A CRISE E OS SEUS EFEITOS PREVISÍVEIS NO DIREITO(♦)
ARMINDO RIBEIRO MENDES
ADVOGADO
I
INTRODUÇÃO
1.
Gostaria de agradecer ao Exmo Senhor Presidente do Supremo Tribunal de
Justiça o amável convite que me endereçou, embora deva dizer que, ao aceitá-lo, fui
seguramente leviano, porquanto o encargo pressupõe uma capacidade de prever o
futuro que seguramente não possuo, faltando-me muita informação a que não tenho
acesso, para além das evidentes limitações do meu engenho.
Todavia, como qualquer outro cidadão deste País, sou confrontado com
abundante informação generalista e, mesmo descontando o “ruído” de muita dela, tal
informação vai-nos obrigando a reflectir quotidianamente e, pelo menos, a
perguntarmo-nos o que virá aí, como será o nosso futuro próximo, durante e para além
da crise.
Receando que só possa contribuir com fracos “palpites”, procurarei abordar
alguns pontos.
2.
Começarei por uma breve reflexão sobre a noção de crise e a qualificação de
crise atribuída à situação presente de vários países da União Europeia, se não de
todos.
No editorial do último número de uma reputada revista inglesa consagrada ao
Direito Comunitário pode ler-se o seguinte:
“Enquanto se escrevem estas linhas, os líderes da União
Europeia estão a confrontar-se para decidir como responder à
crise financeira. Os desafios que encaram não têm precedente:
(♦)
Texto que serviu de base à intervenção do Autor no Colóquio “A Crise e os seus Efeitos
Previsíveis no Direito”, organizado pelo Supremo Tribunal de Justiça e que teve lugar no dia 23
de Novembro de 2011.
estão a tentar afastar, ou, pelo menos, gerir a possibilidade
efectiva de incumprimento soberano na zona do euro, proteger
os Bancos europeus das respostas imprevisíveis dos mercados,
aumentar os mecanismos existentes de apoio aos seus
parceiros fragilizados, conter a ameaça de contágio dos países
pequenos (que a União tem a possibilidade de resgatar) aos
grandes (que a União com toda a certeza não tem a
possibilidade de o fazer), injectar confiança nos mercados”(1)
Sabemos já que a resposta dos líderes europeus não foi convincente, que a
pressão dos mercados sobre a Itália e a Espanha tem continuado e que, afastado o
referendo grego seguido pela demissão do Governo, foi possível encontrar uma
solução transitória para aplicar as novas medidas de resgate, perfilando-se eleições
gereis neste país no início de 2012. Em Itália, porém, a crise da dívida soberana levou
à demissão de BERLUSCONI e à constituição de um governo tecnocrático.
Estamos ainda longe de ter resolvido a crise da dívida que o Presidente norteamericano considera que está a “aterrorizar” o mundo, um verdadeiro Halloween
financeiro. De novo em situação sem precedentes, o Secretário do Tesouro norteamericano veio participar numa reunião do Conselho de Assuntos Económicos e
Financeiros da União no passado mês de Setembro para encorajar os Europeus “to
getonwithit”, porque “it’s time to move”. E o Ministro das Finanças russo KUDRIN veio
declarar que, se a União não actuar decididamente, “estaremos confrontados com
uma crise ainda maior, que rebentará noutros países, incluindo o nosso”.
Podemos concluir que a crise financeira não será só grega, irlandesa,
portuguesa, espanhola e italiana, mas poderá ser uma crise global. A aprofundar-se
essa crise, os efeitos nos diferentes ordenamentos jurídicos serão provavelmente
profundos e seguramente imprevisíveis.
A esperança de todos é que venha a atenuar-se a crise e que não cheguemos a
uma catástrofe global que possa prolongar-se por um período de vários anos.
3.
Os cultores da Ciência Política e os Economistas têm estudado as diferentes
crises sociais, económicas e políticas.
(1)
Editorial de European Law Review, n.º 36 (2011), pág. 1.
2
Num Dicionário de Política publicado em 2004 por NORBERTO BOBBIO,
NICOLO MATTEUCCI e GIANFRANCO PASQUINO, define-se a crise como “um
momento de ruptura no funcionamento de um sistema, uma mutação qualitativa em
sentido positivo ou em sentido negativo, uma reviravolta imprevisível e frequentemente
violenta, não prevista no módulo normal segundo o qual se desenvolvem os interesses
no seio do sistema considerado”(2).
Os mesmos Politólogos afirmam que as crises têm três características
individualizadoras: o seu carácter súbito e, por isso, imprevisível; a duração limitada; a
incidência sobre o funcionamento do sistema.
Por outro lado, existe um verdadeiro processo da crise, em que é possível, numa
análise expost, distinguir uma fase antecedente, onde se costumam procurar as
origens e as causas, a fase aguda da própria crise e a fase subsequente em que
ocorre o retorno a uma certa normalidade, mais ou menos diferente do status quo
ante.
Esta análise é feita pelos Académicos em relação às grandes revoluções:
bastará termos presente as bibliotecas de monografias e ensaios sobre as revoluções
francesa, russa e chinesa. E mesmo o nosso “25 de Abril” tem sido objecto, à nossa
escala, de uma grande atenção pelos cultores das ciências sociais.
No domínio financeiro, são sobretudo as crises económicas subsequentes às
grandes guerras que têm sido estudadas. Mas um dos grandes casos de estudo
continua a ser a Crise Financeira norte-americana de 1929-1932, que tem origem no
Crash da Bolsa de Nova Iorque na Sexta-Feira “negra”, e se prolonga durante vários
anos, bem retratados no romance clássico de STEINBECK, As vinhas da ira. Sabe-se
que o retorno a uma certa normalidade desta crise se prolongou durante uma década,
com o New Dealrooseveltiano, só vindo a ser superada pelo enorme crescimento dos
E.U.A. na fase da chamada “economia de guerra”.
