ESPAÇOS | EDIFÍCIOS | EMPRESAS | 54 O projecto luz à lupa Por: Mário Caeiro | Designer e docente na ESAD.CR LIGHT BLADE Um Lâmina de Luz atinge o Património uma obra que é obra A arte do céu Alguns artistas, no dealbar da contemporaneidade (a viragem comunicacional e contextual no início dos anos 60), assumem a obsessão de lidar com o infinito do céu, traduzindo emoções sublimes, complexas, em objectos artísticos, isto é, artefactos culturais que traduzem e incorporam o tema do céu nos seus dispositivos, e o introduzem nos jogos conceptuais que propõem. Nos casos mais extremos, isto é, mais decididamente cósmicos no alcance das propostas, esses criadores levamnos a experimentar o firmamento – um outro termo para dizer o céu, mas que já sugere uma abóbada e menos o infinito cósmico – como uma espécie de texto gigante, impossível de apreender mas passível de ser reproduzido Desenho técnico (vista, planta, secções) Desenho técnico (pormenor construtivo) Somos seres cósmicos, relativos ao Universo. O céu que nos protege é o mesmo que pode esperar, e sobretudo o que, desde a noite dos tempos, nos espanta ou nos aterroriza, como no-lo recordam os medos da infância – quem não se lembra da cena dos trovões em The Sound of Music? nas formas da arte. Seja pela cor – as gamas de azuis, de brancos, de laranjas, roxos ou vermelhos, e claro, negros, que conhecemos também da pintura –, seja por uma apropriação ‘materialista’ dos próprios factos celestes, objectivamente integrados em obras de arte total. Neste segundo caso incluem-se naturalmente os expoentes da chamada Escola de Los Angeles – de James Turrel a Nancy Holt, passando pelo célebre Lightning Field de Walter de Maria, exemplos célebres – ambos profundos conhecedores e divulgadores da magia celeste em todas as suas vertentes, not the least espirituais. Walter de Maria será o caso mais emblemático da apropriação material do céu em toda a sua dynamis e espectacularidade, uma vez que, como um pequenos deus contemporâneo, ‘rouba’ os raios ao próprio firmamento. Lighting Field (1977) é um ícone da land art, uma peça raramente vista mas certamente hiper-citada, em que o momento hiper-fugaz dos trovões no deserto do Novo México são os actores principais numa encenação da natureza que torna esta obra, porventura, das mais imponderáveis da história. Em Itália, o raio da peça Entretanto, a história não se faz apenas das fugas para a frente, radicalizações da estética, as revoluções formais da vanguarda. Devemos prestar atenção também aos sucessivos momentos de consolidação cultural, às vezes longe dos holofotes da moda. Itália é um país onde esta tradição é rica e constante, facto a que não é alheia a relação dos italianos com o seu passado incomensuravelmente rico ao nível da arte, da arquitectura e do urbanismo. Mais do que noutros países em que o património é desvalorizado, até porque é tratado ora com excesso de zelo proteccionista, ora com desleixo cultural extremo, raiando a ignorância dos próprios valores, em Itália temos inúmeros exemplos de uma arte pública atenta ao passado mas virada para a superação experimental das dificuldades de relação entre formas de arte de épocas diferentes. A atenção ao fundamental não conduz necessariamente ao fundamentalismo. Fotomontagem (aproximação à tridimensionalidade) ESPAÇOS | EDIFÍCIOS | EMPRESAS | 55 Desenhando o néon (Nicola e Leonardo Schilirò) Render (primeira imagem ‘fotográfica’) Em História da Arte como História da Cidade, Giulio Carlo Argan aponta caminhos, diversos e muitos largamente inexplorados (por exemplo em Portugal). Assim como, hoje, uma curadora e investigadora como Gisella Gellini (ver. IP, n. 11, Março 2008), amplamente conhecedora quer da Escola Americana da arte da luz, quer das neo-vanguardas italianas, é um exemplo de rigor conceptual, formal na proposição de artefactos artísticos na cidade histórica. Gellini segue aliás uma tradição – italiana – rica mas relativamente desvalorizada, a da arte pública institucional, tendendo para a vanguarda estética mas cuidadosamente integrada no património. É uma tradição que naturalmente só poderia vir de um país com o património edificado que