A CRISE E OS SEUS EFEITOS PREVISÍVEIS NO DIREITO(♦) ARMINDO RIBEIRO MENDES ADVOGADO I INTRODUÇÃO 1. Gostaria de agradecer ao Exmo Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça o amável convite que me endereçou, embora deva dizer que, ao aceitá-lo, fui seguramente leviano, porquanto o encargo pressupõe uma capacidade de prever o futuro que seguramente não possuo, faltando-me muita informação a que não tenho acesso, para além das evidentes limitações do meu engenho. Todavia, como qualquer outro cidadão deste País, sou confrontado com abundante informação generalista e, mesmo descontando o “ruído” de muita dela, tal informação vai-nos obrigando a reflectir quotidianamente e, pelo menos, a perguntarmo-nos o que virá aí, como será o nosso futuro próximo, durante e para além da crise. Receando que só possa contribuir com fracos “palpites”, procurarei abordar alguns pontos. 2. Começarei por uma breve reflexão sobre a noção de crise e a qualificação de crise atribuída à situação presente de vários países da União Europeia, se não de todos. No editorial do último número de uma reputada revista inglesa consagrada ao Direito Comunitário pode ler-se o seguinte: “Enquanto se escrevem estas linhas, os líderes da União Europeia estão a confrontar-se para decidir como responder à crise financeira. Os desafios que encaram não têm precedente: (♦) Texto que serviu de base à intervenção do Autor no Colóquio “A Crise e os seus Efeitos Previsíveis no Direito”, organizado pelo Supremo Tribunal de Justiça e que teve lugar no dia 23 de Novembro de 2011. estão a tentar afastar, ou, pelo menos, gerir a possibilidade efectiva de incumprimento soberano na zona do euro, proteger os Bancos europeus das respostas imprevisíveis dos mercados, aumentar os mecanismos existentes de apoio aos seus parceiros fragilizados, conter a ameaça de contágio dos países pequenos (que a União tem a possibilidade de resgatar) aos grandes (que a União com toda a certeza não tem a possibilidade de o fazer), injectar confiança nos mercados”(1) Sabemos já que a resposta dos líderes europeus não foi convincente, que a pressão dos mercados sobre a Itália e a Espanha tem continuado e que, afastado o referendo grego seguido pela demissão do Governo, foi possível encontrar uma solução transitória para aplicar as novas medidas de resgate, perfilando-se eleições gereis neste país no início de 2012. Em Itália, porém, a crise da dívida soberana levou à demissão de BERLUSCONI e à constituição de um governo tecnocrático. Estamos ainda longe de ter resolvido a crise da dívida que o Presidente norteamericano considera que está a “aterrorizar” o mundo, um verdadeiro Halloween financeiro. De novo em situação sem precedentes, o Secretário do Tesouro norteamericano veio participar numa reunião do Conselho de Assuntos Económicos e Financeiros da União no passado mês de Setembro para encorajar os Europeus “to getonwithit”, porque “it’s time to move”. E o Ministro das Finanças russo KUDRIN veio declarar que, se a União não actuar decididamente, “estaremos confrontados com uma crise ainda maior, que rebentará noutros países, incluindo o nosso”. Podemos concluir que a crise financeira não será só grega, irlandesa, portuguesa, espanhola e italiana, mas poderá ser uma crise global. A aprofundar-se essa crise, os efeitos nos diferentes ordenamentos jurídicos serão provavelmente profundos e seguramente imprevisíveis. A esperança de todos é que venha a atenuar-se a crise e que não cheguemos a uma catástrofe global que possa prolongar-se por um período de vários anos. 3. Os cultores da Ciência Política e os Economistas têm estudado as diferentes crises sociais, económicas e políticas. (1) Editorial de European Law Review, n.º 36 (2011), pág. 1. 2 Num Dicionário de Política publicado em 2004 por NORBERTO BOBBIO, NICOLO MATTEUCCI e GIANFRANCO PASQUINO, define-se a crise como “um momento de ruptura no funcionamento de um sistema, uma mutação qualitativa em sentido positivo ou em sentido negativo, uma reviravolta imprevisível e frequentemente violenta, não prevista no módulo normal segundo o qual se desenvolvem os interesses no seio do sistema considerado”(2). Os mesmos Politólogos afirmam que as crises têm três características individualizadoras: o seu carácter súbito e, por isso, imprevisível; a duração limitada; a incidência sobre o funcionamento do sistema. Por outro lado, existe um verdadeiro processo da crise, em que é possível, numa análise expost, distinguir uma fase antecedente, onde se costumam procurar as origens e as causas, a fase aguda da própria crise e a fase subsequente em que ocorre o retorno a uma certa normalidade, mais ou menos diferente do status quo ante. Esta análise é feita pelos Académicos em relação às grandes revoluções: bastará termos presente as bibliotecas de monografias e ensaios sobre as revoluções francesa, russa e chinesa. E mesmo o nosso “25 de Abril” tem sido objecto, à nossa escala, de uma grande atenção pelos cultores das ciências sociais. No domínio financeiro, são sobretudo as crises económicas subsequentes às grandes guerras que têm sido estudadas. Mas um dos grandes casos de estudo continua a ser a Crise Financeira norte-americana de 1929-1932, que tem origem no Crash da Bolsa de Nova Iorque na Sexta-Feira “negra”, e se prolonga durante vários anos, bem retratados no romance clássico de STEINBECK, As vinhas da ira. Sabe-se que o retorno a uma certa normalidade desta crise se prolongou durante uma década, com o New Dealrooseveltiano, só vindo a ser superada pelo enorme crescimento dos E.U.A. na fase da chamada “economia de guerra”. Talvez não seja por acaso que o Presidente da Reserva Federal norteamericana nomeado em plena crise financeira pela Administração BUSH tenha sido um Académico respeitado profundo investigador de temas relacionados com a Grande Depressão… 4. Importa voltar à “nossa” Crise, que é uma das componentes da crise mais vasta da Zona Euro. (2) ilDizionariodi Politica, UTET, Turim, 2004, voc. “crisi”. 