Resumo
O Retrato foi uma das temáticas mais frequentes na obra de Malhoa, circunstância
decorrente das necessidades crescentes do mercado, e da sua própria subsistência
financeira. Ela desenvolve-se entre duas modalidades, oscilando entre o Luminismo e
o “Tenebrismo”. E, talvez daí, resulte grande parte do seu sucesso, ao tornar-se mais
susceptível do agrado generalizado, promovendo uma resposta eficaz às “oscilações
do gosto”. Logo depois do Género, foi justamente no Retrato que obteve alguns dos
seus maiores êxitos e galardões internacionais. Se, por um lado, se mostra devedor
das influências dos mestres do passado, como Velásquez, Frans Hals, Rembrandt, ou
Murillo, por outro, a própria obra não deixa de indiciar referências mais modernas,
estilísticas ou técnicas. A corrente luminista da arte do retrato, atinge níveis excepcionais, constituindo assim a vertente mais moderna da sua obra.
palavras-chave
malhoa
retrato
pintura
séc. xix
luminismo
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Abstract
The Portrait was one of the most common themes of Malhoa’s work, a result of the
market’s growing needs and its own financial sufficiency. It evolves into two types,
between Light and “Darkness”. This may be the cause for its success, by becoming
more susceptible to general approval, promoting an efficient response to the variations of taste. Following the Genre, the Portrait was the most successful and received
more international prizes. If, on the one hand, it is influenced by the masters of the
past, on the other, the work itself shows more modern stylistic and technical references. The luminous tendency of the art of the portrait reaches outstanding levels,
this being the work’s most modern aspect.
•
key-words
malhoa
portrait
painting
19th century
light
luminismo
e “tenebrismo”
malhoa e o retrato
nu n o sa l da n h a
Escola das Artes / U.C.P.
Escola Superior de Design / IADE
[email protected]
1. Perkinson, Stephen. Set. 2005. From curious
to canonical: Jean Roy de France and the origins
of the French School. The Art Bulletin, London.
O Retrato foi uma das temáticas mais presentes na obra de Malhoa, aliás, à semelhança do que sucedeu com a maioria dos seus colegas, circunstância decorrente
das necessidades crescentes do mercado, assim como das razões inerentes à sua
subsistência financeira.
Na realidade, para muitos pintores, era uma possibilidade de ganhar a vida, mormente
pelo crescente incremento deste tipo de pintura, dado que a nova burguesia aspirava
a criar a ilusão de uma tradição dinástica.
Efectivamente, o interesse que o Retrato suscitou foi bastante consensual, não apenas
por parte da clientela, mas também pela crítica da época. Aquilo que durante séculos
parecera servir apenas para perpetuar a memória de reis, governantes, alto clero, aristocracia e alta burguesia, tornava-se agora acessível a círculos sociais mais alargados.
A partir de meados do século XIX, este género pictórico começa a emergir do anterior
estatuto de “menoridade”, levando a um aumento significativo da sua importância
e, tanto os críticos como os artistas, vão apontando novas vias de renovação1.
Considerado um perfeito exemplo da expressão da individualidade humana, e o objectivo mais elevado a que um pintor deveria aspirar, segundo defendia Jules Castagnary no Salon de 1857, o Retrato alinhava modelarmente com a noção moderna
de individualismo, capaz de representar, tanto o retratado, como o retratista.
Mas o caminho para a reforma não parecia consensual. Entre o realismo e o idealismo,
a técnica mais “fotográfica”, e a pincelada mais solta, entre a modernidade e a tradição, as possibilidades que se ofereciam, tanto a clientes como artistas, revestiam-se
de grande diversidade, e mesmo de alguma ambiguidade.
Paradoxalmente, uma das vias de renovação, levaria a um reavivar de interesses pelo
passado, voltando-se para os grandes mestres da Pintura Antiga, como Velásquez,
Franz Hals, Van Dyck, ou Rembrandt, recuperando assim os valores tonais da pintura
seiscentista. Esta reabilitação do “Tenebrismo” barroco, obteve sucesso consensual
entre retratados e artistas. De Léon Bonnat a Zuloaga, passando por Sargent, Whistler ou Eackins, depressa o género se vulgariza, atravessa fronteiras, tornando-se
numa tendência internacional.
