Nelson Boeira Faedrich e a Revolução na Arte do Cartaz Nelson Boeira Faedrich and the Revolution in Poster Graphic Art Ramos, Paula Viviane; Dr.; Universidade Federal do Rio Grande do Sul [email protected] Resumo O texto apresenta e discute a produção em cartaz do artista gráfico sul-riograndense Nelson Boeira Faedrich (1912-1994), que se tornou reconhecido no cenário local e nacional como ilustrador da legendária “Secção de Desenho” da antiga Editora Globo. Além de trabalhar como ilustrador, Faedrich assumiu outras demandas, criando rótulos, anúncios publicitários e cenários para festas, além de ter sido um dos mais requisitados cartazistas da primeira metade do século passado. Assumiu, portanto, o papel de designer gráfico, numa época em que esta expressão nem ao menos fazia parte do vocabulário corrente. O artigo descortina um pouco da obra e da trajetória de Faedrich, com foco em sua produção como cartazista. Palavras-Chave: Nelson Boeira Faedrich; Editora Globo; arte do cartaz. Abstract This paper presents and discusses the poster production of the south-Brazilian graphic artist Nelson Boeira Faedrich (1912-1994), who became recognized in the local and national scenes as an illustrator, working in the legendary “Secção de Desenho” (drawing session) of the former Editora Globo. Besides working as an illustrator, Faedrich took other demands, creating labels, logos, and settings for parties, as well as becoming one of the most requested poster artists of the first half of the twentieth century. He assumed the role of graphic designer at a time when this term was not even part of everyday vocabulary. This article reveals some of the work and the trajectory of Faedrich, focusing on his output as a poster designer. Key-Words: Nelson Boeira Faedrich; Editora Globo; poster graphic art. Nelson Boeira Faedrich e a Revolução na Arte do Cartaz “Secção de Desenho” da Editora Globo: aprendizado e visibilidade O nome de Nelson Boeira Faedrich (1912-1994) 1 está umbilicalmente ligado à história de uma das mais importantes experiências gráficas e editoriais brasileiras de todos os tempos: a Livraria e Editora Globo. Nascida em 1883 como uma modesta papelaria junto à Rua da Praia, em Porto Alegre, a Globo se transformou, entre as décadas de 1930 e 1950, na segunda maior casa editora do país (Miceli, 2001; Torresini, 1999). Seus títulos tinham circulação nacional e muitos foram os responsáveis pelo conhecimento que os brasileiros passaram a ter de autores fundamentais da literatura universal, pela primeira vez acessíveis em língua portuguesa. Virginia Woolf, Thomas Mann, Marcel Proust e Aldous Huxley tiveram suas obras traduzidas por intelectuais do porte de Mario Quintana, Herbert Caro e Erico Verissimo, que mourejavam, em regime de trabalho como qualquer outro, na chamada “Secção Tradução”, algo inédito entre as editoras nacionais. Mas uma boa tradução não era o bastante para cativar o provável leitor. Eram necessárias imagens atraentes, cores chamativas, um tratamento gráfico diferenciado. E este aspecto, que igualmente distinguia as publicações da Globo, ficava a cargo da “Secção de Desenho”, o que hoje poderíamos chamar de Departamento de Design Gráfico. Durante décadas a “Secção de Desenho” teve no alemão Ernst Zeuner (1898-1967) o seu dirigente e figura principal (Gomes, L., 2001). Formado pela Academia de Artes Gráficas de Leipzig, na Alemanha, um dos principais centros de estudo em artes gráficas da época, Zeuner foi aluno ouvinte de Walter Tiemann (1876-1951), também professor de Jan Tschichold (1902-1974), um dos nomes mais importantes do design gráfico internacional, autor do clássico Die Neue Typographie (1928). Zeuner chegou ao Brasil em 1922, fixando-se em Porto Alegre, cidade com forte presença teuta. Na capital gaúcha, foi contratado como “gráfico” junto à Livraria do Globo. Provavelmente foram os seus conhecimentos diferenciados e atualizados no assunto que o levaram a assumir a gerência da “Secção de Desenho”. O setor foi criado em 1929, devido ao surgimento do quinzenário Revista do Globo (1929-1967) e diante da expectativa de um aumento considerável da demanda