Talvez não seja por acaso que o Presidente da Reserva Federal norteamericana nomeado em plena crise financeira pela Administração BUSH tenha sido
um Académico respeitado profundo investigador de temas relacionados com a Grande
Depressão…
4.
Importa voltar à “nossa” Crise, que é uma das componentes da crise mais vasta
da Zona Euro.
(2)
ilDizionariodi Politica, UTET, Turim, 2004, voc. “crisi”.
3
Todos estamos recordados das ondas de choque que se seguiram à falência da
instituição norte-americana LEHMAN BROTHERS, no final de 2008.
Conforme é posto em destaque pelos analistas económicos, a crise do chamado
sub prime não se confinou aos Estados Unidos da América.
A Globalização encarregou-se de estender a diferentes sistemas financeiros de
vários países as consequências das situações de incumprimento de múltiplas
instituições financeiras norte-americanas, as quais, curiosamente, vieram a ser
“resgatadas” pela Administração BUSH, paradoxalmente forçada a intervir no sector
privado, a injectar liquidez no sistema, contribuindo para agravar drasticamente o
défice público que a chamada Guerra ao Terror já tinha elevado a níveis
preocupantes.
5.
Como todos estão recordados, a União Europeia flexibilizou em 2008 e 2009 os
limites dos défices orçamentais, contrariando a ortodoxia financeira que adoptara na
instituição da União Económica Monetária (UEM), e que visava a adopção de uma
moeda única por parte de vários Estados Membros, na impossibilidade de abranger
todos.
Aproveitando tais facilidades, os Estados da União Europeia procuraram
fortalecer o sistema financeiro, tendo ocorrido em diferentes países nacionalizações ou
outras formas de intervenção financeira em Bancos mais expostos à crise do sub
prime ou às situações de incumprimento de alguns Estados sul-americanos, com
destaque especial para a Argentina.
Todos estamos recordados das imagens assustadoras da corrida aos balcões
dos depositantes clientes do NORTHERN ROCK que evocavam perigosamente as
fotografias de Wall Street no longínquo ano de 1929… Seguiram-se outros bancos no
Reino Unido e no Continente.
E um pequeno país fora da União Europeia, a Islândia, viu com estupefacção o
seu sistema financeiro afundar-se, com a insolvência das principais instituições
bancárias as quais, com total imprudência e irresponsabilidade e sem o adequado
controlo de supervisão, se tinham aventurado em investimentos suicidas em produtos
financeiros de alto risco cuja toxicidade se veio a revelar letal. Nesse país também se
assistiu a situações que até agora eram inéditas: responsabilização criminal dos
membros do Governo que tinham omitido os controlos ao Sistema financeiro, resposta,
através de referendo dos cidadãos desse país, de que se não responsabilizariam
4
perante entidades estrangeiras pelos incumprimentos dos seus bancos. Lembra o
título de peça de DARIO FO, “Não se paga, não se paga”…
6.
O grande endividamento dos Estados europeus veio a tornar-se problemático no
final de 2009, inícios de 2010, quando começaram a cair as notações das agências de
rating relativamente à Grécia, à Irlanda e a Portugal.
II
A CRISE FINANCEIRA E O DIREITO
i) O INÍCIO DA CRISE
7.
Todos estamos recordados dos dias sombrios do final de 2010 e do início de
2011 quando as agências de rating começaram a baixar as notações do Estado
Português e de várias instituições financeiras e empresas públicas portuguesas.
Portugal pensava que estaria melhor do que a Grécia, mas começava a
aperceber-se de que não estava imune ao contágio. A crise irlandesa, por outro lado,
tornou-se inexplicável para nós, pois ao longo de quase duas décadas, havíamos
querido ser o “bom aluno” da Comunidade Europeia, com os olhos postos no louvável
exemplo da Irlanda, o caso de sucesso de adesão de um pequeno país que parecia ter
tirado todas as virtualidades do enquadramento comunitário para atingir níveis
elevados de crescimento económico.
8.
Todos estamos lembrados também da prevenção do Ministro TEIXEIRA DOS
SANTOS do limite inultrapassável em matéria de juros da dívida soberana portuguesa
– 7%. Não serve de consolo, mas é hoje a Itália que já viu ultrapassada essabarreira
de segurança.
A verdade é que nos mercados agitados a dívida soberana ultrapassou
rapidamente a lei de bronze que a teoria económica apontava e em breve se
ultrapassaram os dois dígitos nos juros no mercado secundário.
Embora
o
Governo
de
SÓCRATES
jurasse
porfiadamente
que
não
precisaríamos de seguir os passos da Grécia e da Irlanda e que uma terapia caseira
5
com algum auxilio do BCE chegaria para ultrapassarmos as dificuldades, a verdade é
que, não tendo uma maioria parlamentar, estava dependente da boa vontade do
principal partido da Oposição para conseguir fazer passar no Parlamento os célebres
PECS, Planos de Estabilidade e Crescimento, que o País estava vinculado a
apresentar à Comissão Europeia anualmente.
Não vale a pena relatar como tudo acabou quando uma “coligação negativa” de
todos os Partidos de Oposição levou à demissão do Governo e à convocação de
eleições gerais.
A negociação que se seguiu com o BCE, a Comissão Europeia e o Fundo
Monetário Internacional, a salvífica TROIKA, ditou os termos em que o País seria
resgatado.
ii) A SITUAÇÃO DE EMERGÊNCIA ECONÓMICA E SEUS REFLEXOS JURÍDICOS
9.
Como se sabe, a Constituição da República Portuguesa prevê no seu art. 19.º
um “sistema de controlo de crises”(3)ou de “excepção constitucional” em que se faz, de
acordo com a gravidade da ameaça, uma diferenciação entre o estado de sítio, mais
grave, e o estado de emergência, menos grave.
