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ARRITMIA
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A SIDA E AS SUAS
METÁFORAS
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KRZYSZTOF WARLIKOWSKI:
ANGELS IN AMERICA entrevista Jean-François Perrier
Angels in America: A Gay Fantasia on National Themes, da autoria do norte-americano
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Tony Kushner, estreou em 1993, depois de três anos em desenvolvimento.
A peça aborda o aparecimento de uma nova doença sem nome, centrada nos efeitos sem precedentes a que ficara sujeita a comunidade homossexual nova-iorquina nos anos oitenta, a par de uma política reformista e conservadora
lançada pelo então Presidente dos Estados Unidos,
Ronald Reagan, estas preocupações ocupavam um
texto tanto reflexivo quanto visionário e onde a
SIDA protagonizava o debate. Ontem como hoje, as
encenações de Angels in America apontam para a
necessidade de pensarmos o modo como a sociedade se ilude e assobia para o lado quando se trata
de enfrentar os mais profundos receios. Em 1994,
no âmbito da programação da Capital Europeia da
Cultura, Lisboa pode ver a primeira parte da peça,
Millenium Approaches, numa encenação de Declan
Donnellan. Este ano, o encenador polaco Krzysztof
Warlikowski, Prémio das Novas Realidades Teatrais
Europeias 2008, estreou no Festival d’Avignon, 17
anos depois, uma versão que, lançando novas pistas
para a compreensão do texto de Kushner, não deixa
de ser atenta aos movimentos nacionalistas que ressurgiram no seu país. Entrevista de Jean-François
Perrier com o encenador e crítica, de Pascal Bély, à
peça que em Maio do próximo ano se apresenta em
Paris, no Thèâtre du Rond-point.
ANGELS IN AMERICA É “UMA PEÇA SOBRE UMA SO-
CIEDADE ONDE OS MARGINAIS SERIAM VISTOS DE MANEIRA DIFERENTE”
Porquê encenar na Polónia e em 2007 uma peça escrita
e ligada aos Estados Unidos dos anos oitenta?
Pelas mesmas razões ligadas a Krum [2005, apresentada no CCB em Maio deste ano], uma peça israelita também mais antiga. Porque acredito que
Angels in America ainda tem impacto hoje em dia.
A SIDA está ainda presente, tal como o pensamento político reaganiano, bem presente
na Europa, apesar do presidente
Reagan já ter morrido.
Encenei há alguns
a n o s
A peça é um díptico. Sente que existem duas peças diferentes ou uma só em duas partes?
Penso que pus em cena uma peça que deve permitir
o estabelecimento um diálogo com o público polaco.
O diálogo em que o seu ponto central tem a ver com o
erro e o perdão. Logo, não faço diferenças entre as duas
peças. Procuro apenas uma maneira de inserir estes
assuntos no universo do público polaco, visto que nunca
foram falados pelo teatro aqui. Assuntos estrangeiros que nunca foram tratados. Existe um teatro gay ou
que fala de temas gay na Polónia, mas está reservado
a pequenas salas ou é feito por companhias independentes. Com Angels in America tudo é diferente, visto
que é um teatro institucional, oficial e reconhecido que
trata da produção da peça e que fala para um público
mais vasto. A primeira peça permite fazer o público
entrar no universo homossexual, para que possa ouvir
e compreender o drama individual das personagens,
antes do drama universal e apocalíptico da história
contada por Tony Kushner. Poderíamos dizer que a primeira parte é a constatação do falhanço da religião e da
família enquanto contextos seguros para os indivíduos.
A segunda peça analisa, de uma maneira perversa, os
resultados desta observação sobre a vida pessoal dos
heróis da peça antes de chegar ao ritual em primeiro da
morte e depois do céu, que poderia surgir como o único
lugar possível para a resolução dos problemas. Esta
peça tem um argumento bem escrito, bem construído
e com bons diálogos. O percurso das personagens está
muito bem delimitado, enquanto que outros momentos
escapam a esta construção, tal como o monólogo do
dirigente comunista, que fala de coisas mais gerais mas
que nós conhecemos enquanto cidadãos de um país de
antigo regime comunista.
Não será a peça um discurso sobre a homossexualidade?
Cleansed
[ Purificados ,
2001] de Sarah Kane,
que é um grito muito radical, muito poético, uma visão
fora do contexto histórico, num tempo muito impreciso, que penso fazer eco
com a peça de Tony Kushner, mesmo estando
socialmente contextualizada, num dado momento.
Os assuntos são conhecidos, mesmo que o grito de
Kane seja muito individual, enquanto que o de Kushner
é mais colectivo.
Mais que sobre a homossexualidade, que está muito
presente, trata-se de uma peça sobre uma sociedade
onde os marginais seriam vistos de maneira diferente.
Já tinha abordado uma vez o tema da marginalidade
com Cleansed, mas os marginais eram vistos como que
fora das leis sociais, um pouco às escondidas, um pouco
monstruosos e pervertidos. Com Angels in America,
eles estão no centro da sociedade capitalista, falam
dos seus desejos de integração, dos seus direitos, do
respeito que reclamam. A Polónia tornou-se capitalista
e aceitou as leis europeias, mas há no quotidiano uma
grande diferença entre a lei e a sua aplicação. Os homossexuais eram estranhamente mais protegidos no
sistema comunista do que nas sociedades ocidentais
liberais da mesma época. Mas o regresso do catolicismo como força política tornou as coisas mais difíceis
para os homossexuais. Havia uma tolerância evidente
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>> que deixou de existir, mesmo se as leis são oficialmente
mais liberais. Hoje em dia, tenho a sensação que estamos a dar passos atrás.