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No campo oposto, estavam os valores cromáticos e lumínicos, que a vanguarda Impressionista elegera como base da sua “revolução”. Para os menos “arrojados”, embora
perfilhando interesses comuns, difunde-se uma corrente menos “radical”, mais ligeira,
de Juste milieu. Era a vertente Luminista, tão característica do retratismo espanhol
levantino, particularmente popularizada por Ignacio Pinazo ou Joaquín Sorolla.
Foi precisamente entre estas modalidades do retratismo que se desenvolveu a pintura de Malhoa, oscilando invariavelmente entre o Luminismo e o “Tenebrismo”,
entre tradição e modernidade. E talvez daí, resulte grande parte do seu sucesso, ao
tornar-se mais susceptível do agrado generalizado, promovendo uma resposta eficaz
às “oscilações do gosto” da época. Foi justamente no Retrato, a temática que se
revelou de maior importância, logo depois do Género, que o pintor obteve alguns
dos seus maiores êxitos e galardões internacionais.
1. O Retrato na obra de Malhoa
Embora não tenha sido a sua temática de eleição, é um facto que Malhoa produziu
um elevado número de retratos, tanto a óleo, como a pastel ou a carvão. Segundo
referem alguns dos seus biógrafos, o artista teria produzido cerca de 800 a 900
retratos (Sousa Pinto 1928, 41). Trata-se naturalmente de um número empolado,
mormente porque ali se incluíam, tanto obras que efectivamente pertencem à pintura
de História, à pintura de Género, ou àquilo a que se designava de “retrato de prazer”
ou “cabeças de expressão”. Segundo pudémos inventariar até à data, contam-se
em 240, os retratos (óleo e pastel) realizados por Malhoa2, o que é já de facto um
número significativo, para quem esta temática não foi uma prioridade, mormente se
tivermos em conta que, um dos mais conceituados retratistas do seu tempo, John
Singer Sargent, terá produzido cerca de 4003.
Para enquadrarmos a produção retratista de Malhoa no conjunto da sua obra, sabemos que ela ocupou cerca de 28% do total, a par da Paisagem, e abaixo de Género
(30%). Estes dados, mudam consideravelmente, se observarmos as percentagens
relativas à obra exposta. De facto, ela não ultrapassa os 18% das presenças em
certames nacionais (Grupo do Leão, Grémio Artístico, Sociedade Nacional de Belas
Artes, etc.), embora, em termos internacionais, ela possa ascender aos 23% da sua
representação. Portanto, muito abaixo da pintura de Género, que atinge os 70%.
Números à parte, o certo é que Malhoa gozou de grande popularidade, como o
comprovam as referências da época. Essa “galeria janota das fuças citadinas”, como
a designava Emídio de Brito Monteiro, era resultante da grande quantidade de
clientes que fazia bicha à porta do atelier de Lisboa, durante o Inverno, “à espera
da solenidade mundana dum retrato de Mestre”, consoante ironizava Brás Burity
(Burity 1928, 83-84).
As razões do seu sucesso, derivam também em grande parte, tanto da flexibilidade
de Malhoa, como do espírito marcadamente comercial subjacente à sua obra. Sintomático disto, são as oscilações técnicas e estilísticas da sua pintura, bem como as
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2. Saldanha, Nuno. 2006. José Vital Branco Malhoa (1855-1933). O pintor, o mestre e a obra.
[texto policopiado] Dissertação de Doutoramento em História da Arte apresentada à Universidade Católica Portuguesa. Lisboa: Faculdade de
Ciências Humanas / U.C.P.
3. Naturalmente que o número de obras produzidas por Malhoa está sujeito a constante actualização, dado que se trata de uma temática,
frequentemente fruto de encomenda, e cujo resultado foi directamente para a posse dos clientes, sem ter passado pela sua apresentação pública, não deixando portanto qualquer registo da
sua existência.