Neste quadro, GABRIEL PRADO LEAL formula, em estimulante estudo sobre o
estado de excepção económica, a seguinte questão:
“Em sua origem, os regimes de excepção constitucional foram
mesmo delineados para permitir a suspensão apenas dos
direitos
de
liberdade,
relacionados
directamente
com
a
preservação da ordem contra perturbações de origem políticomilitar.
Porém,
em
uma
crise
económica,
os
direitos
fundamentais mais ameaçados são os económicos, sociais e
culturais,
que
consubstanciam
o
núcleo
dos
direitos
prestacionais.
(3)
Utilizamos a expressão de Gabriel Prado Leal, in “Excessão económica e governo das crises
nas democracias”, in Sustentabilidade Fiscal em Tempos de Crise, ob. colectiva coordenada
por J. Casalta Nabais e Suzana Tavares da Silva, Coimbra, Almedina, 2011, pág. 120.
Sobre o art. 19.º da CRP vejam-se G. Canotilho e Vital Moreira, CRP – Constituição da
República Portuguesa Anotado, I, 4.ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 2007, págs. 397-405.
Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, I, 2.ª ed., Coimbra,
W.Kluwer/Coimbra Editora, 2010, págs. 405-414.
6
Será possível cogitar a sua suspensão, ainda que ausente a
previsão constitucional expressa?”(4)
Não parece possível, sem arrimo no texto constitucional, admitir a situação de
emergência económica, que permita a pura e simples suspensão de direitos
fundamentais, nomeadamente de direitos e deveres sociais. De facto, “os órgãos de
soberania não podem, conjunta ou separadamente, suspender o exercício dos direitos,
liberdades e garantias, salvo em caso de estado de sítio ou de estado de emergência,
declarados na forma prevista na Constituição” (art. 19.º, n.º 1, da Constituição).
As dificuldades decorrentes de uma crise financeira não podem seguramente
qualificar-se como uma calamidade pública, expressão reservada para catástrofes
naturais (terramotos, inundações, incêndios de grande gravidade) ou sanitária (surto
infeccioso
incontrolável),
as
quais
postulam
tradicionalmente
um
iusextremaenecessitatis.
A verdade é que, sem ir a esse extremo, têm sido encontrados pelas
jurisprudências constitucionais e pela doutrina mecanismos justificativos de certas
restrições legislativas temporárias na área dos direitos económicos e sociais,
independentemente do texto constitucional em concreto ou de uma antecipação fáctica
de uma revisão constitucional extraordinária e iminente.
Apesar de se esgrimirem na doutrina e na jurisprudência constitucionais certos
tópicos conflituais como a proibição de retrocesso legislativo, por um lado, e o carácter
programático de alguns direitos sociais ou a reserva económica do possível, a verdade
é que, em casos paradigmáticos, as jurisdições constitucionais têm salvo as medidas
legislativas de combate à crise, sem prejuízo de exemplos históricos marcantes de
uma longa luta entre a Administração Roosevelt e o Supremo Tribunal Americano,
com sucessivas inconstitucionalizações de legislação económica por alegada violação
do espírito liberal da Constituição. Sabe-se que, ao fim de seis anos, através da
substituição de juízes vencidos pela lei da vida (ou da morte…) a situação se veio a
alterar.
Por curiosidade, aludirei a dois exemplos concretos desta “benevolência” dos
Tribunais Constitucionais.
O primeiro exemplo vem do Brasil e é referido por GABRIEL PRADO LEAL no
seu já citado estudo.
(4)
Estudo cit., ob. cit., pág. 120.
7
O Estado do Rio Grande do Sul impugnou em 2007, através de “Suspensão de
Segurança”, uma decisão liminar de um tribunal desse Estado da União que, em sede
de mandado de segurança, suspendera a determinação do governo estadual de limitar
o pagamento dos servidores públicos até 2.500 reais no mês a vencer, fixando
calendário, no mês seguinte, para pagamento da restante remuneração. O tribunala
quo havia fundamentado a sua decisão em disposição expressa do art. 35.º da
Constituição Estadual, que fixa prazo para pagamento.
Segundo o relato deste autor, o “Ministro Gilmar Mendes [presidente à época do
Supremo Tribunal Federal] reconheceu a constitucionalidade do referido artigo 35.º,
mas observou que, embora plenamente válido, seria preciso interpretá-lo de acordo
com a realidade fáctica, uma vez que «é notório que a administração pública estadual
não dispunha, naquele momento, de recursos financeiros suficientes para o
cumprimento de todas as suas obrigações». Para ele a excepcionalidade da situação
justificaria o descumprimento da norma. Com o apoio no pensamento jurídico do
possível, o Ministro sustentou, então, que «a eficácia da norma constitucional do artigo
35.º da Constituição do Estado do Rio Grande do Sul […] depende de um estado de
normalidade das finanças públicas estaduais»”(5)
O segundo exemplo vem de Portugal e diz respeito à fiscalização abstracta
sucessiva de três preceitos da Lei de Orçamento de Estado para 2011 referentes à
redução das remunerações totais ilíquidas mensais dos titulares dos Órgãos de
Soberania, altos cargos públicos e de outros órgãos constitucionais, membros e
trabalhadores do gabinetes, militares, pessoal dirigente da Função Pública, e outros
servidores e trabalhadores da Função Pública, bem como a várias reduções de
componentes do sistema retributivo de magistrados juízes e magistrados do Ministério
Público. A fiscalização de constitucionalidade fora requerida por um grupo de
Deputados da Assembleia da República. Por maioria, com três votos de vencido, o
Tribunal Constitucional, através do Acórdão n.º 396/2011 (relatora Cons.ª Lúcia
Amaral)( 6), decidiu não declarar a inconstitucionalidade material requerida.
