RBTI - Revista Brasileira Terapia Intensiva ENSAIO Um Conflito Onde Doar Não Significa Ganhar A Conflict Where Donation Doesn’t Mean Profit Mauro Luiz Kaufmann* Abstract The issue of organ donation takes a place which goes far from medical knowledge. The donation process keeps intense relations with social and individual values, involving and colonizing the “life world” of social actors – family and potential donors. Even the laws, reviewed recently in Brasil, and the market and technology interests, with better structure and vigilance, don’t allow a filtered communication by a public legitimate space and a consensual decision by rational and ethics criteria. They act like modernity strange elements on social actors. Key Words: Organ Donation; Ethics; Medical Sociology *Médico Intensivista e Mestrando em Sociologia Universidade Federal do Rio Grande do Sul Instituto de Filosofia e Ciências Humanas Programa de Pós-Graduação em Sociologia Enderço: Rua Ciro Gavião, 124/202 – Bela vista – Porto Alegre/RS – CEP 90470-020 Fone: (51) 332.9779 – E-mail: [email protected] A s manifestações acerca da doação de órgãos para transplante procuram reforçar a idéia de solidariedade, altruísmo e elevado espírito fraterno para promover o aumento do número de doadores. Frases encontradas em recente campanha, em folheto distribuído durante as eleições municipais do Rio Grande do Sul, servem de ilustração destas idéias quando dizem “Doação de órgãos. Um gesto de amor à vida. Esse é um ato de civismo. Esse é um ato de amor. Seja um salvador de vidas”. Mas essas afirmações e estratégias representam um comportamento daqueles que autorizam a doação no nosso meio? Possivelmente sim. E podem atingir toda a complexidade de motivações que esses indivíduos vivenciam frente ao processo de autorizar ou não a doação? Mais provavelmente que não. Mesmo os profissionais que trabalham na assistência ao potencial doador e à família relacionam um conjunto mais amplo de fatores que permeiam as situações entre apoiar ou não apoiar o processo de doação. Enfermeiras da Inglaterra relataram que o valor da contribuição do doador, a idéia de ter outro órgão/tecido em seu próprio corpo, a moral individual, a mutilação do corpo pósmorte e o potencial desconforto que poderia ocorrer com os familiares” influenciavam sua atitude 1. Na Alemanha, estudantes de medicina que não eram doadores, relatavam maior medo da destruição física do corpo e reservas com a doação, com significância estatísticas em comparação com aqueles que tinham cartões do doadores 2. Então, um conjunto maior de atores sociais, para além dos usuais alvos das campanhas educacionais e públicas, apresenta mais elementos que a solidariedade pura e simples. Também os relacionamentos desses atores e campanhas temáticas se fazem em campos sociais e sistemas especializados que atendem a determinados interesses. Quando inúmero artigos e estudos afirmam algo como o que se segue, é possível pensar em uma maior amplitude para o problema da doação de órgãos. A falta de motivação e participação das equipes médicas que trabalham nos serviços em que se produzem os potenciais doadores, reafirma a necessidade de melhor informação e coordenação, ...” 3. No México a consciência médica e pública a favor da doação e do transplante de órgãos é muito deficiente 4. ... na cidade de São Paulo existem 5 potenciais doadores de órgãos por dia, número suficiente para saturar as equipes de transplante em atividade, e que a recusa da doação por parte dos familiares não é o principal motivo que leva a escassez de doadores, mas sim a falta de estruturação das equipes que dão atendimento médico no sentido de reconhecê-los e promover a manutenção adequada para que se viabilize a doação dos órgãos 5. As taxas de doação de órgãos poderiam ser aumentadas por melhoras na qualidade dos cuidados hospitalares e assegurando que a requisição por doação esteja de alguma maneira reunindo as necessidades de in- Volume 13 - Número 2 - Abril/Junho 2001 71 ENSAIO formações e emocionais das famílias 6. ... resultados indicam que informações culturais-específicas