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fig.1 josé malhoa - almeida garrett , 1881 (conservatório nacional) © nuno saldanha
sucessivas alterações que introduzia nos quadros, a pedido dos retratados. O caso
do retrato de Palmira Feijão é um bom exemplo disso. Consoante referia o próprio
artista, depois dos ditos “aformoseamentos” o retrato estava tal e qual ela era...
“quando tinha 18 anos!” (Saldanha 2006, 403-404).
Esta atitude (em clara oposição à produção retratística de um Columbano, por exemplo), revela uma concepção do retrato pouco meditada, confiada ao acaso das circunstâncias, e de quem não pretendeu fazer dele uma especialização.
2. A experiência da História
Os inícios da actividade de Malhoa como “retratista”, situam-se mais próximas da
pintura de História, naquilo a que podemos designar como “retrato histórico”. Isto é,
não se trata de retratos no verdadeiro sentido da palavra, dado que se representam
personagens históricas, já falecidas, e não “tiradas do natural”. No entanto, este
tipo de produção em muito contribuiu para o exercíco da pintura de figura, e no
desenvolvimento de experiências na representação de fisionomias.
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fig.2 josé malhoa - júlia malhoa , 1883 (museu josé malhoa), © imc/ddf.
A sua primeira encomenda data de 1881, quando Malhoa é convidado, com Eugénio
Cotrim, a decorar o tecto do Real Conservatório de Lisboa. Para além da deslavada alegoria que ocupa o medalhão central, figurando Euterpe, o pintor executa 4
medalhões circulares, “retratando” Almeida Garrett, (Fig.1) Domingos Bomtempo,
Francisco Xavier Migoni, e Passos Manuel. Naturalmente fazendo recurso a gravuras
que circulavam na época, quer na sua directa transposição ou servindo de modelo,
estas pinturas pouco mais representam do que simples exercícios de academia.
Dois anos depois, em 1893, a experiência repete-se, agora para o Supremo Tribunal
de Justiça de Lisboa, numa obra de maior fôlego, que se concretiza na realização
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4. Sobre este assunto veja-se Vicente, António
Pedro. 1984. Carlos Relvas fotógrafo 1838-1894:
contribuição para a história da fotografia em
Portugal no século XIX. Lisboa: Imprensa Nacional Casa-da-Moeda.
de 14 medalhões figurando os personagens mais importantes do Direito ou da Jurisprudência nacionais: Álvaro Velasco, António Gouveia, D. Dinis, Duarte Nunes
de Leão, João das Regras, João Pedro Ribeiro, Jorge Cabedo, Marquês de Pombal,
Mouzinho da Silveira, Rui Boto, Pascoal de Melo Freire e Rui Fernandes. Embora
se note alguma evolução na capacidade técnica da execução, estamos ainda muito
longe dos níveis de maturidade e qualidade que a sua obra viria posteriormente a
revelar. Apenas 6 anos depois, seguem-se os 16 medalhões que decoram o salão
nobre da Câmara Municipal de Lisboa, de factura desigual e, em muitos casos, de
execução inferior.
Seria precisamente em 1883, que Malhoa produz os seus primeiros retratos a óleo,
no pleno sentido do termo - o de Manuel Augusto Brito Chaves, e o de sua mulher,
Júlia Malhoa (Fig.2). O primeiro, fruto natural de encomenda, poderia figurar entre
as dezenas de medalhões já produzidos, quer no formato, como no estilo. O segundo
caso, revela-se mais original, tratando-se de uma obra nascida da sua inspiração,
o que motivou Malhoa a apresentá-la no 3º certame do Grupo do Leão. Era o seu
primeiro retrato exposto, embora os resultados tenham ficado bastante aquém do
esperado. De facto, a reacção da crítica foi contundente. Emídio Brito Monteiro,
questionava-se mesmo se “aquilo” poderia ser considerado arte: “...não passa de
uma coisa colorida, bonita e vistosa, mas só isso... O que aquillo é, é tela pintada
e nada mais. Mas agrada e foi isso que o artista quis conseguir. Agora querer que
aquillo seja arte, isso não.” (Brito Monteiro, Fev. 1884).
Apesar do desaire da estreia, Malhoa não desiste, continuando a trabalhar e a apresentar retratos, em número crescente, nas exposições seguintes. Em 1890, o artista
verá coroados os seus esforços, ao ser seleccionado para retratar o rei D. Carlos.