Nessa decisão muito criticada, o Tribunal Constitucional considerou que, apesar
de não se prever termo para a redução entre 3,5% e 10% de um amplo universo de
pessoas que recebem retribuições pagas por dinheiros públicos e que aufiram mais de
€1.500,00, daí não se podia inferir “o carácter definitivo da vigência de tais normas. É
necessário ter aqui em conta a natureza que revestem os preceitos constitucionais
(5)
(6)
Estudo cit., ob. cit., pág. 127.
In Diário da República, II Série, n.º 199, de 17 de Outubro de 2011.
8
relativos à vigência das leis do Orçamento”. Não seria, porém, assim relativamente às
reduções em 20% dos subsídios atribuídos a magistrados equiparados a ajudas de
custo, dado o seu carácter percentual e aparentemente sem limite de vigência.
E apelando às condicionantes da situação fáctica ou real, pode ler-se neste
acórdão:
“… Mas não pode ignorar-se que as reduções remuneratórias
estabelecidas na lei do Orçamento do Estado de 2011 têm como
objectivo final a diminuição do défice orçamental para um valor
precisamente quantificado, respeitador do limite estabelecido
pela União Europeia, no quadro das regras da união económica
e monetária. Para o efeito, foi estabelecida uma calendarização
por etapas anuais, sendo que a satisfação plena de tal objecto
só se atingirá, de acordo com o programado, em 2013[…]
Neste contexto, pode dizer-se que as medidas de diminuição da
despesa pública inscritas no orçamento de 2011 mais não
representam do que uma parcela, uma fase, de um programa
cuja realização integral se estende por um horizonte temporal
mais alargado. Não tendo o legislador optado, porém, por
estabelecer expressamente para as reduções remuneratórias
uma vigência correspondente à do PEC (2010-2013), esse dado
não invalida a conclusão de que elas vigorarão segundo a sua
natureza de medidas carácter orçamental, ou seja, anualmente
caducando no termo do ano em curso. Apenas leva a dar como
praticamente certa, porque necessária para o cumprimento das
vinculações assumidas, a repetição de medidas de carácter
idêntico, para vigorar nos anos correspondentes aos da
execução do programa que as justifica e em que se integram, ou
seja, até 2013.”
Temos claramente neste texto o afloramento do sistema da reserva do possível
ou do estado de emergência económica, o recurso ao velho brocando romano
“saluspopuli suprema lex esto” que justificava os períodos de ditadura na velha Roma.
Dai que o Tribunal Constitucional tenha acentuado que a eventual plurianualidade das
medidas “se insere num «contexto de excepcionalidade», não visando qualquer tipo de
9
retrocesso social, mas sim o cumprimento das metas resultantes do Pacto de
Estabilidade e Crescimento”. Faz-se, assim, apelo às “condições excepcionais e
extremamente adversas para a manutenção e sustentabilidade do Estado Social”.
E no plano das relações laborais públicas e privadas, o Acórdão em análise
aponta para que a irredutibilidade dos salários não tem assento constitucional, mas
apenas na lei ordinária, aparecendo apenas na legislação infraconstitucional, com a
consequência de que pode sempre ser alterada por lei, embora o que esteja proibido,
“em termos absolutos, é apenas que a entidade empregadora, tanto pública como
privada, diminua arbitrariamente o quantitativo da remuneração, sem adequado
suporte normativo”. No quadro das convenções internacionais de que o Estado
Português é parte, nomeadamente da Convenção n.º 95 da OIT, ratificada em 1981,
será possível a redução salarial dos trabalhadores privados, desde que não ocorra
diminuição arbitrária por parte da entidade patronal, sem suporte normativo.
Creio, por isso, que, a manter-se a doutrina deste Acórdão, dificilmente será de
esperar inconstitucionalizações de medidas legislativas de supressão dos subsídios de
férias e de Natal, relativamente a trabalhadores públicos e privados (7).
A questão será resolvida em termos políticos, não sendo de esperar que no
plano jurídico possam ser erguidos diques de contenção face às exigências
publicitadas da TROIKA, sobretudo do FMI.
É claro que a redução de pensões pagas pela Segurança Social a trabalhadores
privados poderá revestir-se de alguma especificidade, face ao discurso do Acórdão n.º
396/2011. Veremos o que irá suceder, não se podendo olvidar que parte dos juízes
que votaram este Acórdão deverão ser substituídos no primeiro semestre de 2012.
Seja como for, é seguro que a diminuição de receitas fiscais que se vem
verificando no corrente ano vai agravar-se e que a sustentabilidade fiscal do Estado –
com o crédito cortado nos mercados e o recurso limitado ao BCE –acarretará
aretracção do Estado Social,que irá continuar inexoravelmente.
(7)
Sobre o princípio da irredutibilidade dos salários vejam-se Pedro Romano Martinez, Direito
do Trabalho, 5.ª ed., Coimbra, Almedina, 2010, págs. 649 e segs; Diogo Vaz Marecos, Código
do Trabalho Anotado, Coimbra, WKluwer/Coimbra Editora, 2010, págs. 338-339.
10
iii) AS CONSEQUÊNCIAS DA CRISE: PREVISÍVEIS
ALTERAÇÕESNO DIREITO DO TRABALHO
10. Para além da redução salarial referida, é curioso que deixou de se falar na
urgente revisão constitucional que o PSD advogou, após a escolha de PASSOS
COELHO como líder.
A existência de uma ampla maioria partidária vinculada pelo “Memorando de
Entendimento sobre as condicionalidades de política económica”, acordado com a
Comissão Europeia e do “Memorando de Políticas Económicas e Financeiras”
acordado com o FMI não torna urgente tal revisão, sobretudo em matéria laboral.
