tenha sido amplamente utilizado para a comercialização dos
empreendimentos voltados esse segmento social). Conforme a autora, de fato, ainda que seu
discurso apontasse o desejo de um estilo de vida “menos urbano”, aqueles que se afastaram
da metrópole não pretendiam alterar sua prática cotidiana: “[...] do ponto de vista funcional e
profissional [eram] altamente dependente das atividades e equipamentos densamente
concentrados nessas verdadeiras regiões urbanas” (SPOSITO, 1999, p. 90).
Em vista disso, Lauro de Freitas foi um espaço que serviu tanto para afastar aqueles com
menor renda das áreas centrais de Salvador, como área de expansão imobiliária voltada aos
grupos sociais mais abastados. A esse município, portanto, coube desenvolver a função
residencial atendendo-se a duas lógicas distintas. Ficou sendo local de moradia dos pobres —
que sem condições de residir nas áreas centrais buscavam a possibilidade de adquirir casa
própria onde fosse possível — e da elite — que pretendia uma moradia diferenciada, com
mais qualidade e longe dos problemas urbanos.
Organização espacial e relações sociais
Entre 1970 e 2002, foi registrada a implantação de cerca de 150 loteamentos e condomínios
(regulares ou não) que fragmentaram o território e alteraram radicalmente a organização
sócio-espacial do município de Lauro de Freitas. Tais empreendimentos, seguindo a
tendência verificada até o início dos 80, foram distribuídos no espaço com uma lógica —
ainda que não explícita — de se concentrarem em uma ou outra área do município, o que foi
determinado, principalmente, pelas características do segmento social ao qual se destinavam.
Tomando-se como referência a Estrada do Coco, os que estavam voltados às elites
prevaleceram na orla e nas proximidades do Rio Joanes e os destinados à atender os
segmentos sociais de menor renda e escolaridade, ficaram, sobretudo, no “interior” do
município. Ocorre que na porção que aqui chamamos de interior, à exceção de um pequeno
aglomerado, predominavam propriedades abandonadas, onde só havia, literalmente, mato. Na
orla, ao contrário, havia sitiantes e pequenos aglomerados constituídos por proprietários de
8
pequenos lotes ou por posseiros. Ou seja, nessa última área, os novos moradores, integrantes
da elite da maior cidade da Bahia, se instalaram lado a lado a um conjunto de pessoas com
pouca escolaridade e que sobrevivia, principalmente, do cultivo de hortaliças, da coleta e
venda frutas, dos biscates e da prestação de serviços pouco qualificados. Sobretudo, cujo
cotidiano era regido por uma dinâmica bastante diversa da urbana.
Nesse ponto do texto, o foco recairá sobre o estudo dos processos evidenciados nessa porção
de Lauro de Freitas, mais especificamente sobre os associados ao maior (em termos de área e
quantidade de lotes) empreendimento residencial implantado nesse município até 2000: o
loteamento Vilas do Atlântico. Este loteamento com seus, aproximadamente, 3km2 e 2.422
lotes, foi lançado em 1979 tendo como objetivo atrair os trabalhadores mais qualificados da
RMS, especialmente os técnicos de alto escalão do COPEC. Constituiu-se numa experiência
inédita no mercado imobiliário baiano, extremamente bem sucedida em termos comerciais e,
rapidamente, Vilas passou a ser referência no litoral norte de Salvador, local associado a
status e à qualidade de vida.
Todavia, para os moradores mais antigos da área onde Vilas foi encravado, que tinham uma
vida em muito associada ao ritmo das atividades rurais, desde o princípio, sua implantação
resultou em transformações das práticas cotidianas. As máquinas, as cercas e a derrubada de
árvores repercutiram na alteração dos caminhos tradicionais, na fragmentação e limitação do
espaço, na destruição das roças e na impossibilidade da coleta de frutas (o que era realizado
em algumas das fazendas que passaram a compor o loteamento) para comercializar nas feiras
de Salvador. Acrescente-se que ocasionaram uma delimitação do território distinta da
construída historicamente, alterando seu significado social.
