ENTENDENDO A CONSCIÊNCIA (Transcrições de conversas que ocorreram no Ashram Vrajabhumi, Teresópolis, RJ, com Chandramukha Swami) Swami: Ao brotar na fonte toda água é pura e cristalina. Entretanto, ao percorrer diferentes caminhos, ela acaba carregando inúmeras impurezas, que fazem com que seu estado original seja alterado. De modo semelhante, a consciência do ser vivo é originalmente pura, mas ao percorrer os diferentes caminhos do mundo material, ou maya, através de sucessivos nascimentos e mortes, acaba aceitando coberturas de diferentes corpos e recebendo diversos tipos de influências. A Bhagavad-gita diz que, assim como alguém muda de roupas, a alma também troca, no momento prescrito pela Providência, seu corpo velho por um novo. Nesse contexto, o corpo é simplesmente a vestimenta da alma. Ou seja, é a alma que possui o corpo e não o contrário disso. Portanto, não é correto dizer “minha alma”. Logicamente, pode-se aceitar isso como uma figura de linguagem, mas, filosoficamente, isso não pode ser aceito, já que somos a alma e temos um corpo, e não o contrário disso. Essa é a compreensão filosófica básica para qualquer prática espiritual. Visitante: É certo que sou uma alma, mas não há como negar que estou num corpo. Então, como conciliar isso? Não são dois elementos opostos? Swami: Encontramos na Gita a palavra dehinah traduzida como “alma corporificada”. A palavra dehe indica o corpo, e as palavras jiva e atma referem-se à alma. Então, quando a Gita menciona dehinah, é como se fosse um alerta: “Calma, embora você seja uma alma, agora você é uma alma corporificada e tem que saber lidar bem com isso”. Ou seja, não podemos nos esquecer do corpo e deixar de lhe dar o merecido tratamento. Por outro lado, como não somos o corpo, não devemos viver em função unicamente dele. Podemos dizer que, de um modo geral, estar presa dentro de um corpo é um enorme problema para a alma. Mas, na realidade, o verdadeiro problema não é ter um corpo, mas sim como o estamos utilizando! É exatamente como possuir um carro. Se soubermos dirigi-lo bem, seguindo as regras de trânsito, ele nos será de grande valia. Mas se fizermos dele uma arma poderá haver muitas vítimas, inclusive nós mesmos. É aí que entra o yoga, ensinando como fazer um bom uso desse precioso veículo, ou seja, como cuidar do motor (a mente, aquela que arrasta o corpo), qual o combustível apropriado (alimentação), a importância de bons pneus e suspensão (posturas ou asanas), freios (o que não se deve fazer), faróis precisos (visão correta) etc. tudo para nos dar segurança e nos ajudar a evitar acidentes. Visitante: Esse exemplo é muito claro, muito bom... Onde eu posso encontrar mais informações sobre esse tema? Swami: Esse importante conhecimento que traz uma análise da alma e do corpo - a primeira constituída de energia espiritual eterna e o segundo de energia material temporária - está inserido na filosofia Samkhya do sábio Kapila apresentada no Terceiro Canto do Srimad-Bhagavatam. Nessa escritura védica é feita uma análise minuciosa dos vinte e quatro elementos que compõem tanto a manifestação cósmica grosseira quanto as manifestações sutis da mente e seus efeitos psicológicos. A essência da filosofia Samkhya também é encontrada na Bhagavad-gita, onde se afirma que este mundo não passa de uma simples combinação entre duas energias: a material e a espiritual. A alma, ou o verdadeiro eu, é a energia espiritual que, revestida de um corpo material, recebe sua influência implacável e permanece identificada com o ego falso. Na verdade, enquanto estiver cativada pela natureza material, a entidade viva terá que continuar transmigrando de um corpo para outro. Dependendo do tipo de desejo desenvolvido, ela será colocada em diferentes situações: às vezes nascerá como um semideus em planetas superiores; às vezes como um ser humano na Terra ou em planetas intermediários similares; e às vezes, em planetas inferiores ou no reino animal. Embora todas essas circunstâncias sejam desagradáveis, a entidade viva tem dificuldade de reconhecer isso, pois não pode manifestar sua consciência pura e original. Visitante: Parece que entender esse conhecimento é bastante difícil, pois o tempo todo nós confundimos o nosso corpo com o eu e os outros com seus corpos... Swami: Se entender já é difícil, o que dizer então de realizá-lo na prática? Não é verdade que enquanto está neste mundo a alma corporificada está sempre em crise de identidade? Não é para menos, pois a cada vida ela recebe um novo corpo e, devido à identificação com esse corpo específico, desenvolve um tipo de mentalidade baseada na sua interação com o ambiente. Assim, sua consciência permanece sempre alterada. Um praticante de vida espiritual deve, portanto, procurar se livrar da identificação corpórea, pois essa identificação produz uma enorme variedade de concepções errôneas. No Brhad-aranyaka Upanishad está dito: aham brahmasmi, “eu sou espírito”. Brahman significa espírito. A vida espiritual começa deste ponto: “eu sou espiritual”. Ou seja, vida material significa acreditar que o eu é o corpo material e, por isso, viver em função dele. Realizar o Brahman é a base da filosofia do yoga. A Gita também explica que um homem erudito não vê identidades diferentes entre os diversos seres vivos. Ele compreende que pode haver diferença entre os corpos, mas nunca entre as almas espirituais. Ou seja, materialmente nada é igual, cada corpo ou condição corpórea difere da outra. Mas, espiritualmente, ninguém é diferente de ninguém, pois existe igualdade absoluta entre todas as almas. Visitante: Então devemos tratar todos da mesma forma? Não estou perguntando somente sobre os seres humanos, quero saber também sobre os cães, os gatos... Swami: