João Paulo Guerra Diz Que é Uma Espécie de Democracia A SECRETA IDENTIDADE DOS DIAS Fecho a leitura deste livro e recupera-se-me, na memória, a relação da História com o quotidiano, que faz de um texto a representação da época. Nunca é certo o que se vê, nunca é rigoroso o que se diz porque o fenómeno do visto e dito obedece às estruturas da interpretação. João Paulo Guerra, sobre ser um dos grandes jornalistas portugueses actuais, possui o inato talento de concentrar, comprimir, seleccionar a concepção das descrições. Em meia dúzia de linhas fornece-nos os escassos pontos e os reduzidos aspectos da «realidade», tal como ele a interpreta, e tomando este conceito com todas as precauções devidas. Porém, interpreta a «realidade» sem cair na tentação de emitir juízos afastados da confrontação entre o texto e o leitor. Quer-se dizer: o autor propõe, a quem o lê, uma cumplicidade moral, uma responsabilidade ética e uma prática estética. Não lhe «faz a cabeça»; mas sedu-lo com um estilo admirável, um pensamento livre e a exposição de um mundo pessoalíssimo. Revela, enfim, a secreta identidade dos dias. Eis o que distingue um escritor de um «autor», um jornalista de um gravador de frases. 7 prefácio Percebe-se o gozo de João Paulo Guerra no trabalhar das palavras, no modelar da frase e no lançar a locução com melodia, esmero – e sarcasmo. Como os grandes moralistas do século XIX, ele sabe que teoria e desfrute, crítica e combate pertencem à disciplina do escárnio – que advoga a liberdade em norma absoluta. O tirano, o poderoso, o democrata instantâneo como o pudim flan, o filisteu, o oportunista detestam, perseguem, ameaçam todos aqueles que falam do seu egocentrismo, da sua soberba, da sua pequenez, das suas ignorâncias e das suas cobardias. Ao longo dos anos, Guerra sentiu a pressão, percebeu os velados avisos, fez-se de surdo e transformou «Coluna Vertebral», comentário quotidiano, publicado no Diário Económico, numa peça jornalística e literária fundamental para desvelar o que se oculta por detrás dos factos. Evidentemente, o autor possui uma pessoal «visão do mundo», o modo particular de examinar e caracterizar a época que lhe coube viver, e sem o qual a utilização da ironia seria inútil. Nenhuma destas pequenas crónicas pretende demonstrar os mecanismos económicos que movem a sociedade, mas, subjacente, nelas residem os antagonismos de classe, os erros do sistema que nos inculcaram como insuperáveis. Temos de entender o significado das palavras, as quais propõem conceitos de mundo, de comunicação dos saberes e de relação com os outros. Diz que é uma espécie de democracia sugere, desde logo, uma crítica extraída da experiência histórica que vivemos nos últimos trinta e cinco anos. E João Paulo Guerra, ao analisar os dias e as contradições políticas e ideológicas, procede à distinção entre os manipuladores de símbolos e o espaço que eles ocupam na sociedade de informação. 8 diz que é uma espécie de democracia A ironia dissimula, sempre, um discreto desencanto. O autor pertence a uma geração (a uma grande geração, diga-se) que se envolveu nas lutas do seu tempo sem nada pedir em troca que não fosse a alteração das estruturas sociais e das mentalidades. Renovar, constantemente, os aspectos das indignações, e integrá-los numa maior aspiração ao bem-comum parecia um sonho desmesurado – mas estava à altura dos sonhos do homem. João Paulo Guerra diz-nos, com a subtileza de quem não deseja proclamar, mas sim sugerir as nossas reflexões – diz-nos que, quando aprendíamos a viver «democraticamente», a normalização restabeleceu os velhos princípios da autoridade. Fecho a leitura deste livro com a alegria do leitor feliz. Aquele que entende o texto como uma interpelação à inteligência; um texto que não agride a