3 Todos estamos recordados das ondas de choque que se seguiram à falência da instituição norte-americana LEHMAN BROTHERS, no final de 2008. Conforme é posto em destaque pelos analistas económicos, a crise do chamado sub prime não se confinou aos Estados Unidos da América. A Globalização encarregou-se de estender a diferentes sistemas financeiros de vários países as consequências das situações de incumprimento de múltiplas instituições financeiras norte-americanas, as quais, curiosamente, vieram a ser “resgatadas” pela Administração BUSH, paradoxalmente forçada a intervir no sector privado, a injectar liquidez no sistema, contribuindo para agravar drasticamente o défice público que a chamada Guerra ao Terror já tinha elevado a níveis preocupantes. 5. Como todos estão recordados, a União Europeia flexibilizou em 2008 e 2009 os limites dos défices orçamentais, contrariando a ortodoxia financeira que adoptara na instituição da União Económica Monetária (UEM), e que visava a adopção de uma moeda única por parte de vários Estados Membros, na impossibilidade de abranger todos. Aproveitando tais facilidades, os Estados da União Europeia procuraram fortalecer o sistema financeiro, tendo ocorrido em diferentes países nacionalizações ou outras formas de intervenção financeira em Bancos mais expostos à crise do sub prime ou às situações de incumprimento de alguns Estados sul-americanos, com destaque especial para a Argentina. Todos estamos recordados das imagens assustadoras da corrida aos balcões dos depositantes clientes do NORTHERN ROCK que evocavam perigosamente as fotografias de Wall Street no longínquo ano de 1929… Seguiram-se outros bancos no Reino Unido e no Continente. E um pequeno país fora da União Europeia, a Islândia, viu com estupefacção o seu sistema financeiro afundar-se, com a insolvência das principais instituições bancárias as quais, com total imprudência e irresponsabilidade e sem o adequado controlo de supervisão, se tinham aventurado em investimentos suicidas em produtos financeiros de alto risco cuja toxicidade se veio a revelar letal. Nesse país também se assistiu a situações que até agora eram inéditas: responsabilização criminal dos membros do Governo que tinham omitido os controlos ao Sistema financeiro, resposta, através de referendo dos cidadãos desse país, de que se não responsabilizariam 4 perante entidades estrangeiras pelos incumprimentos dos seus bancos. Lembra o título de peça de DARIO FO, “Não se paga, não se paga”… 6. O grande endividamento dos Estados europeus veio a tornar-se problemático no final de 2009, inícios de 2010, quando começaram a cair as notações das agências de rating relativamente à Grécia, à Irlanda e a Portugal. II A CRISE FINANCEIRA E O DIREITO i) O INÍCIO DA CRISE 7. Todos estamos recordados dos dias sombrios do final de 2010 e do início de 2011 quando as agências de rating começaram a baixar as notações do Estado Português e de várias instituições financeiras e empresas públicas portuguesas. Portugal pensava que estaria melhor do que a Grécia, mas começava a aperceber-se de que não estava imune ao contágio. A crise irlandesa, por outro lado, tornou-se inexplicável para nós, pois ao longo de quase duas décadas, havíamos querido ser o “bom aluno” da Comunidade Europeia, com os olhos postos no louvável exemplo da Irlanda, o caso de sucesso de adesão de um pequeno país que parecia ter tirado todas as virtualidades do enquadramento comunitário para atingir níveis elevados de crescimento económico. 8. Todos estamos lembrados também da prevenção do Ministro TEIXEIRA DOS SANTOS do limite inultrapassável em matéria de juros da dívida soberana portuguesa – 7%. Não serve de consolo, mas é hoje a Itália que já viu ultrapassada essabarreira de segurança. A verdade é que nos mercados agitados a dívida soberana ultrapassou rapidamente a lei de bronze que a teoria económica apontava e em breve se ultrapassaram os dois dígitos nos juros no mercado secundário. Embora o Governo de SÓCRATES jurasse porfiadamente que não precisaríamos de seguir os passos da Grécia e da Irlanda e que uma terapia caseira 5 com algum auxilio do BCE chegaria para ultrapassarmos as dificuldades, a verdade é que, não tendo uma maioria parlamentar, estava dependente da boa vontade do principal partido da Oposição para conseguir fazer passar no Parlamento os célebres PECS, Planos de Estabilidade e Crescimento, que o País estava vinculado a apresentar à Comissão Europeia anualmente. Não vale a pena relatar como tudo acabou quando uma “coligação negativa” de todos os Partidos de Oposição levou à demissão do Governo e à convocação de eleições gerais. A negociação que se seguiu com o BCE, a Comissão Europeia e o Fundo Monetário Internacional, a salvífica TROIKA, ditou os termos em que o País seria resgatado. ii) A SITUAÇÃO DE EMERGÊNCIA ECONÓMICA E SEUS REFLEXOS JURÍDICOS 9. Como se sabe, a Constituição da República Portuguesa prevê no seu art. 19.