acerca das taxas de falência orgânica e doação de órgãos, quando apresentados por indivíduos conhecedores da cultura, poderiam aumentar doação dentre a população americana nativa 7. Sim, vamos pagar por órgãos. Não dos vivos, que é degradante. Mas com os mortos a história é diferente 8. REALIDADE E DEBATE São muitos os elementos, complementares ou concorrentes que compõe o cenário da doação de órgãos e transplante. A doação de órgãos é um tema no qual vários fatores participam para torná-lo difícil em nosso meio, começando pela própria centralidade da perda, com morte freqüentemente violenta e inesperada, aspectos psicológicos da família, as condições de sua assistência e do potencial doador, bem como das condições das equipes e instituições que atendem ao processo. As previsões estatísticas estabelecem que 2% das pessoas falecidas ou 45 indivíduos por milhão de habitantes por ano são doadores em potencial. As notificações de morte encefálica no Rio Grande do Sul representam cerca de 16 notificações por milhão de habitantes por ano, com 23 % de negativa familiar em 1997, ficando muito abaixo do sistema espanhol, que detém os melhores resultados com 33,3 doadores/milhão hab./ano em 1999, onde a recusa familiar responde por 18% dos casos de não doação e onde a campanha de motivação diz “Piensa en ti. Sea donante!” A Central de Notificação, Captação e Distribuição de Órgãos (CNCDO), órgão responsável a nível estadual, vinculada à Secretaria Estadual de Saúde do Estado do Rio Grande do Sul, recebeu 239 notifica- 72 RBTI - Revista Brasileira Terapia Intensiva ções de morte encefálica no ano de 1999, resultando em 72 (30%) doações. Dados parciais do ano de 2000, janeiro a 19 de junho, mostram 144 notificações e 18 (12%) autorizações para doação, mostrando uma tendência a queda de doações. Nos EUA estima-se a presença em 13.700 doadores potenciais por ano, com uma taxa de 21,2 doadores/milhão de habitantes/ano, efetivando cerca de um terço de doadores – 299 de 916 pacientes em 1990, resultados similares aos encontrados para o ano de 1993. São apontados três principais problemas na doação de órgãos: a ausência de identificação adequada dos pacientes como potenciais doadores pelas equipes assistenciais; falha em interrogar a família sobre a intenção de doar; e a recusa da família em consentir com a doação justificada primeiramente por receio e pouco crédito nos métodos de diagnóstico da morte encefálica; por vislumbrar a retirada dos órgãos como mutiladora, trazendo-lhes mais sofrimento; e por fim, por entenderem que os beneficiados com os transplantes poderão ser pessoas com maior poder econômico. As normas e regras do sistema político e os valores tradicionais do sistema econômico já não dão conta em promover completa segurança nessa nova interação social. Recentemente, a sociedade brasileira reviu alguns desses aspectos normativos, quando a Lei n.º 9.434, votada no Congresso Nacional em 04 de fevereiro de 1997, aprovou nova legislação sobre o tema de doação de órgãos. Dentre os inúmeros encaminhamentos legais do processo - da notificação dos casos de morte encefálica, captação dos órgãos, do transplante em si e estrutura coordenadora e pagadora – a nova lei aceitou como mudança substancial a premissa da doação presumida, o que significa que todo brasileiro tornava-se doador compulsório até sua manifestação expressa em contrário. Essa mudança fez frente à legislação anterior que legalizava uma posição de doação consentida ou informada (Lei n.º 8.489, de 18 de Novembro de 1992), onde a família sempre era argüida para autorizar a doação ou não 9, 10. Contudo, frente ao debate social – matérias na mídia, pesquisas e pareceres técnicos contrários - foi editada a Medida Provisória Presidencial n.