Futebol, Lirismo e Drama: Drummond e Nelson
Angela Ignatti
FFLCH – Departamento de Letras Clássicas - Universidade de São Paulo (USP)
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Resumo. A partir das crônicas de futebol de Carlos Drummond de Andrade e
Nelson Rodrigues, buscamos, neste estudo, analisar a presença do estilo lírico
no primeiro autor e do dramático no segundo. No entanto, a análise desse
estilo visa ao estabelecimento da relação entre as diferentes visões de mundo
desses cronistas e o tema futebolístico. Nos textos estudados, o futebol é a
janela que descortina para o leitor a visão de mundo dos autores, ambos
conscientes da profunda influência desse jogo na cultura brasileira.
Palavras-chave. crônicas; futebol; lirismo; drama; jogo.
Abstract. Using the chronicles of Carlos Drummond de Andrade and Nelson
Rodrigues as starting points, we sought in this work to analyse the presence of
the lyric style in the first author and the dramatic in the latter. However, the
analysis of such style aims to establish the relationship the two authors had of
the world and the theme of football. Football, as a game-like element, plays
the role of a window which opens up to the reader the vision both writers had
of the world. The writers are aware of the profound influence of such game in
the brazilian culture.
Keywords. chronicles; football; lyricism; drama; game.
1. Introdução
O futebol possui várias características que permitiram sua ampla difusão na
cultura nacional. Tais características são capazes de conferir a esse esporte uma aura
dramática e lírica. Isso ocorre por várias razões, como o fato de o futebol ser jogado
com os pés e com isto ser mais difícil marcar um ponto; sua beleza plástica que alia
leveza e dança ao choque físico e à força viril; a pausa no tempo da seriedade, do
trabalho, do lucro; o fato de representar território sagrado onde as leis se aplicam a
todos igualmente etc. Às características lúdicas soma-se a questão da torcida que se
envolve profundamente nesse jogo; esta também se aparta momentaneamente das
questões práticas da vida, e se projeta sócio e culturalmente no time pelo qual torce.
O futebol cria um mundo à parte, seja no momento em que é jogado, seja
enquanto suas conseqüências são discutidas pelos grupos que torcem pelos times.
Assim, existe todo um universo de jogadores, times, dirigentes, além, é claro, das
próprias partidas, sejam elas disputadas por profissionais, sejam as amadoras dos clubes,
empresas, várzeas, praias, escolas etc.
Carlos Drummond de Andrade e Nelson Rodrigues são escritores que foram
capazes de, através de suas obras poéticas e teatrais, respectivamente, sensibilizar e
chocar o público. Obviamente, os estilos dos dois autores são muito diferentes. Para
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podermos comparar esses dois escritores, partimos do ponto que os une de uma maneira
muito particular. Esse ponto são as crônicas de futebol escritas pelos dois artistas no
decorrer de suas carreiras. Essas crônicas são capazes de nos revelar o lirismo e a
dramaticidade desses autores sob a perspectiva do universo lúdico, do universo do jogo.
O futebol é um mundo à parte, que representa o mundo real em pequena escala,
porém acrescido de doses muito mais concentradas de emoções, sentimentos e
possibilidades mais interessantes que as da lógica do trabalho cotidiano. Bernard Jeu,
um francês estudioso da questão do universo lúdico, afirma o seguinte:
O esporte, antes de tudo tem um sentido trágico, há a contradição inevitável
dos desejos dos oponentes, que resulta no aparecimento da violência ritual.
No entanto trata-se de uma violência que obedece a regras preestabelecidas e,
portanto, não se trata mais da mesma violência no sentido estrito do termo. A
morte é simbólica, uma vez que o derrotado não morreu e sua vida será
restituída em face de uma competição futura. (Apud MARQUES, 2000.p.
35.)
2. As crônicas de futebol de Drummond e Nelson
Observando a afirmação de Bernard Jeu sobre a derrota no jogo, já temos o
primeiro ponto de comparação entre os dois cronistas futebolísticos: a questão da vitória
e da derrota.
Em seus textos, Drummond considera a derrota como algo que faz com que as
pessoas e o país cresçam, pois dessa maneira somos levados a nos aperfeiçoar e
melhorar para futuramente continuarmos buscando a vitória:
E chego à conclusão de que a derrota, para a qual nunca estaremos
preparados, de tanto não a desejarmos nem a admitirmos previamente, é
afinal instrumento de renovação da vida. Tanto quanto a vitória, a derrota
estabelece um jogo dialético que constitui o próprio modo de estar no mundo.