de impressos. Segundo Leonardo Menna Barreto Gomes, coube a Zeuner, desde o princípio, atuar como mestre, ensinando aos artistas ilustradores e aos jovens aprendizes a “cozinha da gráfica”: [...] No modelo de trabalho industrial vigente, segmentado desde o século XIX, os artesãos separavam-se por especialidades. Os tipógrafos, por exemplo, respondiam pela composição dos textos, enquanto os impressores cuidavam da qualidade gráfica da mancha obtida do prelo. Do mesmo modo, os ilustradores davam conta, sobretudo, do desenho das imagens a serem impressas, enquanto os gravadores respondiam pela preparação das matrizes de impressão. Coube a Zeuner, então, ensinar aos artistas candidatos à Seção de Desenho os fundamentos da arte da impressão e da produção do livro, tal como aprendera em Leipzig, buscando integrar as habilidades da criação artística aos conhecimentos técnicos exigidos pela reprodução mecânica. (Gomes, L., 2005, p. 249) Na época, já trabalhavam para a Globo artistas como João Fahrion (1898-1970) e João Faria Viana (1905-1975). A formação de ambos, como muitos dos primeiros “designers gráficos” brasileiros, era ou autodidata, ou relacionada aos cursos de “Belas Artes” (Cardoso, 2005). Em 1929, ingressa na “Secção” o novato Edgar Koetz (1914-1969), que ali ficou até 1 Nelson Boeira Faedrich nasceu em Porto Alegre no dia 2 de janeiro de 1912, vindo a falecer no dia 4 de junho de 1994. Era o filho mais velho do dentista prático Carlos Faedrich e de Helena Boeira, da tradicional e prestigiada família Boeira, dona do bazar homônimo que ficava no centro da capital rio-grandense. 9º Congresso Brasileiro de Pesquisa e Desenvolvimento em Design Nelson Boeira Faedrich e a Revolução na Arte do Cartaz 1945. Outros nomes significativos, como Sotero Cosme (1901-1978) e Francis Pelichek (1896-1937), conhecidos dos leitores de revistas e de jornais sulinos da época, também foram colaboradores assíduos da editora, bem como, a partir de meados da década de 1930, o foi o jovem Nelson Boeira Faedrich, personagem do presente texto e que trabalhou na Livraria e Editora Globo durante duas fases: de 1932 a 1939 e de 1944 a 1947 (Ramos, 2007). Pelichek, Cosme e Faedrich, entretanto, não tinham vínculo empregatício com a instituição, confeccionando trabalhos sob encomenda, assim como fizeram vários ilustradores 2 ao longo dos anos. Mais tarde, outros desenhistas e aprendizes foram integrados à equipe, como Vitório Gheno (1925) e Gastão Hofstaetter (1917-1986). Esses profissionais criavam não apenas as capas, ilustrações, capitulares e vinhetas de livros e revistas, como também anúncios publicitários, cartazes e tudo o mais que houvesse de demanda em se tratando de desenho e de projeto gráfico. Um fato importantíssimo é que, por necessitarem da máquina para reproduzir seus trabalhos, eles estão entre os primeiros artistas sul-rio-grandenses a utilizar os processos mecânicos de reprodução de imagens, o que os obrigou à renovação e ao aperfeiçoamento técnico constantes. O resultado, nas imagens, é que elas igualmente exalam jovialidade e modernidade, não encontradas nas imagens do período, sobretudo na produção pictórica (Kern, 1981; Scarinci, 1982; Ramos, 2007). É necessário comentar que muitos desses citados ilustradores tiveram na “Secção de Desenho” uma espécie de curso completo de artes gráficas e ilustração, e talvez o caso mais notório seja o de Edgar Koetz, que iniciou na Globo com apenas 15 anos, vindo a se tornar premiado e requisitado ilustrador não apenas no Brasil, mas na Argentina, onde viveu de 1945 a 1950. Esta fase da “Secção”, que toma impulso no início dos anos 30, prolongando-se até o final dos 50, foi particularmente valiosa para o ensino e a renovação das artes visuais no Rio Grande do Sul, e também para a formação de uma nova mentalidade, que passaria a valorizar progressivamente as artes aplicadas, bem como os profissionais envolvidos na sua execução. Nelson Boeira Faedrich, de formação autodidata, também soube, quando do contato com Ernst Zeuner e os profissionais da “Secção de Desenho”, explorar as possibilidades de aprendizado oferecidas. Ali aprendeu a executar litografias em zinco e a explorar os contrastes e a complementaridade entre as cores. Igualmente aproveitou, desde o princípio, para divulgar seu trabalho, publicando desenhos nos veículos da editora sulina e fazendo com que eles ganhassem circulação nacional. Apenas para a Revista do Globo, um dos mais importantes magazines brasileiros daqueles tempos, Faedrich assinou 26 capas ao longo dos dez primeiros anos da publicação (1929-1939). 