nossa disponibilidade, e através do qual o autor estabelece, com o leitor, uma associação de ideias baseada neste simples pergunta: em que momento um indivíduo se transforma em cidadão? Não peçam a João Paulo Guerra a cobardia da neutralidade, a passividade da escrita, a preguiça fatal da «independência.» Quando se usam as palavras toma-se partido. A cada um a sua verdade. Mas a cada um, também, a sua responsabilidade. Baptista-Bastos 11 de Fevereiro de 2009 9 APRESENTAÇÃO Vai para 10 anos que a direcção do Diário Económico, jornal em que desempenhei sucessivas funções redactoriais, me desafiou a escrever diariamente uma pequena coluna crítica de observação da realidade do País. Aceitei a proposta, chamei-lhe «Coluna Vertebral», e aqui estou agora, dez anos depois, a responder a outro desafio. A convite da Oficina do Livro, seleccionei entre os três milhões de caracteres das 1920 crónicas escritas até final de Dezembro de 2008 os textos que dessem uma panorâmica razoável dos últimos 10 anos da vida do País. E aqui está reunida, neste livro, uma amostragem seleccionada e revista dos episódios e personagens da comédia política portuguesa, reavivados na memória pela leitura de crónicas escritas, ao correr dos dias, em cima dos acontecimentos. A «Coluna Vertebral» publica-se há quatro governos, durante os quais a alternância se precipitou em consequência da qualidade da democracia, ou da falta dela. Lendo a sucessão das crónicas seleccionadas, percorre-se a via-sacra que tem 11 joão paulo guerra constituído a penitência dos portugueses. Vindos do «oásis», atravessaram o «pântano», de onde saíram «de tanga», e chegaram ao «circo». E depois de tudo isto, etc. Bem pedi eu ao Pai Natal, logo no primeiro ano de publicação da Coluna, que pusesse no sapatinho dos portugueses «a qualidade da democracia». Naquele dia o Pai Natal não terá lido o Diário Económico ou, pelo menos, a «Coluna Vertebral». Dir-me-ão que não faz sentido acreditar no Pai Natal. Mas a verdade é que os eleitores acreditam em virtualidades tão pouco ou menos prováveis e confiáveis. Para além disso, o nonsense faz todo o sentido quando se trata do quotidiano político português. Dia a dia, observando a matéria passível de ser criticada no espaço condensado de 1700 caracteres, penso, duvido, interrogo-me, procuro ver o outro lado, frequentemente divirto-me com o ridículo dos folhetins nacionais e, depois, escrevo. Sempre com absoluta liberdade de expressão – honra seja feita às direcções do Diário Económico que há 10 anos iniciaram, têm mantido e continuam a manter a publicação em condições de independência e livre de pressões. A selecção de crónicas da «Coluna Vertebral» aqui está, ordenada cronologicamente e organizada em quatro capítulos que correspondem a outros tantos governos. Queiram fazer o favor de ler, de recordar, eventualmente de se divertirem e de pensarem na vida. J.P.G. 12 PÂNTANO (Outubro de 1999 a Março de 2002) O filme dos acontecimentos em Portugal é uma comédia dramática de baixo nível. Mas os efeitos especiais e a maquilhagem são candidatos ao Óscar. 24 Agosto 2000 O primeiro-ministro anunciou que «não vai virar à esquerda nem à direita». Será que o primeiro-ministro tem a direcção bloqueada? Ou o chassis empenado? 4 de Abril 2001 TRÊS TRISTES EFES Portugal está no seu melhor. Os pastorinhos de Fátima foram convocados para a legião dos sub-21 da Corte Celeste. O futebol português conquistou a maioria absoluta na UEFA. Amália viverá para sempre por despacho da Câmara de Lisboa. É certo que se mantém o segredo de Fátima quanto às causas e às circunstâncias da morte dos pastorinhos. É verdade que o futebol português, para lá dos êxitos desportivos da Selecção, continua a ser um enredo siciliano com padrinhos e afilhados. Pode também acontecer que o merecido repouso eterno de Amália fique suspenso do apuramento de eventuais contribuições da Diva para a «caixa» do PCP. Mas, afinal, o que importa? O Reino dos Céus, onde a Língua Portuguesa vai ter uma maior expressão, poderá vir a fazer parte da CPLP. A bola é redonda e mesmo que Portugal não chame um Figo ao Euro 2000 já está apurado para o de 2004. O Fado é que educa e nem sequer reclama que lhe paguem propinas. 