In_Trânsito1: Uma Odisseia Sensorial
Marco Antonio Gonçalves2
“Feche os olhos/ as imagens não param de passar/ o mundo acabava na curva/
tudo era perto naquela visão”.
Segundo Todorov (2004:104)3 existem dois Ulisses na Odisseia, um que vive e o
outro que conta. In_Trânsito é a Odisseia do Ulisses que vive. Saímos das palavras, da
intelecção em direção à sensorialidade. Do mito, da história, às sensações. Apreendemos
Odisseia vivendo-a como viagem real, como espectadores/viajantes: nos trens, nas
plataformas, nas paisagens. In_Trânsito é uma transcriação de Odisseia em experiência
vivida, uma transformação da viagem em experimento. Revisitamos o que significa o
mesmo, o outro, o próximo, o distante através de sensações que intensificam a percepção
desta, agora, nossa Odisseia urbana. In_Trânsito nos faz ‘embarcar’ numa aventura no
tempo e no espaço dos trens como experiência de estranhamento para nos reencontrarmos
de forma transformada com nós mesmos.
Estranhar é o motor da viagem: do entorno, de nós mesmos, dos outros. Uma
viagem em que vemos e imaginamos paisagens e, situados no ponto de vista do viajante,
como o herói-personagem da Odisseia, nos damos conta de que existem muitas
potencialidades de ser, de escolhas e de destinos.
Revivemos esta experiência de Odisseia em trajetos, deslocamentos que fazem
repensar os mais banais itinerários cotidianos como experiência de Destino. In_Trânsito ao
acionar uma série de acontecimentos, processos gerados pela própria viagem, intensifica a
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In_Trânsito. Odisseias urbanas (20 de abril a 13 de maio de 2013), trens da SuperVia, Rio de Janeiro. Ficha
Técnica: Idéia original: Joana Levi; Pesquisa e criação: Diogo Vitor, Geandra Nobre, Isabel Penoni,
Jaqueline Andrade, Joana Levi, Phellipe Azevedo, Priscilla Andrade, Rodrigo Souza, Rosyane Trotta e
Wallace Lino; Direção: Isabel Penoni e Joana Levi; Dramaturgia: Isabel Penoni, Joana Levi e Rosyane
Trotta; Direção de arte: Eloy Machado; Direção musical: Arturo Cussen; Trilha sonora original: Arturo
Cussen, Diogo Vitor, Rodrigo Souza e Sinésio Jefferson Silva; Design Gráfico: Estúdio Triângulo;
Fotografia: João Penoni e Renato Mangolin; Coordenação de produção: Bianca Fero; Produção
executiva: Luana Lessa; Elenco: Diogo Vitor, Jaqueline Andrade, Geandra Nobre, Priscilla Andrade,
Rodrigo Souza e Wallace Lino; Ator convidado: Phellipe Azevedo; Músico convidado: Sinésio Jefferson
Silva. Contrarregras: Marcelo Mattos e William de Souza.
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Professor do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia do IFCS-UFRJ. Pesquisador do
CNPq. Coordenador do Núcleo de Experimentações em Etnografia e Imagem da UFRJ.
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Todorov, Tzvetan. 2004. As estruturas narrativas. São Paulo, Perspectiva.
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percepção desta.
In_Trânsito é fiel às questões evocadas por Ulisses ao destacar os processos de
transformação pelos quais passamos em uma vida-viagem. Como nos vemos, o modo
como nos vêem, como nos imaginamos, como nos imaginam são temas que revelam a
potência do estranhamento. Uma busca de um Ulisses dentro de nós mesmos, uma tomada
de consciência de como a jornada, o itinerário, a viagem é ao mesmo tempo repetição e
alteração.
Em In_Trânsito somos todos viajantes (espectadores, atores, passageiros). A única
escolha que temos é experimentar a viagem, vivê-la em sua dimensão sinestésica, na
junção de planos sensoriais distintos. A encarnação máxima da sinestesia de In_Trânsito é
equivalente ao que imaginamos quando lemos o Canto XII da Odisseia. Ulisses não foge de
seu destino. Tem consciência de que o canto das sereias agirá sobre ele, tomará os seus
sentidos. Sabe, também, que o único modo de apreender o mundo é vive-lo, precisa escutar
o canto para nos dar a ver que o sensorial é um modo de cognição. In_Trânsito, nos
convida, a experimentar esta possibilidade de ser Ulisses, alterando nossa visão, nos
cegando, fazendo-nos ver para trás, imaginando tempos e espaços reais, vivendo espaços e
tempos imaginados, estamos literalmente In_Trânsito, apreendendo as sensações do
mundo no próprio mundo.