3 Mais que ele, só Koetz, com 33 imagens, e o líder absoluto em produção, João Fahrion, com 48 das 267 capas dentro do período assinalado. 4 Além das capas para a Revista do Globo, Faedrich encontrou nos livros ilustrados um campo fértil para sua imaginação, tendo seu nome ligado a algumas das maiores obras-primas da ilustração brasileira de todos os tempos, como Lendas do Sul (1953, edição da Martins Fontes; 1974, com selo da Globo), Contos Gauchescos (1983) e Contos de Andersen (1960), títulos nos quais demonstrou suas múltiplas facetas e qualidades como desenhista. 5 2 Entre os colaboradores eventuais da editora, estavam nomes como Carlos Scliar (1920-2001) que, ainda adolescente, no final dos anos 1930, já publicava desenhos na Revista do Globo. Estavam também Vasco Prado (1914-1998), Glênio Bianchetti (1928) e Clara Pechansky (1935), entre outros. 3 É nesse período, entre 1929-1939, que encontramos capas ilustradas na Revista do Globo. A partir de 1940, sob a coordenação editorial de Justino Martins, a revista passa a adotar, preponderantemente, a fotografia. 4 Outros capistas com produção expressiva foram: Benjamin Cole Coutinho (que indicava, abaixo da assinatura, sua procedência: Santana do Livramento): 10; Francis Pelichek: 7; Gastão Hostaetter: 5; Gregorius [Ernst Zeuner?]: 3; Júlio Costa: 3; Reinaldo Blauth: 3; e Fernando Corona: 2. 5 Especificamente sobre os trabalhos em ilustração de Faedrich, ver: Ramos, 2007; Ramos, 2009. 9º Congresso Brasileiro de Pesquisa e Desenvolvimento em Design Nelson Boeira Faedrich e a Revolução na Arte do Cartaz Figura 1: Ilustrações para Lendas do Sul (1953) e Contos Gauchescos (1983) Nas imagens para esses livros, ao mesmo tempo em que explorou ora a linguagem do pontilhismo, ora a linha suave e plena, ora tão somente hachuras e, em outros tantos momentos, a surpreendente técnica do scratchboard 6, ele também conseguiu demonstrar o desenvolvimento de um estilo próprio. E isso apesar das portentosas influências que poderia ter assimilado, a começar pelo trabalho do tio, o grande pintor impressionista Oscar Boeira (1883-1943), sua “primeira grande escola”. Quando menino, Nelson o acompanhava em incursões pelas cercanias de Porto Alegre, onde o tio se retirava para pintar paisagens. Ao que tudo indica, porém, o sobrinho soube tirar daquele contato o aprendizado de procedimentos técnicos, e não a apropriação de uma linguagem; esta, ele só desenvolveu depois, e evidentemente não sem outras influências, sendo as mais notórias as dos ilustradores Aubrey Beardsley (1872-1898) e Will Bradley (1868-1962), reconhecidamente marcados pela estética art nouveau e pela exploração de efeitos lineares e dinâmicos. Um jovem e talentoso ilustrador e cartazista A conquista de uma identidade para seu trabalho plástico foi percebida e comentada por Angelo Guido, então o mais influente crítico de arte no Rio Grande do Sul que, em 1948, assim escreveu, resgatando, inclusive, o início da trajetória de Faedrich: Foi em 1935, no Pavilhão Cultural da Exposição Farroupilha, que Nelson Boeira Faedrich apresentou pela primeira vez à apreciação pública uma série de seus desenhos e ilustrações. Na mesma sala figuravam, com os trabalhos de outros expositores novos, alguns belos e sugestivos desenhos de Sotero Cosme e, em sala vizinha, surpreendiam o visitante, pelo encanto do colorido e o conteúdo de lirismo pictórico, diversos admiráveis quadros de Oscar Boeira. Faedrich começou a aparecer como ilustrador precisamente quando Sotero Cosme afirmava em Porto Alegre seu nome brilhante no mesmo gênero artístico, no qual experimentara novos 6 Este processo, hoje praticamente alijado das técnicas de ilustração, parte de uma base em papel preparada com uma fina camada de gesso e coberta, pelo desenhista, com nanquim. Com um estilete, o artista, depois de traçar o desenho a lápis sobre o nanquim seco, raspa a camada de nanquim de acordo com o que quer salientar, a figura ou o fundo, deixando aparecer o branco do gesso. A imagem resulta num interessante efeito produzido pela quantidade de pontos mais ou menos raspados pelo desenhista. 