Trata-se da sua estreia, em termos de encomendas para a Casa Real, e o início de
uma relação que se prolongará até ao fatídico ano de 1908. Durante este tempo, o
pintor produziu 6 retratos de D. Carlos, 2 de Dona Amélia, 2 de D. Luís Filipe e outros
2 de D. Manuel II. A pintura mais interessante do rei é sem dúvida a executada em
1905, para a Escola Médica (actual Faculdade de Ciências Médicas da Universidade
Nova de Lisboa). Ali, diversamente do que sucede nos outros exemplos, o soberano
é representado numa pose menos convencional, tendo como fundo as escadarias do
Palácio Foz, sem estar rodeado do imaginário retórico dos símbolos de poder.
3. Malhoa e a Fotografia
A partir de 1882, Malhoa inicia uma relação profissional com a família Relvas, que
virá a ter inúmeras repercussões no desenvolvimento da sua carreira (Saldanha 2001;
2006). Ela inicia-se com Carlos Relvas, célebre cavaleiro tauromáquico, músico, e
uma das figuras pioneiras no desenvolvimento da Fotografia em Portugal, com atelier próprio na Golegã, estabelecido desde 18714. Naquele ano, o artista pintou um
pequeno registo de temática animalista, figurando Solero, cavalo favorito de Relvas,
entretanto exposto no 12ª certame da Sociedade Promotora de Belas-Artes. Seguir-
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se-íam inúmeros retratos, da mulher, da filha, do filho, da nora, dos netos, etc.
Para além das consequências que se farão sentir, mormente a partir do estreito relacionamento entre Malhoa e o seu filho, José Relvas, dos contactos com Carlos deve
sobretudo destacar-se o início das suas experiências com a Fotografia, e o recurso
recorrente a esta técnica, na elaboração dos seus retratos.
Em 1887, entre os 7 retratos que o pintor apresenta no salão do Grupo do Leão, encontrava-se uma tela oval, representando Carlos Relvas toureando a cavalo, na praça de
touros de Setúbal (que posteriormente seria baptizada com o nome daquele cavaleiro).
Trata-se de uma obra de interesse especial, uma vez que é um “retrato equestre”, muito
ao gosto das tipologias celebrizadas por Velásquez, único no seu género.
Embora seja ainda um “retrato de pose”, é o seu primeiro retrato ao ar-livre, e onde
se associa aquela temática à pintura de Género, num processo de “trans-tematização”, justamente uma característica que marcará o futuro da sua obra.
Embora ainda não localizada até à data, trata-se indubitavelmente de uma pintura
assente numa fotografia, como se pode perceber pelo desajustamento entre o cavaleiro e o cenário, nomeadamente no que diz respeito à projecção das sombras - a
luz da praça vem do canto superior esquerdo da composição; a do cavaleiro e sua
montada, do lado oposto, e de um ângulo menos acentuado.
Nos posteriores exemplos de trabalhos executados para esta família, este recurso
está perfeitamente documentado com o cliché original. De facto, são conhecidas as
fotografias que serviram para a execução de Carlos Relvas montando o Rollito (1890);
Luísa Relvas (1896); D. Eugénia, João e Carlos Relvas (1899) (Saldanha 2001; 2006).
Para além destes exemplos, são também conhecidos, pela existência de fotografias,
ou por referência explícita de Malhoa nas suas cartas, os de João Relvas em criança
(1900), Conde de Alto Mearim (1901), Jerónimo Bravo (1903), ou Rafael Bordalo
Pinheiro (1904)5.
4. Tradição e Modernidade
O peso da tradição – o “Tenebrismo”
Um ano após a apresentação do “retrato equestre” de Carlos Relvas, Malhoa expõe
o célebre retrato de Laura Sauvinet, (Fig.3) filha de seu amigo Henrique Sauvinet,
e que posteriormente se tornaria sua discípula. Mais tarde apelidada, por alguns
dos seus biógrafos, como a Gioconda de Malhoa, a obra foi alvo de crítica variável,
apesar do pintor a considerar como a sua “obra-prima”.