º um “sistema de controlo de crises”(3)ou de “excepção constitucional” em que se faz, de acordo com a gravidade da ameaça, uma diferenciação entre o estado de sítio, mais grave, e o estado de emergência, menos grave. Neste quadro, GABRIEL PRADO LEAL formula, em estimulante estudo sobre o estado de excepção económica, a seguinte questão: “Em sua origem, os regimes de excepção constitucional foram mesmo delineados para permitir a suspensão apenas dos direitos de liberdade, relacionados directamente com a preservação da ordem contra perturbações de origem políticomilitar. Porém, em uma crise económica, os direitos fundamentais mais ameaçados são os económicos, sociais e culturais, que consubstanciam o núcleo dos direitos prestacionais. (3) Utilizamos a expressão de Gabriel Prado Leal, in “Excessão económica e governo das crises nas democracias”, in Sustentabilidade Fiscal em Tempos de Crise, ob. colectiva coordenada por J. Casalta Nabais e Suzana Tavares da Silva, Coimbra, Almedina, 2011, pág. 120. Sobre o art. 19.º da CRP vejam-se G. Canotilho e Vital Moreira, CRP – Constituição da República Portuguesa Anotado, I, 4.ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 2007, págs. 397-405. Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, I, 2.ª ed., Coimbra, W.Kluwer/Coimbra Editora, 2010, págs. 405-414. 6 Será possível cogitar a sua suspensão, ainda que ausente a previsão constitucional expressa?”(4) Não parece possível, sem arrimo no texto constitucional, admitir a situação de emergência económica, que permita a pura e simples suspensão de direitos fundamentais, nomeadamente de direitos e deveres sociais. De facto, “os órgãos de soberania não podem, conjunta ou separadamente, suspender o exercício dos direitos, liberdades e garantias, salvo em caso de estado de sítio ou de estado de emergência, declarados na forma prevista na Constituição” (art. 19.º, n.º 1, da Constituição). As dificuldades decorrentes de uma crise financeira não podem seguramente qualificar-se como uma calamidade pública, expressão reservada para catástrofes naturais (terramotos, inundações, incêndios de grande gravidade) ou sanitária (surto infeccioso incontrolável), as quais postulam tradicionalmente um iusextremaenecessitatis. A verdade é que, sem ir a esse extremo, têm sido encontrados pelas jurisprudências constitucionais e pela doutrina mecanismos justificativos de certas restrições legislativas temporárias na área dos direitos económicos e sociais, independentemente do texto constitucional em concreto ou de uma antecipação fáctica de uma revisão constitucional extraordinária e iminente. Apesar de se esgrimirem na doutrina e na jurisprudência constitucionais certos tópicos conflituais como a proibição de retrocesso legislativo, por um lado, e o carácter programático de alguns direitos sociais ou a reserva económica do possível, a verdade é que, em casos paradigmáticos, as jurisdições constitucionais têm salvo as medidas legislativas de combate à crise, sem prejuízo de exemplos históricos marcantes de uma longa luta entre a Administração Roosevelt e o Supremo Tribunal Americano, com sucessivas inconstitucionalizações de legislação económica por alegada violação do espírito liberal da Constituição. Sabe-se que, ao fim de seis anos, através da substituição de juízes vencidos pela lei da vida (ou da morte…) a situação se veio a alterar. Por curiosidade, aludirei a dois exemplos concretos desta “benevolência” dos Tribunais Constitucionais. O primeiro exemplo vem do Brasil e é referido por GABRIEL PRADO LEAL no seu já citado estudo. (4) Estudo cit., ob. cit., pág. 120. 7 O Estado do Rio Grande do Sul impugnou em 2007, através de “Suspensão de Segurança”, uma decisão liminar de um tribunal desse Estado da União que, em sede de mandado de segurança, suspendera a determinação do governo estadual de limitar o pagamento dos servidores públicos até 2.500 reais no mês a vencer, fixando calendário, no mês seguinte, para pagamento da restante remuneração. O tribunala quo havia fundamentado a sua decisão em disposição expressa do art. 35.º da Constituição Estadual, que fixa prazo para pagamento. Segundo o relato deste autor, o “Ministro Gilmar Mendes [presidente à época do Supremo Tribunal Federal] reconheceu a constitucionalidade do referido artigo 35.º, mas observou que, embora plenamente válido, seria preciso interpretá-lo de acordo com a realidade fáctica, uma vez que «é notório que a administração pública estadual não dispunha, naquele momento, de recursos financeiros suficientes para o cumprimento de todas as suas obrigações». Para ele a excepcionalidade da situação justificaria o descumprimento da norma. Com o apoio no pensamento jurídico do possível, o Ministro sustentou, então, que «a eficácia da norma constitucional do artigo 35.º da Constituição do Estado do Rio Grande do Sul […] depende de um estado de normalidade das finanças públicas estaduais»”(5) O segundo exemplo vem de Portugal e diz respeito à fiscalização abstracta sucessiva de três preceitos da Lei de Orçamento de Estado para 2011 referentes à redução das remunerações totais ilíquidas mensais dos titulares dos Órgãos de Soberania, altos cargos públicos e de outros órgãos constitucionais, membros e trabalhadores do gabinetes, militares, pessoal dirigente da Função Pública, e outros servidores e trabalhadores da Função Pública, bem como a várias reduções de componentes do sistema retributivo de magistrados juízes e magistrados do Ministério Público. A fiscalização de constitucionalidade fora requerida por um grupo de Deputados da Assembleia da República. Por maioria, com três votos de vencido, o Tribunal Constitucional, através do Acórdão n.º 396/2011 (relatora Cons.