Como Carlos (2004) afirmou, a alteração dos usos de um determinado espaço, especialmente
a conversão de áreas historicamente residenciais em área de negócios (no caso, de negócios
do mercado imobiliário), ao interferir radicalmente na vida dos antigos moradores,
constrange-os a ter uma nova relação com o seu bairro, na qual são apagados os referenciais
que guiavam a realização da vida cotidiana. Com isso, “[...] emerge com força a contradição
entre o tempo de realização da vida e o tempo de transformação do espaço construído,
implicando o empobrecimento das relações sociais da metrópole” (CARLOS, 2004, p. 15).
As reflexões postas acima podem ser apropriadas para discutir o que ocorreu em Lauro de
Freitas. As cercas erguidas, desde os primeiros momentos de implantação de Vilas do
Atlântico, dividiram aquele local que, até então, era conhecido como Pitangueiras,
provocando a fragmentação concreta desse espaço. Dentro das cercas estava a modernidade
— anunciada nos slogans adotados para comercialização dos lotes em Vilas —, do lado de
fora, a pobreza, inscrita nas formas das ruas e das moradias e nos hábitos dos moradores. No
encontro entre esses dois locais, as relações de classe se explicitaram na reação que os com
maior poder aquisitivo tiveram frente aos mais antigos habitantes locais.
Como a noção pobreza, desordem e criminalidade se confundem no imaginário das elites, na
tentativa de se prevenir da possibilidade de re-encontrarem os problemas aos quais tentavam
escapar indo para Vilas, alguns dos que adquiriram os seus valorizados lotes questionaram a
legalidade das habitações circunvizinhas. Os donos dos “barracos” existentes no limite do
loteamento, a maioria dos quais adquiridos por meio de compra de pequenos terrenos
desmembrados de uma fazenda que havia na área, se viram na necessidade de comprovar sua
posse, o que em alguns casos não ocorreu5. Em verdade, os antigos residentes de Pitangueiras
5
Boa parte do que é Pitangueiras atualmente decorre de uma antiga fazenda que, pouco antes da emancipação
do município, foi parcialmente fragmentada em pequenos lotes e vendida. Como as terras eram muito baratas,
foram adquiridas por pessoas de baixa renda, e para garantir a compra, foi “passado” um recibo. Ou seja, a
maior parte dos moradores de Pitangueiras tinha como único documento que garantia a posse da terra um recibo
9
foram confrontados com a lógica daqueles que vinham da grande cidade, de fora, o que
compreendia ser reconhecido como sem direito, inferior. Essa proximidade física, portanto,
em nenhum momento apontou para a possibilidade de uma interação dos diferentes mundos
que se punham lado a lado. Assim, estabeleceram-se barreiras concretas e simbólicas que, tal
como nos estudos de Roitman (2003), reforçaram os mecanismos de segregação que separam
e distinguem os de dentro e os de fora. Vilas, desse modo, constitui-se num enclave que
exemplifica a literal da separação do espaço como uma forma de diferenciação social
(CALDEIRA, 2003).
A questão é que a forma de organização do espaço imposta pelos interesses imobiliários deu
um novo conteúdo ao lugar. Antes, as diferenças eram pouco nítidas: as pessoas pertenciam a
um mesmo grupo social, com necessidades e interesses comuns, participavam de atividades
semelhantes e tinham o mesmo padrão de moradia. Com a implantação do loteamento Vilas
do Atlântico, teve-se, a já assinalada, fragmentação do espaço, alterando o cotidiano e as
relações de vizinhança. Mas, sobretudo, a chegada de um contingente cujos hábitos e cultura,
interesses e necessidades, que em muito diferiam do lá existente, pôs aquelas pessoas em
contato direto com um tipo de cultura que lhes parecia muito distante.
