A PETISQUEIRA Fátima Quintas Mantenho uma profunda ligação com a mobília que me cerca, o espaço da casa representa um prolongamento de mim mesma. Não há como separá-lo. A “vida social das coisas”, como diria Gilberto Freyre, leva a um processo relacional e subjetivo. Amo o meu entorno porque a convivência com cada objeto diz de uma história que expressa secretas narrativas. Sempre reverenciei o estilo clássico, tanto que o meu primeiro salário, menina de 18 anos, professora de História do Brasil do Instituto de Educação de Pernambuco (IEP), então no Parque Treze de Maio, reservei-o para comprar o primeiro móvel antigo. Não tinha sequer namorado, mas não sei por que desejava tanto obter uma peça tradicional. Fui a Olinda e comprei-a a Dona Yolanda, uma senhora de cabelos longos, brancos, que morava sozinha em casa humilde e preservava no seu ambiente uma espécie de museu doméstico. Vivia de vender aqueles móveis, poucos, porém de um bom gosto extraordinário. Há muito a visitava para tocar na madeira, nos desenhos barrocos ou perfis apolíneos, na materialização de alguma coisa que possuísse extensas biografias. Todos me sussurravam palavras inaudíveis; eu os ouvia com particular interesse. Até que um dia, acumulados os dois primeiros salários, corri para a morada de Dona Yolanda. Recebeu-me com alegria, quase não falou; logo, logo exclamei: “Hoje venho comprar a petisqueira, a preferida”. Ela sorriu. Pulei de euforia, afaguei o móvel como quem afaga um ente querido. Já sabia o seu preço; trazia o dinheiro contado, dois meses amealhando o parco salário e controlando a ansiedade de perder o objeto para outro comprador. Aluguei uma carroça, puxada a cavalo, voltei à casa de meus pais. Nada tinha avisado à mãe, provavelmente ela não iria aprovar o desatino..., onde colocar a petisqueira? Surpresa, a mãe, quase atônita, indagou por que não havia adquirido vestidos, maquilagem, sapatos... o que qualquer garota o faria. Sem que eu explicasse, entendeume na sua inexcedível sabedoria. Sugeriu, entretanto, que a guardasse na garagem por absoluta falta de local disponível. Cuidei de revesti-la com plástico, madeira sucupira maciça: as portas de cima envidraçadas; as de baixo, compactas, viris; ao meio, um espaldar de sustentação, discreto, complementado por dois pequenos pilares torneados, simples e elegantes. A petisqueira se revelava na distinta soberania. Altaneira. Dez anos permaneceu na garagem. Casei, viajei para Portugal, por lá residi sete anos; em quase todas as cartas perguntava pela petisqueira. Ao retornar, aluguei apartamento; de imediato, postei-a na sala principal. Mudei-me duas vezes; acompanhou-me como a peça mais querida. Hoje exibe a louça de porcelana inglesa de minha avó materna, com o esplendor de quem se entrega em doação completa. Nunca necessitou de qualquer reparo. Intacta na digna antiguidade. Nas madrugadas insones, transmito-lhe as angústias, as ansiedades, os segredos inconfessáveis. Aliada e confidente. Conto-lhe o percurso do dia, o que devo fazer, aconselho-me nas decisões, nela deposito a confiança de uma solidariedade incondicional. Uma petisqueira de cozinha, meados do século XIX, bela, solene, porque transbordante de enredos. Ao vê-la, recordo a sua trajetória bem mais distante daquela que cheguei a conhecer. Quase dois séculos de existência, fechada na vetusta onipresença, tão hercúlea na imponência, ali, acolhendo meus desabafos; nada revelando, amiga dos meus amigos e, sobretudo, símbolo da minha personalidade. Enxergo-a nos detalhes, jamais deixei de percebê-la em intensidade, ela, tão perto de mim, como aqueles que me amam. Soube esperar-me sem reclamações, aceitou-me placidamente com a inocência dos puros. Permanece no mesmo recanto que a coloquei, anos de acomodação, fiel, inabalável, silenciosa. Jamais pensei em trocá-la de lugar; ao abrir a porta da frente, ei-la, majestática. Fátima Quintas é presidente da Academia Pernambucana de Letras. E-mail: [email protected] Artigo publicado no Caderno Opinião do Jornal do Commercio, dia 23 de julho de 2014.