a Itália tem (sendo ‘obrigada’ a preservá-lo e ao mesmo tempo a revitalizá-lo). É nestes termos que proponho à atenção a última peça permanente de Nicola Evangelisti (n. 1972), que precisamente é uma lâmina de luz apontada a esse céu infinito que nos abraça todas as noites e todos os dias. E que estabelece com as arcadas de um edifício histórico (Villa Reale, Milão), uma relação fascinante. Talvez ela nos aponte pelo menos uma das vias luminosas para a light art em Portugal. A obra é sítio-específica, realizada por ocasião do Salone del Mobile que integra a Feira Euroluce. Dirigiram o projecto Gisella Gellini e Olívia Spatola, com patrocínio da cidade de Milão e do Consulado Britânico, que na mesma altura promoveu a exposição British Design Embassy. Sinergias que passaram pela parceria com a galeria de arte contemporânea PaciArte e coordenação técnica e produção da empresa de iluminação Neon Stile. O tema Em Light Blade, salta à vista o traçar luminoso de um relâmpago. A luz, ainda que capturada numa forma geométrica e obviamente estática no seu desenho, irrompe no nosso campo visual com a energia de um poderoso fenómeno atmosférico. Dificilmente, como já vimos, poderia uma obra de luz ter ressonâncias mais arcaicas na sua temática, como se estivéssemos a ser recordados que os relâmpagos de hoje são os mesmos de ontem e de amanhã, e os mesmos em diferentes partes do mundo e em diferentes modos de vida. A mesma fugaz companhia, violenta e fascinante, aqui ‘controlada’ para ser mantida no confinamento do objecto estético e, no limite, decorativo. Primeira imagem – a obra Dito isto, de que maneira a estrutura física que suporta o conceito e lhe dá corpo, incorpora aquela dimensão iconográfica? De que forma o homo faber captura e domina a força cósmica incontrolável do raio e a integra no seu quotidiano urbano? Como traduz a sua ousadia na forma urbana? Nas escassas obras de arte pública de Evangelisti (é um artista jovem que tem feito essencialmente exposições indoor, apenas recentemente expandindo a sua acção para a cidade), nessa singela definição simplesmente geométrica do objecto escultórico. E que aqui é também a introdução de um factor de alteridade, a de um corpo estranho que, na era da desmaterialização digital, é pelo contrário presença material concreta, carregada de luz, cor, movimento e energia. Através desta solução simples, que vive antes do mais da escala adequada, o artista como que aceita os limites da sua produtividade e, estoicamente, o que faz é fazer coincidir o plano do objecto – a artificialidade de uma estrutura geométrica cuja superfície é espelhada – e o plano da imagem. A simplicidade das formas ‘puras’ e a complexidade do acontecimento natural (o seu resto, que é o desenho). O triângulo do saber humano enquadra assim, mas também delimita (no seu alcance), o poder da natureza. Integração – O efeito da peça Durante o dia, esta obra comporta-se de uma maneira. No crepúsculo, de outra. Noite dentro, de outra ainda. Ao amanhecer, o ciclo recomeça. De dia a obra reflecte a nossa presença, funciona como um espelho (explorando os efeitos de transparência e de desdobramento do espaço proporcionado pelos espelhos). A anoitecer, as marcas do artifício diluem-se na noite cósmica – mas também, como sublinho, na noite urbana, do edificado, da arquitectura. E é aqui que começa o brilho da solução formal que a instalação da peça propõe – fruto de uma decisão colectiva entre artista, comissária, galerista e responsáveis culturais da cidade de Milão. Todas as notas avançadas Colocando os topos em aço espelhado (Nicola Donatella e Leonardo Schilirò com o artista, na Neon Stile, em Bolonha) até aqui sofrem aqui um twist muito preciso, o que, no domínio da linguagem da arte urbana é, no fundo, a arte do diálogo da obra de arte com a sua inscrição no tecido urbano. O domínio físico da sua retórica. Em Light Blade, o ethos de atenção fascinada ao fenómeno da natureza encontra-se com o logos da integração subtil, mas decidida, do objecto na arquitectura O Artista por si próprio O gesto simbólico do meu trabalho tende a construir o espaço tecendo a luz. Em geral, trabalho a duas