ª Lúcia Amaral)( 6), decidiu não declarar a inconstitucionalidade material requerida. Nessa decisão muito criticada, o Tribunal Constitucional considerou que, apesar de não se prever termo para a redução entre 3,5% e 10% de um amplo universo de pessoas que recebem retribuições pagas por dinheiros públicos e que aufiram mais de €1.500,00, daí não se podia inferir “o carácter definitivo da vigência de tais normas. É necessário ter aqui em conta a natureza que revestem os preceitos constitucionais (5) (6) Estudo cit., ob. cit., pág. 127. In Diário da República, II Série, n.º 199, de 17 de Outubro de 2011. 8 relativos à vigência das leis do Orçamento”. Não seria, porém, assim relativamente às reduções em 20% dos subsídios atribuídos a magistrados equiparados a ajudas de custo, dado o seu carácter percentual e aparentemente sem limite de vigência. E apelando às condicionantes da situação fáctica ou real, pode ler-se neste acórdão: “… Mas não pode ignorar-se que as reduções remuneratórias estabelecidas na lei do Orçamento do Estado de 2011 têm como objectivo final a diminuição do défice orçamental para um valor precisamente quantificado, respeitador do limite estabelecido pela União Europeia, no quadro das regras da união económica e monetária. Para o efeito, foi estabelecida uma calendarização por etapas anuais, sendo que a satisfação plena de tal objecto só se atingirá, de acordo com o programado, em 2013[…] Neste contexto, pode dizer-se que as medidas de diminuição da despesa pública inscritas no orçamento de 2011 mais não representam do que uma parcela, uma fase, de um programa cuja realização integral se estende por um horizonte temporal mais alargado. Não tendo o legislador optado, porém, por estabelecer expressamente para as reduções remuneratórias uma vigência correspondente à do PEC (2010-2013), esse dado não invalida a conclusão de que elas vigorarão segundo a sua natureza de medidas carácter orçamental, ou seja, anualmente caducando no termo do ano em curso. Apenas leva a dar como praticamente certa, porque necessária para o cumprimento das vinculações assumidas, a repetição de medidas de carácter idêntico, para vigorar nos anos correspondentes aos da execução do programa que as justifica e em que se integram, ou seja, até 2013.” Temos claramente neste texto o afloramento do sistema da reserva do possível ou do estado de emergência económica, o recurso ao velho brocando romano “saluspopuli suprema lex esto” que justificava os períodos de ditadura na velha Roma. Dai que o Tribunal Constitucional tenha acentuado que a eventual plurianualidade das medidas “se insere num «contexto de excepcionalidade», não visando qualquer tipo de 9 retrocesso social, mas sim o cumprimento das metas resultantes do Pacto de Estabilidade e Crescimento”. Faz-se, assim, apelo às “condições excepcionais e extremamente adversas para a manutenção e sustentabilidade do Estado Social”. E no plano das relações laborais públicas e privadas, o Acórdão em análise aponta para que a irredutibilidade dos salários não tem assento constitucional, mas apenas na lei ordinária, aparecendo apenas na legislação infraconstitucional, com a consequência de que pode sempre ser alterada por lei, embora o que esteja proibido, “em termos absolutos, é apenas que a entidade empregadora, tanto pública como privada, diminua arbitrariamente o quantitativo da remuneração, sem adequado suporte normativo”. No quadro das convenções internacionais de que o Estado Português é parte, nomeadamente da Convenção n.º 95 da OIT, ratificada em 1981, será possível a redução salarial dos trabalhadores privados, desde que não ocorra diminuição arbitrária por parte da entidade patronal, sem suporte normativo. Creio, por isso, que, a manter-se a doutrina deste Acórdão, dificilmente será de esperar inconstitucionalizações de medidas legislativas de supressão dos subsídios de férias e de Natal, relativamente a trabalhadores públicos e privados (7). A questão será resolvida em termos políticos, não sendo de esperar que no plano jurídico possam ser erguidos diques de contenção face às exigências publicitadas da TROIKA, sobretudo do FMI. É claro que a redução de pensões pagas pela Segurança Social a trabalhadores privados poderá revestir-se de alguma especificidade, face ao discurso do Acórdão n.º 396/2011. Veremos o que irá suceder, não se podendo olvidar que parte dos juízes que votaram este Acórdão deverão ser substituídos no primeiro semestre de 2012. Seja como for, é seguro que a diminuição de receitas fiscais que se vem verificando no corrente ano vai agravar-se e que a sustentabilidade fiscal do Estado – com o crédito cortado nos mercados e o recurso limitado ao BCE –acarretará aretracção do Estado Social,que irá continuar inexoravelmente. (7) Sobre o princípio da irredutibilidade dos salários vejam-se Pedro Romano Martinez, Direito do Trabalho, 5.ª ed., Coimbra, Almedina, 2010, págs. 649 e segs; Diogo Vaz Marecos, Código do Trabalho Anotado, Coimbra, WKluwer/Coimbra Editora, 2010, págs. 338-339. 10 iii) AS CONSEQUÊNCIAS DA CRISE: PREVISÍVEIS ALTERAÇÕESNO DIREITO DO TRABALHO 10. Para além da redução salarial referida, é curioso que deixou de se falar na urgente revisão constitucional que o PSD advogou, após a escolha de PASSOS COELHO como líder. A existência de uma ampla maioria partidária vinculada pelo “Memorando de Entendimento sobre as condicionalidades de política económica”, acordado com a Comissão Europeia e do “Memorando de Políticas Económicas e Financeiras” acordado com o FMI não torna urgente tal revisão, sobretudo em matéria laboral. O caminho trilhado já com a publicação da primeira Lei de Alteração ao Código do Trabalho (Lei n.