O caminho trilhado já com a publicação da primeira Lei de Alteração ao Código
do Trabalho (Lei n.º 53/2011, de 14 de Outubro) e as modificações que se anunciaram
para este último diploma no contexto da aprovação iminente do Orçamento de Estado
para 2012 levarão a tornar mais barato o despedimento de trabalhadores,
nomeadamente os despedimentos colectivos ou por extinção do posto de trabalho. Por
ora, estamos face ao aditamento do art. 366.º-A ao Código de Trabalho, mas tudo
indica que o novo cálculo de indemnizações acabará por ser aplicado aos contratos
agora não abrangidos (contratos vigentes na data da entrada em vigor da referida Lei
n.º 53/2011).
São de esperar igualmente alterações processuais destinadas a acelerar toda a
matéria de despedimentos, embora sejam previsíveis fortes reacções dos organismos
sindicais, ainda que o contexto de crise não seja propício a lutas prolongadas dos
trabalhadores.
Mantendo-se os mecanismos de concertação social, é de recear que os mesmos
sejam impotentes para evitar a adopção de mecanismos mais gravosos no domínio da
relação laboral.
iv) AS CONSEQUÊNCIAS DA CRISE: O “ENCOLHIMENTO” DOS
DIREITOS SOCIAIS, NO ÂMBITO DA SEGURANÇA SOCIAL
11. Omodelo social europeu que a Administração OBAMA tentou louvar para fazer
aprovar a sempre adiada Reforma da Saúde nos Estados Unidos está sob fogo
generalizado dos próceres do neo-capitalismo, sobretudo os norte-americanos que se
11
aproveitamdo movimento do Teapartycujas críticas inspiram os principais candidatos
presidenciais do campo republicano que lutam pela nomeação.
Há mesmo teorias “conspirativas”, publicadas na imprensa e subscritas por
respeitáveis académicos, que sustentam que o calendário conservador norteamericano não é alheio às baixas de notação das agências de rating e que o ataque
ao euro e à economia da União Europeia visa, em última instância, criar condições de
afastamento entre esta e os Estados Unidos e pôr definitivamente em causa o modelo
social europeu.
As dificuldades orçamentais e o afastamento de vários Estados do euro dos
mercados, inviabilizando a continuação do endividamento, vão ter necessariamente
consequências recessivas nas economias mais frágeis, pondo em causa a
sustentabilidade fiscal e financeira do Estado social.
Portugal, segundo os indicadores de 2009 – anteriores ainda aos resultados do
último Censo – é um país envelhecido, em que nos seus cerca de 10 milhões de
nacionais – a população residente, incluindo estrangeiros, é estimada em 10,6 milhões
de pessoas – quase um quinto tem mais de 65 anos. O índice de envelhecimento anda
pelos 116,5% (relação entre idosos/jovens x100), sendo a taxa bruta de natalidade
ligeiramente inferior à taxa de mortalidade.
Neste contexto e numa tendência geral do empobrecimento da população, com
uma taxa de desemprego de mais de 12% e com tendência para aumentar, a pressão
sobre as prestações sociais até aqui a cargo do Estado tende a agravar-se.
São, por isso, de esperar diversas alterações no regime dessas prestações
sociais, aumentando as taxas moderadoras do Serviço Nacional de Saúde,
restringindo os meios materiais e humanos deste, o que tudo acarretará mudanças
legislativas, para além das medidas administrativas que traduzem diferentes políticas
económicas.Inevitavelmente, a qualidade das prestações tenderá, mais ou menos
lentamente, a degradar-se.
Na segurança social, algumas conquistas tidas por irreversíveis poderão ser
postas em causa com o argumento da “emergência social” e da “reserva do possível”.
Todavia, neste domínio a Constituição é exigente e existe uma ampla
jurisprudência constitucional que dificilmente poderá ser desconhecida(8). Por outro
(8)
Veja-se a análise muito completa dessa jurisprudência in João Carlos Loureiro, “Proteger é
preciso, viver também: a jurisprudência constitucional portuguesa e o direito da segurança
social”, in XXV Anos de Jurisprudência Constitucional Portuguesa, Coimbra, Coimbra Editora,
2009, págs. 255-398.
12
lado, as instituições democráticas terão de velar por que as restrições das prestações
sociais não ponham em causa o princípio inultrapassável da dignidade da pessoa
humana, o qual não é só tutelado pelo Estado, como também pelas obrigações da
assistência familiar(9). Mas há exigência constitucionais que não podem ser
descartadas, como sejam o direito ao subsídio do desemprego, ao rendimento social
de inserção, entre outros. Simplesmente, o quantum desses subsídios não é garantido
e dificilmente se poderá aqui apelar a um princípio de proibição de retrocesso social.
III
AS CONSEQUÊNCIAS DA CRISE NO PLANO DO DIREITO PRIVADO
i) O SOBREENDIVIDAMENTO E OS SEUS REFLEXOS NOS
DIREITOS PROCESSUAIS E NA ORGANIZAÇÃO JUDICIÁRIA
12. No plano do direito privado, incluindo o direito processual civil, creio que as
eventuais modificações terão sobretudo a ver com o fenómeno de sobreendividamento
das pessoas e das famílias, decorrente da desenfreada expansão do crédito ao
consumo nos E.U.A. e na União Europeia.
Como escreve FREI BENTO DOMINGUES no prefácio da tradução portuguesa
de um Manifesto impressionante de autor francês anónimo, Insolvables!
“Já não importa ter ou não ter dinheiro. O que importa é ter
crédito e este é dado pela Banca. Esta faz publicidade de tudo. A
Banca incita a comprar, a gastar. Ela lá está para emprestar. O
seu delírio faz delirar os desejos mais absurdos. Pode-se ter
tudo a crédito: bens de primeira necessidade, produtos de luxo,
viagens, férias, casas, carros, festas de casamento e baptizado.