Se uma sucessão de derrotas é arrasadora, também a sucessão constante de
vitórias traz consigo o germe de apodrecimento das vontades, a languidez dos
estados pós-voluptuosos, que inutiliza o indivíduo e a comunidade atuantes.
Perder implica remoção de detritos: começar de novo. (ANDRADE, 2002.p.
181.)
O lirismo de Drummond usa a marca de metáforas como “o germe de
apodrecimento das vontades, a languidez dos estados pós-voluptuosos”, sem descuidar
da crítica social ao mencionar que nunca estaremos preparados para aceitar a derrota. A
lógica do futebol, assim como Drummond, trabalha com esse cavalheirismo da derrota,
da regra do fair play. Roberto DaMatta menciona que esse espírito da aceitação da
derrota, do fair play, “trivializa tanto os momentos de vitória quanto os de derrota,
banalizando o sentido de perda, de pobreza e de má-sorte.” (DAMATTA, Roberto.
REVISTA USP – Dossiê Futebol. São Paulo, n. 22, jun-ago., 1994, p. 13.)
Drummond busca justamente essa amenização da derrota no sentido de que
perder uma Copa do Mundo não é o fim do mundo, mas sim um momento de prestar
mais atenção a outros aspectos da vida que não só os lúdicos: “E agora, amigos
torcedores, que tal a gente começar a trabalhar, que o ano está na segunda metade?”
(ANDRADE, 2002, Perder, Ganhar, Viver p. 181.). Nessa crônica, o autor aponta para
o que há fora do universo do jogo, e que deve ser observado, sobretudo porque houve a
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derrota. A vitória, nesse sentido, manteria as pessoas mais tempo presas ao tempo e ao
espaço do jogo; a derrota traz de volta a lógica da realidade.
Há, portanto, neste caso, o embate entre o lúdico e o sério, de um lado o futebol,
que ensina a perder, que remove detritos, que ensina a começar de novo. De outro lado,
há o futebol que aliena, que desvia, que mantém o público preso ao universo esportivo.
A visão de Nelson com relação à derrota é muito diferente e essencialmente
dramática. A crônica A Cara da Derrota, embora tenha sido publicada em 1966,
dezesseis anos antes da publicação de Perder, Ganhar, Viver de Drummond, parece ser
uma resposta a esta:
Oh, meu Deus do Céu! Virgem Santíssima! Nós já somos um povo que não
faz outra coisa senão perder! Olhem a nossa cara. Reparem: - é a cara da
derrota. Afinal de contas, o que é o subdesenvolvimento se não a derrota
cotidiana, a humilhação de cada dia e de cada hora? E é ignomínia que venha
alguém dizer a esse povo desesperado: - “Vá perdendo! Continue perdendo!
Aprenda a perder!”. (RODRIGUES, 1994.p. 127.)
A derrota, neste caso, é algo inadmissível, que não trará nada de bom para o
povo; pelo contrário, manterá a nação sob um complexo de inferioridade, de descrença
em si mesma. Se Drummond diz que o povo nunca aprenderá a perder, Nelson implora
para que não aceitem a derrota, não aprendam a perder. Na visão dramática de Nelson,
não há distinção entre o mundo do futebol e mundo cotidiano, eles são um só. Perder no
futebol é perder na vida, é corroborar o estado de subdesenvolvimento do país.
Podemos observar também a maneira como os dois cronistas tratam sua relação
com a pátria. Drummond, embora critique a postura do povo e dos jogadores em
determinadas crônicas, revela-se carinhoso e apaixonado em relação às coisas do Brasil.
Na crônica Perder, Ganhar, Viver, na qual o autor afirma ser positiva a derrota na Copa
do Mundo de 1982, ele se refere aos jogadores com extrema doçura e observa,
liricamente, as oportunidades que se encontram além da derrota, usando a figura
simbólica do sol:
Eu gostaria de passar a mão na cabeça do Telê Santana e de seus jogadores,
reservas e reservas de reservas, como Roberto Dinamite, o viajante não
utilizado, e dizer-lhes, com esse gesto, o que em palavras seria enfático e
meio bobo. Mas o gesto vale por tudo, e bem o compreendemos em sua
doçura solidária. Ora, o Telê! Ora, os atletas! Ora, a sorte! A Copa do Mundo
de 82 acabou para nós, mas o mundo não acabou. Nem o Brasil com suas
dores e bens. E há um lindo sol lá fora, o sol de nós todos. (ANDRADE,
2002, p. 181.)