º 53/2011, de 14 de Outubro) e as modificações que se anunciaram para este último diploma no contexto da aprovação iminente do Orçamento de Estado para 2012 levarão a tornar mais barato o despedimento de trabalhadores, nomeadamente os despedimentos colectivos ou por extinção do posto de trabalho. Por ora, estamos face ao aditamento do art. 366.º-A ao Código de Trabalho, mas tudo indica que o novo cálculo de indemnizações acabará por ser aplicado aos contratos agora não abrangidos (contratos vigentes na data da entrada em vigor da referida Lei n.º 53/2011). São de esperar igualmente alterações processuais destinadas a acelerar toda a matéria de despedimentos, embora sejam previsíveis fortes reacções dos organismos sindicais, ainda que o contexto de crise não seja propício a lutas prolongadas dos trabalhadores. Mantendo-se os mecanismos de concertação social, é de recear que os mesmos sejam impotentes para evitar a adopção de mecanismos mais gravosos no domínio da relação laboral. iv) AS CONSEQUÊNCIAS DA CRISE: O “ENCOLHIMENTO” DOS DIREITOS SOCIAIS, NO ÂMBITO DA SEGURANÇA SOCIAL 11. Omodelo social europeu que a Administração OBAMA tentou louvar para fazer aprovar a sempre adiada Reforma da Saúde nos Estados Unidos está sob fogo generalizado dos próceres do neo-capitalismo, sobretudo os norte-americanos que se 11 aproveitamdo movimento do Teapartycujas críticas inspiram os principais candidatos presidenciais do campo republicano que lutam pela nomeação. Há mesmo teorias “conspirativas”, publicadas na imprensa e subscritas por respeitáveis académicos, que sustentam que o calendário conservador norteamericano não é alheio às baixas de notação das agências de rating e que o ataque ao euro e à economia da União Europeia visa, em última instância, criar condições de afastamento entre esta e os Estados Unidos e pôr definitivamente em causa o modelo social europeu. As dificuldades orçamentais e o afastamento de vários Estados do euro dos mercados, inviabilizando a continuação do endividamento, vão ter necessariamente consequências recessivas nas economias mais frágeis, pondo em causa a sustentabilidade fiscal e financeira do Estado social. Portugal, segundo os indicadores de 2009 – anteriores ainda aos resultados do último Censo – é um país envelhecido, em que nos seus cerca de 10 milhões de nacionais – a população residente, incluindo estrangeiros, é estimada em 10,6 milhões de pessoas – quase um quinto tem mais de 65 anos. O índice de envelhecimento anda pelos 116,5% (relação entre idosos/jovens x100), sendo a taxa bruta de natalidade ligeiramente inferior à taxa de mortalidade. Neste contexto e numa tendência geral do empobrecimento da população, com uma taxa de desemprego de mais de 12% e com tendência para aumentar, a pressão sobre as prestações sociais até aqui a cargo do Estado tende a agravar-se. São, por isso, de esperar diversas alterações no regime dessas prestações sociais, aumentando as taxas moderadoras do Serviço Nacional de Saúde, restringindo os meios materiais e humanos deste, o que tudo acarretará mudanças legislativas, para além das medidas administrativas que traduzem diferentes políticas económicas.Inevitavelmente, a qualidade das prestações tenderá, mais ou menos lentamente, a degradar-se. Na segurança social, algumas conquistas tidas por irreversíveis poderão ser postas em causa com o argumento da “emergência social” e da “reserva do possível”. Todavia, neste domínio a Constituição é exigente e existe uma ampla jurisprudência constitucional que dificilmente poderá ser desconhecida(8). Por outro (8) Veja-se a análise muito completa dessa jurisprudência in João Carlos Loureiro, “Proteger é preciso, viver também: a jurisprudência constitucional portuguesa e o direito da segurança social”, in XXV Anos de Jurisprudência Constitucional Portuguesa, Coimbra, Coimbra Editora, 2009, págs. 255-398. 12 lado, as instituições democráticas terão de velar por que as restrições das prestações sociais não ponham em causa o princípio inultrapassável da dignidade da pessoa humana, o qual não é só tutelado pelo Estado, como também pelas obrigações da assistência familiar(9). Mas há exigência constitucionais que não podem ser descartadas, como sejam o direito ao subsídio do desemprego, ao rendimento social de inserção, entre outros. Simplesmente, o quantum desses subsídios não é garantido e dificilmente se poderá aqui apelar a um princípio de proibição de retrocesso social. III AS CONSEQUÊNCIAS DA CRISE NO PLANO DO DIREITO PRIVADO i) O SOBREENDIVIDAMENTO E OS SEUS REFLEXOS NOS DIREITOS PROCESSUAIS E NA ORGANIZAÇÃO JUDICIÁRIA 12. No plano do direito privado, incluindo o direito processual civil, creio que as eventuais modificações terão sobretudo a ver com o fenómeno de sobreendividamento das pessoas e das famílias, decorrente da desenfreada expansão do crédito ao consumo nos E.U.A. e na União Europeia. Como escreve FREI BENTO DOMINGUES no prefácio da tradução portuguesa de um Manifesto impressionante de autor francês anónimo, Insolvables! “Já não importa ter ou não ter dinheiro. O que importa é ter crédito e este é dado pela Banca. Esta faz publicidade de tudo. A Banca incita a comprar, a gastar. Ela lá está para emprestar. O seu delírio faz delirar os desejos mais absurdos. Pode-se ter tudo a crédito: bens de primeira necessidade, produtos de luxo, viagens, férias, casas, carros, festas de casamento e baptizado. Depois, esperem pelo resto. Tornaram-se insolventes, como (9) Ver, por exemplo, o Acórdão n.