Embora se trate efectivamente de uma pintura que revela algumas qualidades de
execução, tanto na técnica, ao centrar-se mais nos rostos e descurar os elementos
secundários (já patente em Franz Hals, ou Fragonnard), e no olhar penetrante voltado para o observador, o seu sucesso torna-se de facto efectivo já depois da morte
do pintor, pelas leituras historiográficas que dela foram feitas, mormente a propósito
de exposições comemorativas da obra de Malhoa.
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5. Este retrato revela-se particularmente interessante, e inédito, dado que o artista, embora recorrendo a um cliché fotográfico, pinta o próprio
quadro como se fosse ele mesmo uma fotografia,
em tons sépia.
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fig.3 josé malhoa - laura sauvinet , 1888
(museu josé malhoa), © imc/ddf.
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fig.4 josé malhoa - retrato de novais ,
1901 (museu do chiado), © imc/ddf.
fig.5 josé malhoa - d. teresa avelino
pereira da costa , 1900 (museu do chiado),
© imc/ddf.
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6. Veja-se, por exemplo o retrato de D. Luís I,
executado por Lupi em 1864.
Por um lado, em termos de tratamento, ela revela as influências ainda fortes do
estilo do seu mestre, Miguel Ângelo Lupi6, embora, ao mesmo tempo, em termos
de composição e de pose, não deixe de transparecer modelos clássicos da pintura
europeia, como o célebre Senhora vestida de vermelho, retrato executado por Pontormo em 1532.
No entanto, as fontes de inspiração de Malhoa, tendem progressivamente a voltar-se
para a pintura seiscentista, flamenga e espanhola, nomeadamente Franz Hals e Velásquez, de acordo com as tendências da pintura ocidental a que fizémos referência,
cuja difusão internacional em muito se deve a Carolus Duran.
Os mais importante retratos executados por Malhoa em 1904, Cavaleiro de Santiago
e Retrato de Novais, (Fig.4) são dois bons exemplos da importância que aqueles
mestres ainda exercem nos inícios de Novecentos.
Um curioso exemplo deste interesse por modelos do passado da pintura europeia, e
do peso da tradição, podemos encontrá-lo no Retrato do menino Artur Isaac Abecassis, de 1895, exposto no salão do Grémio Artístico onde obteve algum sucesso.
A pintura denota um interesse múltiplo, dado que nele podemos presenciar uma
curiosa junção dos vários géneros temáticos a que Malhoa se dedicou. Trata-se de um
retrato, mas associado à pintura de Género, e à pintura de História, de tipo Casacón.
Este tipo de obras que Malhoa também praticou, a chamada “pintura de gabinete”,
designado em França por Tableautin, e em Espanha por Casacón, era uma versão
mais comercial e burguesa da pintura histórica, que triunfou em Paris no final de
Oitocentos, nomeadamente com Mariano Fortuny, ou Jean-Louis Ernest Meissonier.
Caracterizava-se por quadros de pequena dimensão, com figuras vestidas à moda
do século XVIII, executadas com efeitos retóricos e técnicos fáceis, muito ao gosto
da burguesia da época, sobretudo iniciada no coleccionismo de arte. Muito popular
em França, Itália e Alemanha, também em Portugal encontramos ecos deste género,
desde Alfredo Keil, a Columbano, passando pelos vários aguarelistas, como Casanova,
Roque Gameiro ou Alberto de Sousa.
Embora pareça derivar directamente da pintura de História, o Tableautin acaba por
se concretizar numa reacção a ela, tanto na dimensão como na função, espécie de
síntese entre aquela temática e a pintura de género. Em vez de retratar os grandes
temas heróicos da História, esta pintura resumia-se assim à representação de cenas
elegantes e frívolas, de ambientes caseiros, e dos costumes do passado.
Grande parte das obras deste género foi executada por Malhoa no século XIX, pelo
menos desde 1895 (Um Compasso difícil / Lição de Violino), algumas delas acabando
por se tornarem parte integrante de grandes composições decorativas alegóricas,
mormente relacionadas com a Música.