O peso da religião parece-lhe muito presente na
peça?
Sim, com certeza. A religião e o que se lhe liga estão
muito presentes, sobretudo na segunda parte da peça.
A cena onde o mórmon praticante, facilmente identificável como católico praticante, diz à sua mãe que é homossexual, é sem dúvida a mais perturbante
para o público, no sentido em que se
torna numa cena muito política. O coming out é um verdadeiro problema para milhares
de jovens polacos na Polónia,
assim como para os “oficiais”.
O monólogo inaugural do rabino, onde ele fala da família
como base da sociedade que
se desmorona, aproxima-se
muito do que ouvimos das
entidades religiosas aqui.
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Acha que a sociedade polaca
está actualmente próxima de
um certo reaganismo?
Desde que nos tornámos capitalistas, muito certamente. Não
somos estranhos à selvajaria
de uma América onde alguns,
entre os mais ricos, chegam ao
poder para dizer tudo e mais alguma coisa, particularmente que sem a
religião vamos direitos ao apo-calipse.
A peça não permite, justamente, uma passagem do íntimo para o político?
A peça começa com uma análise de uma sociedade perturbada pelo surgimento da doença e da morte através
da epidemia de SIDA. Mas passa rapidamente para um
olhar mais pessoal sobre as aventuras das personagens
em crise com elas próprias. Põem em causa o que a
religião as ensinou, colocam-se perguntas sobre o futuro da vida política. A visão é mais introspectiva do que
social ou política, mesmo se as duas se misturam. O objectivo do meu trabalho, e que já era assim com Krum, é
falar sobre a aceitação do que somos verdadeiramente.
É necessário abordar com alguma suavidade os problemas de auto-reconhecimento. É preciso recusar o medo
e a mentira.
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Quando Tony Kushner fala da vida de casal, trata-se de
tanto de homossexuais como heterossexuais?
Fala sobretudo de maneira a pô-los em pé de igualdade,
o que é surpreendente e chocante. Sobretudo porque os
dois casais têm problemas violentos, a SIDA para um e a
mentira do marido para o outro. A progressão dramática
leva-nos até ao descobrimento da mentira que destrói
o casal heterossexual. Paralelamente, o casal homossexual também se separa. Há, portanto, uma série de
situações que não parecem ter saída. Os problemas que
as novas gerações polacas devem afrontar, e não só as
polacas, estão no centro do espectáculo: a religião, a
família, a escolha sexual.
O peso da família ainda é importante na Polónia?
Estranhamente, poderia parecer que a família
fosse um poder de
opressão mas pergunto-me se não será mais
assim na cabeça dos indivíduos do que na realidade. É preciso fazer a
diferença entre Varsóvia e
o resto da Polónia, claro,
porque há muitos mais
solteiros na capital e o
problema do casal e do
casamento coloca-se de
maneira diferente. Mas
Angels in America coloca
seguramente a questão
do casal num lugar muito
perturbante para a nossa
sociedade polaca.
De que maneira tratou o problema do
anjo, dos anjos que estão no centro da peça?
Tony Kushner não foi muito longe na sua análise do
“Céu”. O anjo é aqui apresentado como uma criatura em
desgraça, como qualquer indivíduo em terra. Poderíamos, assim, entrar pelo grotesco, o que não me conviria
em nada. Decidi colocar em cena uma mulher mas muito hermafrodita, de uma beleza tal que se torna quase
inumana. Construí a personagem à volta de frases que
Kushner lhe faz dizer: “nós somos feitos para amar”,
incluído num sentido de copulação eterna e universal.
Parece que é enquanto que o anjo faz passar o Homem
pela morte que ele lhe dá a vida. Mas não tenho certezas
quanto a esta análise.
Tony Kushner deu permissão para cortar a sua peça.
Alguma vez a utilizou?
Quis guardar o essencial do texto e eliminar o que me
parecia digressivo, o que nos afastava do percurso das
personagens, do que nos poderia pôr de lado. Sou terrivelmente fiel aos eixos essenciais da peça, não os
traio, concentro-os. Apenas modifiquei, na verdade, o
epílogo, acrescentando-lhe quatro linhas.
A forma dramatúrgica da peça traduz-se muitas vezes
num grande realismo. Optou por conservá-lo?
O meu trabalho consiste sempre em privilegiar o texto
mais do que as situações, apoiando-me na presença
dos actores e dos seus corpos. Tento sempre encontrar
os meios que o teatro nos oferece para evitar o realismo, apesar de fazer perceber o que está em jogo em
cada situação. Há imagens em que a sua violência se
torna maior do que a prática efectiva desta mesma.
Essa é a força do teatro. Dois homens que se encontram na procura do amor, da pessoa com quem partilharão a vida, podem dizê-lo perante os microfones do
teatro, sem se sentirem obrigados a encontrarem-se
na mesma cama. É preciso fazer ouvir o que passa pela
cabeça deles, a força dos seus desejos. Por vezes confronto duas cenas separadas ao colocá-las lado a lado
para que se perceba bem o paralelismo das situações.
A confrontação pode ser mais forte quando há simultaneidade.
Entrevista publicada no programa da peça aquando da
estreia no Festival d’Avignon.
Tradução do francês: Francisco Valente
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