arq-estr144.qxd 23/2/2006 16:30 A R Q U I T E T U R A S Page 64 E E S T R U T U R A S E J O G O S PEGA-VARETAS E ESTRUTURA RECÍPROCA ASSIM COMO EM UM JOGO, O DESENVOLVIMENTO DE UM PROJETO TEM REGRAS, EXIGE ESTRATÉGIA, RACIOCÍNIO E UMA BOA DOSE DE CRIATIVIDADE PARA PROPOR INOVAÇÕES. BRINQUEDOS DE MONTAR E DESMONTAR ENSINAM, AINDA QUE DE FORMA INTUITIVA, ALGUNS TIPOS DE RELAÇÕES ESTRUTURAIS POR YOPANAN REBELLO E MARTA BOGÉA 64 ARQUITETURA&URBANISMO MARÇO 2006 acervo dos autores B rincar foi uma das atividades primeiras que nossos ancestrais usaram para desenvolver nos seus pequenos duas habilidades importantes para a sobrevivência da espécie: a coordenação motora e o raciocínio. Nas brincadeiras são comuns as atividades de construir e desconstruir. Criar objetos em pequena e grande escalas, ou seja, criar estruturas que se mantenham, e poder desmanchálas de forma que não caiam sobre o jogador fazem parte de muitas brincadeiras até hoje exercitadas pelas crianças. Mesmo aquelas das quais a indústria se apropriou são verdadeiros desafios para a imaginação, habilidade manual e criatividade das nossas crianças – quem não se lembra do Pequeno Engenheiro, dos módulos Mec Brás, da Estrela, e do Lego – este, já quase um ícone da infância? Engenhosas construções, elas nos remetem facilmente ao universo da arquitetura e da engenharia que, algumas vezes, está presente no próprio nome dos brinquedos. Neste e em próximos artigos pretendemos mostrar como algumas dessas atividades lúdicas são verdadeiras obras de arquitetura e estrutura. Projetar tem muito da atividade de jogar. Não um jogo de azar, cujo resultado depende de sorte, o que não deve ser o caso de um projeto, mas de jogos como xadrez, futebol, vôlei, queimada e amarelinhas, entre tantos outros, que todas as crianças saudáveis – e também adultos – devem ter jogado pelo menos uma vez. Jogos nos quais raciocínio lógico, habilidade e criatividade são valorizados. Criança brinca com o jogo Pega-varetas. Assim como a criatividade, a coordenação motora e a habilidade manual, as noções estruturais, intuitivas durante a infância, podem ser exercitadas 23/2/2006 16:30 Page 65 reproduzido de Construire en Bois 2 – Julius Natterer, de Thomas Herzog e Michael Volz, Polytechniqes et Universitaires Romandes arq-estr144.qxd A cobertura de um depósito de sal em Lausanne, Suíça, foi construída no sistema de estrutura recíproca a partir de projeto do escritório Atelier Gamma, com a colaboração do engenheiro alemão Julius Natterer Jogos com barras e lâminas – ou palitos e cartas – são conhecidos.Muitas vezes como uma espécie de passatempo, o manuseio desses materiais resulta em construções curiosas e recorrentes no universo lúdico.Por isso,lembrar a infância e seus jogos pode ser bastante útil no ensino de estrutura ao nos permitir uma eficiente ferramenta para a compreensão do comportamento estrutural, algo que naquela fase da vida era intuitivo. O jogo de Pega-varetas, por exemplo, exige a percepção dos elementos principais e secundários de uma estrutura. Embora proponha uma atividade de desconstrução, o brinquedo coloca duas importantes questões relativas ao domínio estrutural: a destreza em retirar a vareta e a consciência do equilíbrio dos elementos que restaram, ou seja, varetas apoiando-se em varetas. acervo dos autores Para projetar é necessário seguir regras. É principalmente nesse aspecto que o projeto se assemelha a um jogo, pois é impossível pensar em algo que tenha consistência, mas não tenha regras. O próprio caos tem regras, mesmo que às vezes não muito aparentes. Muitos podem até não gostar de regras pré-estabelecidas, o que é muito bom. Mas, nesse caso, que criem outras melhores. O que não é possível é raciocinar sem regras. Por outro lado, é no raciocínio divergente que se dá o processo criativo, e divergir é um ato que está ligado à diversão. "Divertir: verbo, distrair, desviar, recrear. Do latim: divertere, ir-se embora, afastar-se", de acordo com o Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, de Antônio Geraldo da Cunha (Nova Fronteira). A montagem da estrutura recíproca utiliza um conjunto de barras que se entrelaçam em torno de um centro, apoiando-se