O triunfo deste tipo de pinturas de tendência “tenebrista”, culminará com o retrato
de D. Teresa Avelino Pereira da Costa, (Fig.5) executado em 1900, que inaugura a
presença de Malhoa nos certames expositivos europeus do século XX, bem como os
mais recentes êxitos e prémios atribuídos por júris internacionais.
Mais uma vez, não podemos deixar de constatar as afinidades com o estilo do seu
antigo mestre Miguel Ângelo Lupi, embora levando os contrastes de claro-escuro
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ao limite, fazendo sobressair o essencial da figura – o rosto e as mãos. Concebendo
uma silhueta de grande presença e profundidade interior, marcada por uma profundidade psicológica intensa, o que assinalaria grande parte da sua obra retratista
novecentista.
Entre Maio e Julho de 1901, o quadro foi apresentado na Exposição de Belas Artes
de Madrid, sendo muito apreciado pela crítica espanhola, e obtendo o 2º prémio daquele certame. Rapidamente a imprensa portuguesa faria eco deste sucesso (também
ampliado pela Menção Honrosa obtida no Salon de Paris), dando-lhe visibilidade ao
longo do ano, o que em muito contribuiria para o crescente prestígio de Malhoa.
Curiosamente, 10 anos depois, o retrato será novamente apresentado na Exposición
de Bellas Artes da mesma cidade, renovando o sucesso anterior. Recebe novamente
uma medalha de prata, fazendo dele o maior sucesso obtido por Malhoa com um
retrato, mormente a nível internacional, constituindo-se assim na sua obra mais
premiada até aquela data.
O vincado “tenebrismo” de grande parte da sua arte retratista, que se arrasta pelo
século XX, continuava a fazer sucesso, nomeadamente em terras de Espanha, cujas
tradições seculares mantinham viva a sua aceitação. E Malhoa sabia-o. Daí os galardões recebidos, e a aposta do pintor, quando ali expõe, na selecção sistemática
de obras deste género. (Saldanha 2006, 421)
Apesar deste recurso à tradição, ele não deve ser entendido como conservadorismo.
Trata-se de um novo entendimento do passado, e não de um revivalismo ou academismo. Como é sabido, Malhoa sempre se mostrou aberto a diversas experiências
artísticas ao longo da sua carreira (Romantismo, Naturalismo, Realismo, Luminismo,
Impressionismo) e, esta abertura, não deve ser entendida como um eclectismo (de
que foi acusado por alguns críticos na época).
Pelo contrário, estamos perante uma noção de modernidade, que incorpora tanto a
tradição como a inovação. As largas centenas de pintores que se integram nesta vertente, ao contrário das vanguardas, eram historicistas, no sentido de que acreditam
não ser possível haver modernidade sem consciência histórica. Eles visitam museus,
estudam a história da arte e seus artistas, folheiam revistas e jornais ilustrados em
busca de modelos visuais, como nunca o haviam feito antes. Em vez de romper com
a tradição, hà uma procura da renovação através dela, e uma sede de estilo acompanhada por uma vontade estusiástica de aprender com a História. (Llorens 2006)
Modernidade e Luminismo
Se, por um lado, Malhoa se mostra devedor das influências dos mestres do passado,
como Velásquez, Frans Hals, Rembrandt, ou Murillo, a quem se refere recorrentemente na sua correspondência, por outro, a própria obra não deixa de indiciar referências
mais modernas, tanto estilísticas como técnicas. Efectivamente, podemos encontrar
afinidades pontuais com a obra de artistas contemporâneos como Guillaume Dubufé,
Vitorio Corcos, Charles Chaplin, Carolus Duran, Richard Miller ou Joaquín Sorolla.
Aquela que se constitui precisamente como a sua vertente mais moderna do retrato,
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fig.6 josé malhoa - roque gameiro , 1904 (museu josé malhoa), © imc/ddf.
é a do Luminismo, cujas origens remontam pelo menos a 1895, data do excelente
retrato da sua discípula Zoé Wauthelet, aos 28 anos de idade.
Estamos perante um retrato ao ar-livre, mais natural, que revela uma procura do instantâneo, onde os indivíduos aparecem como elementos dentro de outros elementos,
num clima de instrospecção e melancolia.