º 525/01 (in Acórdãos do Tribunal Constitucional, n.º 52, págs. 415 e segs). 13 mostra este livro admirável. Só há remédio na conversão do desejo.”(10) Neste Manifesto anticapitalista, que contém uma acusação duríssima contra os Bancos no seu conjunto – qualificados como “donos do mundo […], como louva-adeus demoníacos, predadores de mandíbulas canibais, sem outra religião para além do prazer imediato do dinheiro, [que] despojam os clientes que acreditam ser beneficiados e matam-nos sem escrúpulos em pequenas mensalidades”( 11)–são indicados números em relação à França que não podem ser ignorados: 4 milhões de desempregados, 6 milhões de sobreendividados, 7 a 9 milhões abaixo do limiar da pobreza. Mas a situação replica-se em todo o mundo industrializado e consumista. Em Portugal, os números são talvez mais impressionantes do que os da França, sobretudo no que diz respeito à percentagem dos desempregados. Existem quase dois milhões de pobres, ou seja, 700.000 famílias que vivem com menos de 400 euros por mês, existem 2 milhões de famílias (57% da população) que, em média, dispõem de 1600 euros mensais (os rendimentos oscilam entre os 10.000 e os 27.000 euros anuais). É o que se poderá chamar-se a classe média. Apenas cerca de 5% da população dispõe de rendimentos brutos de 5.000 euros mês e é neste segmento (como na classe média mais abonada) que vêm ocorrendo os mais preocupantes casos de sobreendividamento. Para rematar, só 1% da população (100.000 pessoas ou 37 mil famílias) vivem com mais de 150.000 euros por ano(12). É neste momento sobre os funcionários ou agentes do sector público e sobre todos os pensionistas que incidem as reduções salariais ou das pensões. As situações de desemprego que atingem um ou dois membros de uma família geram o descalabro financeiro, pois à diminuição dos rendimentos mensais associa-se a situação de incumprimento das obrigações de reembolso dos créditos obtidos. É a palavra default, tanto utilizada no jargão dos economistas. É caso de perguntar se em situações deste tipo não se justificará uma modificação contratual ao abrigo do art. 437.º do Código Civil. O aumento anual das pendências executivas e a explosão das injunções traduzem, em grande parte dos casos, as consequências do sobreendividamento. O (10) Prefácio a “Falidos! Um grito de esperança no meio da crise”, Porto, Porto Editora, 2011, pág. 8. (11) Ob.cit., pág. 27. (12) Números referentes a 2008, referidos por Martim Avillex Figueiredo em “Existe alguma possibilidade de sair destecrise?”, in Portugal para além da crise, ob. colectiva, Lisboa, Universidade Católica portuguesa 2011, págs. 26-27. 14 valor médio das execuções não ultrapassa os 5.000 euros e, em termos numéricos, uma elevada percentagem dessas execuções situa-se mesmo abaixo dos 2.500 euros. O problema agudiza-se quando a mesma pessoa ou família tem pendentes contra si três ou quatro execuções e está na iminência de ser executada pelas dívidas acumuladas do financiamento concedido para a habitação. Acossados pelos credores, pelos cobradores de fraque e por outros profissionais do género, destinatários de cartas não abertas dirigidas por outros credores, a saída mais fácil acaba por ser o requerimento de insolvência com a expressão de, no final de cinco anos, se poder imaginar um freshstart… Até lá, uma parte significativa dos rendimentos que restam são entregues ao administrador de insolvência e todos os tipos de privações vão sendo experimentados. Alguns tentam a emigração, alguns procuram a ajuda da família, o risco de suicídio permanece no horizonte de alguns. 13. Neste contexto do sobreendividamento das famílias e dos particulares, o Estado é pressionado para encarar a melhoria da eficiência da máquina judiciária e dos diferentes processos. Entre nós, a Reforma da Acção Executiva (2003) criou um novo profissional liberal, o solicitador de execução.Em 2008, o Decreto-Lei n.º 226/2008, de 20 de Novembro, procurou afastar o mais possível o juiz e a secretaria das execuções, conferindo excessivos poderes aos agentes de execução, só deixando intervir o primeiro daqueles quando seja inultrapassável a reserva do juiz. Face ao elevadíssimo número de pendências executivas, os consultores da TROIKA exigem medidas simplificadoras, mostrando-se mesmo surpreendidos com os pruridos nacionais de observância das garantias constitucionais. Nas execuções dos despejos propõem-se soluções de remoção imediata dos inquilinos faltosos, manumilitari se necessário, acolhendo-se as soluções mais expeditas dos norteamericanos e dos ingleses na matéria. Tendo-se apercebido de que o número excessivo de mais de um milhão de execuções pendentes engloba uma elevada percentagem de falsas pendências (acordos de pagamento em prestações, execuções paradas por falta de bens penhoráveis, execuções deixadas ir à conta, etc.), aconselham vivamente o Ministério da Justiça a levar acabo medidas de saneamento da situação presente, pondo termo às falsas pendências. 