º 1.718, de 06 de outubro de 1998, que reinstituiu a consulta aos familiares responsáveis, permitindo-os a autorização ou a negação da doação de órgãos para fins de transplante 11. É nesse cenário conflituoso entre atores, sistemas e campos sociais, permeado por intersubjetividades, que um olhar sociológico, não sob a perspectiva da promoção da doação em si, no campo do assistencialismo, mas como tentativa de compreensão da sociedade moderna, pode contribuir para superar equívocos e inconsistências desse processo. No século XX, a sociedade moderna caracterizou-se pelas grandes migrações: migrações populacionais dos campos para as cidades, da Europa para demais continentes; migração da força de trabalho da área rural para industrial e tecnológica, mais recentemente; migração das mulheres para fora do lar, com novos enfrentamentos no mercado de trabalho; migração econômica e beliscista eurocêntrica para americana (EUA, Canadá) e asiática (Japão, China e ex-União Soviética). Também caracterizou-se por desintegrações de antigos padrões de relacionamento social humano, como a quebra de elos entre gerações, emancipação da mulher, preocupações ecológicas, espaço de vida cada vez mais criado e urbanizado – em contraste ao natural ou intocado – enfim, com valores ocidentalizados na maior parte do mundo: da individualidade, liberdade e liberalismo, no modelo consumista e capitalista. Reconstruir a história do século Volume 13 - Número 2 - Abril/Junho 2001 RBTI - Revista Brasileira Terapia Intensiva XX passa por reaprender os padrões de convivência e tolerância interpessoal a nível mundial, de uma sociedade moderna que, em aproximação a conceituação de Giddens, “refere-se a estilo, costume de vida ou organização social que emergiram na Europa a partir do século XVII e que ulteriormente se tornaram mais ou menos mundiais em sua influência.” 12. Giddens formula seu conceito de modernidade a partir da soltura da presilha dos tipos tradicionais de ordem social pré-modernos, com mudanças (tensões) em um plano “extensional”, representando a cobertura global das novas interconexões e outro plano “intensional”, isto é, não somente alterações estruturais mas também ação e relacionamentos íntimos e cotidianos de nossas vidas – vivemos assim em um mundo criado. Ao evolucionismo de Marx, que enxerga nas mudanças uma governança e orientação histórica, inexorável e dinâmica, os caminhos, porém, que Giddens localiza para esses passos não são de uma evolução contínua, mas sim de descontinuidades: Desconstruir o evolucionismo social significa aceitar que a história não pode ser vista como uma unidade, ou como refletindo certos princípios unificadores de organização e transformação. Mas isto não implica que tudo é caos ou que um número infinito de “histórias” puramente idiossincráticas pode ser escrito 12 (p. 15). Algumas características são apresentadas para identificar essas descontinuidades. Uma delas é a velocidade das mudanças ocorridas, ultrapassando as civilizações tradicionais antecedentes, garantidas pelo acréscimo de tecnologias comunicativas. Outras dessas caraterísticas são os resultados das mudanças, daquilo que Weber entendia como a previsibilidade do sentido de sua ação, onde uma vez interconectados, “ondas de transformação social penetram através de virtualmente toda a superfície da Terra”. E como terceira característica, a “natureza intrínseca das instituições modernas”, demonstrando a diversidade de estágios históricos das estruturas sociais em diferentes áreas e seus sistemas institucionais formais – o estado-nação – e informais, através dos novos movimentos sociais. Mesmo para registros utópicos e idealistas como de Tomás Mórus, publicado pela primeira vez em 1516, não se conseguiu alcançar a objetividade multifacetada e dinâmica da sociedade do futuro. Cuida-se que nada referente ao Estado seja decidido sem ter sido levado à deliberação do senado três dias antes de um decreto ser votado. Discutir interesses públicos fora do senado e das assembléias constituídas é passível da pena capital 7 (p. 77). DEBATE E CONSENSO Mas como passar pela formalidade do Estado tudo que diz respeito a sociedade moderna? Como dinamizar os mundos do Estado e do Mercado sem outro recurso que não o da política formal, mesmo democrática e representativa? Como sonhar é preciso, pensamos que os verdadeiros interesses públicos utópicos que em Mórus se restringem ao mundo do Estado, melhor