O poema Odisseia inaugura, textualmente, o discurso direto, uma possibilidade de
ação em que os personagens falando e agindo nos fazem, também, agir e presentificar um
mundo. In_Trânsito explora este agir, o estar em movimento que nos reenvia à dimensão
da experiência, àquilo que nos situa em um mundo.
A Ilíada narra os feitos de Aquiles e a Guerra de Tróia, a Odisseia trata do retorno
depois da guerra. Odisseia é o processo da viagem, da volta, mas para onde? In_Trânsito
nos faz reviver esta viagem de volta, esta aventura do retorno como uma viagem em si
mesma. Deste modo, o tempo do mundo interfere no tempo de In_Trânsito. Sentimos a
passagem do tempo, somos informados sobre a hora em que o trem partirá, de quantos
minutos faltam para chegarmos ou partirmos. In_Trânsito se transforma numa espécie de
máquina que incorpora os eventos à sua estrutura. As coisas se transformam o tempo todo:
os horários dos trens, os passageiros, os espectadores, os acontecimentos. Uma metáfora da
própria vida, estar In_Trânsito é correr os riscos de estar, literalmente, no mundo.
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Comecemos, portanto, a viagem tendo como “horizonte... curvas e trilhos".
Central do Brasil. In_Trânsito começa na própria preparação da viagem. Enquanto
recebemos pulseiras coloridas que nos identificam a um guia/personagem e a um grupo,
nos damos conta de que estamos já em viagem. Na plataforma, com a banda tocando, são
lidas as normas de segurança, o que é proibido em nossa viagem: animais, bicicletas,
expressão religiosa. Somos incentivados a captar imagens, fotografar, filmar. Este
enquadramento inicial põe em relevo as ambigüidades das viagens e dos destinos: dada as
regras podemos transgredi-las. Somos, também, alertados: "Nunca se disperse do grupo",
“Olhem seus guias, não percam de vista o guia, ele é a sua bússola”. Os guias/personagens
estão sempre presentes e nos dão a segurança de que não estamos sós: "Eu estou aqui o
tempo todo", diz um guia/personagem.
“Fui surpreendido por um mar de gente que parecia animais saindo da arca de
Noé”. Vemos alguns animais na plataforma, eles circulam. O mundo recomeça ali, uma
redescoberta.
Entramos no trem. Recebemos óculos cujas lentes são recobertas com uma imagem
colada que nos impede a visão exterior. A imagem sobre a lente evoca o tema da viagem. O
guia/personagem se aproxima e fala próximo ao nosso ouvido: “escuto barulhos agudos,
graves, escuto a batida do meu coração”.
Com os olhos vendados nos projetamos no mundo das incertezas, aguçamos as
sensações auditivas, olfativas e tácteis. Estamos embarcados em um trem que, para nós que
estamos In_Trânsito, parte da estação sem direção definida. Estamos indo para onde? De
olhos vendados desaparecem as pessoas e o cenário, não temos mais a paisagem exterior
que víamos passar pela janela. Naturalmente, passamos para uma viagem interior, das
sensações, da percepção do entra-e-sai de pessoas, dos ruídos de metal dos trilhos, das
portas que abrem e fecham, das conversas alheias que se intensificam. As palavras de
nossos guias em nossos ouvidos são como cordas, boias que nos tranquilizam e,
acompanhados, podemos nos entregar para sermos, um pouco, Ulisses.
Retiramos os óculos, saltamos em Bonsucesso e aí se opera mais um deslocamento,
agora, para espaços imaginativos; vemos teleféricos em direção ao Morro do Adeus.