9º Congresso Brasileiro de Pesquisa e Desenvolvimento em Design Nelson Boeira Faedrich e a Revolução na Arte do Cartaz processos e encontrara na linha estranha e sutilíssima subjetividade expressiva. Poder-se-ia supor que Nelson, entre a projeção que iam tendo os desenhos de Sotero e o fascínio exercido pela pintura do mestre Oscar Boeira, não resistisse à influência de um ou de outro, senão a de ambos. [...] Entretanto, já naqueles primeiros desenhos que mostrava na Exposição Farroupilha, notava-se, evidente, a procura do que poderíamos definir como o ritmo musical da linha e um modo bem pessoal de compor e movimentar a figura. 7 Faedrich participou triplamente das comemorações do Centenário Farroupilha (1935). Além de expor desenhos, projetou a capa do catálogo e um dos cartazes de divulgação do evento. No catálogo, temos a representação de um gaúcho altaneiro, que segura com a mão direita a bandeira do Estado, voltando o olhar para o canto superior. A diagonal que cruza a página é salientada pelas cores da bandeira, pelo olhar do personagem e pelo movimento do lenço junto ao pescoço. Na parte inferior, a indicação “Catálogo Geral” aparece em letras desenhadas à mão, geometrizadas e sem serifa. É notória, aqui, a referência à estética do Construtivismo Russo de viés figurativo, como podemos observar abaixo, na comparação com um trabalho de Valentina Kulagina. Em ambos há estilização e geometrização da figura, que desponta altiva e vitoriosa; em ambos há a linha diagonal, dando dinamicidade à composição; em ambos há a adoção da tipografia grotesca. Figura 2: Cartaz de Valentina Kulagina (1931) e Catálogo de Faedrich para a Exposição Farroupilha (1935) Também o cartaz para o Centenário Farroupilha enfatiza o mito do gaúcho como bravo e heróico guerreiro. Na parte inferior, vemos estranhas figuras em perfil: podemos identificar algumas cabeças de gado, peões conduzindo os animais sobre os seus cavalos e até mesmo embarcações fluviais... Através deste detalhe, Faedrich remete a uma das passagens mais dramáticas da história dos farrapos, quando eles, planejando chegar a Laguna (SC), decidem arrastar um barco por terra, ao longo de vários quilômetros, até o litoral. Nas partes central e superior do cartaz, como se estivessem cavalgando pelos ares, prontos a guerrear, representações apoteóticas das três principais raças formadoras do povo gaúcho: o negro, o 7 Excerto de uma crítica escrita por Angelo Guido em 1948 e publicada em reportagem de Antônio Hohlfeldt. In: HOHLFELDT, Antonio. Nelson Boeira Faedrich: O Traço leve, o Fluir do Braço, a Linha. Correio do Povo. 11 set. 1971. Caderno de Sábado, p. 7-10. 9º Congresso Brasileiro de Pesquisa e Desenvolvimento em Design Nelson Boeira Faedrich e a Revolução na Arte do Cartaz branco e o índio, todos lutando de modo ufanista pelo mesmo ideal. E, finalmente, no canto superior esquerdo, como a não deixar dúvidas, a data da Revolução Farroupilha: 1835. Figura 3: Cartazes para Exposição Farroupilha (1935) e para o Bicentenário de Porto Alegre (1941) Construção igualmente enaltecedora domina o pôster comemorativo ao Bicentenário de Porto Alegre, com o qual Faedrich obteve o 1º lugar em concurso organizado pela municipalidade. O impresso concentra a força expressiva em uma única figura humana, que corporifica a essência do que se queria reproduzir do gaúcho: o célebre e corajoso soldado sobre o seu cavalo bravio. Os elementos incluídos na parte inferior – a pá para construção, a espada e, emergindo da área mais escura, o grande edifício – enfatizam o aspecto de luta e de construção, bem como a ligação entre o passado e o presente, salientados também no slogan: De ontem para hoje 200 anos de luta. A estrutura dessas peças gráficas