Duas histórias de amor não vividas Ou: De como se fez viva Isabel Archer Por Maricia Ciscato Diz Henry James, no prefácio de Retrato de uma senhora, que pretendia desvendar o que faria Isabel Archer, a jovem protagonista, com sua vontade de viver. “O que ela vai fazer?”1 foi a pergunta que o guiou nas páginas desse cativante enredo. Henry James instiga o leitor a acompanhar como essa jovem, curiosa e vivaz, construirá seu caminho, partindo do pressuposto de que não há texto previamente escrito na vida de nossa protagonista. Sem a envolver em grandes cataclismos, o autor aposta nos intensos sentimentos e conflitos que os pequenos encontros, bons e maus, podem acarretar: “o que pode ser mais verdadeiro que o fato de que suas aventuras deverão ser de fato suaves, no sentido de não dependerem de mar e terra, de acidentes dramáticos, de batalha e assassinato e morte súbita?”.2 Isabel Archer surpreende ao negar, logo no início de sua jornada, dois homens que, apaixonados, a pedem em casamento – Caspar Goodwood e lorde Warburton. Charmosos, inteligentes, cada qual com seu modo de lidar com o dinheiro que fizeram ou herdaram, de lidar com as questões políticas que os envolvem, Isabel nega ambos. Ao negar um e outro, Isabel provoca no primo, um pacato e moribundo rapaz, um aprofundamento da admiração que já sentia por ela e uma vontade enorme de observar o que fará Isabel de sua vida, que texto escreverá para si. O que fará Isabel? O que quer Isabel? – perguntam-se autor, personagem e leitor. Isabel, que não sabe o que quer, apenas que sente uma excitação com a vida, parece não se ver envolvida em enredos que talvez suponha já escritos, como, por exemplo, casar-se jovem com um homem financeira e socialmente bem posicionado e querido pela família. Isabel não sabe bem o que a leva a dizer não a esses dois pretendentes, mas o faz decididamente e disso não arreda pé. Henry James confessa-se espantado com algumas mulheres: “o que espanta, todo o tempo, ao olharmos o mundo, é como as Isabel Archer, ou mesmo os espécimens femininos menores, insistem em ter importância, de maneira absoluta e imoderada”.3 E parece ser com esse seu espanto que escreve, página a página, essa que é considerada por muitos sua melhor obra. 1 2 3 JAMES, H. Retrato de uma senhora. São Paulo: Companhia das Letras, 2007 – Prefácio, p. 20. Ibidem. Idem, p.13. A genialidade do autor faz com que Isabel decepcione. Casa-se, não muito tempo depois de iniciar a jornada que supunha de viagens e abertura, com um homem manipulador e egoísta, por quem se encanta. Dois anos depois de casada, encontra-se infeliz e presa às “obrigações de esposa”, às quais acredita ter se comprometido e, por isso, não poder mais abdicar das mesmas, mesmo diante das argumentações do primo e dos ex-pretendentes, que permanecem apaixonados até o fim do enredo. Descobre seus limites, a dor e a angústia, sem se calcar em arrependimentos. É justamente por sua intensidade, ambigüidade e indefinições que Isabel encanta. Não é uma heroína precisa, uma guerreira que luta fervorosamente por objetivos determinados, nem uma mocinha ingênua que descobre os horrores da vida e torna-se uma mulher forte. Isabel permanece surpreendente até a última página por manter sem resposta as questões que todos lhes fazem. Isabel sabe pouco sobre elas. Sente, vive e chora. O que mais surpreende em Isabel é, assim, sua marca inicial: a recusa pelos dois pretendentes. É, portanto, não por suas afirmações que Isabel se faz, mas pelo que nega. Não é no fato de ter se apaixonado pelo excêntrico e sem dinheiro Gilbert Osmond, o homem com quem se casou, que está a marca maior de Isabel. Isabel se faz muito mais pelas duas histórias de amor que deixou de viver. As duas recusas são os restos de Isabel que a acompanham para sempre e que fazem dela uma personagem singular. Isabel preferia pensar no futuro a pensar no passado, mas às vezes, enquanto ouvia os murmúrios das ondas do Mediterrâneo, seu olhar alçava-se num vôo de volta. Ia pousar em duas figuras que, a despeito da distância crescente, ainda eram bastante destacadas; podiam ser reconhecidas sem dificuldade como Caspar Goodwood e lorde Warburton. Era estranho como essas imagens de energia tinham caído tão rápido para segundo plano na vida de nossa jovem. Li Retrato de uma senhora ao mesmo tempo em que li o livro Restos4 do psicanalista Marcus André Vieira. Tomar os restos de Isabel como o que faz dela essa personagem cativante parte de um princípio da psicanálise, o objeto a, que nos apresenta Marcus André de forma clara em seu livro: Nosso lixo é sempre mais singular que nossas aspirações, razão pela qual, para o analista, o resto conta mais do que o ideal. Ao abordar o ideal pelo dejeto, as coisas mudam de figura. Em vez de tomar o resto como aquilo que demonstra nossa incompetência em ‘chegar lá’, ele é, ao contrário, o que sustenta o ideal. É justamente pela extração do lixo que o espaço de onde ele foi retirado pode sonhar com a perfeição. Afinal, não há carro mais brilhante do que aquele que contemplo com a esponja ainda suja nas mãos, ou casa mais arrumada do que aquela da qual acabamos de jogar fora o que não presta. Desse ponto de vista, o lixo precede o ideal, sustenta-o, está, segundo Lacan, atrás do desejo e não à sua frente. É ele que, recém 4 VIEIRA, M.A. Restos: uma introdução lacaniana ao objeto da psicanálise. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2008. varrido, distingue a sala de uma revista da sala habitada - as duas podem ser lindas, mas só a segunda é viva.5 Viva pode ser o significante que mais marca, a meu ver, nossa personagem. Ela não é uma heroína exemplar, muito menos alcançou a felicidade em sua jornada. O que lhe é peculiar é justamente o fato de não poder prescindir de suas recusas com relação a esse dois homens, em nenhum tempo, pois são elas que permitem que viva todas as suas outras histórias. Isabel se faz viva por ter em sua bagagem dois pontos que, embora “destacados”, “imagens de energia”, estão sempre no “segundo plano” de suas lembranças. É pelo o que Isabel perde que ela se faz, é com base em sua recusa à Caspar Goodwood e lorde Warburton que vive. “Se me ama, se tem pena de mim, deixe-me em paz” – diz ela a mais uma tentativa de Caspar Goodwood de tomá-la para si e salvá-la de suas dores, já nos últimos momentos do livro. Ele fuzilou-a com o olhar por um átimo em meio à obscuridade e, no momento seguinte, ela sentiu os braços dele em volta de seu corpo e seus lábios sobre os dela. O beijo dele foi como um lívido relâmpago, um clarão a espalhar-se, e de novo a espalhar-se e deixar marca; e o extraordinário era, enquanto estava sendo beijada, ela ter sentido cada aspecto da sua áspera virilidade que menos a tinha agradado, cada agressivo fato de seu rosto, do seu corpo, de sua presença, justificada em sua intensa identidade e tornados todos um nesse ato de posse. Era isso que ela ouvira falar das pessoas que se afogam e vão afundando seguindo uma série de imagens enquanto descem para o fundo do mar. Mas quando a escuridão voltou, ela estava livre. Não olhou nem mesmo em volta; apenas saiu correndo daquele lugar.6 5 6 Idem, p. 119-20. JAMES, H. 2007, p. 672.