estariam expressos pelo mundo da vida, da figura 1. Mesmo tendo emergido do século XIX uma sociedade industrialista e capitalista, onde o sistema produtivo compra a força de trabalho, mercadorizando-a, excluindo os trabalhadores da propriedade e conseqüente bem-estar, ou seja, uma sociedade resumida aos Estados-nação, Giddens ressalta que não se deve encarar tais caracterizações como exclusivas: “A modernidade, sugiro, é multidimensional no âmbito das instituições, e cada um dos elementos Volume 13 - Número 2 - Abril/Junho 2001 ENSAIO especificados por estas várias tradições representam algum papel” 12. Mas à modernidade não bastam direitos civis e políticos desses Estados, não se limita ao processo representativo e eleitoral de um governo, de uma estrutura multipartidária – duradoura e sem censura. Direitos também ao acesso ao conhecimento e à prosperidade desafiam a modernidade. Corresponder a essas novas demandas e conflitos é o desafio dos Estados-nação. Quando novos grupos sociais, antes excluídos das ofertas do mercado e do Estado passam à frente de novos movimentos, isso faz mover-se um bloco de forças e lutas no caminho da geração de novos produtos e do desenvolvimento, da eficácia da instalação atual, de mobilidade social e pressão política. O reconhecimento indentitário dos indivíduos perante esses mundos - do mercado, do Estado e da vida – através de grupos familiares ou gerais (escola, país, língua, cultura, etc.), antecipa sua participação em movimentos coletivos. Porém, não é um movimento individual, sim público e privado, real, conflituoso, informal e latente. Habermas interfere radicalmente com uma crítica aos fundamentos de uma razão iluminista quando fala: Ora, se a modernidade é descrita como um contexto de vida reificado e explorado, tecnicamente controlado ou totalitariamente dilatado, submetida a relações de poder, homogeneizado e encarcerado, as denúncias são sempre inspiradas por uma especial sensibilidade para ferimentos complexos e violações sutis. Nessa sensibilidade inscreve-se uma imagem de uma intersubjetividade ilesa que, de início, o jovem Hegel tivera em mente como totalidade ética. 14 (p. 468). 73 RBTI - Revista Brasileira Terapia Intensiva ENSAIO Mundo da Vida Mundo do Mercado Mundo do Estado FIGURA 1. Dimensões dos Mundos da Modernidade. Nas setas os movimentos sociais. Portanto, para Habermas, os atores sociais constróem sua intersubjetividade não por referências normativas, como graça e iluminação. Também não por uma consciência de sua práxis, de uma conexão falsamente presente entre as forças produtivas e as relações de produção, que não atendem a subjetividade e autoreflexão. Mas os atores sociais movimentamse para superar as crises conseqüentes das modernas relações tecnicizadas – orientadas racionalmente para estratégias, eficiência e qualificação, representações dos sistemas econômico e políticos, em outras palavras mercado e Estado – através dos recursos da linguagem. São elementos de um agir comunicativo que proporcionam a criação e sustentação de um mundo da vida 15. As crises de motivação e legitimação do capitalismo tardio poderiam ser superadas por um consenso, 74 por ações interconectadas entre vários sujeitos autoreflexivos e transformadores, capazes de passar seus próprios motivos privados por um filtro público e crítico no sentido da transformação dessas crises. Este debate argumentativo da força do seu modelo societal não é consenso, logicamente, como demonstra o próprio Giddens em suas críticas, mas esta polêmica fica além dos objetivos deste artigo 16. Mas é no campo da ciência que verdadeiramente concentramos nosso foco e, para especial análise ante o conflito que estabeleceram as falas empíricas do início deste texto que temos pretensão de nos questionarmos: Como podem os atores sociais familiares responsáveis pela decisão de autorizar ou não a doação de órgãos – que verdadeiramente não são convidados a participar desse cenário, mas sim exigidos a que se apresentem, usarem de seus recursos racionais e comunicativos para participar ou conservar, de fato, do mundo da