dimensões, procurando soluções para conseguir uma ilusória tridimensionalidade através de efeitos ópticos. Isto leva-me a definir os meus trabalhos como estruturas espaciais. Frequentemente, perguntam-me se o meu trabalho pode ser classificado como pintura ou escultura: em certo sentido, é sempre escultura luminosa. O padrão da luz em superfícies curvas é um paradoxo que, em matemática, é confirmado pela teoria da relatividade. O percurso caótico e não perpendicular da luz é a minha fonte de inspiração. Criar algo a partir dos padrões caóticos é uma hipótese de trabalho para irmos alem da figuração e penetrarmos noutras dimensões que são colocadas pela ciência mas não percepcionadas pelo olho humano. Nicola Evangelisti Entrevista a Clara Lovisetti in www.lightingacademy.org/news.php?pcode=0000000529 ESPAÇOS | EDIFÍCIOS | EMPRESAS | 56 uma obra que é obra A peça montada (foto de dia, perspectivas de dentro e de fora das arcadas) A noite cai (equilíbrio das luminosidades natural e artificial) no caso, de uma ‘lâmina de luz’, de ângulos violentos e presente indelével, nas arcadas de um edifício histórico, o Villa Reale, na Via Palestro, em Milão. Para o autor, a peça ecoa a verve interpelativa de Marinetti, chefe-defila dos Futuristas – é un’azione violenta sull’architettura storica. O resultado, ao nível da comunicação, passa então, já não apenas pela positiva experiência quotidiana, prolongada pela arte, de um fenómeno fugaz do quotidiano cósmico; já não apenas pela sugestão da relação entre forma (triangular) e conteúdo (o traçado luminoso), mas sim, num suplemento de interesse estético característico da arte genuinamente pública, pelo efeito emblemático da sua integração na arquitectura. Isto, é, a ‘obra’ de Evangelisti – que na galeria já era dotada do seu discurso próprio – passa para outro NOTA TÉCNICA A noite adensa-se (a peça afirma-se) patamar de complexidade. O que não é incompatível, pelo contrário, é potenciado, pela absoluta simplicidade e objectividade da operação – a colocação da peça por forma a criar a ilusão perceptiva de atravessamento (dos pilares das arcadas pela estrutura). Depois, há a leveza aparente dos materiais (a nobreza do espelho veio sempre dessa dimensão de desmaterialização das imagens concretas no plano impossível do reflexo), que contestam a gravidade e a lógica da nossa habitual relação com a arquitectura – afinal, não fazendo sentido acreditarmos que aquela lâmina atravessa a pedra, é aquilo que os nossos olhos nos dizem que está a acontecer… a suspensão do juízo que esta peça inequivocamente provoca é parte central do seu charme como provocação dos hábitos patrimoniais… Light Blade consiste em componentes de aço inoxidável ocos, cuja superfície é perfurada por forma a deixar passar a luz interior de ambos os lados (através de um difusor frontal em plexiglas). No interior, a ‘velha’ tecnologia do néon – luminosidade dinâmica – continua a proporcionar todo o charme da inovação, tornada possível e sublinhada pelo rigor com que, hoje, é possível recortar metal com uma plotter vectorial. Em suma – o acontecimento A forma como Light Blade interrompe a imagem feita da arquitectura é o seu feito estético. É esse (e)feito que cria uma continuidade muito contemporânea (mas ainda Grega!), entre o espaço interno e externo, entre a contingência do humano e a violência (aqui apenas encenada) do mundo natural; é por isso que a ideia de lâmina faz aqui tanto sentido, a lâmina corta a arquitectura, mas também comete um rasgo no espaço. E fá-lo com a precisão cirúrgica de uma peça que, sendo permanente, respeita as formalidades da patrimonialização sem sucumbir à sua letra. Ao nível do projecto como processo complexo, esse é o seu ponto crítico. E assim, uma obra de arte integrada num edifício, em diálogo de idades, é um espaço para exercitarmos a nossa imaginação múltipla, e sobretudo a nossa consciência do tempo, a nossa relação com a eternidade de que, como aquele raio, somos a cristalização efémera do instante. n Light Blade foi apresentada a 22 de Abril de 2009 no âmbito do Salon del Mobile e da Euroluce. +INFO http://www.lighting academy.org/news.php?pcode=0000000529