Se os cães e gatos viessem aqui discutir filosofia conosco, ou praticar yoga e cantar mantras, aí sim deveríamos tratá-los igualmente. A visão perfeita é entender a diferença entre as espécies e não entre as almas que habitam os corpos. Ou seja, materialmente falando, há diferença entre um cão e um ser humano consciente de Deus, mas, espiritualmente falando, tanto a alma do cão quanto a alma do ser humano piedoso são iguais em qualidade. Pode ser que agora a alma do ser humano esteja mais desperta, mas a alma é sempre alma - independentemente do corpo que ela habita. Visitante: Então essa visão através da qual eu diferencio animais de seres humanos é uma visão errada? Swami: É uma visão material. É devido à visão material que se vê diferença entre os seres vivos. Mas essa visão material não é a verdadeira visão. A verdadeira visão é chamada de jñana-chakshu, a visão do conhecimento. Essa é a visão do yogi. Com essa visão, o yogi percebe que os diferentes corpos não pertencem realmente à alma. Eles surgem devido aos diferentes desejos por ela acalentados no passado. Por meio dessa visão o yogi consegue se manter sempre livre da influência do corpo, assim como, devido à sua natureza sutil, o céu não se mistura com nada. Caso contrário, como afirma Patañjali, no verso quatro do seu Yoga-sutra, sem estar situado em consciência espiritual o ser corporificado experimentará sempre vrtti svarupya, alteração da consciência. Visitante: A causa do sofrimento está nessa alteração de consciência? Swami: Veja bem, a alma é plenamente consciente. Uma vez caindo neste mundo, sua consciência imediatamente sofre alterações e, à medida que ela vai atuando, também surgem novas alterações. Às vezes essas novas alterações trazem alívio, ou aklistha, para a pessoa. Mas elas também podem causar aflição, ou klistha. Para falarmos de aklisthas e klisthas, temos de falar de karma e vikarma. A palavra karma significa simplesmente “atividades”. Mas, uma vez que existem diferentes tipos de atividades, a palavra karma se apresenta de diferentes maneiras. A atividade que produz uma boa reação é chamada de karma, e a que produz más reações é chamada de vikarma. O bom karma produz bons resultados do ponto de vista material, enquanto o mau karma produz maus resultados, assim como o akarma, ou seja, quando irresponsavelmente se deixa de cumprir o dever, também produz reações negativas. Somente as atividades executadas em conexão com o Supremo não produzem maus ou bons resultados do ponto de vista material, e por isso são niskarma. A lei do karma se resume a entender que toda ação acarreta uma reação. Ao interagir com a energia material, o ser vivo é impelido a executar atividades de duas espécies: sukrti e duskrti. O primeiro caso se refere às atividades piedosas ou auspiciosas. Essas atividades sukrti são impelidas pela bondade. São exemplos dessas atividades a execução de caridade, sacrifícios, serviço social etc. Agindo desse modo, o ser vivo atrai para si condições materiais favoráveis, tais como bom nascimento, riqueza, beleza, saúde física e boa inteligência. Isso se refere ao karma, atividades positivas que são aklisthas - livres de aflição. Por outro lado, existem atividades que são chamadas de duskrti, atividades inauspiciosas e impiedosas, que são impulsionadas pela ira, pelo egoísmo e contrariam as leis divinas. Essas atividades são chamadas klisthas, pois criam reações indesejáveis para aqueles que as praticam (vikarma) e se manifestam na forma de diferentes classes de sofrimentos. Na Gita se diz que ao se associar com a natureza material a entidade viva percorre diferentes caminhos e por isso se encontra com o bem e o mal entre as diversas espécies de vida. Visitante: Entendi. É por isso que a alma reencarna? Swami: Sim. Na verdade, nós preferimos o termo transmigração à palavra reencarnação, mas dá no mesmo... Esse ciclo de nascimentos e mortes que faz com que a entidade viva se depare constantemente com o bem e o mal é chamado de samsara. Em última análise, o yoga se destina a parar essa roda interminável de renascimentos. Para tal, o praticante deve primeiramente parar com as oscilações de sua mente, como foi proposto por Patañjali no seu segundo sutra (chitta vrtti nirodha). Já que não podemos efetivamente impedir a mente de atuar, devemos entender que parar com as oscilações da mente significa parar com os disparates mentais, com os desejos mundanos que são tecnicamente conhecidos como kama. O corpo material tem suas necessidades básicas e isso é compreensível. Mas quando, através dos cinco sentidos, o corpo se torna cada vez mais obcecado por prazer mundano, a entidade viva se torna totalmente desamparada e é arrastada pela luxúria (kama) e pela cobiça (lobha). Entretanto, um verdadeiro yogi se caracteriza por sua capacidade de controlar seus sentidos, ou seja, retirar seus sentidos dos objetos perigosos. Em relação a isso, o yogi é comparado a uma tartaruga que, ao se deparar com algum perigo, retrai-se para dentro da carapaça. Patañjali faz também referência a duas condições da alma: pratyag-atma e parag-atma. Enquanto a entidade viva estiver atraída pelos objetos externos ela será classificada como parag-atma. Segundo Patañjali, esse apego aos objetos externos pode ser eliminado ao se controlar as funções dos ares internos do corpo. Ocorrendo isso, os próprios ares internos passam a agir favoravelmente e ajudam na purificação da alma. Isso é denominado pratyag-atma, o que, segundo Patañjali, é a meta última do yoga - afastar a alma das atividades da matéria. Quando ocorre a iluminação no yoga, portanto, todas as funções internas dos ares vitais se purificam e passam a ser utilizadas para a autorealização espiritual.