vida? Como que envolvendo os dois princípios – identidade e oposição – o princípio de totalidade enseja o conjunto de valores e ideais a que se propõe causa do movimento. Algo como diz Habermas em sua análise sobre movimentos de cidadania: As associações livres formam o ponto nodal de uma rede comunicacional que nasce no entrelaçamento de espaços públicos autônomos. Tais associações são especializadas na produção e na difusão de convicções práticas, logo especializadas em descobrir temas capazes de ter uma ressonância social global, de contribuir para eventuais soluções, de interpretar valores, de Volume 13 - Número 2 - Abril/Junho 2001 RBTI - Revista Brasileira Terapia Intensiva produzir boas razões, e desmontar outras. Elas só podem tornar-se eficientes de maneira indireta, ou seja, modificando, através de uma ampla mudança de atitude e valores, os parâmetros da formação da vontade constituída 17 (p. 13). Encontramos, portanto, movimentos sociais historicamente situados e objetos de interesse dialeticamente formulados. Se os temas são livres, o processo de desenvolvimento é não controlado e não limitado, então desafiadoramente, os próprios movimentos sociais não estão circunscritos em suas representações, não como respostas ao menos, quiçá, como expressão. PARA UM MUNDO DA VIDA Se a sociedade moderna é uma sociedade da informação, da tecnologia, do dinamismo, da comunicação, enfim, da mudança frenética, é ao próprio homem como elemento social – porque já reconhecemos que a natureza ou seu mundo natural está recriado – que cabe papel ativo quanto ao reconhecimento de sentido da vida, de identidades e comportamentos. Seu comportamento frente a opções sexuais, raça ou cor da pele, religião, ecologia, do modo de vida urbana, da violência, da manipulação genética, do militarismo, das igualdades ou diferenças, etc., são amostras de quão diverso, complexo e intercambiável pode ser a participação do homem moderno. Mas os atores do momento, deste espaço de diálogo – os familiares responsáveis – encontram-se fragilmente situados e confrontados com o espaço da racionalidade técnica e das forças do espaço do consumo. Pode-se dizer, em um campo alienado? E podemos supor que, no conflito decisório entre autorizar uma doação de órgãos ou negá-la, qualquer destes movimentos poderia representar uma tentativa emancipatória, de racionalidade intersubjetiva em defesa de um mundo vivido? É possível que sim: quem nega faz um esforço no sentido de levar suas próprias críticas discursivas, justificando uma não adesão às forças do mercado, que exigem mais doadores para manter sua produção transplantadora em ordem. É um esforço de não adesão ao industrialismo de medicamentos e tecnologias, que pouco relaciona-se com seu mundo, exceto quanto ao “consumo” da solidariedade e do altruísmo. Ou como no modelo espanhol – pensando em um futuro em ti mesmo, doador? Mas o movimento dos que concordam também pode ser representativo de um caráter emancipador desses atores. Também seus esforços reconstituem o mundo da vida, procurando romper com as esferas do consumo individualista da sociedade moderna. Também encerra elementos verdadeiros no campo discursivo, partilhados com seu próprio grupo social e campo de valores – não do consumo, do saber científico ou jurídico, de uma razão instrumental – mas, cultural e religioso, étnico ou estético, isto é, do seu mundo da vida. Por fim, há lógica entre as decisões de doar ou não doar órgãos que podem colocar esses atores em situação de acordo com outros sistemas sociais, junto às forças representadas na figura 1. Não são tipos racionais puros, construídos no modelo weberiano explicativo do controle instrumental dos processos sociais e naturais. São mais esferas de ação, mediadas pelos recursos da comunicação, que sistematicamente dialoga com outras esferas e campos do conhecimento, buscando legitimação consensual. Como entende Honneth: O pano de fundo para este pensamento encontra-se na reflexão segundo a qual cada ato da fala em busca de entendimento já se movimenta a priori no contexto de uma situação reconhecida