15 joão paulo guerra Perante tudo isto, francamente, o que importa que o engenheiro Guterres não tenha chegado à maioria absoluta, a qual, aliás, como muito bem sabemos, se confunde com a democracia relativa? Claro que a maioria parlamentar ficará assim refém de compromissos que poderão representar, no imediato, encargos orçamentais suplementares com novos jobs para mais boys e, no futuro, uma indigestão de sapos vivos. Mas, afinal, o que importa se Fátima, o Fado e o Futebol se ergueram de novo como pilares da Pátria e desígnios da Nação? 18 Outubro 1999 PERGUNTAS AO GOVERNO Se Maria de Belém é ministra para a Igualdade, Fernando Gomes, na tutela do Desporto ou das Autarquias, vai ser um ministro para a Desigualdade? E Jorge Coelho, nas Obras Públicas, será mais pela Igualdade e menos pelo Aparelho? É por essa razão que ocupa o 3º lugar no Governo, sendo o número 2 do Partido? E que dizer da ideia de colocar o pelouro do Desporto à sombra da Administração Interna? É o reconhecimento de que o futebol é um caso de polícia? Com o 2004 à vista não seria de juntar o Desporto às Obras Públicas? E porque não aos Negócios Estrangeiros? O Planeamento para Elisa Ferreira, a par do Ordenamento para José Sócrates, coloca no horizonte mais um episódio da «Guerra das Rosas»? Poderá Sócrates, em tais condições, manter o bom Ambiente? 16 diz que é uma espécie de democracia E quem condenou Arcanjo ao inferno da Saúde? O Governo espera por algum milagre com as contas do SNS? Se o ex-bastonário da Ordem dos Advogados foi para ministro da Defesa, porque não mandar para a Justiça o general Espírito Santo? Por essa lógica, para as Finanças teria que ser nomeado o general Totta & Açores? E António Guterres vai manter-se como homem de diálogo, empunhando Vara a ministro-adjunto e Canas a secretário de Estado? Alberto Martins, na Reforma do Estado, significa que se reformou do Parlamento? E a extinção do cargo de ministro dos Assuntos Parlamentares significa que, com um empate no hemiciclo, os casos em dúvida vão ser resolvidos por pontapés da marca de grande penalidade? 22 Outubro 1999 RECURSÓRIOS PROTELANTES Os juízes do Tribunal de Instrução Criminal (TIC) de Lisboa estão «tensos» e «perplexos», garantia a agência Lusa em despacho de ontem à tarde. Tudo por causa de um ofício do gabinete do Procurador-Geral da República ao Conselho Superior de Magistratura sobre processos em atraso, sem movimentação, que correm o risco de prescrever. Perplexos e tensos, os magistrados judiciais do TIC pediram e terão recebido já a solidariedade dos próprios magistrados do Ministério Público, uma estrutura hierarquizada no topo da qual está o próprio PGR, autor das razões de perplexidade e tensão entre os juízes. 17 joão paulo guerra À mesma hora, noutro ponto da cidade, dizia ontem o presidente do Supremo Tribunal de Justiça, Cardona Ferreira, que há que «expurgar burocracias, fases protelantes, excessos recursórios e assumir que garantismos são inimigos de garantias». Pois! E acrescentava que os juízes devem estar «na primeira linha contra a morosidade da Justiça». Pois, pois! Vejamos: após o aviso do gabinete do PGR sobre processos em risco de prescrever, o Conselho Permanente do Conselho Superior de Magistratura retribuiu o ofício a Cunha Rodrigues, pedindo, por sua vez «a concretização da informação», com indicação dos juízes, prazos e processos relativos à situação «genericamente relatada». Mais: o CSM pedia ainda que todos os juízes do TIC tomassem conhecimento dessa informação, «confidencialmente», e respondessem um por um, também «confidencialmente». Tudo isto – pedia o CSM – «com urgência». Tenho cá um palpite que os processos a que alude a PGR vão mesmo prescrever. 