O afeto pelo Brasil é perceptível mesmo quando o autor faz críticas ao estado de
coisas na sociedade nacional. Se Drummond considera a derrota positiva, mais positiva
ainda é, para ele, a vitória:
Não me venham insinuar que o futebol é o único motivo nacional de euforia e
que com ele nos consolamos da ineficiência ou da inaptidão nos setores
práticos. Essa vitória no estádio tem precisamente o encanto de abrir os olhos
de muita gente para as discutidas e negadas capacidades brasileiras de
organização, de persistência, de resistência, de espírito associativo e de
técnica. (ANDRADE, 2002, p. 37.)
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Observamos nesse trecho que o autor tem a consciência de que o futebol pode
ser manipulado no sentido de alienar o povo sobre os problemas de ordem prática.
Contudo, ele considera que a euforia nacional por conta da vitória na Copa do Mundo
de 1958 é legítima, pois revela aspectos muito positivos e fortifica a auto-estima da
nação. Vejam que a vitória é abordada positivamente, sem ufanismos ou ampliações
excessivas do feito futebolístico brasileiro.
Essa postura serena e branda da observação da vitória não existe em Nelson
Rodrigues. Para este cronista, a vitória é sempre algo hiperbolicamente apresentado,
justamente pelo caráter dramático da visão dele. Na crônica O Escrete da Coragem, que
trata da mesma vitória na Copa de 1958, isso é feito o tempo todo:
E como foi empolgante o coração de Vavá! Há quem diga, inclusive patrícios
nossos: - “O Brasil não tem caráter, o Brasil não tem moral!”. Mas olhem
Vavá. Não tem medo de ninguém, medo de nada. Se for preciso, ele dará a
cara para o inimigo chutar. É. Mal comparando, um Tartarin desgrenhado,
que pegasse, à unha, leões de verdade. Ontem, machucou-se, e por que?
Porque entregou a canela para o inimigo fraturar. Foi a canela, como poderia
ter sido a base do crânio. Sabe-se que os franceses, furiosos com o
deslumbrante baile do Brasil, baixaram o sarrafo. Caçado a pontapés, na área
e fora, perseguido quase a pauladas, eis que Vavá sobrevivia ao massacre. Ele
e os companheiros. Ora, é desse peito largo e inexpugnável que o escrete
brasileiro sempre precisou. (RODRIGUES, 1994, p. 46.)
Assim como Drummond, Nelson, no trecho acima, coloca a questão de que o
brasileiro tem alguns complexos de inferioridade. A grande diferença é que Drummond
apresenta isso sob uma perspectiva de observação da realidade: “... abrir os olhos de
muita gente para as discutidas e negadas capacidades brasileiras de organização, de
persistência, de resistência, de espírito associativo e de técnica”. Já Nelson lança a
questão em forma ficcional, com frases interrogativas e discurso direto: “Há quem diga,
inclusive patrícios nossos: - ‘O Brasil não tem caráter, o Brasil não tem moral!’”. Essas
diferentes formas de expressar coisas semelhantes modificam completamente a maneira
de o leitor encarar o fato em questão, no caso a vitória na Copa do Mundo de 1958.
Ainda observando a posição de Nelson em relação à vitória de 1958, a paixão
pela pátria se expõe por meio da narração de uma batalha campal e a exaltação de um
jogador que seria como um mártir brasileiro. Há a expressão de um “sentir” do cronista
muitas vezes amplificado, utilizando-se a ficcionalização dos fatos e a força dramática
que pode existir numa situação de vitória.
Todavia, de maneira geral, os dois cronistas consideram que a vitória no futebol
estimula positivamente outros aspectos da sociedade que não os do jogo.