Ademais, integrantes de um segmento social mais abastado, que demandavam uma série de
serviços inexistentes em Lauro de Freitas, diferindo do que ocorria com os que já estavam em
Pitangueiras e que tinham naquele lugar suas referências, os moradores de Vilas poucas
relações estabeleciam com o município e com quem lá estava. Trabalhavam, estudavam e
consumiam em Salvador; em Lauro de Freitas apenas residiam.
Desde o início dos anos 90, Vilas do Atlântico, já consolidado como bairro de elite,
permaneceu significando qualidade de vida para os moradores de Lauro de Freitas bem como
para os de Salvador. Atualmente, além de ser local de moradia, passou a dispor de uma série
de equipamentos comerciais e de serviços que fornecem produtos extremamente
diversificados e sofisticados — embora Salvador ainda apareça no discurso de seus
moradores como um lugar fundamental para a concretização de suas necessidades cotidianas
(DIAS, 2007)6. Nesse contexto, considerando que persiste a massificação da divulgação de
ideais que justificam uma nova forma de moradia, a ampliação da infra-estrutura em Vilas
aliada ao fato de que a esse lugar foi atribuído status de área nobre, inúmeros condomínios
fechados foram e continuam sendo lançados nas suas proximidades e, mesmo quando não tão
próximos, fazem referência à possibilidade de acesso à Vilas. Com isso, vem se processando
a contínua fragmentação sócio-espacial do município e sua “elitização”, onde é cada vez mais
comum a presença de condomínios com diferentes graus de sofisticação, visando atender
diferentes segmentos da classe média. Mas, todos, sem exceção, bem protegidos por muros
altos e por uma ampla parafernália de monitoramento e controle de acesso.
Nesse período, é importante destacar, nenhum outro loteamento popular foi implantado na
orla de Lauro de Freitas. Entretanto, ainda há moradores mais pobres dessa área. Esses, ou
de compra e venda. Como parte dos que lá estavam haviam herdado o lote e como pela lógica que regia as ações
e relações até então não exigiam a regularização da posse — todos sabiam que era o dono da cada porção do
solo — houve dificuldades no momento em que se estabeleceu a necessidade de comprovação da propriedade.
Efetivamente, algumas pessoas tiveram que sair do local.
6
Evidentemente, a proximidade a Salvador, a maior cidade da Bahia, dificulta a consolidação de Lauro de
Freitas como praça comercial e de serviços. Embora nesse município há uma série de estabelecimentos que
disponibilizam produtos e serviços sofisticados (lojas de grifes conhecidas, cursos de idiomas de cadeia
nacional, filiais de restaurantes renomados em Salvador, dentre outros), aqueles que residem na sua principal
“área nobre” reclamam da falta de opções e do custo de residir em Vilas, preferindo deslocar-se para Salvador.
A exceção fica por conta das atividades educativas, a maioria das pessoas em idade escolar busca as escolas de
suas proximidades (DIAS, 2006).
1
estão lá há muito ou são aqueles que realizaram ocupações irregulares mais recentemente7.
Desse modo, o que se observa no entorno de Vilas é a convivência, lado a lado, de casas
rudimentares com cercas de arame e condomínios protegidos por altos muros e cercas
elétricas. O que, ainda que em escala reduzida, reproduz o verificado em grandes cidades do
país: a territorialização da conflituosa sociabilidade brasileira, na qual dominação e
submissão, proximidade física e distância social estão presentes (RIBEIRO, 2004).
A realidade é que aqueles moram em Vilas pouco circulam ou conhecem as redondezas.