dialoga com outros trabalhos de Faedrich dos anos 1930-40, todos com marcante influência dos cartazes russos e europeus, principalmente os de origem alemã, assinados por nomes como Ludwig Hohlwein (1874-1949) e Franz Würbel. Faedrich, como outros profissionais ligados à Editora Globo, conhecia os trabalhos desses designers graças à revista Gebrauchsgraphik (atual Novum), que Ernst Zeuner fazia circular pela “Secção de Desenho”. Acerca disso, o publicitário Armando Kuwer (1929-2001) nos diz: A Gebrauchs percorria o Desenho [a Seção] e todo mundo olhava as idéias que apareciam nas suas páginas. Certos letreiros novos que estavam na revista, Zeuner pedia que copiássemos, como exercício ou para formar um título para um trabalho. (in: GOMES, L., 2001, p. 140) Era, portanto, por meio de publicações como a alemã Gebrauchsgraphik e a francesa Les Arts et les Techniques Graphiques que os padrões tipográficos e visuais propostos pela Bauhaus, pelo De Stijl, e os divulgados pelo Construtivismo Russo chegavam aos profissionais orientados por Zeuner, o que demonstra o papel imprescindível desses impressos na modernização das práticas gráficas e artísticas locais. Podemos perceber tais relações em várias capas de livros editados pela Globo, principalmente nas chamadas “capas tipográficas”, quase sempre sob responsabilidade de Edgar Koetz. Entretanto, a mais poderosa dessas influências estrangeiras residia, inegavelmente, no art deco, estilo que fez uma espécie de “síntese” formal dos grandes movimentos artísticos europeus de vanguarda. Ao explorar a geometria aerodinâmica, ziguezagueante e de 9º Congresso Brasileiro de Pesquisa e Desenvolvimento em Design Nelson Boeira Faedrich e a Revolução na Arte do Cartaz acentuado viés decorativo, o art deco expressava o elogio à máquina, à velocidade e aos tempos modernos. Foi sobretudo nessa fonte que Faedrich bebeu, sem abandonar os efeitos lineares, herança do art nouveau de Beardsley e Bradley, que ele tanto admirava. É possível observarmos tais elementos nas diversas capas para a Revista do Globo, produzidas a partir de 1932 e marcadamente influenciadas pela estética dos cartazes. Figura 4: Capas de Faedrich para a Revista do Globo: todas de 1936 Arrojadas, sinuosas e coloridas, as capas de Faedrich para o magazine também revelam uma certa picardia, como vemos na edição nº 146, de 1934. Nela, o artista reproduz uma curiosa imagem do rato Mickey Mouse: ele traz um lenço verde junto ao pescoço, botas com espora e, ainda por cima, aparece tomando chimarrão! O cruzamento entre o universo dos quadrinhos e a tradição local deve ter provocado um efetivo estranhamento entre o público. 8 Algo semelhante acontece na capa para a edição nº 101, de 1932. A imagem mostra a figura de uma tenista rebatendo a bola, que também funciona como o “pingo do i” da palavra Revista. Notemos a ousadia de Faedrich, ao soltar a figura no espaço, sem fundo, sem base; notemos o tratamento diferenciado proposto na grafia do nome do magazine, com a alternância de cores, lembrando a marca Coca-Cola. Em ambas imagens, portanto, uma referência forte à cultura visual da época. E, como se estivesse antecipando em mais de 20 anos a Pop Art, Faedrich nos surpreende com a audaciosa mulher de biquíni junto à praia, representada como se vista do plano inferior (edição nº 203, de 1937). Figura 5: A cultura visual do período referenciada nas criações do artista 8 Vale comentar que talvez tenha sido nesta época que Faedrich recebeu convite do próprio Walt Disney para trabalhar nos Estados Unidos, na famosa empresa de animação. Sobre essa passagem, o filho Oscar Faedrich, recorda: “O pai recebeu um convite pessoal do Walt Disney, para trabalhar nos Estados Unidos, e recusou. Eu não sei bem em que condições o Walt Disney teria tido contato com o trabalho do pai. Mas só sei que um dia chega uma carta datilografada, assinada por ele, convidando o pai a trabalhar na equipe de desenhistas da Disney. E o pai disse não. Ele não quis”. (Em entrevista à autora em 18 de julho de 2006) 9º Congresso Brasileiro de Pesquisa e Desenvolvimento em Design Nelson Boeira Faedrich e a Revolução na Arte