Depois, esperem pelo resto. Tornaram-se insolventes, como
(9)
Ver, por exemplo, o Acórdão n.º 525/01 (in Acórdãos do Tribunal Constitucional, n.º 52, págs.
415 e segs).
13
mostra este livro admirável. Só há remédio na conversão do
desejo.”(10)
Neste Manifesto anticapitalista, que contém uma acusação duríssima contra os
Bancos no seu conjunto – qualificados como “donos do mundo […], como louva-adeus demoníacos, predadores de mandíbulas canibais, sem outra religião para além
do prazer imediato do dinheiro, [que] despojam os clientes que acreditam ser
beneficiados e matam-nos sem escrúpulos em pequenas mensalidades”( 11)–são
indicados números em relação à França que não podem ser ignorados: 4 milhões de
desempregados, 6 milhões de sobreendividados, 7 a 9 milhões abaixo do limiar da
pobreza. Mas a situação replica-se em todo o mundo industrializado e consumista.
Em Portugal, os números são talvez mais impressionantes do que os da França,
sobretudo no que diz respeito à percentagem dos desempregados. Existem quase
dois milhões de pobres, ou seja, 700.000 famílias que vivem com menos de 400 euros
por mês, existem 2 milhões de famílias (57% da população) que, em média, dispõem
de 1600 euros mensais (os rendimentos oscilam entre os 10.000 e os 27.000 euros
anuais). É o que se poderá chamar-se a classe média. Apenas cerca de 5% da
população dispõe de rendimentos brutos de 5.000 euros mês e é neste segmento
(como na classe média mais abonada) que vêm ocorrendo os mais preocupantes
casos de sobreendividamento. Para rematar, só 1% da população (100.000 pessoas
ou 37 mil famílias) vivem com mais de 150.000 euros por ano(12).
É neste momento sobre os funcionários ou agentes do sector público e sobre
todos os pensionistas que incidem as reduções salariais ou das pensões.
As situações de desemprego que atingem um ou dois membros de uma família
geram o descalabro financeiro, pois à diminuição dos rendimentos mensais associa-se
a situação de incumprimento das obrigações de reembolso dos créditos obtidos. É a
palavra default, tanto utilizada no jargão dos economistas. É caso de perguntar se em
situações deste tipo não se justificará uma modificação contratual ao abrigo do art.
437.º do Código Civil.
O aumento anual das pendências executivas e a explosão das injunções
traduzem, em grande parte dos casos, as consequências do sobreendividamento. O
(10)
Prefácio a “Falidos! Um grito de esperança no meio da crise”, Porto, Porto Editora, 2011,
pág. 8.
(11)
Ob.cit., pág. 27.
(12)
Números referentes a 2008, referidos por Martim Avillex Figueiredo em “Existe alguma
possibilidade de sair destecrise?”, in Portugal para além da crise, ob. colectiva, Lisboa,
Universidade Católica portuguesa 2011, págs. 26-27.
14
valor médio das execuções não ultrapassa os 5.000 euros e, em termos numéricos,
uma elevada percentagem dessas execuções situa-se mesmo abaixo dos 2.500 euros.
O problema agudiza-se quando a mesma pessoa ou família tem pendentes contra si
três ou quatro execuções e está na iminência de ser executada pelas dívidas
acumuladas do financiamento concedido para a habitação.
Acossados pelos credores, pelos cobradores de fraque e por outros profissionais
do género, destinatários de cartas não abertas dirigidas por outros credores, a saída
mais fácil acaba por ser o requerimento de insolvência com a expressão de, no final de
cinco anos, se poder imaginar um freshstart… Até lá, uma parte significativa dos
rendimentos que restam são entregues ao administrador de insolvência e todos os
tipos de privações vão sendo experimentados. Alguns tentam a emigração, alguns
procuram a ajuda da família, o risco de suicídio permanece no horizonte de alguns.
13. Neste contexto do sobreendividamento das famílias e dos particulares, o Estado
é pressionado para encarar a melhoria da eficiência da máquina judiciária e dos
diferentes processos.
Entre nós, a Reforma da Acção Executiva (2003) criou um novo profissional
liberal, o solicitador de execução.Em 2008, o Decreto-Lei n.º 226/2008, de 20 de
Novembro, procurou afastar o mais possível o juiz e a secretaria das execuções,
conferindo excessivos poderes aos agentes de execução, só deixando intervir o
primeiro daqueles quando seja inultrapassável a reserva do juiz.
Face ao elevadíssimo número de pendências executivas, os consultores da
TROIKA exigem medidas simplificadoras, mostrando-se mesmo surpreendidos com os
pruridos nacionais de observância das garantias constitucionais. Nas execuções dos
despejos propõem-se soluções de remoção imediata dos inquilinos faltosos,
manumilitari se necessário, acolhendo-se as soluções mais expeditas dos norteamericanos e dos ingleses na matéria.
Tendo-se apercebido de que o número excessivo de mais de um milhão de
execuções pendentes engloba uma elevada percentagem de falsas pendências
(acordos de pagamento em prestações, execuções paradas por falta de bens
penhoráveis, execuções deixadas ir à conta, etc.), aconselham vivamente o Ministério
da Justiça a levar acabo medidas de saneamento da situação presente, pondo termo
às falsas pendências.
15
14. Relativamente aos litígios entre empresas, a TROIKA acolheu favoravelmente o
propósito dos anteriores Governos e do presente de substituir a Lei de Arbitragem
Voluntária de 1986 por uma nova Lei de Arbitragem mais moderna, inspirada na LeiModelo da CNUDCI.
Além de acompanharem os trabalhos de preparação da lei, sugerindo soluções
tidas por mais expeditas, pretendiam mesmo que fosse consagrada uma prioridade na
execução das sentenças arbitrais….