Vemos paisagens evocadas por palavras e espaços que misturam tempos: passado é
presente e é futuro. Quem narra os acontecimentos é um guia/personagem que portando
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ainda seus óculos nos conta, cego, o que vê: a grande fazenda na Estação de Bonsucesso,
pessoas correndo em desespero para o ponto mais alto da serra da misericórdia,
helicópteros circulando, o litoral de Ramos, a Ilha do Governador, comboios blindados de
guerra, a casa da Rainha Carlota Joaquina, o imperador D. Pedro II, a nobreza reunida, os
escravos que, também, se escondem na serra da misericórdia no Complexo do Alemão, a
capela de Santo Antônio. Um guia/personagem diz: "Os noivos saíram da igreja da Penha,
entraram num barco e o barco se espatifou naqueles prédios, apenas um sobrevivente,
aquele que narra a tragédia". O sobrevivente/narrador é alguém que experimentou os
perigos da viagem, que fez a travessia e pode, agora, narrá-la. Como Ulisses, não temos
escolha, estamos In_Trânsito, embarcados, temos que seguir a viagem, sobreviveremos e
seremos nós mesmos, também, narradores.
Palavras não são suficientes, precisamos experimentar outro artefato-máquina: um
capacete em que são acoplados dois espelhos retrovisores que nos permitem ver somente o
que se passou, o que ficou para trás. A máquina nos reenvia ao passado, à memória, porém
no espaço presente. Se havíamos estranhado o tempo, agora, estranhamos o espaço, vendo
para trás, percebemos o espaço de outra perspectiva.
Chegamos a uma nova plataforma, Triagem. Ouvimos: "Triagem de que? Triagem
de quem?". Deixamos o tempo-espaço da estação para aportamos em outro tempo-espaço,
o das “cavernas” que compartimos com os demais viajantes. Entramos em tendas de tecido
vermelho transparente. Sentamos, somos oito espectadores/viajantes. Um dos
espectadores/viajantes diz: "Vou contar a primeira história de fantasma", outro pergunta:
"Onde estamos mesmo?".
Recebemos uma antiga caixa de costura, de palha. Alguém se apressa em abri-la:
está repleta de monóculos e miniaturas de guerreiros. Vendo as imagens do monóculo,
escuta-se: "Isso aqui é um tupi, tem uma pena na mão", "Uma gravura de Hans Staden";
sobre as miniaturas alguém diz: "Vamos brincar de forte apache?".
As fotos nos fazem cruzar espaços-tempos: índios do Xingu tomando vacina; Klaus
Kinski interpretando Fitzcarraldo, escutando Caruso cantar ópera num gramofone em
plena selva amazônica; gravuras antigas que lembram o século XVI, os descobrimentos, as
viagens. No interior da tenda, entre estranhos, os monóculos são janelas por onde olhamos
o mundo e nossa mente vagueia por outros tempos e espaços, percorrendo outros
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itinerários. “Estar entre estranhos” parece ser crucial no modo de apreensão sensorial
proposto por In_Trânsito, o que faz coincidir a concepção de viagem com a estruturação
daquela nossa viagem pelas estações de trem. In_Trânsito nos altera a percepção pois
estamos, de fato, viajando, correndo os riscos da própria viagem.
Escutamos uma música e as vozes dos guias/personagens: "Chegamos, enfim, na
ilha... vamos desbravar este lugar... será que os habitantes serão receptivos ou seremos
escorraçados por seres desconhecidos... avistei uma caverna... a terra tremeu... o monstro
devorou dois gregos sem qualquer penitência... Ulisses teve a idéia de furar o olho do
gigante, serviu 20 barris... o gigante dorme e Ulisses fura seu olho, jorra muito sangue,
inunda a caverna... Ulisses se apresenta como "ninguém" para não ser reconhecido...
Ulisses sai da caverna amarrado ao carneiro e lá fora ri do gigante”.
Os guias/personagens passam correndo pelas tendas em direção ao final da
plataforma, ficamos sós e em silêncio. Não temos mais instruções, temos que decidir o que
fazer. Um espectador/viajante diz: "A gente faz o que? Eu proponho que alguém saia lá
fora e veja o que está acontecendo, eles acabaram de furar o olho do gigante". Outro diz:
"Todo mundo com a sensação de abandono, e agora? E se eles deixassem a gente por aqui?
A gente está sozinho aqui". Saímos da tenda, retornamos ao mundo da estação, para o trem
que nos espera, para o nosso itinerário, refazemos o vínculo perdido, por alguns instantes,
com nossos guias para podermos continuar a viagem.