19 Novembro 1999 EXAME PRÉVIO Duas cadeias de hipermercados recusaram-se a colocar à venda um livro do escritor brasileiro João Ubaldo Ribeiro, invocando razões de «moral pública». Quando Portugal vivia em ditadura, a polícia do pensamento, das mentalidades e dos costumes estava entregue aos cuidados da PIDE, da Censura, que impediam a priori, ou apreendiam a posteriori, a publicação e difusão de livros que a «moral» do regime dos Ballet Rose dizia 18 diz que é uma espécie de democracia que condenava. Agora, é a vez de dois hipermercados se arrogarem o direito de zelar por padrões de «moral pública» que consideram o erotismo como obra do Diabo. Só nos faltava mais esta, neste pequeno e tão original país. Em Portugal até o capitalismo é diferente. Em vez da lei da oferta e da procura temos a lei da rolha e a regulação do mercado submete-se ao prontuário da moral beata e puritana. O passo seguinte deverá ser o dos escritores e editores, antes de lançarem uma obra, terem de passar pelos censores da caixa do hipermercado, para ver se os critérios de «moral pública» inscritos nos códigos de barras não fazem disparar o sinal de alarme. 29 Novembro 1999 NARCISO & NARCISO Narciso Miranda, na qualidade de secretário de Estado da Administração Marítima e Portuária, visitou o concelho de Matosinhos, de cuja Câmara Municipal foi eleito presidente, estando actualmente na modalidade de «mandato suspenso». Mas o secretário de Estado fez questão de reafirmar: «Eu sou o presidente da Câmara de Matosinhos!», acrescentando: «Só tenho é o mandato suspenso». Isto, por ter sido chamado a Lisboa para fazer parte do Governo, como veio nos jornais. E o que foi fazer Narciso Miranda Secretário ao concelho de Narciso Miranda Presidente? Nada mais, nada menos, que apresentar a construção, como secretário de Estado, de uma obra que tinha prometido, como presidente da Câmara! Narciso Secretário foi recebido como se fosse Narciso Presidente, ou seja, ele próprio. Deu abraços aos pescadores e beijos 19 joão paulo guerra às peixeiras que o trataram por «Presidente da Câmara», certamente por não terem lido os jornais. Mas o próprio vereador que substitui Narciso Miranda durante o seu impedimento o tratou por «Presidente», numa demonstração de grande humildade socialista. A obra que Narciso Secretário foi apresentar ao concelho de onde é Narciso Presidente é para o próximo século. Ou seja: Narciso Presidente ainda acaba por lançar a primeira pedra da obra agora apresentada por Narciso Secretário!!! E para inaugurar a obra, nada melhor que Narciso Finalmente Ministro!!!!! 13 Dezembro 1999 CARTA AO PAI NATAL Querido Pai Natal: Para este Natal de fim de século, venho pedir-te que me garantas condições para a minha valorização como pessoa, apoio à família e prevenção de fracturas sociais. Não entendes? Eu explico. O que eu quero é um sistema de saúde mais eficiente e de qualidade reconhecida, com acesso à saúde em condições de equidade social, de eficiência e de qualidade reconhecida. Para os meus filhos, peço-te uma educação com novos meios e outras ambições, criando oportunidades de educação e valorização profissional, promovendo emprego de qualidade. Para o conjunto da família, quero garantido o acesso à habitação e conciliada a vida familiar com a profissional, com igualdade de oportunidades, melhores níveis de direitos sociais e uma nova protecção social. 20