do Cartaz Em todas essas capas, é possível identificar as tessituras com a linguagem do cartaz, priorizando composições com poucos elementos e de grande impacto. Essa ligação fica ainda mais explícita na edição nº 162, de 1935. Desta vez, trata-se da reprodução de parte de um cartaz originalmente produzido para a antiga Cervejaria Continental, de Porto Alegre, comprovando as ligações perigosas entre anunciante e veículo de comunicação. Figura 6: Ligações perigosas:excerto da imagem do anunciante na capa da publicação Folheando a mesma edição do quinzenário, encontramos uma reportagem comercial sobre a “arte do cartaz”, enfatizando (1) o trabalho e o talento de Faedrich, (2) a “visão” dos proprietários da Cervejaria, ao investir em cartazes bem produzidos, e (3) a avançada tecnologia das Oficinas Litográficas da Globo, que permitiu a impressão de tão belas peças: Nelson Boeira Faedrich, um dos mais jovens de nossos artistas de nome consagrado, surgiu como ilustrador há pouquinhos anos, fazendo figuras para poemas, contos, etc. [...] Iluminista delicado, hábil rabiscador de vinhetas em que predomina o risco a bico-de-pena, ninguém podia imaginar que Nelson também triunfasse nessa arte “mais grosseira” e ao mesmo tempo mais difícil que é a do cartaz. [...] Os senhores Bopp, Sassen, Ritter & Cia, proprietários de uma das maiores fábricas de bebidas do Brasil, encarregaram o Sr. Nelson Boeira Faedrich de fazer uma série de cartazes para propaganda de seus produtos principais. Os trabalhos foram executados pelo jovem artista, aprovados pela firma que os encomendou e executados na Seção de Litografia da Livraria do Globo. [...] Quem é que não sente sede vendo o louro do “chopp” espumante que Nelson pintou num dos cartazes? Quem não sente vontade de comer o “sandwich” que se acha no prato ao lado da garrafa de cerveja? [...] Cores vistosas, desenho delicado e um motivo verdadeiramente artístico. O cartaz é a arte servindo à indústria. Merece ser imitada a iniciativa inteligente da firma Bopp, Sassen, Ritter & Cia. 9 Na “reportagem”, aparecem reproduzidos alguns dos pôsteres criados por Faedrich para a citada empresa. Para a cerveja Hércules, por exemplo, um fermentado escuro e encorpado, o artista associou a imagem da bebida à do herói grego Hércules, curiosamente 9 Excerto do texto A Arte do Cartaz. Revista do Globo. Porto Alegre, Editora Globo, 8 jun. 1935. s/p. Ano 7, nº 162. 9º Congresso Brasileiro de Pesquisa e Desenvolvimento em Design Nelson Boeira Faedrich e a Revolução na Arte do Cartaz representado como um negro, numa evidente relação formal e conceitual com o produto que se queria vender. As referências tardias à estética art deco são pontuais nesta peça, sendo percebidas tanto na tipografia geometrizada, como nas linhas diagonais do fundo. Em outro cartaz, divulgando o “Chopp Preto”, temos um cenário glacial, contrapondo a paisagem e a pequena foca com a energia que emana do copo, tal como o calor do sol em meio à neve. Figura 7: Cartazes assinados por Faedrich para a Cervejaria Continental, de Porto Alegre O sucesso e o reconhecimento que obteve com esses trabalhos o levaram primeiro a produzir cartazes para a Loteria Estadual e, na seqüência, ao Rio de Janeiro, onde passou a assinar os majestosos cartazes da Loteria Federal. No Rio de Janeiro Em 1939, Faedrich se muda para o Rio de Janeiro com a família. Lá, dirige o Departamento de Arte da Empresa de Publicidade Prosper, que desenvolvia, entre outros, os cartazes para a Loteria Federal. Foi a Prosper que iniciou a modalidade de cartazes de 6 a 8 folhas, gigantescas peças gráficas que cobriam os muros e tapumes das capitais. A maioria desses impressos traz uma grande e vistosa imagem, contraposta a um texto simples: Mil Contos – Loteria Federal, acrescido da data do sorteio. Às vezes, também encontramos frases mais motivadoras: O seu dia chegará... e então o mundo será outro. Figura 8: Cartazes para a Loteria Federal 9º Congresso Brasileiro de Pesquisa e Desenvolvimento em Design Nelson Boeira Faedrich e a Revolução na Arte do Cartaz Prestemos atenção à diversidade desses cartazes: da figura do palhaço, passando