Embora só exposto em 1928, foi considerado por Brito Monteiro, como o melhor
dos seus retratos. Destaque para o brilhante enquadramento da figura na paisagem
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fig.7 josé malhoa - retrato de minha mulher , 1914 (museu do chiado), © imc/ddf.
de fundo, só esboçada, quase Impressionista, a importância dada aos efeitos de
luz, sobre as “ondas de cetim” (a que se referia Sousa Bandeira), e os contrastes de
complementares. Cortês Pinto tece-lhe um longo elogio, chamando-lhe um “milagre
de frescura de epiderme”, e dá-nos uma importante descrição do mesmo, mormente
pelas indicações da técnica utilizada por Malhoa: “frescura tão sabiamente introduzida na carnação magnífica da retratada pela irradiação de esmeraldas dos coloridos
vegetais, complementares daquela cor rosada, que o Artista distribui habilmente
em manchas raspadas à espátula ao redor da saudável e juvenil figura!”. (Cortês
Pinto, 1956: 56).
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7. Geralmente considerado como um retrato do
pintor Ezequiel Pereira (1860-1943), é mais provável que se trate do seu amigo e colega Manuel
Henrique Pinto (1852-1912), e sua filha Julieta
Pinto (afilhada de Malhoa).
8. Veja-se, por exemplo, o quadro deste artista
levantino Mi mujer y mis hijas de 1910, cujas semelhanças técnicas se tornam evidentes, nomeadamente na prioridade dada à luz e à cor.
O século XX traz novo fôlego à obra retratista do mestre, marcado por uma paleta mais
rica e variada, mormente pelo recurso, cada vez mais frequente, à técnica do pastel.
Por outro lado, os seus retratos continuam a misturar-se, cada vez mais, com a pintura
de género, inserindo as personagens em ambientes naturalistas, com fundos de paisagens ao ar livre, em vez dos fundos escuros que dominaram as décadas anteriores.
Malhoa começa então a substituir progressivamente as tendências “tenebristas” pelas
luministas. A isto não será estranha a influência do pintor norte-americano Richard
E. Miller, artista elogiado por Malhoa por ocasião do Salon de 1904. E talvez não
seja simples coincidência que o seu primeiro retrato conhecido, dentro deste estilo
(exceptuando naturalmente o de Zoé Wauthelet, acima referido), date precisamente
desse ano, o do popular aguarelista Roque Gameiro. (Fig.6) Inserido num ambiente
luminoso de beira-mar, o estilo será retomado por diversas vezes, nomeadamente
no Retrato de Agostinho Fernandes, pastel de 1925.
Impressionante, é o quadro Os colegas, pintado em 1905, misto de pintura de Género
e Retrato, outro exímio exemplo desta vertente luminista, sem dúvida uma das suas
melhores e mais modernas obras dentro desta temática7.
A modernidade da sua pintura atinge novamente níveis excepcionais com o Retrato
de minha mulher, (Fig.7) de 1914, que parece assumir algumas afinidades com o
Impressionismo de Renoir ou Mary Cassat. No entanto, ele filia-se, uma vez mais, na
vertente luminista, de Richard Miller, e sobretudo de Joaquín Sorolla8.
Ele revela um novo modo de percepção do mundo exterior, onde a pose e a estabilidade são substituídas pelo movimento e pelo efémero, o instantâneo. A atenção não
se fixa no recorte dos objectos, mas na sua percepção. Influênciado pela Fotografia,
nomeadamente na capacidade de perceber o movimento, e sobretudo nos novos
modos de compor e cortar a imagem. Esta obra está para o Retrato, como o célebre
Outono de 1918 estará para a Paisagem.
5. O “retrato psicológico”
Outro importante aspecto que podemos presenciar na obra retratista de Malhoa, é a
tónica que, a partir de dado momento, recai sobre a representação da profundidade
psicológica dos retratados. Esta tendência atravessa as tipologias enunciadas anteriormente, não sendo exclusivas das vertentes “tenebrista” ou luminista.