intersubjetiva- Volume 13 - Número 2 - Abril/Junho 2001 ENSAIO mente. As contribuições dadas para a interpretação cooperativa de cada processo de entendimento não pressupõe sempre uma nova definição de todos os elementos integrantes da situação; essas contribuições, pelo contrário, procuram, por sua vez, reconectar-se em um número infinito de convicções já vividas e rotineiras. Esse horizonte de pressuposições partilhadas intersubjetivamente, no qual cada processo comunicativo encontra-se embutido, é denominado por Habermas de “mundo vivido”. Ele compreende como sendo o resultado de ações comunicativas, ou seja, o produto histórico de esforços interpretativos de gerações passadas 15 (p. 22). Mesmo diante dessa terminologia diferenciada para o interagir social do nosso cotidiano não acadêmico, o que permanece como incógnita é de quanto o homem pode ser sujeito de sua história, construtor consciente de suas ações – até para os riscos inimagináveis de Giddens. É pensar um poder legítimo enquanto fonte de opiniões filtradas neste espaço público do mundo da vida, com suas também autênticas forças intervenientes, com soluções de problemas técnicos da vida moderna consensualizadas pela competência comunicativa 18, 19. Concluo com algumas falas sobre o tema da doação de órgãos, que nos moldes da nossa sociedade atual não deixa claro se quem doa é quem ganha o mundo da vida. Doar não é ganhar, ao menos para si como faz a campanha da Espanha. Recupero, finalmente, algo que realmente se aproxima culturalmente da nossa sociedade brasileira, onde o mais relevante seja compartilhar com a família esse debate, onde realmente uma rede de valores e referências possam ser consensuais: Seja doador, fale com a família! 75 RBTI - Revista Brasileira Terapia Intensiva ENSAIO A AMB [Associação Médica Britânica] fará pressão junto ao governo para introduzir um sistema de ‘consentimento presumido’para doação de órgãos, sob o qual os médicos terão permissão para assumir que todos os pacientes estão de acordo a terem seus orgãos removidos após a morte, a menos que eles tenham registrado sua objeção anteriormente 20. Médicos da cidade de Bangalore, sul da Índia, removeram um rim de um homem de 36 anos, surdo e mudo, e transplantaram-no em seu irmão que tinha insuficiência renal em estágio final. À operação seguiuse um debate ético de seis semanas, sobre a retirada de um órgão de um doador incapaz de comunicar-se ou dar consentimento para a operação 21. A decisão para doar é em última instância tomada por membros da família do provável candidato à doação, visto que cerca de metade daqueles que desejam doar não tornam seus desejos conhecidos. Intervenções voltadas para indivíduos em diferentes estágios de envolvimento precisam entender que são as famílias que mais podem responder em concordância com os desejos de seus entes queridos 22. Em geral, então, eu poderia argüir que a questão de responsabilidade corporativa é tão relevante no contexto do sistema de cuidados à saúde estatal quanto no contexto do comércio e indústria privada. As capacidades e limitações morais das organizações são similares tanto para as privadas quanto as públicas [estatais], e o quanto elas são independentes ou partes de um sistema mais amplo 23. 76 RESUMO O tema da doação de órgãos ocupa um espaço que vai além do conhecimento médico. O processo de doação mantém profundas interações com os valores individuais e sociais, implicando, nos seus encaminhamentos, em uma intromissão colonizante nas esferas do “mundo da vida” dos atores sociais – potenciais doadores e familiares. Mesmo o conjunto jurídico, recentemente revisto na legislação brasileira, e os interesses do mercado e da tecnologia, por mais estruturados e vigiados se encontram, não permitem que a comunicação seja filtrada por um espaço público legítimo e as decisões sejam consensualizadas por critérios éticos e racionais. Provocam, sim, um estranhamento dos atores socais com os aparatos da modernidade. Unitermos: Doação de Órgãos; Ética; Sociologia Médica BIBLIOGRAFIA 1. 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