Igualmente, poucos sabem sequer o nome das áreas que estão próximas, nas quais são
obrigados a transitar (de carro) cotidianamente — mas muitos empregam, nas suas casas,
pessoas que ali residem. Em outros termos, Vilas e seu entorno pobre constituem mundos
distintos, que não estabelecem efetivos contatos a não ser por uma relação de dominaçãosubmissão. Essa situação deixa claro o que Souza (2000) nomeou de “escapismo hipócrita
das elites”: os que pretendem a auto-segregação, o afastamento dos problemas associados à
pobreza e à desordem que ela provoca na cidade, “esquecem-se” que precisam “[...] daqueles
que desejam excluir de seu cotidiano e da paisagem na qualidade de vizinhos, mas que são
necessários na qualidade de porteiros, empregadas domésticas etc. e, na cidade existente fora
dos muros do condomínio, na qualidade de trabalhadores em geral” (SOUZA, 2000, p. 206).
Os processos que resultaram na forma de organização do espaço nesse município e suas
conseqüências , portanto, ainda que ressalvadas suas especificidades, não se distinguem dos
que vem sendo evidenciado em outras metrópoles brasileiras: representa e contribui para
reproduzir a desigualdade social. A tentativa de enclausuramento das elites em seus
condomínios não é mais que uma expressão concreta da sua tentativa de separação, deixando
literalmente de fora aqueles com quem não se quer ter contato, com os pobres. Com isso, tal
como afirma Souza (2003, p. 84), a segregação, que deriva das desigualdades,
simultaneamente, a retro-alimenta, pois, induz ao desconhecimento mútuo, à perpetuação dos
mitos e preconceitos, o que resulta na intolerância frente à diferença e em conflitos.
Finalizando: sobre o cotidiano
A migração é, em si, a possibilidade de alteração do modo de vida. A ida para a periferia,
contudo, é mudança pode ter diferentes motivações, o que em muito está relacionado à renda
e à forma de inserção do indivíduo na sociedade. No caso de Lauro de Freitas, que se tornou
área de expansão da capital, para os pobres a migração correspondeu a uma tentativa de
possuir sua casa própria, o que lhes parecia impossível no centro da metrópole. Com esse
intuito, destacando-se as duas primeiras décadas após a emancipação desse município, foram
para sua periferia, então com infra-estrutura precária ou inexistente, arcando com os custos
do necessário deslocamento cotidiano, fosse para trabalhar, estudar ou consumir. De fato,
tendo em vista os limites econômicos de suas possibilidades de escolha e as políticas de
organização urbanas altamente segregadoras, os grupos sociais de mais baixa renda,
normalmente, e tal como no caso em estudo, são impelidos a se dirigir para determinados
lugares onde a terra é desvalorizada comercialmente, dado que geralmente são locais de
“difícil acesso”, distantes dos principais equipamentos e serviços das cidades e com mínimas
condições de habitabilidade. Para as pessoas que foram para os loteamentos populares de
7
Na orla de Lauro de Freitas, entendida como a porção territorial que fica entre a Estrada do Coco e o
oceano, as invasões ocorreram, essencialmente, no início dos anos 60, na ocasião da sua emancipação, o que
contou, inclusive, com apoio do poder público, e entre meados dos 80 e início dos 90. Muitos dos que residem
nas áreas que foram ocupadas a partir dessas datas vieram para o município de cidades menores e da capital em
busca de melhores condições de moradia e de trabalho. A idéia era de que Lauro de Freitas estava crescendo e,
por isso, teria um mercado de trabalho em expansão. Além disso, existia disponibilidade de terras próximas ao
seu centro.
1
Lauro de Freitas, ir para a periferia foi também assumir um novo modo de vida, que era ainda
mais precário do que aquele que experimentavam anteriormente.
Para as elites, que tem capacidade de escolha bem mais ampla, a migração para a periferia
decorreu de causas totalmente distintas. Para esse grupo, ir para longe do centro foi
efetivamente uma opção, motivada pelo desejo de afastamento dos problemas cotidianos, das
mazelas da vida nos grandes centros urbanos. Isso porque esse grupo social não se desloca
para qualquer lugar, mas, para aqueles que acenem com a possibilidade de uma vida melhor.