A verdade é que os trabalhos de preparação da nova LAV se arrastaram inglória
e inexplicavelmente entre Março de 2009 e Maio de 2011, mas com o “empurrão” da
TROIKA a Lei foi aprovada em três meses, acolhendo o Governo actual plenamente o
Projecto da APA de 2009, revisto em 2010.
Do mesmo modo, pressiona o Governo no sentido de simplificar o processo
declarativo comum, importando para a respectiva regulamentação o que tenha sido
valorado favoravelmente no Regime Processual Experimental.
Igualmente estão na calha alterações pontuais ao Código de Insolvência e de
Recuperação da Empresa (CIRE) e ao Regulamento de Custas Processuais.
E os particulares e as empresas procuram frequentemente evitar todos os custos
– de diferente ordem – de uma insolvência, recorrendo a formas privadas de
liquidação de património quando as dívidas no sector público são inexistentes ou
pouco significativas: dações em pagamento ou cessões de bens aos credores,
cessões de créditos cobráveis, etc.
15. Neste pano de fundo, recorta-se a questão da organização judiciária. O actual
Governo viu-se confrontado com a necessidade de implementar a Lei da Organização
e Funcionamento dos Tribunais Judiciais de 2008, com fortes pressões nesse sentido.
Logrou todavia convencer as novas figuras tutelares de que era demasiado cara
a implementação dessa Organização Judiciária – que comportava 39 “grandes”
comarcas – sustentando que o número deve ser substancialmente menor (20 grandes
comarcas, 18 das quais coincidentes com a área dos distritos-administrativos).
A crise condiciona, assim, a malha judiciária, em termos que não são
perfeitamente claros no presente momento.
16
16. Relativamente aos contratos obrigacionais – de natureza civil ou comercial –
importa dizer que as alterações de circunstâncias estão previstas nos arts. 437.º e
439.º do Código Civil como instituto que pode dar origem à resolução de um contrato a
requerimento da parte lesada ou à modificação dele segundo juízos de equidade.
Poderá ser um instituto a que venha a recorrer-se com mais frequência se
vierem a verificar-se factos a que se alude amiúdas vezes com a esperança de que
não venham a ocorrer, nomeadamente a saída do País da União Europeia e,
concomitantemente, do euro.
Como se sabe, a seguir à I Guerra Mundial os tribunais europeus, sobretudo os
alemães, ocuparam-se de casos em que as desvalorizações galopantes de certas
moedas – com destaque para o marco – afectaram irremediavelmente a justiça
contratual. Eram os célebres casos de preços fixados antes da inflação galopante, os
casos de taxas de câmbio fixadas e de cotações bolsistas. Como recorda KARL
LARENZ numa bem conhecida obra sobre a base do contrato, devido ao facto de o
BGB não solucionar especificamente os problemas de alterações de circunstâncias.
“… a jurisprudência alemã esforçou-se durante a primeira guerra
mundial e depois desta por proferir sentenças objectivamente
justas, ao princípio mediante uma interpretação extensiva do
conceito de impossibilidade da prestação do §275.º do Código
Civil (quer dizer, a denominada «impossibilidade económica»);
posteriormente, mediante a «interpretação integradora do
contrato» (§157.º do CC), e, finalmente, mediante a aplicação
imediata do princípio da «boa-fé» expresso no §242.º do Código
Civil. Através da obra de PAUL OERTMANN, aparecida em
1921,
sobre a «base do negócio» cujas
ideias
foram
rapidamente aceites, estes esforços alcançaram tanto uma
fórmula em relação a qual têm sido familiares desde então os
juristas alemães, como o firme fundamento de uma «teoria»
metódica que determinasse de modo preciso o pressuposto de
facto e as consequências jurídicas”(13)
(13)
Base del Negocio Jurídico yCumplimiento de los Contratos, trad. espanhola, Madrid, Ed.
Revista de Direito Privado, 1956, págs. 1-2.
17
A reelaboração de LARENZ sobre o conceito de base do negócio tendo por pano
de fundo as alterações de circunstâncias decorrentes da II Guerra Mundial,
distinguindo a base subjectiva e a objectiva do negócio jurídico, inspirou as soluções
do nosso Código Civil, aí se distinguindo claramente o erro subjectivo sobre os
motivos e sobre a base do negócio (art. 252.º) por um lado, e a alteração de
circunstâncias enquanto fundamento de resolução do negócio ou modificações
segundo juízos de equidade, por outro.
Em períodos de crise, os tribunais portugueses dispõem, assim, de soluções
normativas que permitem encontrar com facilidade a justiça do caso concreto.
ii) AS ALTERAÇÕES DE CIRCUNSTÂNCIAS
E OSEMPRÉSTIMOS IMOBILIÁRIOS
17. Uma situação bastante frequenteocorre nos empréstimos bancários para
aquisição de imóveis, sendo o caso paradigmático o dos empréstimos para aquisição
de habitação própria.
Em contratos celebrados há alguns anos, o empréstimo foi concedido em função
do valor da avaliação (próximo do valor de mercado) da garantia, ou seja, do imóvel a
adquirir com o produto do empréstimo.
Sabe-se que os valores de mercado dos prédios urbanos e suas fracções
autónomas caíram fortemente desde 2009, havendo quem aponte para 30% a 40% de
depreciação nos principais centros urbanos.
Em caso de execução da garantia hipotecária, é natural que o preço da venda
do imóvel se venha a situar num nível inferior ao do valor actual de mercado do
imóvel, quer seja o Banco a adquiri-lo por adjudicação ou compra, quer seja um
terceiro.
Nestes casos, haverá uma parte significativa do crédito que não conseguirá ser
satisfeita pelo produto de venda, continuando a entidade financiadora a dispor de um
crédito sobre o mutuário e os seus eventuais fiadores ou avalistas.