No mesmo ano em que pinta o Retrato de minha mulher, Malhoa executa outra das
suas obras-primas dentro desta temática, e que paraece retomar as tendências tenebristas anteriores. Referimo-nos ao retrato de Alberto Teles Utra Machado, exposto
no salão da SNBA em 1915.
Executado um ano depois de ter contactado, pela primeira vez, e directamente, com
a pintura de Franz Hals, o artista parece ter-se deixado arrebatar novamente pela
grandeza dos mestres do passado. No entanto, as suas referências são de artistas
bastante mais recentes, mas que efectivamente se aproximaram dos antigos mestres.
Entre eles, podemos mencionar Henri Fantin Latour (1836-1904), e o seu “realismo
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fig.8 josé malhoa - desalento , 1915 (casa museu fernando de castro, porto) . © imc/ddf.
psicológico”, ou Leon Bonnat (1833-1922), e a sua pintura de introspecção, de
influência espanhola.
Uma vez mais associado à pintura de género, Malhoa parece ter captado o momento
preciso em que o poeta e bacharel açoriano interrompe a leitura, para se perder na
profundidade dos seus pensamentos. Repare-se também como o pintor descentra
a composição, atirando a figura para a direita do quadro, tal como havia feito em
1895, no Retrato da Condessa de Proença-a-Velha, ou no referido retrato de sua
mulher. As pesquisas de Malhoa sobre o “realismo psicológico” adquirem aqui um
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fig.9 josé malhoa - o ventura , 1933 (museu josé malhoa), © imc/ddf.
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domínio perfeito, revelando plena maturidade, onde o estilo tende para o abandono
progressivo dos fundos “tenebristas” e dos contrastes de claro-escuro.
Em 1915, podemos encontrar outro belo exemplo deste “retrato psicológico”, quando
o artsita executa a pastel o retrato de uma senhora desconhecida, a que deu o título
de Desalento (Casa-Museu Fernando de Castro, no Porto). (Fig.8)
Aqui se assiste novamente à junção de um retrato de esfera privada, à introspecção
psicológica de uma figura da burguesia nortenha. O ambiente é novamente de interior, o que permite assim acentuar o aspecto melancólico da composição, numa
corrente de introspecção urbana. O olhar penetrante e gelado da figura, aproxima-se
às personagens decadentes dos inícios do século, e do clima moderno de introspecção melancólica que caracteriza alguns aspectos do Simbolismo.
No final da sua vida, em 1933, Malhoa pinta O Ventura, (Fig.9) curiosa espécie de
versão rural do Desalento. Mais que um simples retrato, ele revela-se como um retrato social, retrato-tipo de humilde camponês, espécie de reverso do espelho da
obra anterior. De facto, as duas figuras poderiam estar frente-a-frente, pondo em
confronto as atitudes e poses da sociedade burguesa urbana - orgulho e preconceito
- e do campesinato rural - humildade e resignação. Este pastel constitui também uma
excelente síntese da obra retratista de Malhoa do século XX. Nela podemos, efectivamente, observar a síntese temática, entre retrato, paisagem e género, o realismo
da figura, assim como o “realismo psicológico” da sua expressão.
Os retratos em pastel assinalarão, aliás, o trabalho de Malhoa dentro da temática
retratista durante a década de 20, integrando as figuras ora em interiores, ora em
ambientes paisagísticos, muitos dos quais facilmente identificáveis
À medida que avança o século XX, Malhoa vai deixando de apresentar retratos nas
diversas exposições em que participa, mormente a nível internacional, ao mesmo
tempo que a crítica parece cada vez menos interessada naquela temática.
No entanto, o artista não deixará de prosseguir a sua actividade neste campo, seja
a óleo ou a pastel, embora já sem energia para quaisquer renovações.
Um aspecto que por vezes tem sido referido a propósito da sua obra retratística, é a
invulgar ausência de um auto-retrato, apenas esboçado por duas vezes em desenhos
a carvão (1906, 1928).
Se efectivamente Malhoa não se auto-retratou numa pintura a óleo, não podemos
no entanto deixar de perceber que ele se insere no ideal do retratar-se, retratando,
ou seja, o verdadeiro e mais completo auto-retrato de Malhoa, encontra-se na totalidade da sua obra.
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Resumo Abstract