15 14. Relativamente aos litígios entre empresas, a TROIKA acolheu favoravelmente o propósito dos anteriores Governos e do presente de substituir a Lei de Arbitragem Voluntária de 1986 por uma nova Lei de Arbitragem mais moderna, inspirada na LeiModelo da CNUDCI. Além de acompanharem os trabalhos de preparação da lei, sugerindo soluções tidas por mais expeditas, pretendiam mesmo que fosse consagrada uma prioridade na execução das sentenças arbitrais…. A verdade é que os trabalhos de preparação da nova LAV se arrastaram inglória e inexplicavelmente entre Março de 2009 e Maio de 2011, mas com o “empurrão” da TROIKA a Lei foi aprovada em três meses, acolhendo o Governo actual plenamente o Projecto da APA de 2009, revisto em 2010. Do mesmo modo, pressiona o Governo no sentido de simplificar o processo declarativo comum, importando para a respectiva regulamentação o que tenha sido valorado favoravelmente no Regime Processual Experimental. Igualmente estão na calha alterações pontuais ao Código de Insolvência e de Recuperação da Empresa (CIRE) e ao Regulamento de Custas Processuais. E os particulares e as empresas procuram frequentemente evitar todos os custos – de diferente ordem – de uma insolvência, recorrendo a formas privadas de liquidação de património quando as dívidas no sector público são inexistentes ou pouco significativas: dações em pagamento ou cessões de bens aos credores, cessões de créditos cobráveis, etc. 15. Neste pano de fundo, recorta-se a questão da organização judiciária. O actual Governo viu-se confrontado com a necessidade de implementar a Lei da Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais de 2008, com fortes pressões nesse sentido. Logrou todavia convencer as novas figuras tutelares de que era demasiado cara a implementação dessa Organização Judiciária – que comportava 39 “grandes” comarcas – sustentando que o número deve ser substancialmente menor (20 grandes comarcas, 18 das quais coincidentes com a área dos distritos-administrativos). A crise condiciona, assim, a malha judiciária, em termos que não são perfeitamente claros no presente momento. 16 16. Relativamente aos contratos obrigacionais – de natureza civil ou comercial – importa dizer que as alterações de circunstâncias estão previstas nos arts. 437.º e 439.º do Código Civil como instituto que pode dar origem à resolução de um contrato a requerimento da parte lesada ou à modificação dele segundo juízos de equidade. Poderá ser um instituto a que venha a recorrer-se com mais frequência se vierem a verificar-se factos a que se alude amiúdas vezes com a esperança de que não venham a ocorrer, nomeadamente a saída do País da União Europeia e, concomitantemente, do euro. Como se sabe, a seguir à I Guerra Mundial os tribunais europeus, sobretudo os alemães, ocuparam-se de casos em que as desvalorizações galopantes de certas moedas – com destaque para o marco – afectaram irremediavelmente a justiça contratual. Eram os célebres casos de preços fixados antes da inflação galopante, os casos de taxas de câmbio fixadas e de cotações bolsistas. Como recorda KARL LARENZ numa bem conhecida obra sobre a base do contrato, devido ao facto de o BGB não solucionar especificamente os problemas de alterações de circunstâncias. “… a jurisprudência alemã esforçou-se durante a primeira guerra mundial e depois desta por proferir sentenças objectivamente justas, ao princípio mediante uma interpretação extensiva do conceito de impossibilidade da prestação do §275.º do Código Civil (quer dizer, a denominada «impossibilidade económica»); posteriormente, mediante a «interpretação integradora do contrato» (§157.º do CC), e, finalmente, mediante a aplicação imediata do princípio da «boa-fé» expresso no §242.º do Código Civil. Através da obra de PAUL OERTMANN, aparecida em 1921, sobre a «base do negócio» cujas ideias foram rapidamente aceites, estes esforços alcançaram tanto uma fórmula em relação a qual têm sido familiares desde então os juristas alemães, como o firme fundamento de uma «teoria» metódica que determinasse de modo preciso o pressuposto de facto e as consequências jurídicas”(13) (13) Base del Negocio Jurídico yCumplimiento de los Contratos, trad. espanhola, Madrid, Ed. Revista de Direito Privado, 1956, págs. 1-2. 17 A reelaboração de LARENZ sobre o conceito de base do negócio tendo por pano de fundo as alterações de circunstâncias decorrentes da II Guerra Mundial, distinguindo a base subjectiva e a objectiva do negócio jurídico, inspirou as soluções do nosso Código Civil, aí se distinguindo claramente o erro subjectivo sobre os motivos e sobre a base do negócio (art. 252.º) por um lado, e a alteração de circunstâncias enquanto fundamento de resolução do negócio ou modificações segundo juízos de equidade, por outro. Em períodos de crise, os tribunais portugueses dispõem, assim, de soluções normativas que permitem encontrar com facilidade a justiça do caso concreto. ii) AS ALTERAÇÕES DE CIRCUNSTÂNCIAS E OSEMPRÉSTIMOS IMOBILIÁRIOS 17. Uma situação bastante frequenteocorre nos empréstimos bancários para aquisição de imóveis, sendo o caso paradigmático o dos empréstimos para aquisição de habitação própria. Em contratos celebrados há alguns anos, o empréstimo foi concedido em função do valor da avaliação (próximo do valor de mercado) da garantia, ou seja, do imóvel a adquirir com o produto do empréstimo. Sabe-se que os valores de mercado dos prédios urbanos e suas fracções autónomas caíram fortemente desde 2009, havendo quem aponte para 30% a 40% de depreciação nos principais centros urbanos. Em caso de execução da garantia hipotecária, é natural que o preço da venda do imóvel se venha a situar num nível inferior ao do valor actual de mercado do imóvel, quer seja o Banco a adquiri-lo por adjudicação ou compra, quer seja um terceiro. Nestes casos, haverá uma parte significativa do crédito que não conseguirá ser satisfeita pelo produto de venda, continuando a entidade financiadora a dispor de um crédito sobre o mutuário e os seus eventuais fiadores ou avalistas. Tal significará que o risco da desvalorização do imóvel recairá exclusivamente sobre o mutuário e os seus garantes. Face a uma situação clara de alteração de circunstâncias, existe espaço para que os tribunais intervenham, porventura invocando a doutrina da boa fé para 18 considerar que, uma vez executada a garantia hipotecária, a dívida se extingue pelas forças do objecto da garantia. Ao que parece, há já decisões de 1.