Tal significará que o risco da desvalorização do imóvel recairá exclusivamente
sobre o mutuário e os seus garantes.
Face a uma situação clara de alteração de circunstâncias, existe espaço para
que os tribunais intervenham, porventura invocando a doutrina da boa fé para
18
considerar que, uma vez executada a garantia hipotecária, a dívida se extingue pelas
forças do objecto da garantia. Ao que parece, há já decisões de 1.ª instância nesse
sentido.
Haverá igualmente espaço de intervenção para o próprio legislador, como de
resto já foi proposto recentemente.
E sempre poderá, por acordo (ou judicialmente?) converter um mútuo para
aquisição de habitação num arrendamento temporário, eventualmente através de
dação em pagamento com cláusula a retro.
18. Relativamente ao arrendamento urbano, é de esperar que aumentem as
pressões dos senhorios para total liberalização do mercado, suprimindo-se a “hipoteca
social” que tem presidido às legislações vinculísticas do arrendamento introduzidas em
1986, 1990 e 2006, que subsistem ainda quanto aos arrendamentos de pretérito.
Resta saber se o Poder Político estará em condições de abrir mais uma frente de
batalha, atingindo sobretudo as camadas da população urbana mais envelhecidas.
19. Haverá seguramente outras alterações no direito privado, mas as mesmas não
são para mimprevisíveis.
IV
O FIM DA CRISE E O FUTURO
20. Como nos dizem os sociólogos, os economistas e os cultores da Ciência
Política, as crises têm um processo cronológico, acabando por ter uma duração mais
ou menos prolongada até se retomar uma certa normalidade.
Julgo que ninguém arrisca na Europa um prognóstico da duração da presente
crise, a qual tem a ver com um rearranjo global de partilha do poder político e
económico no Mundo.
A emergência de novas potências como a China, a India e o Brasil e um certo
renascimento da Rússia, significarão o definhamento da superpotência E.U.A e, em
dimensão mais acentuada, da União Europeia? A “locomotiva” alemã não quererá ou
19
poderá puxar os países da União para um patamar de crescimento sustentável? A
crise que atingiu os periféricos Grécia, Irlanda e Portugal(em conjunto 6% do PIB da
União) estender-se-á a potências grandes como a Itália, a Espanha e, eventualmente,
a França? Concordarão as potências emergentes dos BRIC em tomar sobre si parte
da dívida da EU, permitindo uma alavancagem da economia europeia?
Estas interrogações irão ser respondidas com o tempo, mas parece que a
fragilidade das lideranças do eixo franco-alemão – acentuada pela proximidade de
eleições internas a disputar em condições adversas por SARKOZI e MERKEL – não
augura um futuro radioso para a U.E.
Põe-se, por isso, o risco de alguns dos Estados serem “convidados” a sair da
União e a abandonar o sistema euro, havendo numerosos Académicos e publicistas
que asseguram que tal está para breve. Todavia, a questão não é só económica, é
sobretudo política!
Em tal cenário catastrófico, o Estado, os Bancos nacionais, as famílias e as
empresas manterão as dívidas titulados em euros mas as receitas futuras passarão a
ser percebidas na moeda local renascida, com observância do princípio do
nominalismo
continuamente
monetário,
a
taxa
em
de
contexto
câmbio
da
inflacionista
moeda
inevitável,
local.
Poderá
degradando-se
chegar-se
à
inconvertibilidade do novo escudo e a uma situação de falência global. Estaremos, por
isso, longe das preocupações de já longínquo Regulamento n.º 1103/97 que
disciplinara a introdução do euro, com salvaguarda do princípio de estabilidade dos
contratos!
Mas mesmo que Portugal e os “suspeitos do costume” se mantenham no
sistema euro, o empobrecimento global será significativo e todos os Estados terão de
adoptar políticas recessivas impostas pelos credores externos. A conflitualidade social
não deverá, por isso, abrandar, antes se agravará, sendo duvidoso que o carácter
tradicionalmente ordeiro se mantenha com a intervenção de muitos descontentes
desenquadrados.
21. Não é possível prever como evoluirá o sistema jurídico e qual o figurino
constitucional que virá a ser adoptado. A constituição do Século XXI, mantendo
embora o regime democrático, será radicalmente diferente da Constituição
compromissória que temos e que resulta em grande parte das alterações que o
20
partido-de-regime – o Partido Socialista – tem aceite, de forma mais ou menos
convencida?(14)
Entramos num domínio difícil de vaticinar, mas creio que é seguro que iremos ter
saudades dos gloriosos anos noventa do passado século quando o sonho era europeu
e não se tinha a consciência plena de que 20% da população humana consome 86%
dos recursos da Terra!
Receio que para todos nós o sonho se tenha tornado um pesadelo e que- salvo
um milagre – o empobrecimento generalizado aprofunde um clima de insegurança e
de confronto social, não sendo perfeitamente claro se o fim da crise corresponderá a
uma situação de maior justiça ou antes a um acumular de injustiças.
É bom não esquecer que, “em casa em que não há pão, todos ralham e ninguém
tem razão”.
Com esperança,porém, devemos confiar que virão melhores dias. Não é
impunemente que o nosso País tem quase nove séculos de história e que tem
superado frequentes crises ao longo da sua vida como Nação independente. E talvez
a Europa à beira do precipício consiga ainda dar um passo atrás.
Confiemos…
Muito obrigado pela vossa atenção.
(14)
Sobre a assimetria do sistema partidário português veja-se Joaquim Aguiar “A nossa
Constituição no contexto da crise da primeira década do Século XXI”, in Portugal hoje para
além da crise cit., págs. 84 e segs.
21
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Intervenção do Dr. Armindo Ribeiro Mendes