O estudo de Roberto DaMatta sobre a força e a importância da vitória no futebol
para o povo brasileiro explica bem por que ambos os cronistas, seja pela via lírica, seja
pela dramática, reconhecem o valor prático da vitória numa atividade que não tem
finalidades práticas. DaMatta considera como uma das dimensões do futebol o fato de
proporcionar ao povo, sobretudo ao povo pobre e destituído, a experiência da
vitória e do êxito. Essa vitória que o mundo moderno traduz com a palavra
mágica “sucesso” e que o sistema social hierarquizado e concentrador de
riqueza do Brasil faça com que poucos possam experimentar. Mas através do
jogo de futebol, as massas brasileiras podem experimentar vencer com os
seus times favoritos. (...) Essa vitória que a massa, perpetuamente iludida por
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governos desonestos, efetivamente desconhece no campo da educação, da
saúde e, acima de tudo, da política. (DAMATTA, Roberto. REVISTA USP –
Dossiê Futebol. São Paulo, n. 22, jun-ago., 1994, p. 17.)
3. Considerações finais
Embora tenhamos mostrado pontos que, de certa maneira, se oporiam, entre as
crônicas de um e de outro autor, tendo em vista os fundamentos de lírico e dramático,
não podemos dizer que a crônica futebolística de Nelson Rodrigues é oposta à de Carlos
Drummond de Andrade. Neste momento, fazendo uma conclusão geral sobre os textos
estudados, podemos afirmar que elas se encontram em momentos completamente
diferentes da exposição das “virtualidade fundamentais da existência humana”, como
afirma Emil Staiger, em seus estudos. (STAIGER, 1969. p. 165.)
Nelson Rodrigues, em suas crônicas, fala do ele/ela, isto/aquilo, ou seja, cria
uma narrativa que coloca a ênfase no que está por vir, ou no que aconteceu com as
pessoas. A força da narrativa é muito mais agressiva e permeada de julgamentos e
conflitos dos outros, que são sempre resolvidos pelo juízo do narrador. Essa linguagem
será, certamente, muito diferente da do sujeito lírico que lida com seus próprios
conflitos. Percebe-se que Drummond escreveu suas crônicas para o público do jornal,
mas a este são lançadas suas inquietações e sua sensibilidade. Nelson Rodrigues,
diferentemente, é conclusivo, nada fica solto, tudo que é lançado serve como uma
tensão que terá uma conclusão clara posteriormente.
De maneiras distintas, Carlos Drummond de Andrade e Nelson Rodrigues
descortinaram para nós um universo lúdico de texto e futebol. O primeiro revelou-nos
um mundo íntimo e descontentado que, pelo jogo das palavras nos mostra,
filosoficamente, que poderia haver outras possibilidades na vida; que as coisas deveriam
ser diferentes, mas que dificilmente são ou serão; que o futebol é um bem e um mal,
mas é, sobretudo, o alimento e o remédio de um povo, o qual, no dia-a-dia, defronta-se
com a pergunta: “E agora, José?”.
O segundo trouxe-nos um mundo de dimensões enormes, denso de emoções, de
alegria e tristeza, ambas chocantes e arrebatadoras; um mundo que se revela aos poucos,
deixando-nos sempre na expectativa de algo grandioso que está por vir, um mundo onde
o futebol é tudo, é o próprio mundo; e a vitória ou a derrota no jogo são também a
derrota ou a vitória da vida. E para ele é melhor que haja uma grande vitória ou uma
humilhante derrota, o que não pode haver são só os fatos, somente os fatos, pois estes,
como diria Nelson, “valem pouco ou nada”.
Bibliografia
ANDRADE, Carlos Drummond de. Quando é Dia de Futebol. Rio de Janeiro: Record,
2002.
COSTA, Francisco. REVISTA USP – Dossiê Futebol. São Paulo, n. 22, jun-ago., 1994,
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DAMATTA, Roberto. REVISTA USP – Dossiê Futebol. São Paulo, n. 22, jun-ago.,
1994, p. 13.
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KAYSER, Wolfgang. Análise e Interpretação da Obra Literária. 7ª ed. Coimbra:
Armênio Amado Ed, 1985.
MARQUES, José Carlos. O Futebol em Nelson Rodrigues. São Paulo: Educ/Fapesp,
2000.
RODRIGUES, Nelson. À Sombra das Chuteiras Imortais (org. Ruy Castro). São Paulo:
Cia. Das Letras, 1993.
RODRIGUES, Nelson. A Pátria em Chuteiras (org. Ruy Castro). São Paulo: Cia. Das
Letras, 1994.
ROSENFELD, Anatol. - Negro, Macumba e Futebol. São Paulo. Perspectiva, 1993.
STAIGER, Emil. Conceitos Fundamentais da Poética. Rio de Janeiro: Edições Tempo
Brasileiro, 1969.
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