pelo alvo certeiro, pela estilização da fogueira de São João e pelo cavaleiro medieval anunciando a “fortuna”, cada imagem tem o seu apelo e a sua estrutura. E, apesar de diferenciadas, encontramos em todas o estilo inconfundível do artista, perceptível nas linhas curvilíneas e harmoniosas, numa permanente alusão ao art deco. Ainda no Rio de Janeiro, o artista cria um conjunto de cartazes para o Estado do Rio de Janeiro, divulgando a qualidade das “laranjas” colhidas ali. O figurativismo estilizado e a liberdade de brincar com as cores e os ângulos compositivos lhe permitiram criar peças de grande impacto e harmonia. Figura 9: “Vendendo” laranjas... Outras criações dignas de nota de seu período carioca são os cartazes produzidos para o DIP, o Departamento de Imprensa e Propaganda. Foram localizados apenas dois estudos, datados de 1942 e destinados à Divisão de Educação Física do Governo Federal. Em ambos é possível identificar, uma vez mais, alusões às linguagens então em voga na Alemanha e na antiga União Soviética, principalmente as que faziam apologia ao físico e à superioridade desses povos. A eficácia desse tipo de comunicação foi largamente adotada no material gráfico do DIP, e o artista foi um, entre vários, a produzir imagens afinadas a esse modelo. Figura 10: Estudos de cartazes para o DIP, produzidos em 1942 9º Congresso Brasileiro de Pesquisa e Desenvolvimento em Design Nelson Boeira Faedrich e a Revolução na Arte do Cartaz Estilemas das vanguardas artísticas européias, marcados por um modernismo figurativo pós-cubista caracterizam, portanto, a linguagem empregada nos cartazes assinados por Nelson Boeira Faedrich entre as décadas de 1930 e 50. Tais produções não ficaram restritas ao Rio Grande do Sul, mas circularam pelo Brasil, principalmente a partir de sua atuação na então capital federal. Ao observá-los, não é difícil imaginar o grandioso impacto que promoveram junto ao público, não somente em vista do encanto e da exuberância das imagens, mas, principalmente, no que tange ao desenvolvimento de uma nova forma de olhar. Sobre isso, Pierre Francastel nos diz: “[...] o papel desempenhado pelo cartaz só é comparável ao do cinema. Ele transformou o gosto, desenvolveu a faculdade de leitura de uma imagem despojada em função de novos reflexos” (Francastel, 1990, p. 191). Nesse processo, Faedrich assumiu papel protagonista. Apontamentos finais A obra de Nelson Boeira Faedrich, assim como de vários artistas plásticos e designers sulinos, carece de mais pesquisa, documentação e, evidentemente, reflexão. Na verdade, podemos dizer que as pesquisas relacionadas à história do design e mesmo à história das artes visuais no Brasil ainda estão numa espécie de “pré-história”. Há todo um trabalho de base que necessita ser feito, a começar pela catalogação e registro das imagens. No que tange à obra de Faedrich, esse levantamento vem sendo feito há pelo menos oito anos, concentrado em sua vastíssima produção como ilustrador (Ramos, 2007). É no decorrer da pesquisa, porém, que surgem agradáveis surpresas. E a mais recente está justamente relacionada à sua atuação como cartazista. Embora houvesse comentários e algumas parcas reproduções desses trabalhos, os cartazes em si não estavam sendo localizados. Até que um levantamento mais minucioso junto ao Museu de Comunicação Hipólito José da Costa, em Porto Alegre, identificou as poucas e mal acondicionadas peças reproduzidas no presente artigo. Imagina-se que haja muitos outros documentos em situação semelhante, e é no resgate, análise e divulgação dessa memória que estamos trabalhando. Tal empreendimento não somente possibilitará a salvaguarda de nomes e criações, como uma revisão da própria história do design no Brasil. É nisso em que acreditamos. Referências CARDOSO, Rafael. O Design brasileiro antes do design: aspectos da história gráfica, 1870-1960. São Paulo: Cosac Naify, 2005. 360 p. FAEDRICH, Nelson Boeira. Considerações sobre o Tema Arte-Artistas (Depoimento escrito). Porto Alegre [s/d]. GOMES, Leonardo Menna Barreto. Ernst Zeuner: Artista e Designer. 2001. 296 f. 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