Na Estação um espectador/viajante pergunta para o guia: "Cadê o gigante?". O guia
responde: "Você quer ver o gigante, vem cá!" e, apontando para o alto do Morro da
Providência onde pairava no ar um helicóptero, completa: 'Lá esta o gigante! Lá em cima,
tá vendo?".
Embarcamos no trem, os guias/personagens com um espelho na mão perguntam:
“Você já se olhou no espelho hoje?”. Questionamento sobre o que gostamos e o que não
gostamos em nos nossos corpos, em nossa aparência. Vemo-nos no espelho e surge mais
uma pergunta: “O que você gostaria de mudar?”. Os guias/personagens declaram o que não
gostam em si mesmos, o que querem transformar: "Eu nunca tive espelho em casa"; "não
sei por que as pessoas se arrumam, se para si mesmas ou para os outros"; “mudamos para
nós mesmos ou para os outros?”. Pergunta que encaminha a reflexão sobre identidade e
alteridade, o que significa “nós mesmos” numa relação com outrem. Esta consciência de
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que o ‘nós mesmos’ é produto de uma relação com ‘outros’ é recriada na viagem de trem e,
literalmente, ‘através do espelho’: o ‘nós mesmos’, agora, pode se alterar, se transformar,
mudar, trocar de roupa, de pele. O questionamento proposto pelos guias/personagens evoca
a idéia de que uma pessoa pode ser múltipla, pode se alterar pelas diferentes roupas que
usa: “Você é uma pessoa só, ou muitas pessoas?”.
Um guia/personagem mostra uma cicatriz próxima da nuca e diz que se queimou
quando passava ferro quente para alisar seu cabelo. Escutamos: "A imagem revela ou
ilude?"; "Você já pensou que você é um encontro genético de seus pais, você não é o
resultado do que você queria ser". Estas frases reiteram a idéia de destino, de evento, de
acontecimento, fatos que, como nas viagens, sucedem nas nossas vidas.
Última parada, mas está claro que não é o fim da viagem. Na estação de São
Cristovão, In_Trânsito é puro acontecimento. Como em Odisseia, a chegada à Itaca é
também dominada pelo estranhamento. Ulisses precisa ser outro para se reencontrar como
Ulisses. Duas plataformas separadas por trilhos, direções contrárias. De um lado estão os
espectadores/viajantes e, de outro, apenas os viajantes que se tornarão espectadores a partir
da inclusão proposta pelos guias/personagens que, por sua vez, se transformarão, eles
mesmos, em viajantes. Este efeito das plataformas nos reenvia a uma dimensão outra do
tempo. Revivemos ali, como viajantes, o cotidiano dos itinerários, dos deslocamentos.
Imaginamos vidas, destinos, acontecimentos. A viagem é invocada como forma de tornar
aquele momento único, singular, acidental, eventual e, assim, acedermos ao pleno
significado de Destino.
Os guias/personagens narram o que vêem na estação, os viajantes são descritos e se
reconhecem na narração: "Vejo uma mulher branca com uma sacola; vejo um casal sentado
no banco, eles vão chegar em casa e vão discutir seu projeto de vida; vejo uma mulher que
está de bermuda azul e blusa branca com uma bolsa no colo, que agora sorri, no seu
caminho de casa vai encontrar um bilhete de loteria premiada e vai ficar milionária”.
Um dos guias/personagens com um mapa na mão, perdido, pede ajuda aos
viajantes. É dublado como se fosse um latino-americano. Os viajantes que o ajudam são,
também, dublados. A dublagem da explicação do caminho a ser percorrido enfatiza o
périplo: “Você tem que atravessar um rio, nadar, ir em outra direção e ainda não chegou
lá”. Caminhos impossíveis. O itinerário não importa mais, somos ali em São Cristovão,
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todos, plenamente viajantes. E nesta condição de viajantes, naquela viagem, comunicamos
o nosso estranhamento. Estamos In_Trânsito e In_Trânsito fazemos e refazemos
itinerários, percorremos destinos, vivemos outras possibilidades de ser, somos viajantes
em nossa eterna viagem: “...440 mil pessoas; 102 estações; 410 plataformas; 185 trens; 4
dias por mês; 18 dias por ano embarcados; em 10 anos são 480 dias; em 70 anos são 3360
dias; 9 anos da vida em trânsito; 65 degraus; duas conduções; quatro quarteirões; 20
paradas de ônibus: se os tiros não forem tão fortes eu chego em casa...”.
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