Essa periferização é, na verdade, produto de uma lógica, empreendida principalmente pelo
capital imobiliário, que aponta para a necessidade de novas formas de morar, com os
condomínios fechados sendo apresentados como a melhor alternativa. O custo elevado a
pagar para adquirir uma habitação nesses empreendimentos e os ocasionados pelo
distanciamento é compensado pela possibilidade de se ter uma vida com mais qualidade, ao
que se “agrega” o status: aquele que está dentro dos muros é visto como alguém que
conseguiu um estilo de vida melhor. De todo modo, ainda que distante das grandes cidades, é
com ela que esses indivíduos estabelecem relações, ou melhor, é a sua lógica que dita seus
hábitos e o seu cotidiano.
Para aqueles já viviam em Lauro de Freitas, a implantação de Vilas e dos demais
condomínios fechados na sua orla teve como conseqüência imediata um processo de
fragmentação do espaço, de limitação das formas de circulação, de alteração dos seus hábitos,
ritmos de vida e de produção elaborados no cotidiano. Um “novo” modo de vida se impôs ao
antigo que, rapidamente, pareceu ter perdido o sentido. Além disso, a proximidade entre dois
grupos sociais tão distintos, o que antes inexistia no município, fez com que aos mais pobres
fosse imputado o estigma de “invasores”, que poderia ser traduzido como o não-direito a
estar naquele espaço que, agora, passava a ser reservado para a expansão do setor imobiliário.
E, então, os pobres que lá antes estavam passaram a estar “fora do lugar”.
Acrescente-se que no município estudado, ao contrário do que alguns autores afirmam, a
proximidade entre grupos sociais tão distintos não resultou em benefícios para os moradores
que ficaram no entorno de Vilas (ou na sua periferia). É certo que, estatisticamente, verificouse a melhoria dos serviços públicos, especialmente no que tange ao abastecimento de água,
expansão da rede elétrica, coleta de lixo naquela área. Contudo, tal como demonstrado em
trabalho anterior (DIAS, 2006), todas as melhorias se fizeram de forma concentrada em Vilas
e nas áreas aonde vinha ocorrendo a implantação de novos loteamentos. As características da
parte de Pitangueiras que não foi incorporada a Vilas — a pavimentação das ruas, a estrutura
das casas, o tipo de iluminação pública, por exemplo — revelam as intensas disparidades
entre seus moradores e os que habitam o bairro mais nobre de Lauro de Freitas. Observe-se:
Vilas tornou-se um bairro e, portanto, não é um condomínio regido por normas privadas, mas,
as barreiras simbólicas são evidentes. Aqueles que moram nas áreas populares do município,
não transitam nem consomem em Vilas. Esse bairro significa para eles a riqueza e um
mercado de trabalho em potencial. Mas, sabem que ali não é o seu lugar.
O fato é que quanto mais Lauro de Freitas vai ocupado por integrantes dos segmentos sociais
de maior escolaridade e renda, mais suas terras são valorizadas em termos comerciais e
simbólicos. Tal situação vem contribuindo para que suas propriedades, especialmente antigas
chácaras e terrenos localizadas na orla, onde moram pessoas de baixa renda, venham sendo
apropriadas para serem convertidas em novos condomínios e, mais recentemente, em “clubes
residenciais”. Ao mesmo tempo, e com igual velocidade, as relações sociais nesse município
passam a reproduzir o modelo dos grandes centros, com a desvalorização das realizações
cotidianas, desqualificação do modo de vida daqueles com menores níveis de renda e
exacerbação das desigualdades. Com isso, aqueles problemas urbanos, dos quais tanto se
queria escapar, começam a aparecer, desconstruindo, gradativamente, o mito de que fugindo
1
dos lugares e perpetuando as estruturas que os produziram, é possível mudar de sociedade e
de formas de sociabilidade.
Referências
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VILLAÇA, Flávio José Magalhães. Espaço intra-urbano no Brasil. São Paulo: Nobel, 2001.
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Elitização e alteração no cotidiano de um município