ª instância nesse sentido. Haverá igualmente espaço de intervenção para o próprio legislador, como de resto já foi proposto recentemente. E sempre poderá, por acordo (ou judicialmente?) converter um mútuo para aquisição de habitação num arrendamento temporário, eventualmente através de dação em pagamento com cláusula a retro. 18. Relativamente ao arrendamento urbano, é de esperar que aumentem as pressões dos senhorios para total liberalização do mercado, suprimindo-se a “hipoteca social” que tem presidido às legislações vinculísticas do arrendamento introduzidas em 1986, 1990 e 2006, que subsistem ainda quanto aos arrendamentos de pretérito. Resta saber se o Poder Político estará em condições de abrir mais uma frente de batalha, atingindo sobretudo as camadas da população urbana mais envelhecidas. 19. Haverá seguramente outras alterações no direito privado, mas as mesmas não são para mimprevisíveis. IV O FIM DA CRISE E O FUTURO 20. Como nos dizem os sociólogos, os economistas e os cultores da Ciência Política, as crises têm um processo cronológico, acabando por ter uma duração mais ou menos prolongada até se retomar uma certa normalidade. Julgo que ninguém arrisca na Europa um prognóstico da duração da presente crise, a qual tem a ver com um rearranjo global de partilha do poder político e económico no Mundo. A emergência de novas potências como a China, a India e o Brasil e um certo renascimento da Rússia, significarão o definhamento da superpotência E.U.A e, em dimensão mais acentuada, da União Europeia? A “locomotiva” alemã não quererá ou 19 poderá puxar os países da União para um patamar de crescimento sustentável? A crise que atingiu os periféricos Grécia, Irlanda e Portugal(em conjunto 6% do PIB da União) estender-se-á a potências grandes como a Itália, a Espanha e, eventualmente, a França? Concordarão as potências emergentes dos BRIC em tomar sobre si parte da dívida da EU, permitindo uma alavancagem da economia europeia? Estas interrogações irão ser respondidas com o tempo, mas parece que a fragilidade das lideranças do eixo franco-alemão – acentuada pela proximidade de eleições internas a disputar em condições adversas por SARKOZI e MERKEL – não augura um futuro radioso para a U.E. Põe-se, por isso, o risco de alguns dos Estados serem “convidados” a sair da União e a abandonar o sistema euro, havendo numerosos Académicos e publicistas que asseguram que tal está para breve. Todavia, a questão não é só económica, é sobretudo política! Em tal cenário catastrófico, o Estado, os Bancos nacionais, as famílias e as empresas manterão as dívidas titulados em euros mas as receitas futuras passarão a ser percebidas na moeda local renascida, com observância do princípio do nominalismo continuamente monetário, a taxa em de contexto câmbio da inflacionista moeda inevitável, local. Poderá degradando-se chegar-se à inconvertibilidade do novo escudo e a uma situação de falência global. Estaremos, por isso, longe das preocupações de já longínquo Regulamento n.º 1103/97 que disciplinara a introdução do euro, com salvaguarda do princípio de estabilidade dos contratos! Mas mesmo que Portugal e os “suspeitos do costume” se mantenham no sistema euro, o empobrecimento global será significativo e todos os Estados terão de adoptar políticas recessivas impostas pelos credores externos. A conflitualidade social não deverá, por isso, abrandar, antes se agravará, sendo duvidoso que o carácter tradicionalmente ordeiro se mantenha com a intervenção de muitos descontentes desenquadrados. 21. Não é possível prever como evoluirá o sistema jurídico e qual o figurino constitucional que virá a ser adoptado. A constituição do Século XXI, mantendo embora o regime democrático, será radicalmente diferente da Constituição compromissória que temos e que resulta em grande parte das alterações que o 20 partido-de-regime – o Partido Socialista – tem aceite, de forma mais ou menos convencida?(14) Entramos num domínio difícil de vaticinar, mas creio que é seguro que iremos ter saudades dos gloriosos anos noventa do passado século quando o sonho era europeu e não se tinha a consciência plena de que 20% da população humana consome 86% dos recursos da Terra! Receio que para todos nós o sonho se tenha tornado um pesadelo e que- salvo um milagre – o empobrecimento generalizado aprofunde um clima de insegurança e de confronto social, não sendo perfeitamente claro se o fim da crise corresponderá a uma situação de maior justiça ou antes a um acumular de injustiças. É bom não esquecer que, “em casa em que não há pão, todos ralham e ninguém tem razão”. Com esperança,porém, devemos confiar que virão melhores dias. Não é impunemente que o nosso País tem quase nove séculos de história e que tem superado frequentes crises ao longo da sua vida como Nação independente. E talvez a Europa à beira do precipício consiga ainda dar um passo atrás. Confiemos… Muito obrigado pela vossa atenção. (14) Sobre a assimetria do sistema partidário português veja-se Joaquim Aguiar “A nossa Constituição no contexto da crise da primeira década do Século XXI”, in Portugal hoje para além da crise cit., págs. 84 e segs. 21