umas nas outras. As extremidades opostas às que se cruzam podem se apoiar em outras vigas e/ou pilares. Projeto do arquiteto Mauricio Dandrea e Yopanan Rebello Nas edificações o Pega-varetas remete às estruturas recíprocas. Ainda não muito conhecida entre nós brasileiros, a estrutura recíproca é um sistema estrutural para coberturas relativamente comum em outros países. Seu próprio nome, tradução livre de reciprocal structure, já indica como é seu funcionamento, construído a partir de um conjunto de barras que se entrelaçam em torno de um centro, apoiando-se umas nas outras, reciprocamente, sem outro tipo de apoio.As extremidades opostas às que se cruzam podem se apoiar em outras vigas e/ou pilares. Esse sistema estrutural é regido por três variáveis: a inclinação, a altura da seção das barras e a abertura no centro. Outro aspecto interessante da estrutura recíproca é que, ao ser carregada, não ocorrem forças horizontais nos apoios, apesar de as barras estarem inclinadas. Para facilitar o detalhe de contato entre as barras, a seção circular é a mais indicada porque sempre possibilita a tangência, sem qualquer preparo das superfícies. Mas nada impede o uso de barras compostas por vigas de alma cheia de seção retangular, como também de treliças e de vigas vierendeel, muito embora estas opções apresentem maior dificuldade de execução. Uma interessante cobertura com estrutura recíproca foi projetada pelo Atelier Gamma Architecture com a colaboração do engenheiro alemão Julios Natterer. Construída para um depósito de sal em Lausanne,Suíça,em 1989,sua estrutura principal se compõe de um sistema MARÇO 2006 ARQUITETURA&URBANISMO 65 arq-estr144.qxd 23/2/2006 16:31 E E S T R U T U R A S E J O G O S reproduzido de Historia crítica de la Arquitectura Moderna, de Kenneath Frampton, Gustavo Gili acervo dos autores A R Q U I T E T U R A S Page 66 Para o edifício da prefeitura de Filadélfia, nos Estados Unidos, Louis Kahn projetou uma treliça de padrão triangular, semelhante a um castelo de cartas reproduzido de Mies van der Rohe, de Werner Blaser, Gustavo Gili Convention Hall, Mies projeto de Louis Kahn, pode ser visto como um eficiente castelo de cartas. No Convention Hall (1953/1954), em Chicago, Estados Unidos, de Mies van der Rohe, a triangulação da estrutura está aparente no interior e exterior.Além de ser eficiente do ponto de vista estrutural, o sistema propiciou uma solução formal interessante. Nas estruturas recíprocas e nas treliças, elementos nos quais a estrutura de montar se constitui por vínculos articulados, a perícia está na estabilidade obtida por meio da forma do conjunto estrutural, mais do que dos pontos de conexão. Essa característica os distingue das construções em que o vínculo rígido exige atenção ao seu desenho para eficiência estrutural, como veremos no próximo artigo. O uso da triangulação no projeto de Mies van der Rohe é similar ao do tradicional castelo de cartas Yopanan C. P. Rebello é engenheiro civil, doutor pela FAUUSP e professor nos cursos de graduação e pós-graduação em Arquitetura e com onze vigas de 13,50 m cada, apoiadas no centro umas às outras e no perímetro externo sobre os muros de concreto.Atinge um vão de 26 m e, no ponto central de encontro das vigas, forma-se uma abertura zenital. Nos edifícios, a treliça é uma peça estrutural conhecida, usada tanto como elemento para vencer vãos, quanto para proporcionar rigidez, atuando como contraventamento de uma 66 ARQUITETURA&URBANISMO MARÇO 2006 estrutura. Nos jogos as treliças nos lembram castelos de cartas. Montar um castelo de cartas – ou seja, empilhá-las – requer um conhecimento estrutural importante e quase sempre intuitivo. Para constituir estabilidade no conjunto,as cartas são dispostas como uma série de triângulos, a forma mais estável de composição. O edifício da prefeitura da Filadélfia, Estados Unidos (1952), Urbanismo da Universidade São Judas Tadeu. É também diretor pedagógico da YCON Formação Continuada. Marta Bogéa é arquiteta formada pela UFES, mestre pela PUC/SP, doutoranda pela FAUUSP. Leciona nos cursos de graduação e pósgraduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade São Judas Tadeu.